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Por uma abordagem territorial da história ambiental: uma leitura de Claude Raffestin. Haruf Salmen Espindola 1 Universidade Vale do Rio Doce Núcleo de Estudos Históricos e Territoriais A proposta de uma abordagem territorial da história ambiental nos remete a questão do espaço e de como o concebemos, bem como à relação entre história-geografia. O espaço é concebido pelos historiadores como um dado de fato da realidade, uma delimitação espacial, um fixo e um fechado, ou seja: localização, limite, cenário e trajetória dos acontecimentos (onde e aonde). Entretanto essa leitura do espaço não corresponde à realidade espacial, pois esse é sempre contingente, relacional e aberto. Aqui se tem outra concepção: espaço como coetâneo, simultaneidade de diferentes, heterogêneos, acasos, surpresas, incertezas, invisíveis, imprevistos, possibilidades que se abrem ou se fecham, trajetórias múltiplas, encontros, desencontros e não-encontros. A ferramenta do historiador é o tempo/narrativa, que cobra seu preço para a história ser bem sucedida e agradar ao leitor. O historiador/autor cria a sucessão e a transpõe para o texto. Ele consegue isso fazendo recortes, rejeitando ou incluindo dentro da sucessão, delimitando e eliminando contradições, evitando pluralidades que desviariam o leitor e produziriam digressões. Dominado pelo tempo, o espaço se tornou um dado, um fixo, que podia ser recorte, esquadrinhado, classificado e mapeado. O espaço foi naturalizado e convertido no quadro geográfico no qual ocorre o que realmente importa a narrativa. Assim, o espaço é fechamento e horizontalidade, enquanto o tempo é mudança e abertura para um futuro novo. Contra isso Doreen Massey (208, p. 94-95) se manifesta: “Se o tempo deve ser aberto, então o espaço tem de ser aberto também. Conceituar o espaço como aberto, múltiplo e relacional, não acabado e sempre em devir, é um pré-requisito para que a história seja aberta”. O historiador ao recortar e precisar seu objeto, inquirir as testemunhas e examinar as fontes, elimina as contradições de forma a construir sua narrativa. Isso permite organizar as singularidades em história, dando-lhes unidade no texto, que a faz ter sentido (tudo fica explicado/contado, sem lacunas e contradições). A narrativa é o modo de fazer do acaso, do contingente ou, como diria os antigos, da fortuna determinações do processo e do produto 1 Professor Titular da Universidade Vale do Rio Doce Univale; Coordenador do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território GIT/Univale. Doutor em História Econômica pela USP. As pesquisas contaram com recursos do CNPq.

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Page 1: Por uma abordagem territorial da história ambiental: uma ... · Por uma abordagem territorial da história ambiental: uma leitura de Claude Raffestin. Haruf Salmen Espindola1 Universidade

Por uma abordagem territorial da história ambiental: uma leitura de Claude Raffestin.

Haruf Salmen Espindola1

Universidade Vale do Rio Doce

Núcleo de Estudos Históricos e Territoriais

A proposta de uma abordagem territorial da história ambiental nos remete a questão do

espaço e de como o concebemos, bem como à relação entre história-geografia. O espaço é

concebido pelos historiadores como um dado de fato da realidade, uma delimitação espacial,

um fixo e um fechado, ou seja: localização, limite, cenário e trajetória dos acontecimentos

(onde e aonde). Entretanto essa leitura do espaço não corresponde à realidade espacial, pois

esse é sempre contingente, relacional e aberto. Aqui se tem outra concepção: espaço como

coetâneo, simultaneidade de diferentes, heterogêneos, acasos, surpresas, incertezas, invisíveis,

imprevistos, possibilidades que se abrem ou se fecham, trajetórias múltiplas, encontros,

desencontros e não-encontros. A ferramenta do historiador é o tempo/narrativa, que cobra seu

preço para a história ser bem sucedida e agradar ao leitor. O historiador/autor cria a sucessão e

a transpõe para o texto. Ele consegue isso fazendo recortes, rejeitando ou incluindo dentro da

sucessão, delimitando e eliminando contradições, evitando pluralidades que desviariam o

leitor e produziriam digressões.

Dominado pelo tempo, o espaço se tornou um dado, um fixo, que podia ser recorte,

esquadrinhado, classificado e mapeado. O espaço foi naturalizado e convertido no quadro

geográfico no qual ocorre o que realmente importa – a narrativa. Assim, o espaço é

fechamento e horizontalidade, enquanto o tempo é mudança e abertura para um futuro novo.

Contra isso Doreen Massey (208, p. 94-95) se manifesta: “Se o tempo deve ser aberto, então o

espaço tem de ser aberto também. Conceituar o espaço como aberto, múltiplo e relacional,

não acabado e sempre em devir, é um pré-requisito para que a história seja aberta”.

O historiador ao recortar e precisar seu objeto, inquirir as testemunhas e examinar as

fontes, elimina as contradições de forma a construir sua narrativa. Isso permite organizar as

singularidades em história, dando-lhes unidade no texto, que a faz ter sentido (tudo fica

explicado/contado, sem lacunas e contradições). A narrativa é o modo de fazer do acaso, do

contingente ou, como diria os antigos, da fortuna determinações do processo e do produto

1 Professor Titular da Universidade Vale do Rio Doce – Univale; Coordenador do Programa de Pós-graduação

Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território – GIT/Univale. Doutor em História Econômica pela USP. As

pesquisas contaram com recursos do CNPq.

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(texto) História. Como nota Willian Cronon (1992, p. 1349-1350): O sucesso da narrativa é

proporcional à extensão com que escondem as descontinuidades, elipses e contradições que

solapariam o sentido pretendido para a história. Qualquer que seja seu propósito público, não

pode evitar um exercício coberto de poder: inevitavelmente, sanciona algumas vozes

enquanto silencia outras. (tradução livre)

A História Ambiental tem muito a contribuir se adotar outra imaginação do espaço,

diferente daquela que tem dominado a ciência da história. O espaço como relacional

permitiria abrir a narrativa a diferentes estratos do tempo (Koselleck, 2014) e, desta forma,

estabelecer uma nova maneira de escrever a história ambiental, dos biomas, dos seres

diferentes, heterogêneos e múltiplos, tanto humanos como não-humanos, uma história que

mais do que não estar centrada no humano, não seja determinada por categorias de poder,

particularmente a unidimensionalidade espaço-temporal do Estado e do Nacional. O geógrafo

Claude Raffestin, cuja obra “Pour une Géographie du Pouvoir” foi publicada em 1980, tem

muito a contribuir. Seu pondo de partida é a critica à geografia política, que fez do Estado a

única forma de organização dotada de poder político suscetível de se inscrever no espaço. Em

sua opinião a verdadeira geografia só pode ser uma geografia do poder ou dos poderes

(RAFFESTIN 1993: 22 ). No objetivo de um diálogo interdisciplinar, concentraremos nossa

atenção na nova geografia política, a partir dessa obra inaugural. É preciso tomar a geografia

para além da antiga consideração de disciplina auxiliar da história, trazendo conceitos que de

fato proporcione uma contribuição epistemológica para a história ambiental.

Ao se partir da premissa da existência “tecida por relações” e, consequentemente,

constituidora de “um vasto complexo relacional”, se chegará a uma problemática muito

diferente daquela que dominou a geografia, ou seja, a problemática morfofuncional que se

fundamenta numa geografia triangular: “querer ver, saber ver, poder ver”. A problemática

relacional permitiria romper com a narrativa e escala unidimensional do Estado e, além disso,

superar o compromisso descritivo dominante na geografia morfofuncional, para assumir uma

postura intelectual ativa e crítica, conforme propõe Raffestin (1993, p. 31): uma geografia

“fundamentada por um triângulo - querer existir, saber existir, poder existir”. Trata-se de uma

mudança epistemológica radical, pois exige “outras interrogações e outras inquietações

sociais que, num outro enfoque, se inscrevem num contexto que não é o da testemunha, mas

sim o da ‘participação crítica’”.

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O objeto do livro “Por uma Geografia do Poder” de Claude Raffestin são as ligações

entre poder, população, território e recursos. Ele busca oferecer as ferramentas conceituais

para compreender a geografia das relações de poder na contemporaneidade. Esse é um livro,

se considerarmos a primeira edição de 1980, adiantado em relação ao seu tempo, pois trata

das tendências atuais que naquele contexto estavam apenas se esboçando. Raffestin

estabelece uma nova geografia política, ao criticar os geógrafos fundadores (momento

epistemológico de nascimento da geografia), particularmente Friedrich Ratzel, sem, contudo,

negar suas categorias fundamentais: posição, população e circulação.

Um aspecto importante do seu pensamento é a relação estabelecida entre território,

norma e recurso. Nas relações com os territórios ou com os recursos sempre estão presentes

poder e norma para a maior eficácia do controle e da gestão dos seres e das coisas. A nova

geografia do poder ou, melhor, dos poderes, pois o poder político é congruente a toda forma

de organização, desconstrói a premissa unidimensional do Estado como única forma de

organização dotada de poder político suscetível de se inscrever no espaço. São as relações que

tornam inteligíveis o poder e suas manifestações espaciais. Os elementos constituintes da

problemática relacional são: a) os atores, cada um com sua política; b) o conjunto das

intenções (finalidades dos atores); c) as estratégias que os atores utilizam para alcançar suas

finalidades; d) os diversos códigos utilizados pelos diferentes atores; e) os componentes

espaciais e temporais da relação.

As categorias de espaço e tempo (lugar, duração e ritmo) são fundamentais na

relacionalidade entre atores e para as estratégias que esses utilizam. As posições dos atores no

espaço e no tempo são diferenciadas e a suas capacidades de poder e habilidades de utilizar

suas posições e recursos disponíveis não são idênticas. Espaço e tempo funcionam como

ponto de apoio para se aplicar a alavanca que aciona o poder e por ali modifica as situações

reais no sentido do que se queira. Como o poder se apoia sobre espaço e tempo, é importante

mostrar as diferentes situações espaciais e temporais dos atores em relação, identificando

simetrias ou dissimetrias entre os polos (RAFFESTIN, 1993, p. 34).

Raffestin (1993, p. 40-41) define os atores envolvidos na relação em duas categorias:

sintagmáticos e paradigmáticos. O ator sintagmático é aquele com objetivo claro e que age

para realizar sua finalidade e, ao fazê-lo, estabelece processo e articulações sucessivas no

interior do processo (agenciamentos). Em contraste, os atores paradigmáticos são

aglomerações de seres humanos que surgem de classificações e repartições feitas pelos atores

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sintagmáticos: público, contribuinte, habitante, residente, produtor, consumidor, eleitor, fiel,

massa, guerrilheiro, etc.. O que caracteriza o ator paradigmático é aparecer como trunfo nas

relações de poder, constituindo-se em unidade de cálculo para os atores sintagmáticos.

A crítica ao entendimento aceito sobre o poder é crucial: poder não é coisa nem

resulta da posse de coisa, bem como não vem de cima nem é unidirecional. O poder se

manifesta na relacionalidade e se realiza de baixa para cima, isto é, se realiza no

consentimento ou resposta positiva por parte daquele que é alvo da ação. Dois outros

entendimentos precisam ser considerados: poder é igual saber, ou seja, quem sabe tem poder e

quem tem poder sabe; como existe o poder também existe o não-poder (alienação). O poder

visa dominação sobre seres e coisas e, para conseguir sua finalidade, na relação o poder pode

privilegiar determinado trunfo (população, território e recursos) ou mobilizar diferentes

trunfos, em graus diversos.

A relação é fonte de modificação, ou seja, uma vez iniciada os atores em todos os seus

polos se modificam no curso do processo relacional. Daí Raffestin (1993, p. 64) afirmar que

somente “quando a relação se desvenda que se pode precisar, fazendo-se um orçamento

relacional, quais são as estruturas do poder”. Os atores sintagmáticos são os sujeitos

envolvidos em relação ou diferentes relações, formando organizações de seres e coisas,

porque os possuem e controlam. Os seres e coisas são trunfos que determinada organização,

ao movimentar-se e entrar em relação (agir), pode decidir colocá-los todos ou parcialmente no

jogo relacional. As organizações, no entanto, quase sempre mascaram seus verdadeiros

trunfos. Esses, em última instância, são energia e informação que as organizações controlam e

arranjam conforme seus objetivos. Assim, elas organizam os circuitos para a circulação,

distribuição e difusão ou, ao contrário, para concentração, circunscrição e rarefação da energia

e informação.

Para Raffestin (1993, p. 130) “o poder evolui sempre entre dois polos dos quais se

serve sucessivamente: a unidade e a pluralidade”. Ele pede ao leitor para reter a “lição da

biologia: nossa riqueza coletiva está na nossa diversidade”. Assim, o outro nos é necessário,

seja indivíduo ou sociedade, exatamente porque “é diferente de nós”. A diversidade é uma

“garantia da autonomia da espécie humana” e de sua “autonomia cultural, sem a qual não é

possível uma ação diferenciada”.

As duas primeiras, das quatro partes de “Por uma Geografia do Poder”, são longas e

fornecem os fundamentos para a compreensão do núcleo central da obra: os conceitos de

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território e territorialidade. Como território é produção e é produto, ao mesmo tempo, do

processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, mediado por relações de

poder e utilização, estão presentes no processo as dimensões normativas, simbólicas,

materiais, seja em uma, algumas ou todas as esferas da vida humana: sociais, econômicas,

culturais, políticas, técnicas e ambientais. Logo no início da terceira parte da obra se encontra

a citação repetida exaustivamente por todos aqueles que passaram a utilizar o termo território:

“O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por

um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao

apropriar de um espaço concreta ou abstratamente (por exemplo, pela

representação), o ator ‘territorializa’ o espaço.” (RAFFESTIN, 1993, p. 143).

É preciso ir além da citação e da suposição do que ela significa. Algumas categorias

são fundamentais para se compreender o conceito de território: apropriar, delimitar, definir e

regular. A apropriação do espaço se inicia “a partir do momento em que um ator manifeste a

intenção de dele se apoderar”. Assim, o território “é uma produção, a partir do espaço”. Por

ser uma produção, “se inscreve num campo de poder”. Para Raffestin, produzir uma

representação do espaço já é uma apropriação. O ator engajado representa o espaço a partir da

sua posição (ponto em que se encontra) e o representa para si. O ponto “fornece o suporte

egocêntrico da representação, pois esta é sempre uma manifestação do ‘eu’ em relação ao

‘não-eu’, uma explicitação da interioridade em relação à exterioridade” (RAFFESTIN, 1993,

p. 146). É pelo resultado da ação que se pode “verificar o valor da energia informada,

cristalizada na representação”. O ator decide e age a partir da representação, isto é, tendo à

frente a imagem territorial projetada.

Para Boaventura dos Santos (1988, p. 144-145) a representação do poder tende a ser

na pequena escala, porém ao passar da intensão à ação, a escala se modifica, pois a atuação

quotidiana (agir) é efetivada com base em decisões na grande escala. “O poder tende a

representar a realidade social e física numa escala escolhida pela sua virtualidade para criar os

fenômenos que maximizam as condições de reprodução do poder.” Segundo Raffestin (1993,

p. 148-149) o ator delimita “campos operatórios” e, ao fazer isso, quando age e como se as

ações se deduzissem umas das outras. Esses campos operatórios construídos pelo poder são

malhas nas superfícies do sistema territorial (recortes/regionalização). Essa representação é

fundamentada e sustentada por uma “psicossociologia e uma ideologia”. Daí a necessidade de

se “construir, ou reconstruir, o contexto sócio-histórico no qual se originou e do qual procede”

para desvelar seu significado.

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O território é um sistema (sistema territorial) formado por tessituras (malhas/regiões),

nós (pontos/localidades) e redes (ligações entre pontos/localidades), apesar de nem sempre

serem discerníveis, exceto para os atores sintagmáticos. O Estado cria continuamente novos

recortes, faz novas implantações de locais e estabelece novas ligações entre os locais. Essas

operações são “atos observáveis” no espaço que podem ser analisados. Entretanto não é

apenas o Estado, pois todos os atores sintagmáticos necessitam organizar seu “campo

operatório”. Como afirma Raffestin (1993, p. 150), “nenhuma sociedade, por mais elementar

que seja, escapa à necessidade de organizar o campo operatório de sua ação”. O sistema

territorial se apresenta como uma “produção já elaborada, já realizada” (produto territorial),

apesar de suscetível de mudanças (produção territorial), cuja análise supõe uma leitura

(linguagem) e interpretação que resulte em conhecimento sobre as representações e práticas

que produziram o território e operam nele. Do Estado ao indivíduo, todos os atores

sintagmáticos ‘produzem’ o território. “Em graus diversos, em momentos diferentes e em

lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem ‘territórios’. (...) Todos nós

elaboramos diversas relações de poder.” (RAFFESTIN, 1993, p. 152)

As malhas/regiões são campos operatórios delimitados pelos atores sintagmáticos. O

Estado foi bem sucedido na sua capacidade de recortar o território em regiões, produzindo

diferentes malhas conforme suas finalidades (saúde, educação, segurança pública, justiça,

economia etc.). Regionalizar é a ação de delimitar, fixando limites/fronteiras. A

regionalização não é homogênea nem uniforme, pois o território acolhe os diferentes, diversos

e heterogêneos, seja população ou outros elementos do sistema territorial. O território é

indissociável da noção de limite/fronteira, pois toda organização delimita para definir seu

campo operacional e efetivar sua ação2. “Definir, caracterizar, distinguir, classificar, decidir,

agir implicam a noção de limite: é preciso delimitar”. As escalas utilizadas, no entanto, são

diferentes conforme os atores, suas finalidades, conhecimento, estratégias, recursos e

habilidades. Existe ator que pode intervir em todas as escalas, enquanto outro fica limitado a

uma escala dada/determinada. As diferentes regionalizações/malhas produzem as tessituras do

território, sendo que a “tessitura exprime a área de exercício dos poderes ou a área de

capacidade dos poderes”. Portanto, as “tessituras se superpõem, se cortam e se recortam sem

cessar”, formando zonas de transição. (RAFFESTIN, 1993, p. 153, 154).

Os pontos são posições ocupadas pelos atores. Conhecer a posição é saber “onde se

situa o outro, aquele que pode nos prejudicar ou nos ajudar, aquele que possui ou não tal

2 Fixar objetos da ação já constitui uma “delimitação em relação a outros objetivos possíveis”.

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coisa, aquele que tem acesso ou não a tal recurso etc”. O ponto é local onde se encontra

coisas, indivíduos e grupos. O local é lugar de poder e de referência, sendo que é nele que se

dá efetivamente a existência, seja uma aldeia, cidade, capital ou metrópole gigante. O local

representa a posição do ator, que pode ser definida de forma absoluta ou relativa, porém ele

sempre está em relação e estabelece ligações entre pontos/localidades. Os atores criam redes

porque, ao agirem, “procuram manter relações, assegurar funções, se influenciar, se controlar,

se interditar, se permitir, se distanciar ou se aproximar”. As redes mantidas pelos atores

podem ser abstratas ou concretas, invisíveis ou visíveis, podendo ter a finalidade de garantir

ou de impedir a comunicação.3 Uma rede, ao mesmo tempo, pode garantir e impedir a

comunicação, dependendo da escala considerada: redes rodoviárias e ferroviárias para

atenderem a lógica nacional podem arruinar a comunicação quando examinadas na grande

escala (no nível local). (RAFFESTIN, 1993, p. 156, 157; negrito é nosso)

A categoria de fronteira não se refere apenas a territorialidade animal, mas também é

indissociável da territorialidade humana. Fronteira (limite, margem) é um invariante

(universal) biossocial que está presente para todos os grupos humanos. Se define como

interface com quatro funções: tradução, regulação, diferenciação e relacionamento. São essas

quatro funções que permitem apreender o que é a fronteira e a sua finalidade. Não existe

fronteira natural, pois toda fronteira é uma construção social a partir de uma vontade e por um

ato de poder. Entretanto, ela é sempre ambígua, pois se por um lado é controle, separação,

constrangimento e proibição; por outro é local de encontro e passagem. No sentido simbólico

ou real a fronteira sempre será, ao mesmo tempo, fixação/controle e transição/transgressão.

A fronteira possui a propriedade de influenciar a relação entre seres humanos (da pessoa em

relação ao seu grupo; ou do grupo em relação a outros grupos) e a relação dos seres humanos

com seu ambiente (relação com o não-humano), fazendo emergir o fenômeno da

territorialidade humana.

A definição de territorialidade que se encontra em Raffestin (1993, p. 158-159) é

citada por quase todos os autores brasileiros que tratam do assunto, independente de sua

filiação materialista ou cultural. Nessa passagem se encontra a questão da relação com a

natureza, porém esse aspecto foi negligenciado pelos diversos autores que a utilizaram.

De acordo com a nossa perspectiva a territorialidade adquire um valor bem

particular, pois reflete a multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos

membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os homens “vivem”, ao

3 A rede que desenha limite/fronteira para impedir a comunicação é uma “rede de disjunção”.

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mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um

sistema de relações existenciais e/ou produtivistas. Quer se trate de relações

existenciais ou produtivistas, todas são relações de poder, visto que há interação

entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como

as relações sociais.(O negrito é nosso)

Antes de analisarmos as implicações dessa citação, seria interessante conhecermos o

ponto de vista de Raffestin (1993, p. 160) sobre o tipo de relação que é a territorialidade.

Antes de enunciar sua definição, ele crítica o que denomina concepção restrita de

territorialidade,4 porque em seu ponto de vista trata-se de uma relação triangular: “no sentido

de que a relação com o território é uma relação que mediatiza em seguida as relações com os

homens, com os outros”. Trata-se, portanto, de um “sistema tridimensional sociedade-espaço-

tempo”, sendo que a territorialidade é “a maneira pela qual as sociedades satisfazem, num

determinado momento, para um local, uma carga demográfica e um conjunto de instrumentos

também determinados, suas necessidades em energia e em informação.” Essas necessidades se

referem ao que torna possível a existência (social, política e cultural) e a produção

(economia). Por tratar de relações entre atores sintagmáticos e desses com atores

paradigmáticos, são sempre relações de poder, que se dão no tempo e espaço. Essas, no

entanto, não se restringem à dimensão social, visto a intensão de produzir mortificação não

apenas nas relações sociais, mas também nas relações com a natureza. Se existir equilíbrio,

temos relações simétricas, do contrário são dissimétricas. Portanto, a territorialidade é

“consubstancial a todas as relações”, constituindo-se na "face vivida" da "face agida" do

poder. Como a territorialidade é o vivido territorial, sua análise “só é possível pela apreensão

das relações reais recolocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal”.

(RAFFESTIN,1993, p. 161 e 162)

O território possui determinada densidade normativa conforme a maior ou menor

complexidade das redes de circulação e comunicação. Quando maior a densidade normativa

mais forte é o domínio territorial e, consequentemente, demandará um fluxo crescente de

informação, exigindo grandes quantidades de energia. A tomada do poder não é possível sem

uma estratégia capaz de possibilitar a apropriação e o controle das redes de circulação e

comunicação. “Controlar as redes é controlar os homens e é impor-lhes uma nova ordem que

substituirá a antiga” (RAFFESTIN, 1993, p. 213).

4 A territorialidade não foi objeto de teorização pelas ciências humanas e permaneceu marginal, até na geografia,

mesmo depois da publicação da obra de David Sack, propondo uma teoria da territorialidade humana (Human

territoriality its theory and history. Cambridge: Cambridge University, 1986).

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As relações do ator com os outros e com a natureza (entendida aqui como o não-

humano geológico, biológico, tectónico, atmosférico, geográfico etc.) é mediatizada pelo

território, por meio de diversos mediadores que lhe são próprios: limites/fronteiras,

linguagem, normas, cultura, comunicação, circulação, relações de produção, mercado, ciência,

técnicas, entre outros. Esses mediadores próprios do território configuram sua territorialidade,

abarcando a cotidianidade e as estruturas que tornam possíveis essa cotidianidade: estruturas

de repetição e estruturas transcendentes, para usar dois termos de Koselleck (2014, p. 24). A

territorialidade é vivida e, quase sempre, não é percebida pela consciência, exceto quando o

ator se vê privado parcial ou totalmente dela (turismo, migração, degredo, guerra, revolução

política, ocupação estrangeira, crise econômica, catástrofe, colapso ambiental etc.). É

fundamental ter clareza de que a territorialidade não é estática, mas está em permanente

modificação no decorrer do tempo e no transcurso dos próprios processos

relacionais. Também é decisivo entender que trata de relações mediatizadas pelo território,

não apenas relações entre os seres humanos, mas relações entre humanos e não-humanos.

Isso nos leva de volta à definição de territorialidade proposta por Raffestin (1993, p.

158-159), conforme citado anteriormente, particularmente quando afirma que os “atores que

procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais”. As relações

sociais têm retido a atenção dos estudiosos ou daqueles que aplicam a territorialidade em

programas e políticas públicas, especialmente nas áreas dos ministérios do Desenvolvimento

Agrário (MDA), do Desenvolvimento Social (MDS) e da Cultura (MinC). Entretanto, a

variável negligenciada ocupa um lugar central na reflexão proposta no livro “Por uma

Geografia do Poder”. A quarta parte do livro é toda dedicada a analisar a relação dos

atores/sociedade com a natureza.

Raffestin (1993, p. 223-236), que fundamenta os próximos parágrafos, inicia com a

crítica da noção largamente aceita de recurso natural. Sua ideia central pode ser resumida na

citação: “... é uma concepção histórica da relação com a matéria que cria a natureza

sociopolítica e socioeconômica dos recursos. ‘Os recursos não são naturais; nunca foram, e

nunca serão!’” (p. 225). A natureza é igual matéria, que é igual espaço, ou seja, não tem

significa em si mesmo, exceto ser o que é. A distinção entre matéria e recurso é crucial, sendo

a primeira um dado natural e a segunda uma realidade histórica. Na perspectiva da

problemática relacional proposta por Raffestin a matéria, recurso e tecnicismo são

equivalentes ao espaço, território e territorialidade, respectivamente. Isso nos remete a um

primeiro entendimento que afeta o uso convencional das noções de “meio ambiente”,

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sustentabilidade, proteção ambiental etc.: o ambiente não se refere à natureza – matéria –

espaço; a relação é outra: ambiente - recurso - território.

Matéria é a substância natural encontrada na superfície ou subsolo da Terra, é um

“dado” que preexiste à ação humana. A matéria equivale ao espaço, se esse é tomado no

sentido de anteceder à intervenção/ação do ator. As forças que produziram a matéria não

resultaram de uma prática (humana). A matéria, tal como o espaço, é um “vasto campo de

possibilidades”, dentre as quais algumas podem se realizar conforme a intencionalidade do

ator (conhecimento e prática)5. O que interessa na matéria são as propriedades que ela contém

e a possibilidade que oferece à manipulação física, química e biológica. A valorização dessas

propriedades se liga à relação que os humanos estabelecem com ela, ou seja, elas não são

dadas, mas “inventadas”, pois resultam do trabalho (energia informada) – saber/ciência que

identifica as propriedades, o como se manipula e quais utilidades cumprirão. Portanto, não é a

matéria em si, mas determinadas propriedades que são integradas a uma prática. Todavia,

nenhuma ação ou emprego esgota as propriedades da matéria.

As práticas não são estáveis, modificam-se no espaço e tempo, sendo que as mudanças

de práticas podem constituir nova relação com a matéria, podem evidenciar novas

propriedades. Por mais rudimentares que sejam as práticas, essas são sempre complexas –

“sequência que apela a um ou a vários conhecimentos”. Uma matéria, mesmo conhecida,

pode ser “sem nenhum valor particular antes de ter sido integrada numa prática”. O valor do

espaço e o valor da matéria são condicionados aos contextos sócio-históricos-técnicos,

fazendo com que a realidade material sofra alteração ao longo do tempo e do espaço. O

número das propriedades contido na matéria pode crescer, pelo avanço das práticas do qual é

objeto, ou pode desaparecer. A hipótese de um colapso da capacidade de “inovar” e de

“inventar” novas propriedades, transformando as práticas, pode ser admitida em

circunstâncias localizadas ou temporariamente, mas não para a espécie humana.

Sem a prática não haveria relação com a matéria nem produção, logo a matéria

permaneceria na sua condição de matéria: os atores se interessam pelas propriedades e

correspondente classes de utilidades. A relação modifica o quadro natural e, igualmente, os

atores envolvidos, produzindo desta forma o ambiente. Trata-se de uma relação de poder que

se inscreve no campo político por intermédio do modo de produção. Como já foi citado, “é

5 Raffestin não desconhece a possibilidade-limite de criação de matéria que não existe na natureza, como

resultado do avanço técnico-científico.

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uma concepção histórica da relação com a matéria que cria a natureza sociopolítica e

socioeconômica dos recursos” (RAFFESTIN, 1993, p. 225).

A relação com a natureza, que a modifica para recursos, é mediatizada pelo território

por meio de diversos mediadores combinados: técnica (capacidade de manipular as

propriedades identificadas); sociocultural (demanda por essas propriedades), econômica

(capacidade de transportar, produzir e fazer circular para o consumo); e político-jurídica

(norma jurídica estabilizadora da posse da coisa, domínio/propriedade absoluta e controle do

acesso às fontes, bem como poder político monopolizando a força capaz de assegurar esse

direito). O contexto técnico-econômico deve ser considerado, pois o número de propriedades

correlativas às classes de utilidade pode crescer com o tempo, conforme a técnica avança6 e as

outras circunstâncias históricas se modificam (social, cultural, econômica, político-jurídica).

O inverso também pode ocorrer, pois as mudanças podem provocar redução ou

desaparecimento de certas propriedades, por não apresentarem mais interesse ou utilidade. As

propriedades da matéria (recursos) são função da prática, representada por (Ar), isto é, ator

capaz de mobilizar uma técnica. Assim, não tem sentido pensá-las em função do tempo, como

uma curva regular (progressiva), pois existem patamares, quebras e saltos.

A tecnicidade é um subconjunto da territorialidade, constituída pelo conjunto de

relações que o homem, enquanto grupo, mantém com as matérias às quais pode ter acesso. A

técnica pode ser simétrica: relação não destrutiva com o meio material (natureza); ou

dissimétrica: relação destrutiva com o meio material. A sociedade atual tem uma tecnicidade

dissimétrica, prevalecendo a tendência de faltar certas matérias num futuro mais ou menos

próximo. A fragilidade aumenta com o crescimento da complexidade da técnica, pois a

mudança, mesmo que mínima, pode gerar consequência no conjunto. Recorrendo a Milton

Santos (1996, p. 119) existe uma relação epistemológica entre técnica e norma, pois ambas

promovem condicionamentos e determinam funcionamento. As técnicas complexas e os

objetos técnicos são portadores de crescente rigidez normativa, tanto na produção,

manipulação e utilização. A técnica pertence a esfera do poder, exprime relações de poder

entre os homens para os quais as propriedades da matéria são trunfo. “A produção dos

recursos supõe, pois, uma dominação mínima de uma porção do quadro espaço-temporal

6 Uma nova propriedade é função do avanço da técnica mobilizada pelo trabalho, porém não ocorre crescimento

exponencial dos recursos, pois isso exigiria progresso técnico exponencial, que não se confirma pela história da

ciência e técnica. A ideologia do progresso imagina um avanço exponencial, ou seja, os impactos negativos da

economia sobre as dimensões sociais e ambientais seriam resolvidos pela evolução futura da ciência e

tecnologia.

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dentro do qual, e para o qual, a tecnicidade interage com a territorialidade” (RAFFESTIN,

1993, p. 227-228). Toda relação com a matéria é uma relação com o espaço e com o tempo e,

portanto, é crucial a questão do controle do acesso ao espaço e da duração.7

Os recursos são classificados em dois campos: renováveis e não-renováveis. No

primeiro caso existe uma dependência da fotossíntese e, consequentemente, do funcionamento

dos ecossistemas. Rupturas na cadeia dos fatores bióticos e abióticos podem comprometer o

conjunto da vida, pois sem vegetal não há energia de base para a vida animal. A quantidade de

recursos renováveis não é estável, podendo aumentar em extensão (acréscimo de superfície

terrestre ocupada) e/ou intensidade (aumento da tecnicidade). A relação com o solo pode ser

simétrica ou dissimétrica, dependendo da mobilização ou não de técnicas de preservação.

Dois problemas devem ser considerados: a Terra é um espaço finito, logo existe limite para

aumentar a extensão; a “lei dos rendimentos decrescentes” faz com que a maior intensidade só

produza aumento de rendimento até certo ponto. Solo e água são os dois recursos necessários

aos ecossistemas agrícolas.

O solo cultivável existe em quantidade limitada, mas que pode diminuir por usos não

agrícolas, por erosão, por proibição (reserva legal).8 As relações de produção e relações

jurídicas (propriedade) interagem e constituem um sistema de relações de poder, no qual a

propriedade privada define uma relação de produção dissimétrica com o solo. Em relação à

quantidade de água tem-se uma constante invariável, pois essa não pode ser incrementada

nem diminuir.9 A procura, controle e administração da água fazem parte das sociedades de

todas as épocas.10 Raffestin previu corretamente (1980) que a água se tornaria um trunfo que

obrigaria o Estado a voltar-se prioritariamente para sua regulação e gestão. A importância

desse trunfo aumenta nos contextos de escassez, fazendo surgir diferentes redes de relações e

controle do acesso, inclusive forma de controle ilegal.11 Os conflitos que envolvem as águas

são relações de poder que se manifestam em todas escalas, de fazendeiros a Estados vizinhos.

7 Raffestin menciona como exemplo a crise do petróleo de 1973, quando a OPEP buscou controlar o espaço

petrolífero e controlar a duração (quantidade extraída e comercializada). As novas relações de poder inauguradas

com a crise do petróleo afetaram a tecnicidade dos países consumidores. 8 Na Europa e EUA prevalecem a tendência de diminuição pelas três razões, porém em países como o Brasil

ainda ocorre incorporação de novos solos cultiváveis, mas isso tem provocado discussões ambientais acirradas,

especialmente em relação ao uso do Cerrado e da Amazônia. 9 A informação dessa invariabilidade da quantidade de água, atualmente, está reproduzida em centenas de

milhares de sites na Internet. 10 Nas civilizações antigas, tais como Egito, Mesopotâmia, Índia e China, a gestão das atuas ocupou o centro das

preocupações do poder. 11 Raffestin (p. 232) utiliza Israel e as águas do Jordão como exemplo, pois elas estão no cerne dos conflitos

entre judeus e palestinos, porém temos no Brasil o exemplo clássico do sertão nordestino.

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“O controle e/ou a posse da água são, sobretudo, de natureza política, pois interessam ao

conjunto de uma coletividade” (RAFFESTIN, 1993, p. 231). O avanço técnico-científico tem

aumentado a capacidade de utilização do solo e da água, porém as novas técnicas são

crescentes consumidoras de recursos não-renováveis, em particular, de energia.

Os recursos não-renováveis, sejam energético ou minerais, uma vez consumido se

esvanecem. Como objetos de uma relação de apropriação técnica, constituem trunfos que

diminuem no ritmo de sua exploração. Se para os recursos renováveis existem mecanismos de

regulação ajustados aos ecossistemas, para os recursos não-renováveis a regulação somente

pode ser jurídica: não utilizar, utilizar pouco, utilizar muito. Trata de escolha-decisão,

portanto de relações de poder e conflito entre interesses privados e coletivos e entre interesses

do presente e do futuro. O esforço dos Estados para atingirem níveis elevados de crescimento

do PNB, ao longo do século XX, exigiu consumo de grande quantidade de recursos não-

renováveis. Os indicadores desse crescimento eram os consumos de energia, ferro, aço etc. Os

maiores consumidores, que são os países mais avançados tecnicamente, buscaram alternativas

tecnológicas, principalmente no campo energético. A intensificação técnico-científica fez

aumentar aceleradamente a quantidade de informação que está na base da relação com a

matéria, confirmando o prognóstico de Raffestin (1993, p. 233), de 1980: crescimento das

tecnologias consumidoras de grande quantidade de recursos não-renováveis. A vontade de

ganhar tempo aumenta o poder de intervenção no meio acelera o consumo de recursos não-

renováveis12. Como trunfos, são particularmente importantes para as relações de poder, pois

são objetos das disputas de grande intensidade.

A mobilização dos recursos pressupõe prospecção, inventário, avaliação, análise

custo/benefício, antes da decisão de iniciar a exploração. Não existe uma decisão em caráter

absoluto, mas sempre conforme circunstâncias espaço-temporais, ou seja, dependerá do

contexto de redes econômicas e políticas e é relativa a esse contexto. Se a decisão é pela

exploração, restarão ainda considerar as circunstancias técnicas e jurídicas. Portanto a

mobilização dos recursos demanda estratégia complexa, na qual intervém conjunto de atores

sintagmáticos que fornecem, uns aos outros, os fatores necessários à realização do projeto.

Entretanto, são três tipos de orientações estratégicas que governam o comportamento em

relação aos recursos: exploracionista, preservacionista e conservacionista.

12 Esse é o caso recente dos BRIC, cujo crescimento econômico provocou um novo ciclo de expansão e

valorização das commodities minerais e energéticas, particularmente na década de 2000.

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O vetor estratégico exploracionista visa produzir o máximo possível, pois estava

regulado pelo mercado: enquanto for vantajoso prosseguiria a exploração, sem preocupar com

esgotamento. Ao recorrer à informação do tipo funcional, que interessa a todas as técnicas de

valorização, em qualquer nível, tem como informação reguladora o “preço” das commodities

no mercado. Essa lógica econômica clássica privilegia o bem presente em detrimento do bem

futuro (privilegiar a informação funcional é privilegiar o bem presente). Como os menores

custos são prioritários para maximizar os lucros e, portanto, o valor das ações na bolsa, as

comunidades locais e seus ambientes, o humano e o não-humano local, não são levados ou

são fracamente levados em consideração. Essa categoria de vetor estratégico foi e é

característica da fase de crescimento econômico, que se pode denominar de período de

modernização e industrialização conduzido pelo Estado. No século XIX e princípio do XX a

estratégia exploracionista dominou mundialmente, protagonizando histórias brutais que

marcam a era do capitalismo denominada de imperialismo. A era dos impérios, na expressão

consagrada por Hobsbawm, e o neocolonialismo foram constituídos por episódios fortemente

dissimétricos em função daquilo “que se chamou de luta ou de batalha pelas matérias-

primas”. (RAFFESTIN, 1993, p. 134-135). No exploracionismo a dimensão político-jurídica

é decisiva para a efetivação e continuidade, pois ele demanda garantia para ganhos de longo

prazo e segurança frente aos conflitos e disputas que sucinta. Isso porque a propriedade

privada e as relações de produção envolvem relações de poder muito dissimétricas, tanto em

relação aos humanos como aos não-humanos.

O vetor estratégico preservacionista não se inscreve numa perspectiva de crescimento,

mas de estagnação. A informação reguladora domina: a exploração é controlada e moderada

para garantir que o meio sofra o menor impacto possível; e os atores renunciam a um ganho

elevado imediato. Essa estratégia pode ser utilizada voluntariamente por proprietários

individuais, comunidades territorialmente localizadas e até por empresas, porém sua

utilização nacional dependerá fundamentalmente da imposição de normas jurídicas rígidas e

do poder político do Estado para sancioná-las e sustenta-las. Não é uma estratégia ecológica,

mesmo que existam coincidências de linguagem e discursos, pois a finalidade e as

considerações são bem diferentes: renunciar aos ganhos máximos possíveis

momentaneamente, para atualizar com mais benefícios no futuro. Ao entrar em contradição

com a vontade de crescimento, o preservacionismo é muito pouco difundido e dificilmente se

encontram exemplos de seu emprego efetivo. A adoção nacional de uma lógica política

preservacionista dificilmente seria alcançada, pois necessitaria de um consenso relativo do

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diferentes atores que compõem a população (coletividade territorial) e o domínio das

estruturas econômicas. (RAFFESTIN, 1993, p. 135-136)

O vetor estratégico conservacionista busca maximizar, ao mesmo tempo, agora e

depois, na perspectiva das necessidades e dos objetivos da coletividade do presente e do

futuro. Tende para relação simétrica, marcado por forte espírito de gestão de longo prazo.

Essa orientação depende do Estado, que por definição representa a população que quer viver e

sobreviver num território, pois está mais habilitado que outras organizações para “gerenciar o

patrimônio nacional”. Esse pressuposto é marcado por “idealismo limitado pela ingenuidade”,

porque os recursos são objeto de apropriação privada e da propriedade privada. Mesmo nos

países socialistas, no qual a propriedade é estatal, “a situação não é muito diferente”13. “O

problema da produção de recursos reside no desequilíbrio entre informação funcional e

informação reguladora.” O conservacionismo está no cerne das relações de poder, com

vantagem para o exploracionismo, pois a regulação sempre buscou potencializar a informação

funcional, favorecendo o máximo aproveitamento econômico.

Raffestin, como se viu, estruturou o livro “Por uma Geografia do Poder”, conforme

entende os trunfos do poder: população-território-recursos. Essas são as três partes na qual

está dividido o livro, depois de iniciar com a discussão do poder. Para o autor as três

categorias (população-território-recursos) formam um sistema que precisa ser interrogado em

suas “ordens” e enquadramentos. Assim, ele desenvolve, nos dois últimos capítulos da quarta

parte, uma aplicação dessas categoriais, discutindo questões que são contemporâneas à escrita

do texto (1980). Raffestin trata dos componentes da estratégia dos atores em relação aos

recursos, particularmente sobre a transferência de tecnologia. Ao discutir essa questão, ele

trata das estratégias fundamentadas nas “tecnologias intermediárias” e “tecnologias

apropriadas”. O último capítulo discute os “recursos como armas políticas”, particularmente o

petróleo, os cereais e os minérios de cobre e alumínio. Ganha destaque a OPEP, cuja

importância emergiu da crise do petróleo de 1973, e o poder global dos EUA, especialmente

no caso dos cereais e do cobre. Esses capítulos finais estão de acordo com seu ponto de vista

de que a geografia deve “enfrentar aquilo que se convencionou chamar de ‘atualidade’

aparentemente incoerente e incompreensível” (Raffestin, 1993, p. 269).

Referências:

13 O caso exemplar é o desaparecimento do Mar de Aral no Cazaquistão, cujo início do desastre remonta à

política soviética de desvio das águas dos rios formadores, incitada em 1918, principalmente para irrigação.

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CRONON, William Place for stories: nature, history, and narrative. The Journal of

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