pixinguinha - o gênio e o tempo

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ANDRé DINIZ O GêNIO E O TEMPO

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Leia o primeiro capítulo do livro e se delicie!

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Page 1: Pixinguinha - o gênio e o tempo

André diniz

o gênio e o tempo

An

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iniz

PIXINGUINHA o

nio

e o

te

mp

o

Pixinguinha é um daqueles casos de gênio incontestável: músico, compositor,

arranjador e regente, imprimiu na música brasileira, ainda na primeira metade

do século XX, modernidade e invenção, construindo um ponte segura entre as

matérias-primas mais populares e tradicionais de nossa cultura – seu legítimo

berço musical –, e a produção de um repertório sofisticado e moderno. desse

encontro, pontuado por uma personalidade carismática e por um sorriso que lhe

espremia os olhos, Pixinguinha criou uma nova linguagem musical, um novo estilo,

um novo patamar para a música brasileira. Obras como “Carinhoso” e “rosa” são

algumas das expressões mais latentes da genialidade desse mestre brasileiro.

“Pixinguinha surgiu quando a música popular tornou-se violentamente a criação

mais forte e a caracterização mais bela da nossa raça, nos últimos dias do império e

primeiros da República”. mário de Andrade

INclUI cDcom ArrANjos

orIGINAIs De PIXINGUINHA

Patrocínio:

Operador Nacionaldo Sistema ElétricoA energia que liga o país.

realização:

leya.com.br www.casadapalavra.com.br ISBN 978-85-7734-232-7

Selo para utilizaçãona quarta capaEscala 1:1Atualizado em 17/05/2011Não há regra para posicionamento na página

9 788577 342327

eDIção bIlíNGUe

Page 2: Pixinguinha - o gênio e o tempo

PIXINGUINHA o gênio e o tempo

Page 3: Pixinguinha - o gênio e o tempo

dochoro

“O choro é uma coisa sacudida e gostosa”

Pixinguinha

A pensão

Page 4: Pixinguinha - o gênio e o tempo

24 25

< Rua das Flores, no/in Catumbi.

Rio de Janeiro, 1865.

> A Familia Vianna: o menino

Pixinguinha, à direita, em pé,

tocando cavaquinho, 1908.

The Vianna family: Pixinguinha,

standing, at right playing the

cavaquinho, 1908.

> O pai de Pixinguinha/Pixinguinha’s

father: Alfredo da Rocha Vianna.

século XIX/19th century

Quem comandava as rodas do casarão no Catumbi era seu pai,

Alfredo da Rocha Vianna. O caçula levava o nome de batismo do

pai e era o nono filho da família. Os outros, pela ordem, eram: Otá-

vio, Henrique, Léo, Cristodolina, Hemengarda, Jandira, Hermínia

e Edith. E Raymunda Maria da Conceição, a mãe dessa numero-

sa prole, ainda tinha mais quatro filhos do primeiro casamento.

Na casa dos Vianna, a música era presença certa entre os irmãos:

Otávio, o China, tocava violão, cantava e declamava; Edith tocava

piano; Léo e Henrique se dedicavam ao violão e ao cavaquinho; e

Hemengarda só não teve uma vida de cantora profissional porque

o pai a impediu. O ambiente familiar seria o primeiro voo de nosso

personagem no meio chorístico carioca.

O MENiNO subiA, A pAssOs LENtOs, ARRAstAdOs, os degraus da

escada do casarão no Catumbi com o rosto entristecido. Às vezes

parava e olhava para a roda de músicos na ampla sala. Ao olhar do

pai, voltava a caminhar em direção ao quarto. Os sons de cordas e so-

pros, as falas, bebidas e comidas povoavam aquela cabecinha e não

o deixavam dormir. Ele não se dava por vencido: já longe do olhar

paterno, ficava escondido no quarto escuro, espiando pela fresta da

porta a boemia interminável. seu rosto retratava o feitiço causado

pela algazarra e era um sinal de que o sono tardaria a chegar.

Page 5: Pixinguinha - o gênio e o tempo

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Flautista amador, esforçado, funcionário da usina de eletrici-

dade da repartição geral dos Correios e telégrafos, Alfredo era a

perfeita imagem do chorão de seu tempo. transformou sua casa

de oito quartos em pensão para músicos populares. Era a pensão

do Choro, onde o clima de festa alimentou durante séculos, entre

nós, a criação musical.

O choro nasceu no Rio de Janeiro nas últimas décadas do sé-

culo XiX, ligado a segmentos de classe média baixa do segundo

Reinado (1840-1889), formados por músicos amadores emprega-

dos dos Correios e telégrafos, das bandas militares e de pequenos

cargos públicos, que habitavam a Cidade Nova ou vilas que iam

do Centro Antigo até o Estácio e tijuca.

A sonoridade do choro é uma fusão de ritmos afro, sobre-

tudo do lundu, com gêneros europeus que invadiam os salões

cariocas. Valsas, polcas, quadrilhas e schottisch passeavam

pelas flautas, cavaquinhos, violões, oficleides e clarinetas dos

músicos que temperavam suas apresentações com um sabor

mais local, criando, então, o mais rico gênero instrumental bra-

sileiro. O choro é tanto o gênero quanto um jeito de interpretar

as melodias.

O músico considerado o “pai” do choro, Joaquim Callado, não

frequentou a pensão do Choro; morreu em 1880 e foi precursor de

uma dinastia de flautistas que teria no filho caçula de seu Alfre-

do o principal instrumentista e compositor do gênero de todos

os tempos. seu legado foi promover as rodas pela cidade com seu

grupo, o Choro Carioca ou Choro do Callado, composto por dois

violões, cavaquinho e flauta. O chamado “quarteto ideal” seria a

célula básica das apresentações dos chorões. Cena muito comum

nessas rodas era ver o flautista desafiar, brincar e, às vezes, “fa-

zer cair”, com suas “armadilhas” harmônicas, o cavaquinista e os

violonistas. O calor das rodas, as malandragens nas execuções e a

provocação dos instrumentistas solistas foram dando a tônica de

liberdade e de improviso ao gênero.

Assim como na pensão do Choro, esses músicos populares toca-

vam mais por entretenimento do que por profissionalismo, eram

< Carroça Postal dos Correios, início do

século XX.

Post Office Cart, beginning of the 20th

Century.

< Carteiros, início do século XX.

Postal Service Workers, beginning of the

20th Century.

> Joaquim Callado, o “pai” do choro,

século XIX.

Joaquim Callado, the “father” of the

choro, 19th Century.

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28 29

> Grupo de chorões, no subúrbio de Jacarepaguá, reduto de

seresteiros e chorões, na década de 1910. O compositor

Sinhô aparece na segunda fileira, ao centro, com violão.

Choro musicians, in Jacarepaguá, Popular with balladeers

and chorões, in the decade of 1910s. The composer Sinhô

is in the second rank, in the center, with a guitar.

amadores no sentido mais completo do termo. Apresentavam-se

em batizados, aniversários, festas populares, casamentos e nos

salões de parte da elite. No entanto, apesar de não receberem ca-

chê, duas coisas eram imprescindíveis em suas audições: comida

e bebida. Havia até um código para aferir se estavam garantidas

a fartura etílica e a generosidade gastronômica por parte do anfi-

trião. Assim que chegavam ao local onde iriam se apresentar, um

dos músicos, sorrateiramente, caminhava até a cozinha. se perce-

besse que a recepção não estava a contento, a senha era dizer que

“o gato dorme no forno” ou que “não tem pirão”. Era o que bastava

para que os chorões saíssem às pressas.

O menino encantado pelos sons do choro seria, mais à frente,

em contexto histórico específico – com o adensamento da classe

média, a conformação do mercado fonográfico e o surgimento do

cinema e do rádio –, o grande responsável pela mudança definiti-

va deste cenário. Os chorões deixariam de bisbilhotar a cozinha e

passariam a valorizar o cachê, o profissionalismo. por enquanto,

o pequeno chorão ia aprendendo a tocar cavaquinho com seus

irmãos, Henrique e Léo. Como tinha muita facilidade para música

e um ouvido privilegiado, o patriarca Alfredo Vianna pediu a um

amigo dos telégrafos, César borges Leitão, que ensinasse música

ao seu caçula. César tocava bombardino e morava bem pertinho

da pensão do Choro. O aluno pensou em aprender requinta, um

clarinete mais agudo, mas era um instrumento muito caro. Ficou

mesmo arranhando no cavaquinho e na flauta. Em pouco tempo,

César avisou a Alfredo que não tinha mais nada a ensiná-lo. Havia

transmitido tudo o que sabia.

A casa do Catumbi era frequentada por chorões famosos.

Quincas Laranjeiras, professor de música e violonista; o regente

paulino sacramento, pistonista de grande técnica e produtor de

partituras para o teatro de revista; o violonista de mão cheia João

pernambuco, coautor do clássico “Luar do sertão”; o compositor

e instrumentista Juca Kalut, integrante do grupo Cavaquinho de

Ouro; o pistonista Luís de sousa, considerado um ás com seu ins-

trumento, e o maestro Heitor Villa-Lobos, que levava seu violão

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30 31

< João Pernambuco (segundo

sentado da direita para

esquerda/second sitting

from left to right) e grupo

de chorões/ and a group of

chorões, 1914.

> Os músicos do Corpo de

Bombeiros do Rio de Janeiro,

cujo regente era Anacleto de

Medeiros (na primeira fila o

segundo da esquerda para a

direira), 1896–1906.

Musicians of the Rio de Janeiro

Corpo de Bombeiros (Firemen),

under the baton of Anacleto

de Medeiros (at the first row

the second from left to right),

1896–1906.

propriedade. irineu de Almeida, ou irineu batina – conhecido assim por cobrir o corpo arredondado

com uma sobrecasaca comprida em pleno verão escaldante –, tocava oficleide, bombardino e trom-

bone. pertencia à banda do Corpo de bombeiros do começo do século XX, o que não era pouca coisa.

Fundada em 1896, pelo maestro Anacleto de Medeiros, um dos responsáveis pela consolidação

do choro no gosto do carioca, a banda dos bombeiros músicos retirava dos instrumentos uma me-

lodia leve e bem executada, apesar da “dureza” das bandas da época. sob a liderança de Anacleto,

a banda fazia apresentações cívicas, religiosas e concertos. Os bombeiros tocavam um repertório

abrangente, com trechos de ópera adaptados, marchas, dobrados, polcas, valsas, mazurcas e xótis.

Com o tempo, Anacleto passou a requisitar chorões da cidade para fazer parte da banda: o próprio

irineu batina, tocando oficleide, Luís de sousa (cornetim, trompete e piston), Candinho do trombo-

ne, Casemiro Rocha (piston), Lica (bombardão), irineu pianinho (flauta), Edmundo Otávio Ferreira

(requinta), Artur de souza Nascimento, o tute (bumbo e prato), João Ferreira de Almeida (bombardi-

no) e Albertino pimentel (trompete).

para as rodas e, anos mais tarde, comporia seus choros dando

grande prestígio ao gênero no meio intelectual.

Alguns chorões moravam na casa dos Vianna, como irineu de

Almeida e bonfiglio de Oliveira. paulista, o pistonista bonfiglio

chegou ao Rio em 1910. Com seu grande talento despertou rapida-

mente a admiração dos músicos da cidade. A amizade que cons-

truiria com o filho mais novo dos Vianna seria fraternal, foram

parceiros nas rodas de choro, na apresentação de composições,

ora de um, ora de outro.

Enquanto bonfiglio seria o amigo das rodas, irineu de Almeida

teria influência na inserção do jovem no incipiente mercado profis-

sional dos músicos cariocas. percebendo o seu talento, ao tocar na

sua flauta de folha, resolveu ensiná-lo a ler e escrever música com

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Formado nos cursos de harmonia, contraponto e fuga pelo Conser-

vatório imperial de Música – a única escola pública de música da época,

onde Joaquim Callado foi professor e onde também o próprio Anacleto

de Medeiros concluiria seus estudos –, irineu batina transmitiu os seus

conhecimentos com muita competência para seu aluno. Lição aprendida,

convidou-o a integrar seu grupo Choro Carioca, um dos mais destacados

do começo do século XX. Em dúvida sobre qual instrumento tocar, o me-

nino levava o cavaquinho e a flauta emprestada do pai para as festas que

varavam as madrugadas regadas a choro. Aos poucos, a flauta passaria a

ser o seu instrumento predileto.

Alfredo Vianna não largava o filho em suas exibições pela cidade. O

curioso é que, ao chegar aos choros com seus músicos, Alfredo porta-

va sempre um grosso caderno de composições. E só tocava quatro ou

cinco músicas, impreterivelmente. Vale lembrar que a maior parte das

criações dos chorões da época não foi lançada em partituras e muito

menos chegava aos estúdios de gravação. daí a importância dos copis-

tas como João Jupyaçara Xavier e Frederico Olympio Augusto de Jesus,

que, ao assimilarem as melodias pela tradição oral, escreviam-nas em

cadernos pautados como os de Alfredo, garantindo assim a sobrevivên-

cia de obras primorosas que de outra forma se perderiam no tempo.

Mas, mesmo incentivando o filho a tocar, Alfredo ficava preocupa-

do com as suas noitadas. tanto que mandava os irmãos mais velhos

acompanhá-lo em suas apresentações pelas madrugadas – exigindo

que não chegassem tarde. Queria que o caçula estudasse. No começo,

colocou-o em um pequeno colégio particular, o do professor bernar-

des, no Catumbi. O mestre não deixou saudades, pois a cada resposta

errada o aluno era castigado com bolos de palmatória ou obrigado a

ficar ajoelhado por um longo período. Alfredo, então, matriculou-o no

Liceu santa teresa e depois no tradicional Mosteiro de são bento. Mas

a música já estava no sangue do menino.

O Colégio de são bento, de ensino rigoroso, considerado até hoje

um dos melhores do Rio de Janeiro, entrou para a história da música

popular pelos seus alunos “rebeldes”. Além do jovem Vianna, que saiu

das suas salas de aula para tornar-se o maior músico brasileiro da pri-

meira metade do século XX, outro compositor, anos depois, fugiria do

< Grupo de Irineu de Almeida/Irineu

de Almeida’s Group: Rogério Tómas,

Gregório de Brito, Irineu de Almeida,

Manuel Jacinto Graça, Manuel

Guimarães Campos, José Monteiro de

Veiga e ao centro/and in the center

Catulo da Paixão Cearense, início

do século XX/beginning of the 20th

century.

> (prox. página /next page) Tradicionais

chorões em Paquetá/ Traditional

chorões in Paquetá: Horácio de

Theberge (violão e canto/guitar and

voice), Irineu de Almeida (oficleide/

opfcleide), Luis de Sousa (piston/

horn), Jatahy (trombone), Luiz

Gonzaga da Hora (bombardão), João

dos Santos (clarinete) e Estulano

(violão/guitar), 1906.

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34 35

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de beber alguma coisa. Era para se inspirar melhor. Então, fui me habituando... Antes do trabalho, ia

para a leiteria e tomava uma coalhadinha. Mas, depois, os amigos me chamando: ‘Vem! prova isso que

é bom, faz bem ao coração’. Aí, tomei. A primeira vez achei ruim. depois, continuei, fui continuando,

fui achando bom, gostoso. Aí, me tornei um profissional.”1

Com o Choro Carioca, o menino (e a flauta de prata presenteada pelo pai) estrearia nos rudimen-

tares estúdios de gravação. tudo começou quando, em 1902, o cantor bahiano lançou o primeiro

disco no brasil com o lundu “isto é bom” , de Xisto bahia. surgia assim, no Rio de Janeiro, a pioneira

Casa Edison, comandada pelo empresário Fred Figner. Em seus primeiros anos de vida, a indústria

fonográfica registrava muito mais as melodias de pequenos grupos instrumentais, como o de iri-

neu batina, e de bandas de música do que as vozes que, na época, sofriam forte influência do bel

canto italiano. A proporção era de aproximadamente 63,5% de música instrumental para 36,5% de

canção2, números plenamente justificáveis por razões técnicas.

Muito antes da tecnologia que fez surgir os microfones elétricos, em 1927, diante dos quais o

intérprete poderia cantar como se estivesse conversando ou sussurrando, as gravações eram rea-

lizadas em um microfone antigo, “do tempo do onça”. Consistia em uma “boca” enorme de corneta

mesmo colégio para circular por um Rio que ele descreveria como poucos poetas, consolidando por

meio de sua obra o samba urbano carioca: Noel Rosa. talvez já soubessem esses dois talentos preco-

ces que a rua, esta sim, seria a verdadeira sala de aula.

As andanças do jovem chorão pelo circuito musical do Rio continuavam com o grupo de irineu ba-

tina. Cada vez mais ele se firmava como músico conhecido. um dia, voltando para casa de madrugada,

teve inspiração para fazer a sua primeira composição numa cena bastante comum entre os chorões

boêmios: os companheiros que bebiam o leite deixado em latões nas portas das casas para se desin-

toxicarem das doses pantagruélicas de álcool. batata. Nascia, em 1911, a composição “Lata de leite”.

Os títulos dos choros têm essa característica, nascem de um fato cotidiano, de uma homenagem, do

espírito brincalhão, meio zombeteiro e, às vezes, ambíguo dos compositores.

Já mais velho, o flautista jurou que nunca bebeu o leite deixado nas residências. Mas, se o leite não

o cativava, o álcool passou a fazer parte das suas noites. primeiro, como estranhamento, depois com

o prazer que o acompanhou pela vida afora. Era o adeus à coalhadinha: “Naquele tempo não havia

Juiz de Menores e eu já trabalhava. O sujeito para trabalhar em música, no meio dos músicos, tinha

< Noel Rosa com o amigo Fernando Lopes, vestido com uniforme do Colégio São Bento, 1928. Noel Rosa with his friend Fernando Lopes, in the school uniform of the Colégio São Bento, 1928.

> Largo da Carioca com Leiteria ao fundo, início do século XX. Largo da Carioca with a dairy store in the background, beginning of the 20th Century.

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surgiria a pioneira escola deixa Falar). desfilavam na praça Onze, reduto principal do carnaval do

Rio. A praça ficava onde hoje é a avenida presidente Vargas, entre as ruas de santana e Marquês de

pombal, perto do terreirão do samba, na Cidade Nova. Local de fácil acesso para os moradores da

cidade e que se transformava quase em residência fixa do nosso personagem nos dias de momo.

Folião de primeira hora, lembrou certa vez que, no carnaval, desfilou num rancho fantasiado de

Luís XV. Noutra, recordou o tempo em que, na terça-feira de carnaval, encerrava a noite deitado nas

escadarias da Escola benjamim Constant, na praça Onze, levantando-se no dia seguinte, acordado

pelo sol forte do verão do Rio.4

que obrigava os técnicos de som a puxarem os cantores pelos ombros, nas notas graves, ou os em-

purrarem para longe, nas agudas. Os grupos instrumentais, para gravar, se amontoavam em frente

à engenhoca. para ser devidamente registrada no sistema mecânico, na cera, a música precisava

de força sonora, esta foi a principal característica que fez prevalecer os registros sem voz nos pri-

meiros anos da indústria fonográfica.

No Choro Carioca de irineu, havia mais dois Viannas: Otávio (o China), no violão, e Léo. As gravações

do grupo, pela Favorite Record, em 1911, eram feitas de primeira, em conjunto, ainda não estava em

prática a moderna possibilidade de separar os instrumentos e corrigir os erros. À época, cada chapa

(equivalente ao disco) só continha uma música. durante o ano, foram gravadas várias composições:

a polca “Nhonhô em sarilho”, de Guilherme Cantalice, as polcas “Nininha” e “daineia”, de irineu de

Almeida, “são João debaixo d’água”, de pixinguinha, a polca “isto não é vida”, de autor desconhecido,

e “salve”, um xótis de irineu.

Outro fato relevante era que o nome choro só apareceria nos rótulos das gravações, substituindo

os gêneros estrangeiros, anos depois. somente para pontuar: choro, no começo, era a festa, o encon-

tro. “Vou ao choro!”; “vou à festa!”. designava também o grupo musical. Já nos anos 1920, o termo

choro já significava o próprio gênero.

irineu tocava oficleide nas gravações, instrumento que apresenta chaves e formato cônico, com

a sonoridade muito semelhante à do saxofone tenor, bastante utilizado tanto no solo como no

contraponto. É senso comum na literatura do choro que irineu foi influência decisiva nas execuções

dos contrapontos (melodia secundária que dialoga com a principal), que o nosso músico brilhan-

temente sopraria no saxofone, nos anos 1940, ao lado da flauta de benedito Lacerda, gravando 34

faixas geniais na gravadora Victor. Na gravação do “balançado” grupo Choro Carioca, segundo o

cavaquinista e pesquisador Henrique Cazes, é possível perceber os contrapontos do oficleide de

irineu, “com frases bem colocadas e de caráter improvisatório”, ao lado da flauta do menino, “com

um som mais rítmico, sem vibrato, gerado com muito ar, em golpes enérgicos”.3 Era a semente que

ficou na memória do pequeno músico e que chegaria à perfeição na parceria com benedito Lacerda.

Os contrapontos se tornaram uma primordial ferramenta de criação, funcionando como fator de

identidade do gênero.

Com a sua flauta de prata e ainda pelas mãos de irineu batina, diretor de harmonia do Rancho

Carnavalesco Filhas da Jardineira, o mais jovem dos Vianna passou a integrar a orquestra da agremia-

ção, fundada em 1905, com sede próxima à Central do brasil e à praça Onze. Nos festejos de carnaval,

em 1911, seguia o menino pelas ruas com suas calças curtas, seu boné azul e solferino, as cores do

rancho Filhas da Jardineira.

Os ranchos eram muito importantes para o carnaval carioca, sendo os precursores, em estrutu-

ra, das hoje midiáticas escolas de samba (só em 1928, no sopé do morro de são Carlos, no Estácio,

> Corso carnavalesco, 1911.

Carnival parade, 1911.

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< Praça Onze, início do século XX.

Praça Onze, beginning of the 20th

Century.

> Crianças no bairro Cidade Nova,

anos 1910.

Children in the Cidade Nova

neighborhood, 1910.

mais tarde o consagraria como o pioneiro na sua introdução

no samba e no choro.

Filho da tia Amélia e do pedreiro pedro Joaquim Maria, donga é

autor, ao lado de Mauro de Almeida, do primeiro samba gravado,

“pelo telefone”, em 1917, e integraria o histórico conjunto Oito ba-

tutas. seu primeiro instrumento foi o cavaquinho, mas ao longo de

sua trajetória artística passaria a manusear um violão característico,

com ponteados e frases sincopadas na região média do instrumento.

O menino, João da baiana e donga permaneceriam ligados ao Ran-

cho Carnavalesco Filhas da Jardineira por muitos anos. sobre os dois

amigos, declararia um ano antes de morrer: “Nós somos um poema”.

O Rancho Carnavalesco Filhas da Jardineira era rival do famoso Ameno Resedá, que surgiu em 1907,

quando um grupo de foliões participava de um piquenique na bucólica ilha de paquetá. O Ameno

era bastante organizado, com enredos bem escolhidos e ótimos cantores para entoar as marchas,

em desfiles impactantes pelo luxo e pela qualidade harmônica e melódica das músicas. A rivalidade

era tão acirrada quanto seria mais tarde a das escolas de samba Mangueira e portela. Os ranchos

escondiam seus enredos uns dos outros até o carnaval, com medo de serem copiados, assim como as

escolas de samba faziam até a década de 1950. As agremiações usavam o instrumental de choro, com

flautas, clarinetes, cavaquinho e violões.

Nosso músico conheceu, no Rancho Filhas da Jardineira, dois personagens importantes em sua traje-

tória. Aliás, dois músicos que são referência obrigatória em nossa bibliografia musical: o compositor e

ritmista João da baiana – mestre-sala do Filhas da Jardineira durante anos –, e o violonista e compositor

Ernesto dos santos, o donga. Ambos eram filhos de “tias” baianas da Cidade Nova e formariam com o

jovem Vianna um trio inseparável.

João era filho da tia perciliana Maria Constança e o caçula de 12 irmãos, sendo o único nascido

no Rio de Janeiro. sua mãe promovia festas na Cidade Nova, onde aprendeu samba e candom-

blé até os 9 anos. Foi o primeiro músico a ser visto raspando a faca no prato, um instrumento

de ritmo inusitado. tia perciliana também ensinou o filho a tocar pandeiro, instrumento que

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deu ao violão de sete cordas o status de instrumento solista). Quem

dirigia o sexteto era o pianista pádua Carvalho. dessa época, quando

ganhava 5 mil réis por dia, o menino dizia que ia “muitas vezes (para

a choperia), com o fardamento do Colégio de são bento.” 5

As casas de chope cantantes ou berrantes foram uma febre ao

final do século XiX. A sua popularização, desgarrando da influência

europeia, criou as condições para que cantores de modinha e mú-

sicos populares se apresentassem em seus praticáveis de madeira,

armados à guisa de palco.

O primeiro emprego regular do flautista foi na choperia La Con-

cha, no bairro boêmio da Lapa. O convite fora feito pelo seu irmão

Otávio. trabalhando das oito horas da noite até meia-noite, tinha

como companheiros de grupo bonfiglio de Oliveira, que tocava pis-

ton e contrabaixo; o violinista Otávio silva; e Artur Nascimento, o

tute, ao violão (tute entraria para a história do choro como o primei-

ro violão de sete cordas, inaugurando uma dinastia que incluía dino

sete Cordas, músico do lendário grupo Época de Ouro, responsável

por consolidar a linguagem do instrumento, e Raphael Rabello, que

< Arcos da Lapa, 1906.

> Pixinguinha no/at La Concha, “Concha

da Lapa”. Da esquerda para direita/ From

left to right: Bonfiglio de Oliveira, Pádua,

Otaviano, Pixinguinha, 1911.

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O cronista João do Rio, observador atento da vida cultural ca-

rioca do começo do século XX, descreve, com o aprumo que lhe

é peculiar, o momento dessas mudanças: “As primeiras casas [de

chope] apareceram na Rua da Assembleia e na Rua da Carioca. Na

primeira, sempre extremamente concorrida, predominava a nota

popular e pândega. Houve logo a rivalidade entre os proprietários.

No desespero da concorrência, os estabelecimentos inventaram

chamarizes inéditos. A princípio apareceram num pequeno estrado

ao fundo, acompanhados de piano, os imitadores de pepa [a atriz

pepa delgado] cantando em falsete a estação das flores, e alguns

tenores gringos, de colarinho sujo e luva na mão. depois surgiu o

chope enorme, em forma de hall com orquestra, tocando trechos

de óperas e valsas perturbadoras, depois o chope sugestivo, com

sanduíches de caviar, acompanhados de árias italianas. Certa vez

uma das casas apresentou uma harpista capenga mas formosa

como as fidalgas florentinas das oleografias. No dia seguinte um

empresário genial fez estrear um cantor de modinhas. Foi uma coi-

sa louca. A modinha [e os músicos populares] absorveu o público.” 6

Em 1911, quando o sexteto se apresentava na Lapa, os chopes-

-berrantes e os cafés-cantantes estavam em franca decadência. O

crescimento demográfico do Rio, com mais de um milhão de habi-

tantes, fez surgir uma classe média ávida por entretenimento. As

transformações urbanas, sobretudo no Centro, orquestradas pelo

prefeito pereira passos, ao mandar derrubar cortiços e abrir ave-

nidas, extinguiram antigos espaços de lazer, criando as condições

para que os novos empreendimentos culturais se instalassem na

cidade. proliferam teatros e cinemas com áreas maiores para aco-

lher a demanda crescente de público, estabelecendo na cidade

um circuito de produção, difusão e consumo da música popular

que envolvia diferentes camadas da população.

O teatro de revista passou a ser uma das principais formas de

entretenimento do carioca do início do século XX. Com origem na

comédia francesa, destacava-se pela sátira dos costumes e pelas

brincadeiras com política e fatos cotidianos, a partir de textos

musicados. surgidas em meados do século XiX, as revistas foram

> Cafés-Cantantes ou Chopes-Berrantes, 1911.

Beer Halls, 1911.

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as primeiras manifestações de teatro popular no brasil e cumpriram um papel na história da música

que só seria superado com o surgimento do rádio, representando um mercado de trabalho para os

artistas e um palco privilegiado de divulgação do nosso cancioneiro. A maestrina Chiquinha Gonzaga

foi uma das destacadas compositoras dos teatros de revista da praça tiradentes, no Rio de Janeiro.

Mulher de personalidade forte, abolicionista e republicana, a pianista e chorona (termo que seria

apropriado para designar as mulheres que tocam o choro) está entre os nomes formadores da musi-

calidade brasileira.

O cinema, também de origem francesa, chegou ao Rio em 1896, na Rua do Ouvidor, sendo apresen-

tado apenas para a imprensa. primeiro chamado de cinematógrafos e depois de cines, esses espaços

de entretenimento exibiam filmes mudos, em que se fazia necessária a contratação de músicos po-

pulares, geralmente chorões, para ajudar na construção de muitas cenas com ruídos de chuva, vento,

explosão, ou mesmo criando um clima para os momentos românticos e de suspense. uma pequena

orquestra ficava dentro da sala de exibição e em pouco tempo se formaria outro agrupamento mu-

sical para se apresentar nos halls, entre uma sessão e outra. O cinema criou o fascínio pelos artistas,

< Grupo de choronas, 1910.

Group of choronas, 1910.

> Cinematographo Rio Branco, início

do século XX.

Cinematograph (Cinema) Rio Branco,

beginning of the 20th Century.

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A cada uma de suas bossas na flauta, ouvia-se da plateia o grito “dá-lhe, Carne Assada!”, pronun-

ciado por algum amigo ou parente, pois só eles sabiam do apelido que ganhou em uma das festas na

pensão do Choro quando, desesperado de fome, rumou em direção à mesa de jantar e retirou o pano

branco que cobria a carne assada. Ao meter a mão, um cunhado gritou: “sai daí, Carne Assada!” Ficaram

o apelido e gosto por carne assada, que, mais tarde, sua esposa, beti, viria a fazer de forma tão suculen-

ta com molho ferrugem.

As apresentações na peça marcaram seu estilo de tocar, com variações que não respeitavam a

partitura. O jornalista e pesquisador sérgio Cabral relata um depoimento do músico sobre sua parti-

cipação na orquestra do cinematógrafo: “No Rio branco passava um filme e, depois, era apresentada

a revista teatral em que eu trabalhava com a orquestra. Quando Antônio Maria passos voltou, cedi

o lugar pra ele. Na primeira apresentação, aconteceu o seguinte: havia uma valsa em que eu saía da

tanto pelos que apareciam na tela quanto pelos que tocavam nos

intervalos. Foi no Cinematographo Rio branco, um misto de cinema

e teatro muito comum à época, que o flautista e chorão da família

Vianna colocaria o pé pela primeira vez em um teatro. Em pouco

tempo, seria também no teatro que ele iniciaria sua carreira de ar-

ranjador, marcando a história da música brasileira. tudo começou

com o violonista tute.

Amigo da família Vianna, tute trabalhava com o flautista na cho-

peria La Concha. sabia das qualidades do nosso protagonista como

músico. Como era integrante da orquestra do Cinematographo Rio

branco, liderada pelo maestro paulino sacramento, soube que o

flautista Antonio Maria passos ficara doente e não poderia se apre-

sentar. Comentou com o dono do cinema, seu Auler, que conhecia

alguém para substituí-lo.

um belo dia, tocam a campainha na casa da família Vianna, em

piedade. Era um funcionário do seu Auler.

– É aqui que mora o senhor...?

As duas irmãs do caçula fizeram força para prender o riso.

– tem um senhor... que está bem ali, ó, soltando pipa!

depois de relutar um pouco ao convite, com medo de tocar em

um lugar de prestígio no meio musical, o pequeno vestiu suas cal-

ças curtas, pegou sua flauta e apareceu no cinematógrafo. Mas por

pouco esse não foi o emprego mais curto de sua vida. seu Auler,

quando viu o novo flautista apresentado por tute, exclamou: “Mas

é um fedelho!” E pensou em mandá-lo embora. Foi quando chegou

o maestro paulino sacramento chamando o “fedelho”, meio descon-

fiado, para ensaiar com a orquestra. diante da reação de ambos, o

menino ficou com muito medo de dar vexame, mas respirou fundo,

se concentrou e foi em frente.

Ele já lia música muito bem. bastava um pouco de calma para

liberar sua técnica. Quando a orquestra começou a tocar, o sopro

seguro, as bossas e variações que fazia na flauta puseram um pon-

to final nas desconfianças. suas participações na orquestra do

espetáculo Morreu o Neves!, escrito por Raul pederneiras e Luiz

peixoto, duraram todo o ano de 1911, tendo sempre a casa cheia.

> Pixinguinha, João Pernambuco,

personagem não identificado e /

unidentified person and Donga.

Petrópolis, Rio de Janeiro, 1913.

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partitura e fazia uma espécie de contraponto. Maria passos era um grande flautista, mas não saía da

partitura. Quando ele tocou a valsa, o pessoal da torrinha passou a fazer com a boca aquilo que eu fa-

zia com a flauta. paulino sacramento também sentiu falta do contraponto e falou com ele. Resultado:

Antonio Maria passos saiu da orquestra e ficou chateado comigo.” 7 Apesar de passos ficar amuado

por ser desbancado por um flautista 17 anos mais novo, o menino faria tempos depois uma música

em sua homenagem, o choro “passinha”, demonstrando o carinho e a amizade que tinha pelo músico.

A amizade e o bom convívio com seus pares sempre foi, aliás, uma de suas características princi-

pais. Adulto, casado com beti, estava bebendo com os amigos em um bar quando pediu a conta para

ir embora. “Mas você já vai tão cedo?”, perguntou um deles. “prometi a minha mulher que iria à igreja

com ela”, respondeu um compenetrado marido. “Como assim?”, comentou outro amigo, “Você não é da

macumba?” “sou, mas o deus não é um só?”, indagou o músico com um sorriso aberto no rosto. Certo

dia, voltava para casa com o cachê que recebeu de uma exibição quando foi abordado por três ladrões.

“passa o dinheiro e essa caixinha pra cá”, mandou um dos assaltantes. Quando perceberam quem era a

vítima, pediram desculpas. Mas o inusitado encontro não ficou só nisso. Como a rua era escura e muito

perigosa, resolveram escoltá-lo até em casa. No meio do caminho pararam para tomar um “negocinho”

e brindar as novas amizades. Já alto, pelas doses de cachaça, o músico pega a sua flauta e inicia uma

roda de choro e samba. tudo pago à custa do cachê da noite. “O menino bom”, cantado em verso e pro-

sa, chegou a receber o seguinte comentário do seu parceiro em “Lamento”, o poeta Vinicius de Moraes:

“É o melhor ser humano que conheço. E olha que o que eu conheço de gente não é mole.”

O pequeno negro, que a mando do pai subia as escadas da pensão do Choro para dormir cedo, já

era a essa altura um jovem de 14 anos pronto para registrar definitivamente seu nome na história

da música brasileira. Nascido no dia 23 de abril de 1897, morador do Catumbi e de piedade, deixara

para trás o nome de batismo Alfredo da Rocha Vianna Filho. O Rio de Janeiro, e em breve o brasil, só o

conheceriam pelo sonoro apelido de piXiNGuiNHA.

NOtAs

1 CAbRAL, sérgio. Pixinguinha: Vida e obra. Rio de Janeiro: FuNARtE, 2007, p.28.

2 sEVERiANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção e o tempo: 85 anos de músicas brasileiras – Vol. 1: 1901 – 1957.

são paulo: Editora 34, 1997, p. 60.

3 CAZEs, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. são paulo: Editora 34, 1998, p.54.

4 CAbRAL, sérgio. p.72.

5 depoimento de pixinguinha ao Museu da imagem e do som em 6 de outubro de 1966.

6 bARREtO, paulo (João do Rio). Cinematógrafo (Crônicas cariocas). porto: Livraria Chardron (Lelo & irmão), 1909, pp. 130-1.

7 CAbRAL, sérgio. p. 33.