pipa prize...por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. across all the sea, across all...

64

Upload: others

Post on 19-Mar-2021

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 2: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 3: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

1

Page 4: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

Como se faz um deserto

M A R IN A C A M A R G O

1º edição

Porto AlegreEdição do autor

2013

Colaboração de

Janaína AmadoVitor Cesar

George A. F. DantasÂngela L. Ferreira

Yuri SimoniniGonçalo M. Tavares

Cristiana Tejo

Page 5: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

5

Como se faz um deserto é organizado de modo a buscar todas as con-fusões na geografia as quais Saint-Hilaire evitou. É um mergulho no desconhecido, onde os conceitos, formas, ideias sobre o tema ga-nham outra gravidade, outra viscosidade que acompanha a própria noção de Brasil. É também um mergulho íntimo, pesquisa sobre ori-gens esquecidas – assim como o próprio sertão é esquecido, disse-

-me Janaína Amado.Compartilhar e expor esse processo é como colocar na mesa mi-

nhas referências de trabalho e leituras fundamentais para a pesqui-sa que antecede cada novo projeto, mostrar os diálogos que constro-em novos caminhos. É como caminhar em salas escuras tateando o espaço que se apresenta a cada novo passo. É algo íntimo como abrir álbuns de família para quem não conhecemos, ou como abrir as portas do estúdio e ali mostrar as tentativas, referências, ações e resignações do processo de trabalho.

Este projeto foi pensado em duas etapas. A primeira delas foi uma viagem pelo sertão do Brasil realizada em agosto de 2013, quan-do foram feitas as fotografias que fazem parte desta publicação. Em seguida, teve início uma etapa de documentação e pesquisa sobre o tema, onde o diálogo e a reflexão sobre o projeto também fazem par-te do livro. Como se faz um deserto foi concebido como um processo aberto de documentação e pesquisa, que, posteriormente, pode ter outros desdobramentos.

Acredito que somente através da revisão e da desconstrução de ideias e definições estabelecidas sobre os lugares seja possível abrir espaço para pensá-los de um modo distinto e, assim, compreender como os lugares são definidos através de construções culturais. Nes-se sentido, os textos aqui publicados foram leituras fundamentais que estabeleceram outros parâmetros para o projeto.

O texto “Região, Sertão, Nação”, de Janaína Amado, leva a noção de sertão ao seu limite conceitual, cultural e histórico, sendo uma referência importante sobre o tema. Além de revisitar autores rele-vantes para se pensar os sertões, Janaína remonta o que seriam os sertões na cultura brasileira – como, por exemplo, sua origem etimo-lógica, que parte de nossa herança lusa e transforma-se com o tempo, até tornar-se o nome dessa região do Brasil de dentro.

Uma viagem pelo sertão cearense é relatada no texto de Gonça-lo M. Tavares sobre cultura oral, memória e a cartografia mutante dos sertões. “Histórias no Sertão, areia em Jericoacoara” entrou em minha vida em um momento especial, também durante uma via-gem, quando estava indo morar na Alemanha. Com este texto, fui de algum modo arremessada de volta à minha história, então esqueci-

Como se faz um deserto

Se cada viajante estivesse no direito de es-crever à sua maneira os [nomes de lugares] do país pelo qual passa, reinaria, em breve, na geografia, uma indubitável confusão.Auguste de Saint-Hilaire1

1 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Nascentes do Rio S. Francisco e pela Provincia de Goyaz. Tomo segundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p.13.

Page 6: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

6 7

da ou distante. Foi, talvez, a primeira volta ao sertão. Guardei-o por anos, até poder recuperá-lo e compartilhá-lo nesta publicação.

As definições dos limites dos sertões por meio da análise de ma-pas do Brasil é o tema da pesquisa de Ângela Lúcia Ferreira, Geor-ge Alexandre Ferreira Dantas e Yuri Simonini. “Cartografia do (de)sertão do Brasil: notas sobre uma imagem em formação – séculos XIX e XX” foi revelador para mim por mostrar através da leitura de mapas questões que eu havia compreendido de modo mais intuitivo ao longo da minha breve incursão pelo sertão. A investigação traz elementos e conceitos da geografia e da cartografia que contribuem para se repensar esse lugar e seu processo de construção.

Os textos de Janaína Amado e Gonçalo M. Tavares, bem como a pesquisa de Ângela, George e Yuri, foram não apenas fundamentais, mas também transformadores desse processo de construção con-ceitual e compreensão sobre os sertões. São leituras que despertam um outro diálogo possível com esse lugar, delineiam outros entendi-mentos possíveis sobre a região.

Ao longo de todo o processo, contei também com a contribuição muito especial de outras duas pessoas: Vitor Cesar, que tornou visí-veis ideias fundamentais sobre a pesquisa, através do projeto gráfi-co do livro, as quais não poderiam ser ditas em palavras; e Cristiana Tejo, que abriu espaço para um diálogo que estabelecemos à distân-cia e que segue para além da finalização desta publicação. Ambos trazem novas relações e referências para se pensar o projeto.

A generosa colaboração desses autores, artistas e pesquisadores tornaram o meu próprio caminho em busca dos sertões mais fértil, amplo e estimulante.

Como se faz um deserto é a formação de um pensamento em pro-cesso, que, espero, seja também um mergulho no sertão da calma do pensamento de quem o tem nas mãos.

Marina Camargo

Page 7: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

8 9

Como se faz um deserto [The making of a desert] is organised as a way of seeking out all those geographical confusions that Saint-Hilaire avoided. It is a plunge into the unknown, where concepts, forms and ideas about the topic take on another gravity, another consistency that goes along with the idea of Brazil itself. It is also a personal immersion, a research into forgotten origins – forgotten like the sertão itself, as I learned from Janaína Amado.

To share and exhibit this process is a little like laying out my work references and fundamental readings for the research that precedes each new project, showing the dialogues that open new directions. It is like walking in darkened rooms, groping in the space that presents itself with each new footstep. It is something intimate, like showing family albums to someone you don’t know, or like opening the studio doors and showing the test pieces, references, actions and failures of the working process.

This project was devised in two stages. The first was a journey into the sertão backlands of Brazil in August 2013, when the photographs in this publication were made. Then began a stage of documentation and research into the topic, in which dialogue and reflection about the project also become part of the book. Como se faz um deserto was devised as an open process of documentation and research, which might later unfold in other directions.

I believe that it is only by reviewing and deconstructing established definitions and ideas about places that we can make room for thinking about them differently and then understand how places are defined through cultural constructs. The essays published here were fundamental readings that established other parameters for the project.

Janaína Amado’s “Region, Sertão, Nation” considers the idea of the sertão in its conceptual, cultural and historical contexts, and is an important reference work about the topic. As well as revisiting relevant authors for thinking about the sertões, Janaina also reconsiders the position of the sertões in Brazilian culture – such as the way in which their etymological source in Portuguese is transformed over time to become the name for that region of the inner Brazil.

Gonçalo M. Tavares’s essay tells of a journey to the Ceará sertão, addressing the oral culture, memory and changing cartography of the sertões.

“Stories in the Sertão, sand in Jericoacoara”, became part of my life at a special time, also during a journey, when I was going to live in Germany. This essay somehow thrust me back to my own history, at that time forgotten or distant. That was perhaps my first return to the sertão. I kept it for a few years until I could go back to it and share it in this publication.

Defining the limits of the sertões by analysing maps of Brazil is the research topic for Ângela Lúcia Ferreira, George Alexandre Ferreira Dantas and Yuri Simonini. I found their paper “The mapping of the Brazilian (de)sertão: notes about an image in formation – 19th and 20th centuries” enlightening in its use of the reading of maps to reveal issues that I had understood more intuitively during my brief visit to the sertão. The investigation introduces elements and concepts of geography and cartography that have contributed

Como se faz um deserto

If each traveller were entitled to write the [names of places] of the country being visited in their own way, geography would soon be overcome by doubtless confusion.Auguste de Saint-Hilaire1

1 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Nascentes do Rio S. Francisco e pela Provincia de Goyaz. Tomo segundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p.13.

to reconsidering this place and the way it has been constructed.

The essays by Janaína Amado and Gonçalo M. Tavares and the research by Ângela, George and Yuri have been both fundamental and transformative in this process of the conceptual construction and understanding of the sertão regions. Reading them awakens another possible dialogue with this place and outlines other possible ways of understanding the region.

Throughout the whole process I was also able to count on the very special contribution of two other people: Vitor Cesar, whose design for the book has brought visibility to fundamental ideas about the research that could not be said in words; and Cristiana Tejo, who made time for a long-distance dialogue that continues beyond the completion of this publication. Both of them introduced new relationships and references for thinking about this project.

The generous contributions of these authors, artists and researchers have made my own route in search of the sertões broader, more fertile and stimulating.

Como se faz um deserto is the formation of thought in process, which I hope also offers an immersion into the sertão hinterland of calm in the thoughts of those holding this publication their hands.

Marina Camargo

Page 8: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão.

Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão.

Page 9: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

13

Page 10: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 11: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

17

Era início do ano de 2012. Os mandacarus floriram em fevereiro. Finalmen-te a chuva voltava ao sertão.

Eu chegava no momento do fim de uma história, no momento da tragé-dia, e do silêncio que se aproximou.

A última vez que havia feito esse percurso havia sido há vinte anos. A paisagem estava mudada. Tudo tomado de um verde brilhante das plan-tas que afloraram com as chuvas. O céu ainda escuro com nuvens pesadas de chuva que apagavam partes da paisagem. Vinte anos antes, a paisagem queimava no sol. Marrom, morna e seca. Sentei no mesmo lugar no carro, olhando para fora em silêncio, como havia feito anos antes.

Esse retorno ao sertão, repentino, imprevisto, indesejado, ocasionado pelo destino, desencadeou um pensamento sobre a região. E agora, de um outro modo, para além das histórias íntimas ou razões do destino, retomo o sertão.

Pensar sobre questões relacionadas ao Brasil logo após um período de via-gens e residência fora do país, parecia uma necessidade, como um caminho inevitável a se seguir. Quando estava vivendo na Alemanha, fiz a série de trabalhos “Tratado de Limites”1, relacionada à região dos pampas. Foram três viagens para os pampas no sul do Brasil e no norte do Uruguai. Talvez a distância entre esses lugares – não só geográfica, mas essencialmente a oposição entre regiões de isolamento e centralidade no mundo (com toda a carga política que está implícita em definições regionais) – tenha sido defi-nitiva para pensar essas experiências de deslocamento.

Nas viagens pelos pampas – região extensa, onde as distâncias se rela-tivizam – a sensação de isolamento é imensa. A continuidade dilui as fron-teiras políticas, tira o sentido das definições lineares da cartografia do lugar.

Da relação com a paisagem e cartografia dos pampas para se pensar os sertões, parece haver uma sequência lógica e linear como uma narrativa construída.

Mas, aqui, é o próprio destino, alheio ao desejo, que provocou a sequên-cia de interesses pelos pampas e sertões.

Curiosamente já havia escrito em meu caderno longos textos divagando so-bre o Brasil, influenciada pelo ensaio de Stefan Zweig2 e pelas experiências de viagem pelo interior do país e fora dele, sobre os lugares de isolamento que a distância geográfica de centros ou capitais culturais podem ocasionar.

E, como se o destino previsse o encadeamento lógico entre ideias e tex-tos, ele então me levou para o Brasil de dentro.

Depois deste retorno ao sertão, retomei a leitura de Os Sertões, de Eucli-des da Cunha. A primeira parte do livro, chamada “A Terra”, volta a ser o meu principal interesse no texto: as tentativas de definir uma região ainda em pro-cesso de construção conceitual, as descrições detalhadas da paisagem, da flo-ra, mesmo o sentido determinista de pensar como esse ambiente influencia e forma o homem da região.

No sertão da calma do pensamento

Marina Camargo

1 A série foi realizada no ano de 2011, sendo um trabalho comissionado pela 8a Bienal do Mercosul (realizada em Porto Alegre, Brasil, naquele mesmo ano). No período de 2010 a 2011, estava vivendo em Munique por ocasião de uma bolsa de estudos do DAAD.

2 “Brasil, um país do futuro” (1941), de Stefan Zweig, no qual o autor revê a história e formação do Brasil.

Page 12: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

18 19

“Como se faz um deserto” e “Uma categoria geográfica que Hegel não citou” são subtítulos desse capítulo de Os Sertões. Entre as categorias cita-das pelo filósofo estariam a dos homens que vivem nas montanhas e os que vivem no litoral, no sentido que estas paisagens ou ambientes naturais de-finiriam as pessoas que vivem ali. A natureza determinando um modo de viver ou ser.

A categoria omitida (ou intencionalmente esquecida) pelo filósofo se-ria esta que Euclides da Cunha menciona, aquela do homem do deserto, do sertão. Qual sentido haveria em pensar no determinismo do meio sobre o homem? Só poderia pensar sobre essa resposta após uma nova viagem pe-los sertões do Brasil. É quando este projeto tem início.

Paisagem cinza: em busca do sertão

Onde fica o sertão?O que aparentemente é uma pergunta retórica, logo se tornou a ques-

tão central de minha pesquisa. Ao planejar a viagem pelos sertões, precisei escolher uma parte da re-

gião para percorrer. Iniciei pelo sertão da região do rio São Francisco indo em direção ao interior da Bahia. O livro de Euclides da Cunha foi, nesse mo-mento inicial da pesquisa, uma espécie de guia, livro de cabeceira, objeto inseparável.

Os viajantes de todas as épocas que conheceram ou exploraram o Brasil adentraram no país através dos rios. Também entrei no sertão seguindo as margens do São Francisco, às vezes me aproximando do rio, outras tendo-

-o como referência geográfica para entrar no sertão. Partindo de Alagoas rumo ao interior da Bahia3.

Durante a viagem, quando comentava sobre a pesquisa, todos me fa-lavam sobre a seca. Sertão e seca transformaram-se em sinônimos. E, de algum modo, fui tomada por esse sentido metereológico das secas do ser-tão. Comecei a procurar solos rachados pela falta d’água, pontes sobre rios esvaziados pelas longas secas. Mas a seca havia deixado o sertão de Alagoas, onde iniciei a viagem: a paisagem já não era cinza, mas verde. Paisagem re-novada pelas chuvas, montes esverdeados. A seca prolongada fui encontrar somente no interior da Bahia.

Caminhando no fundo do leito de um rio seco, percebi que não era aquele o sertão que eu buscava. Esse era sim o sertão dos estereótipos, o sertão que legitimava a indústria da seca e fazia os habitantes da região so-frerem com a ausência de água. “Essas imagens já foram muito exploradas pela mídia”, disse-me um senhor em Canudos. A compreensão do sertão pelo senso comum não dava conta da realidade do lugar – ou melhor, dos muitos lugares entendidos como sertão.

Ali, com os pés afundados na terra rachada do leito do rio, percebi que não era esse o sertão que eu tentava compreender. Era um lugar para além de onde estava.

As regiões geográficas de um país podem ser delineadas através de res-postas às perguntas: Onde? Até onde?

Pensei o mesmo sobre o sertão. E fiz essa pergunta a várias pessoas no início de minha viagem. Perguntava onde deveria ir, onde estava o sertão. Cada resposta me levava a uma cidade diferente da outra, cada pessoa indi-cava uma região diferente do mapa.

O sertão não estava em Alagoas, mas no interior de Pernambuco; não bem em Pernambuco, mas na Paraíba; não na Bahia, mas no Piauí; não no

interior do Piauí, mas no estado do Ceará. Cada um desses lugares era ser-tão para alguém. Todos pensavam no lugar mais seco, isolado e esquecido pelo resto do país que já haviam visitado.

Até onde é sertão? Até onde eu deveria ir para entender os sertões? E, afinal, porque importaria definir onde era sertão?

A sensação de que eu nunca alcançaria o sertão do outro (das indica-ções que recebia) foi mais forte. O sertão virou um lugar inalcançável. Ser-tão era um lugar sempre mais além de onde eu estava.

Ao mesmo tempo, a sensação de isolamento crescia dia após dia da via-gem. Cada estrada parecia estar em piores condições que as anteriores e, eu, mais estrangeira do que antes. Mas esse isolamento era mais próximo de uma sensação de sufocamento, acompanhada de uma percepção de que a minha realidade havia sido transformada em definitivo. Sentia-me já parte dos sertões, sem possibilidades de viver outros mundos para além daquele. O isolamento parecia definir uma percepção de mundo, determinando um mundo mais restrito em suas fronteiras, reduzido geograficamente àquele lugar onde eu estava. Somente quando iniciei o retorno rumo ao litoral foi que essa sensação de fatalismo e sufocamento pouco a pouco se desfez.

Sem saber, ali estava o sertão. O sertão havia tomado conta de mim, de meus pensamentos. Só podia ver o mundo a partir desse lugar – desde fora do mundo, desde dentro do sertão.

O sertão é sem fim

Uma vez dentro do sertão, em meio à caatinga, sob o sol pontual que des-perta antes do galo cantar e desaparece cedo trazendo a noite de surpresa, o mundo parece ganhar outra forma, outra dimensão, parece ser regido por outras regras.

De dentro, o resto do mundo parece mais distante e sem sentido. A vida passa a ser pautada por questões simples de adaptação e resistência. Suportar o calor extremo do dia, ter os olhos ofuscados pela luz, a cabeça perturbada pelo sol forte. Tudo parece ser definitivo – a seca, a caatinga, a própria permanência na região. O sertão é para sempre quando se vive nele. Só se compreende o sertão quando ali se adentra. E, embora indefinido em seus limites geográficos, é ele quem começa a definir o que você é ou pode vir a ser.

Há algo na região que contamina a percepção dos lugares, muda as nos-sas perspectivas, nos desloca para longe do centro. Ao mesmo tempo, atrai e provoca o desejo de seguir mais dois mil quilômetros país adentro em busca desse lugar. Se o sertão está sempre mais além, ele é tão inalcançável quanto o desejo. À medida em que a distância em relação ao litoral aumenta, abre-se, pouco a pouco, um espaço interno.

O sertão é dentro da gente, escreveu Guimarães Rosa. Sertão é um mundo poderoso, que cresce, se desenvolve, se apropria

das nossas percepções. Expande-se para dentro do país, da paisagem, da terra, de nós mesmos. Um lugar de certo modo esquecido, mas que também provoca uma espécie de esquecimento. Dali, esquece-se do mundo exterior, a percepção da realidade é transformada em algo eterno e imutável. E tam-bém o mundo esquece do sertão, deixando esta ser ainda uma região inde-finida no interior do país.

Quando Euclides da Cunha lembra Hegel em seu texto “Uma catego-ria geográfica que Hegel não citou”, fica implícita a referência a um esque-cimento. Através do que não é dito, torna-se implícito o vazio que o sertão representa.

3 Passando por Batalha, Jacaré dos Homens, Piranhas, Paulo Afonso, Raso da Catarina, Jerimoabo, Canudos, Euclides da Cunha, Propriá, encerrando a viagem no local de partida, em Maceió.

Page 13: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

2120

It was early 2012. The mandacaru cactus flowers in February. Rain had finally returned to the sertão.

I arrived at the closing moment of a story, the moment of tragedy and approaching silence.

The last time I had made this journey was twenty years ago. The landscape had changed. It was full of the bright green of plants flourishing with the rain. The sky was still dark with heavy rainclouds which blotted out part of the landscape. Twenty years before, the landscape burned in the sun. Brown, warm and dry. I sat in the same place in the car, looking out in silence, just as I had years before.

This sudden, unexpected, unwanted return to the sertão, brought on by fate, unleashed a chain of thoughts about the region. And now, in another way, beyond personal stories or fate, I return to the sertão.

After a period of travel and living abroad, it seemed necessary to think about issues related to Brazil, like some inevitable route to be followed. When I was living in Germany I made a series of works called

“Tratado de Limites” [Border Treaty]1, related to the pampas region. These were three journeys into the pampas of southern Brazil and northern Uruguay. Perhaps the distance between those places – not just geographical, but essentially the contrast between the world’s regions of isolation and centrality (with all the implicit political baggage of regional definitions) – had been definitive for thinking about the experiences of displacement.

On those journeys to the pampas – an extensive region, where distance becomes relative – there is a huge feeling of isolation. Continuity dilutes political boundaries and removes the meaning of the linear definitions of the place’s cartography.

There seemed to be a logical and linear sequence in the relationship between the landscape and cartography of the pampas and thinking about the sertão regions, like some constructed narrative.

But it is fate itself, alien to desire, that provoked the sequence of interests in the pampas and the sertões.

Interestingly, I had written extensively about Brazil in my notebook, influenced by Stefan Zweig’s essay2 and by the experiences of travelling into the interior of the country and abroad, particularly the places of isolation that can arise through the geographical distance from centres and capitals of culture.

In the sertão hinterland of calm thought

1 The series was made in 2011, commissioned by the 8th Mercosul Biennial (organised in the same year in Porto Alegre, Brazil). From 2010 to 2011, I was living in Munich on a study bursary awarded by DAAD.

2 “Brasil, um país do futuro” (1941), by Stefan Zweig, in which the author reviews the history and formation of Brazil.

Marina Camargo

Page 14: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

22 23

And as if fate had foreseen the logical connection between the ideas and writings, it then led me to the inner Brazil.

After that return to the sertão, I went back to reading Euclides da Cunha’s Os Sertões. The first part of the book is called “The Land” and became the section that most interested me: the attempts at describing a region still in the process of construction as a concept, the detailed descriptions of the landscape, the flora, even the deterministic way of thinking about how this environment influences and forms the people of the region.

“The making of a desert” and “A geographical category not mentioned by Hegel” are subtitles in that chapter of Os Sertões. Among the categories the philosopher does mention would be the one of people who live in the mountains and those who live on the coast, in the sense that these landscapes or environments define the people who live there. Nature determines a way of living or being.

The category omitted (or intentionally forgotten) by the philosopher would be the one mentioned by Euclides da Cunha, of the people of the desert, of the sertão.

What meaning would there be in thinking about the effects of the environment on people? It would only be possible to consider the answer to this after a new journey through the Brazilian sertões. Which is when this project began.

Grey landscape: in search of the sertão

Where is the sertão? What seems to be a rhetorical question soon became the key question of my investigations.

On planning a journey through the sertões, I needed to choose a part of the region to travel through. I began with the sertão in the São Francisco river region, heading into the Bahia interior. Euclides da Cunha’s book was a kind of guide in this early stage of investigations, a bedside book not to be parted with.

At every period, the travellers discovering or exploring Brazil entered the country along its rivers. I also entered the sertão following the banks of the São Francisco river, sometimes approaching the river and at other times using it as a geographical reference point for entering the sertão. Moving from Alagoas towards the interior of Bahia3.

When I talked about the project during the journey, everyone told me about the drought. Sertão and drought had become synonyms. And I was somehow overcome by that meteorological sense of the sertão droughts. I started to look for earth that had cracked due to lack of water, bridges over rivers drained by long periods of drought. But in the Alagoas sertão, where I began the journey, the drought was over: the landscape was no longer grey but green. A landscape renewed by the rain, hills turning green. I would only find prolonged drought in the Bahia interior.

Walking along a dried-up riverbed, I realised that this was not the sertão I was looking for. It was indeed the sertão of stereotype, the sertão that legitimised the drought industry and meant that the region’s inhabitants suffered from water shortages.

“Those images have been greatly exploited by the media”, I was told by a man in Canudos. Common understanding of the sertão did not address the reality of the place – or rather, the many places known as sertão.

There, with my feet sinking into the cracked earth of the riverbed, I realised this was not the sertão I was

trying to understand. It was somewhere else.A country’s geographical regions can be defined

according to the answers to questions like: Where? How far? I thought the same about the sertão. I asked several people the question at the start of my journey. I asked where I should go, where the sertão was. Each response took me to a different town, each person pointed to a different region on the map.The sertão was not in Alagoas but instead in the hinterland of Pernambuco; not really Pernambuco, more like Paraíba; not in Bahia, but in Piauí; not in the Piauí interior but in the state of Ceará. Each of those places was the sertão for someone. Everyone thought of a place they had visited that was drier and more isolated and forgotten by the rest of the country.

How far does the sertão go? How far would I have to go to understand the sertão regions? And finally, why did defining where the sertão was actually matter?

The strongest sensation was that I would never find someone else’s sertão (from the suggestions I had been given). The sertão became somewhere unattainable. Sertão was always somewhere other than where I was.

At the same time the feeling of isolation grew with each day of the journey. Each road seemed to be in worse condition than the previous ones, and I seemed more of a stranger than before. But that isolation was more like a feeling of suffocation, accompanied by a sense that my reality had been definitively transformed. I now felt myself part of the sertão backlands, with no possibility of living in any other worlds. The isolation seemed to define a perception of the world, a world with more confined boundaries, geographically reduced to that place where I was. Only when I began to go back towards the coast did that sense of inevitability and suffocation gradually break down.

Without knowing it, the sertão was there. The sertão had taken me over, taken over my thoughts. I could only see the world from that place – from outside the world, from inside the sertão.

3 Via Batalha, Jacaré dos Homens, Piranhas, Paulo Afonso, Raso da Catarina, Jerimoabo, Canudos, Euclides da Cunha, Propriá, and ending the journey back at the starting point, Maceió.

The sertão is endless

Once inside the sertão, in the scrubland, under the punctual sun that rises before cockcrow and disappears early to bring sudden nightfall, the world seems to take a different shape, another dimension, seeming to be governed by other rules.

From inside, the rest of the world seems more distant and meaningless. Life becomes ruled by simple matters of adaptation and resistance. Enduring the extreme heat of the day, eyes dazzled by the light, head unsettled by the strong sun, everything seems definitive – the drought, the scrub, the permanence of the region itself. When you live there the sertão is forever. The sertão can only be understood by entering it. And although its geographical boundaries are imprecise, that is what begins to define what you are or might become.

There is something in the region that contaminates the perception of places, changes perspectives, shifts you away from the centre. At the same time it attracts and stimulates the desire to go 2000 kilometres further into the country in search of that place. If the sertão is always somewhere else, it is as unattainable as desire. As the distance from the coast increases, little by little an inner space opens out.

The sertão is inside us, wrote Guimarães Rosa. Sertão is a powerful world that grows, develops

and takes over our perceptions. It expands inside the country, the landscape, the earth and ourselves. To some extent a forgotten place, but one which also provokes a kind of forgetting. Once there, the outside world is forgotten and perception of reality is transformed into something eternal and unchanging. And the world also forgets the sertão, still leaving it as another undefined region in the country’s interior.

When Euclides da Cunha refers to Hegel in “A geographical category not mentioned by Hegel”, there is a clear reference to forgetting. The emptiness represented by the sertão becomes implicit through what is not said.

Page 15: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

24

Page 16: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

27

Page 17: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 18: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

30 31

Page 19: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

3332

Uma categoria espacial

No conjunto da história do Brasil, em termos de sen-so comum, pensamento social e imaginário, poucas categorias têm sido tão importantes, para designar uma ou mais regiões, quanto a de “sertão”. Conhecido desde antes da chegada dos portugueses, cinco séculos depois “sertão” permanece vivo no pensamento e no cotidiano do Brasil, materializando-se de norte a sul do país como sua mais relevante categoria espacial: entre os nordestinos, é tão crucial, tão prenhe de signi-ficados, que, sem ele, a própria noção de “Nordeste” se esvazia, carente de um de seus referenciais essenciais. Que seria de Minas Gerais, Goiás ou Mato Grosso sem seus sertões, como pensá-los? Em Santa Catarina, ain-da hoje se emprega a expressão “sertão” para referir-

-se ao extremo oeste do Estado. Em partes do Paraná, a mesma expressão identifica uma área do interior de outro estado, São Paulo, próxima a Sorocaba (provavel-mente, uma reminiscência dos antigos caminhos das tropas). No Amazonas, “sertão de dentro” refere-se à fronteira do estado com a Venezuela, enquanto, no in-terior do Rio Grande do Sul, “sertão de fora” também nomeia área de fronteira, porém situada... no Uruguai!

“Sertão” é, também, uma referência instituciona-lizada sobre o espaço do Brasil: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), designa oficialmente uma das subáreas nordestinas, árida e po-bre, situada a oeste das duas outras, a saber: “agreste” e

“zona da mata”.

Uma categoria do pensamento social

“Sertão” é uma das categorias mais recorrentes no pen-samento social brasileiro, especialmente no conjunto de nossa historiografia. Está presente desde o século XVI, nos relatos dos curiosos, cronistas e viajantes que visitaram o país e o descreveram, assim como, a par-tir do século XVII, aparece nas primeiras tentativas de elaboração de uma história do Brasil, como a realizada por frei Vicente do Salvador1. No período compreendi-do entre as últimas décadas do século XIX e as primei-ras do século XX, mais precisamente entre 1870 e 1940,

“sertão” chegou a constituir categoria absolutamente essencial (mesmo quando rejeitada) em todas as cons-truções historiográficas que tinham como tema básico a nação brasileira.

Os historiadores reunidos em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e identificados com a historiografia ali produzida, como Varnhagen, Capis-trano de Abreu2 e Oliveira Viana3, utilizaram e refina-ram o conceito. Outros historiadores importantes do

período, como Euclides da Cunha4 e Nelson Werneck Sodré5, em sua fase pré-marxista, e, posteriormente, Sérgio Buarque de Holanda6 e Cassiano Ricardo7, traba-lharam, de diferentes formas, com a categoria “sertão”.

A partir da década de 50, o tema não foi mais tão candente entre os historiadores. Permaneceu, entre-tanto, importante na análise de sociólogos, como Ma-ria Isaura Pereira de Queiroz, Douglas Teixeira Montei-ro e Maurício Vinhas de Queiroz, e de alguns poucos antropólogos, como Neide Erterci8 e Otávio Velho9.

Na década de 90, reapareceu em obras de historia-dores, como Giucci e Monteiro. Vivido como experiên-cia histórica, “sertão” constituiu, desde cedo, por meio do pensamento social, uma categoria de entendimento do Brasil, inicialmente na condição de colônia portu-guesa e, após o século XIX, como nação.

Uma categoria do pensamento social

“Sertão” ocupa ainda lugar extremamente importante na literatura brasileira, representando tema central na literatura popular, especialmente na oral e de cor-del, além de correntes e obras literárias cultas. Como apontaram, entre outros, Afrânio Coutinho10, Antônio Cândido11, Fernando Cristóvão12, Gilberto Mendonça Teles13, “sertão” frequenta com assiduidade a literatura brasileira desde a poesia romântica do século XIX (Ál-vares de Azevedo, Junqueira Freire, Castro Alves, etc.), passando pela prosa romântica (Bernardo Guimarães e, principalmente, José de Alencar, em O sertanejo), atingindo enorme importância na literatura realista, em autores como Franklin Távora, Coelho Neto e Afon-so Arinos.

Grande parte da denominada “literatura regiona-lista” tem o sertão como locus, ou se refere diretamente a ele. A chamada “geração de 1930” (Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Jorge Amado, etc.), por sua vez, é a principal responsável pela construção dos conturbados sertões nordestinos, de forte conota-ção social. Entretanto, talvez o maior, mais completo e importante autor relacionado ao tema tenha sido João Guimarães Rosa14, o evocador dos sertões misteriosos, míticos, ambíguos, situados ao mesmo tempo em espa-ços externos e internos. O tema continuou a ser aborda-do por vários autores (Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro são apenas exemplo), chamando a atenção de escritores como Francisco J. C. Dantas, em Os desvali-dos15. A literatura brasileira povoou os variados sertões que construiu com personagens colossais, poderosos símbolos, narrativas míticas, marcando com eles forte, funda e definitivamente, o imaginário brasileiro.

Paralelamente, “sertão” tem estado presente em

R E G I Ã O , S E R T Ã O , N A Ç Ã O *

J a n a í n a A m a d o

A special category

In terms of common understanding, social thought and imagery, few categories within the history of Bra-zil have been as important for defining one or more of its regions as “sertão”. Known even before the arrival of the Portuguese, five centuries later the “sertão” re-mains alive in the everyday life and thoughts of Brazil and features as the country’s most significant category of space, from north to south: among the people of the northeast it is so crucial, so laden with meaning, that without it the actual notion of the “Northeast” would lose one of its essential references and fade away. What would the states of Minas Gerais, Goiás or Mato Grosso be without their sertões; how would one think of them? In Santa Catarina, the term “sertão” is still used today to refer to the far west of the state. In parts of Paraná the same term is used to identify an area near Sorocaba, in the interior of another state, São Paulo (probably left over from the time of the drover’s trails). In Amazonas, the “inner sertão” refers to the state border with Ven-ezuela, while in the interior of Rio Grande do Sul, the

“outer sertão” also refers to a border area, but this time… in Uruguay.

“Sertão” is also an institutional reference to an area of Brazil: according to the Brazilian Geography and Statistics Institute (IBGE), it officially designates one of the dry and poor sub-areas of the Northeast, situated to the west of two others: the “agreste” and the “zona da mata”.

A category of social thought

“Sertão” is one of the most recurrent categories in Bra-zilian social thought, especially in its historiography. It has existed since the 16th century in the notes of scholars, chroniclers and travellers who visited and described the country, just as it appears in the first at-tempts at developing a history of Brazil from the 17th century, such as the one by Friar Vicente do Salvador (1975)1. During the late 19th century and the early 20th century, between 1870 and 1940, “sertão” became an absolutely essential category (even when rejected) in all the historiographical constructs of the Brazilian nation.

The concept was used and refined by historians connected to the Brazilian Historical and Geographi-cal Institute and identified with its historiography, such as Varnhagen, Capistrano de Abreu2 and Oliveira Viana3. Other important historians of the period, like Euclides da Cunha4 and Nelson Werneck Sodré5, in his pre-Marxist phase, and later Sérgio Buarque de Hol-anda6 and Cassiano Ricardo7, also worked in different ways with the category of “sertão”.

From the 1950s the term was no longer such a burn-ing issue among historians. But it remained important in the analysis of sociologists like Maria Isaura Pereira de Queiros, Douglas Teixeira Monteiro and Maurício Vinhas de Queiroz, and a few anthropologists, such as Neide Erterci8 and Otávio Velho9.

It reappeared in the works of historians like Giucci and Monteiro in the 1990s. Historically, “sertão” be-came a category of understanding Brazil from an early stage, initially as a Portuguese colony and then from the 19th century as a nation.

A cultural category

“Sertão” also occupies an extremely important place in Brazilian literature, appearing as a central theme in popular writing, especially in oral and chapbook literature, and also in more literary trends and works. As Afrânio Coutinho10, Antônio Cândido11, Fernando Cristóvão12 and Gilberto Mendonça Teles13 and others have indicated, the “sertão” plays a key role in Brazil-ian literature from the romantic poetry of the 19th cen-tury (Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Castro Alves, etc.) and romantic prose (Bernardo Guimarães and particularly José de Alencar, in O sertanejo), to achieve great importance in the realist literature of authors like Franklin Távora, Coelho Neto and Afonso Arinos.

Much of what is known as “regionalist literature” uses the sertão as its locus, or refers to it directly. The so-called “1930 generation” (Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Jorge Amado, etc.) is in turn responsible for the construction of the troubled sertões of the northeast, and their powerful social con-notations. But perhaps the greatest, most complete and important writer related to the theme has been João Guimarães Rosa14, evoking the mysterious, mythi-cal, ambiguous sertões, situated in both external and internal spaces. The topic continues to be addressed by several authors (Ariano Suassuna and João Ubaldo Ri-beiro, for example), and attracts the attention of writers like Francisco J. C. Dantas, in Os desvalidos15. Brazilian literature populated its various sertões with colossal characters, powerful symbols and mythical narratives, to give them a strong, profound and definitive presence in the image of Brazil.

“Sertão” has at the same time been present in other arts, such as painting, theatre, film and particularly music, and has occupied extensive space in the com-munication media of the past and present: magazines, newspapers, radio and television, where it has inspired comedy programmes, special features and many dra-ma series. Perhaps no other category in Brazil has been constructed in so many different ways. Perhaps no oth-

R E G I O N , S E R TÃO, N AT I O N *

J a n a í n a A m a d o

Page 20: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

3534

outras artes como a pintura, o teatro, o cinema e, em es-pecial, a música e ocupado espaços amplos nos meios de comunicação, antigos e atuais: em revistas, jornais, rádios e também na televisão, onde tem inspirado pro-gramas humorísticos, casos especiais e diversas nove-las. Talvez nenhuma outra categoria, no Brasil, tenha sido construída por meios tão diversos. Talvez nenhu-ma esteja tão entranhada na história brasileira, tenha significados tão importantes e variados e se identifique tanto com a cultura brasileira: “O sertão está em toda parte; o sertão está dentro da gente”, sabia Guimarães Rosa16.

Uma categoria construída durante a colonização

A seguir, é realizado um exercício modesto, no sentido de identificar, no período colonial brasileiro, algumas facetas desse primeiro momento histórico de constru-ção da categoria “sertão”. Parte de uma pesquisa mais ampla, representa a primeira tentativa de sistematiza-ção do tema.

Talvez desde o século XII, com certeza desde o XIV, os portugueses empregavam a palavra, grafando-

-a “sertão” ou “certão”, para referir-se a áreas situadas dentro de Portugal, porém distantes de Lisboa17. A par-tir do século XV, usaram-na também para nomear espa-ços vastos, interiores, situados dentro das possessões recém-conquistadas ou contíguos a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam: “Para além de Ceuta, até onde alcançam as vistas, estendem-se os certões...” escreveu, em 1534, Garcia de Resende18.

Segundo alguns estudiosos19, “sertão” ou “cer-tão” seria corruptela do “desertão”; segundo outros20, proviria do latim clássico serere, sertanum (trançado, entrelaçado, embrulhado), desertum (desertor, aquele que sai da fileira e da ordem) e desertanum (lugar des-conhecido para onde foi o desertor). Desde o século XVI, as duas grafias foram empregadas por numerosos viajantes e cronistas do nascente império português na África, Ásia e América, com o sentido já apontado, de grandes espaços interiores, pouco ou nada conhecidos:

“... e os príncipes dela se foram a el Rei, requerendo-lhe que fizesse paz com os portugueses, se não que se iriam todos para o certão”, escreveu Damião de Góis;

“... com que cortam por esse certão espaço de mais de quinhentas léguas, se vão meter no mar da China e da Cochinchina”, relatou Fernão Mendes Pinto21.

“Sertão” foi ainda largamente utilizado, até o final do século XVIII, pela Coroa portuguesa e pelas autori-dades lusas nas colônias. No Brasil, são numerosíssi-mos os exemplos disso na documentação oficial: “Se lhes fazia certo haver nos sertões da América minas de ouro, prata e pedras preciosas” (resposta de D. João V, em 1721, ao pedido de licença de Bartolomeu Bueno da Silva e outros, para organizar bandeira rumo a Goiás);

“Se os não puder obter (os recursos solicitados), Senhor, não sei o que será feito desses fiéis servos de Vossa Ma-jestade, abandonados à sorte cruel entre os sanguiná-rios selvagens habitantes desses certões.”22

Note-se que a descoberta, a partir do final do sécu-lo XVII e início do XVIII, de grande quantidade de ouro, em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, e as consequen-tes explosão demográfica, acumulação de fortunas, fundação de núcleos urbanos e implantação da pesada burocracia lusa não foram capazes de modificar subs-tancialmente os significados de “sertão”:

“Farto já o dito Raposo (Tavares), ou tendo ouro que

bastava à sua ambição (...) ou receoso de que com aquela fama se ajuntasse algum poder maior que o destruísse, se ausentou com os seus pelo mato dentro para estes sertões, tendo minerado no dito riacho (...) e neste tirou todo o ouro que levou, em que falou sempre com vivacidade (...)”23

Já em 1813, o governador de Goiás, Delgado Freire, em carta a parente em Lisboa, saudava com entusiasmo sua “próxima saída desses infernais sertões”.

No início do século XIX, “sertão” estava de tal modo integrado à língua usada no Brasil, que os viajan-tes estrangeiros em visita ao país registraram a palavra, utilizando-a várias vezes em seus relatos: Pohl24, por exemplo, mencionou os “vastíssimos sertões goianos”, e chamou a atenção para “essa área perdida, escondida, esse sertão das Gerais”, enquanto Saint-Hilaire25 usou

“sertão” em mais de um livro, sempre designando “as áreas despovoadas do interior do Brasil. Quando digo

‘despovoada’, refiro-me evidentemente aos habitantes civilizados, pois de gentios e animais bravios está po-voada até em excesso”. De forma simplificada, pode-se afirmar, portanto, que, às vésperas da independência,

“sertão” ou “certão”, usada tanto no singular quanto no plural, constituía no Brasil noção difundida, carregada de significados. De modo geral, denotava “terras sem fé, lei ou rei”, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada, habitadas por índios “selva-gens” e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, leigas ou religiosas, detinham pouca in-formação e controle insuficiente26.

Nesse sentido, “sertão” foi uma categoria constru-ída primeiramente pelos colonizadores portugueses, ao longo do processo de colonização. Uma categoria carregada de sentidos negativos, que absorveu o signi-ficado original, conhecido dos lusitanos desde antes de sua chegada ao Brasil – espaços vastos, desconhecidos, longínquos e pouco habitados –, acrescentando-lhe outros, semelhantes ao primeiros e derivados destes, porém específicos, adequados a uma situação históri-ca particular e única: a da conquista e consolidação da colônia brasileira.

Assim, no Brasil colonial, “sertão” tanto designou quaisquer espaços amplos, longínquos, desconhecidos, desabitados ou pouco habitados – “...seja porque des-ses imensos certões quase nada ainda apuraram...”27 –, como adquiriu uma significação nova, específica, estri-tamente vinculada ao ponto de observação, à localiza-ção onde se encontrava o enunciante, ao emitir o con-ceito. Disso decorreram consequências importantes. Primeiro: como os portugueses, na expressão de Salva-dor28, se mantiveram muito tempo “arranhando a cos-ta, como caranguejos”, aí concentrando as atividades econômicas significativas, construindo os núcleos ur-banos importantes e instalando as instituições e auto-ridades responsáveis pela colonização, este foi o ponto de observação privilegiado, ao longo dos três primeiros séculos, para a construção da categoria “sertão”. Desde o litoral, “sertão” foi constituído.

Por isso, desde os primeiros anos da Colônia, acen-tuando-se com o passar do tempo, “litoral” e “sertão” representaram categorias ao mesmo tempo opostas e complementares. Opostas, porque uma expressava o reverso da outra: litoral (ou “costa”, palavra mais usada no século XVI) referia-se não somente à existência física da faixa de terra junto ao mar, mas também a um espa-ço conhecido, delimitado, colonizado ou em processo de colonização, habitado por outros povos (índios, ne-

er is so embedded in Brazilian history, has such impor-tant and varied significance and is identified so much with Brazilian culture: “The sertão is everywhere; the sertão is inside us”, as Guimarães Rosa knew16.

A category constructed during colonisation

The brief exercise that follows aims to identify some facets of the early stage in the history of the construc-tion of the category of “sertão” in the Brazilian colonial period. Based on more extensive research, it represents the first attempt at systematising the topic.

Certainly from the 14th century, and perhaps even from the 12th, the Portuguese used the word written as

“sertão” or “certão” to refer to areas inside Portugal but distant from Lisbon17. From the 15th century it was also used to describe distant, interior areas inside or adjoin-ing recently conquered possessions, about which little or nothing was known: “Beyond Ceuta, certões stretch as far as the eye can see...” wrote Garcia de Resende in 153418.

Some scholars19, claim “sertão” or “certão” to be a corruption of “desertão”; others20 state that it comes from the latin serere, sertanum (woven, braided, entan-gled), desertum (deserter, someone who leaves the line or order) and desertanum (the unknown destination of the deserter). From the 16th century the two spellings were used by numerous travellers and chroniclers of the fledgling Portuguese empire in Africa, Asia and Ameri-ca to indicate the great unknown or little known spaces of the interior: “… and the princes went to the King ask-ing him to make peace with the Portuguese, otherwise they would all go to the certão”, wrote Damião de Góis;

“... cutting across more than five-hundred leagues of this space of the certão, to reach the China Sea and In-dochina”, stated Fernão Mendes Pinto21.

“Sertão” was still widely used by the Portuguese crown and colonial authorities until the end of the 18th century. Numerous examples exist in the official docu-mentation of Brazil: “If they were right, the sertões of America contained mines of gold, silver and precious stones” (D. João V’s answer, in 1721, to the petition from Bartolomeu Bueno da Silva and others to organ-ise an expedition towards Goiás); “If we cannot obtain (the required resources), Sir, I do not know what will become of Your Majesty’s faithful servants abandoned to a cruel fate among the bloodthirsty savages of those certões”22.

It should be noted that the discovery of large quan-tities of gold in Minas Gerais, Mato Grosso and Goiás in the late 17th and early 18th centuries, and the subse-quent demographic explosion, accumulation of wealth, creation of urban centres and the establishment of ex-tensive Portuguese bureaucracy, had little effect on the meanings of “sertão”:

“Now replete, or with enough gold to satisfy his am-bition, or afraid that such fame would bring great-er power that might destroy him, the one known as Raposo (Tavares), left with his takings through the forest to those sertões, having mined in that creek (…) and taking all the gold with him, which he al-ways talked about so animatedly (...)”23

In 1813, the governor of Goiás, Delgado Freire, wrote to a relative in Lisbon, enthusiastically welcoming his

“imminent departure from these infernal sertões”.In the early 19th century, “sertão” was such a part

of the language of Brazil that foreign visitors to the country recorded the word and often used it in their reports: Pohl24, for example, mentioned the “enormous sertões of Goiás” and called attention to “that lost, hidden region, the sertão of the Gerais”, while Saint-Hilaire25 used “sertão” in more than one book, always referring to the “uninhabited areas of the interior of Brazil. When I say ‘uninhabited’ I am clearly referring to civilised occupants, since they are populated by wild animals and people, even to excess”. To put it simply, on the eve of independence, the word “sertão” or “certão”, used both in the singular and the plural, was therefore a widespread concept in Brazil, laden with meanings. Generally speaking it referred to “lands without faith, law or king”, extensive regions away from the coast, with their nature still untamed, occupied by “savage” Indians and wild animals, over which the lay and reli-gious Portuguese authorities had inadequate control and little information26.

In this sense, “sertão” was a category constructed primarily by the Portuguese colonisers throughout the process of colonisation. It is a category charged with negative meanings, which absorbed its original meaning used by the Portuguese before their arrival in Brazil – empty spaces, unknown, distant, and sparsely inhabited –, adding other similar meanings and spe-cific derivations adapted to a single and particular his-torical situation: the conquest and consolidation of the Brazilian colony.

In colonial Brazil, therefore, “sertão” referred to any extensive, distant, unknown, uninhabited or sparsely inhabited spaces – “… because almost nothing has yet been investigated in those immense certões…”27

–, and also acquired a new specific meaning strictly con-nected to the point of observation, the position of the speaker when mentioning the concept. This brought important consequences. Firstly, since the Portuguese remained for a long time “scraping the coast, like crabs”, as Salvador28 puts it, that was where the sig-nificant economic activities were concentrated, con-structing important urban centres and setting up the institutions and authorities responsible for the coloni-sation, for the first three centuries that was the privi-leged viewpoint for construction of the category of the

“sertão”. The “sertão” was established from the coast.From the early years of the Colony, therefore,

“coast” and “sertão” grew with the passage of time to represent categories that were both opposite and complementary. Opposite because one term conveyed the reverse of the other: coast (used more in the 16th century than the word “littoral” today) referred not just to the physical existence of that strip of land by the sea but also to a space that was known, demarcated, colo-nised or in the process of colonisation, occupied by oth-er peoples (black, Indian), but dominated by white set-tlers, a space of Christianity, culture and civilisation29.

“Sertão”, as we have seen, defined not just the interior regions of the Colony, but also the unknown, inacces-sible, isolated, dangerous areas, dominated by raw na-ture and occupied by barbarians, heretics and infidels, untouched by the blessings of religion, civilisation and culture. They were complementary categories because one term was constructed in relation to the other, like a play of mirrors, reflecting the other in reverse, to such an extent that without its key referent (littoral, coast), sertão loses its meaning, becomes intelligible, and vice-versa: “…decided that those entering the certões should construct littorals there”30; “Life cannot be conceived

Page 21: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

3736

gros), mas dominado pelos brancos, um espaço da cris-tandade, da cultura e da civilização29. “Sertão”, já se viu, designava não apenas os espaços interiores da Colônia, mas também aqueles espaços desconhecidos, inacessí-veis, isolados, perigosos, dominados pela natureza bru-ta, e habitados por bárbaros, hereges, infiéis, onde não haviam chegado as benesses da religião, da civilização e da cultura. Ambas foram categorias complementares porque, como em um jogo de espelhos, uma foi sendo construída em função da outra, refletindo a outra de forma invertida, a tal ponto que, sem seu principal re-ferente (litoral, costa), “sertão” esvaziava-se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa: “... determinou que entrassem pelos certões, para ali erigir litorais”30;

“Sem ele (o sertão) não se concebe a vida: ‘por os mora-dores não poderem viver sem o sertão’, proclamam-no os oficiais da Câmara numa vereação de mil e seiscen-tos e quarenta anos”31.

Para o colonizador, “sertão” constituiu o espaço do outro, o espaço por excelência da alteridade. Que outro, porém, senão o próprio eu invertido, deformado, esti-lhaçado? A partir da construção de alteridades, duran-te os processos de colonização, os europeus erigiram e refinaram as próprias identidades: “A assimilação conceitual do Outro geográfico introduziu uma tensão dialética dentro do ponto de vista do mundo europeu que determinou como a Europa percebeu o mundo de fora e, mais importante, tornou-se virtualmente in-dispensável para a concepção de si mesma”, explicou Bassin32, complementado por Hurbon33 e Mazzoleni34, entre outros.

Como o conceito de “sertão” foi construído pelos portugueses, dependendo, para ser expresso, da loca-lização do seu enunciante – geralmente um coloniza-dor –, disso decorreu outra consequência importante: durante a época colonial (à medida, portanto, que a colonização avançava sobre as terras), “sertão” foi em-pregado para nomear áreas tão distintas quanto, por exemplo, o interior da capitania de São Vicente35, a atu-al Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro36, a Amazônia37, a ci-dade do Recife38, a capitania de Minas Gerais39, as áreas contíguas ao Recôncavo Baiano, plantado com cana-

-de-açúcar40, o aldeamento indígena de Mossâmedes, no atual Goiás41, e a ilha de Santa Catarina42! Se, para um habitante de Lisboa, o Brasil todo era um grande sertão, para o habitante do Rio de Janeiro, no século XVI, ele começaria logo além dos limites da cidade (por exemplo, na atual Nova Iguaçu), no obscuro, des-conhecido espaço dos indígenas, feras e espíritos in-domáveis; para o bandeirante paulista do século XVII ou XVIII, o sertão eram os atuais Minas, Mato Grosso e Goiás, interiores perigosos mas dourados, fontes mortandades e riquezas, locus do desejo; para os gover-nantes lusos dessas mesmas capitanias, entretanto, o sertão era o exílio a que haviam sido temporariamente relegados, em seus tão bons serviços prestados à Co-roa... Variando segundo a posição espacial e social do enunciante, “sertão” pôde ter significados tão amplos, diversos e aparentemente antagônicos.

Finalmente: se foi erigido como categoria pelos colonizadores e absorvido pelos colonos, em espe-cial pelos diretamente relacionados aos interesses da Coroa, “sertão”, necessariamente, foi apropriado por alguns habitantes do Brasil colonial de modo diame-tralmente oposto. Para alguns degredados, para os homiziados, para os muitos perseguidos pela justiça real e pela Inquisição, para os escravos fugidos, para os índios perseguidos, para os vários miseráveis e le-

prosos, para, enfim, os expulsos da sociedade colonial, “sertão” representava liberdade e esperança; liberdade em relação a uma sociedade que os oprimia, esperan-ça de outra vida, melhor, mais feliz. Desde o início da história do Brasil, portanto, figurou uma perspectiva dual, contendo, em seu interior, uma virtualidade: a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar de quem falava.

No início do século XIX, em Portugal a palavra “sertão” esvaziou-se dos significados que tivera para os

portugueses (espaços amplos, desconhecidos, longín-quos), tornando-se sinônimo de “interior”: “Sertão, s.m. O interior, o coração das terras, opõe-se ao marítimo, e costa; O sertão toma-se por mato longe da costa”43; a mesma fonte registra uma segunda acepção da palavra, bastante curiosa: “O sertão da calma, i.e., o lugar onde ela é mais ardente; Lobo: ‘metendo-se pelo sertão da calma, que naquele tempo fazia’”. Já o Dicionário por-tuguês, de 187444 registra apenas a primeira acepção:

“Sertão ou certão, s.m. O interior, o coração das terras, o coração mediterrâneo, em oposição ao marítimo”.

É possível que, em Portugal, “sertão” tenha sido uma categoria muito importante, para a classificação e hierarquização dos espaços do império português. À medida que este império se decompunha, “sertão” per-dia seus significados, até guardar apenas o original, an-terior à constituição das colônias: o de “interior”.

Enquanto isso, no Brasil, durante o século XIX, ocorria processo inverso: os brasileiros não apenas absorveram todos os significados construídos pelos portugueses a respeito de “sertão”, antes e durante a colonização, como, a partir do último quartel do sécu-lo XIX, acrescentaram-lhe outros, transformando “ser-tão” numa categoria essencial para o entendimento de

“nação”.Mas isso é outra história, ou, ao menos, uma conti-

nuação desta: fica, portanto, para outro artigo.

without it (the sertão): ‘because the occupants cannot live without the sertão’, proclaimed the official Cham-ber meeting of the year one-thousand, six-hundred and forty” 31.

For the coloniser, “sertão” was the space of the oth-er, the quintessential space of otherness. But what oth-er, if not the inverted self, distorted and fragmented? It was through the construction of otherness during the processes of colonisation that Europeans elevated and refined their own identities: “The conceptual assimila-tion of the geographical Other introduced a dialectical tension into the European world view that determined how Europe perceived the outside world and, much more important, became virtually indispensable to its self-conception as well”, explained Bassin32, supported by Hurbon33, Mazzoleni34, and others.

Since the concept of the “sertão” was constructed by the Portuguese, and its meaning depended on the location of its speaker – generally a coloniser –, conse-quently “sertão” was used during the colonial period (as colonisation progressed across the land) as a term for areas as different from each other as the interior of the São Vicente captaincy35, the present Nova Iguaçu, in Rio de Janeiro36, the Amazon37, the city of Recife38, the captaincy of Minas Gerais39, the neighbouring areas to Recôncavo Baiano, planted with sugarcane40, the indigenous settlement of Mossâmedes, in present-day Goiás41, and the island of Santa Catarina42! If the inhabitant of Lisbon considered the whole of Brazil as one big “sertão”, an inhabitant of Rio de Janeiro in the 16th century would see it as beginning just outside the city limits (where Nova Iguaçu is today, for example), in the dark, unknown space of indigenous peoples, and uncontrollable beasts and spirits; 17th- or 18th-century São Paulo pioneers would see the sertão in the captain-cies of Minas Gerais, Mato Grosso and Goiás, danger-ous but golden interior regions, sources of wealth and bloodshed, the locus of desire; but for the Portuguese governors of these same captaincies the sertão would be their temporary exile in their good services to the Crown… Varying according to the social and spatial po-sition of the speaker, “sertão” could have widely diverse and apparently contradictory meanings.

Finally, if the term was constructed as a category by the colonisers and absorbed by the colonists, par-ticularly by those directly related to crown interests,

“sertão” was also adopted by some inhabitants of colo-nial Brazil in a diametrically opposite way. For some exiles, refugees, victims of royal justice and the Inqui-sition, fugitive slaves, persecuted Indians, the poor and leprous, indeed for all those outcasts of colonial soci-ety, the “sertão” stood for freedom and hope; freedom in relation to a society that oppressed them, hope for another, better and happier life. From the beginning of Brazilian history, therefore, it formed a dual perspec-tive, containing a virtual inversion. Hell or paradise; it would all depend on the position of the speaker.

By the early 19th century in Portugal, the word “sertão” had lost the meanings it once held for the Por-

tuguese (wide, unknown, distant spaces) and became synonymous with “interior”: “Sertão, n. (m). The inte-rior, the heartland, contrasting with the maritime and the coast; The sertão of forest far from the coast” 43; the same source records a second, quite unusual, accep-tance of the word: “The sertão of calm, i.e., the place where it is more intense; Lobo: ‘entering the sertão of calm that existed in those days’”. While the 1874 Dicionário português44, records just one acceptance:

“Sertão or certão, n. (m). The interior, the heartland, the Mediterranean heartland, as opposed to the sea”.

“Sertão” may have been a very important category in Portugal for the classification and hierarchical or-ganisation of the spaces of the Portuguese empire. As that empire broke apart, “sertão” lost its meanings, un-til retaining just the original one of “interior”, prior to the formation of the colonies.

Meanwhile, in 19th-century Brazil the opposite was happening: Brazilians were not just adopting all the meanings of “sertão” constructed by the Portu-guese before and during the colonisation, but from the last quarter of the 19th century were adding other meanings, transforming “sertão” into a category essen-tial for the understanding of “nation”.

But that is another story, or at least a continuation of this one: the subject of another essay.

Page 22: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

38 39

Notas:

* Este artigo deve muito ao curso de pós-graduação “Região, Sertão, Nação”, ministrado na UNB por mim e pelos professores Mireya Suarez e Luiz Tarley de Aragão, do Departamento e Antropologia. Os debates então realizados, entre nós e com o excelente grupo de alunos, inspiraram várias ideias aqui expostas, mesmo aquelas com as quais somente eu concordo.

1 Salvador, 1975.2 Abreu, 1975 e 1988.3 Viana, 1991.4 Cunha, 1954.5 Sodré, 1941.6 Holanda, 1957 e 1986.7 Ricardo, 1940.8 Erterci, 1972.9 Otávio Velho, 1976.10 Coutinho, 1955.11 Cândido, 1964.12 Cristóvão, 1993-94.13 Teles, 1981.14 Rosa, 1965.15 Dantas, 1993.16 Rosa, 1965.17 Cortesão, 1958, p.28.18 Godinho, 1990, p.96.19 Nunes, 1784, p.428.20 Teles, 1991.21 Godinho, 1983, p.145 e p.173.22 Relatório do presidente da província de Mato Grosso, 1778.23 Vianna, 1935, p.81.

24 Pohl, 1976, p.249 e p.287.25 Saint-Hilaire, 1937, p.378.26 Para uma análise semelhante à aqui desenvolvida sobre essa acepção de “sertão”, cf. Amado (1990) e Dean (1990).27 Sousa, 1974, p.138.28 Salvador, 1975, p.35.29 Freyre, 1977 e 1984.30 Prado, 1961, p.137.31 Machado, s.d., p.231.32 Bassin, 1991, p.764.33 Hurbon, 1993, pp.205-16.34 Mazzoleni, 1992, pp.5-22.35 Prado, 1961, p.234.36 Santos, 1965, p.118.37 Jobim, 1957, p.179.38 Freyre, 1977a, p.147.39 Goulart, 1961, p.49.40 Brandão, s.d., p.28.41 Souza, 1978, p.12.42 Prado, 1961, p.337.43 Silva, 1922, p.693.44 Dicionário português, 1874, p.625.

Notes

* This article owes much to the UNB postgraduate course in “Region, Sertão, Nation”, run by Mireya Suarez, Luiz Tarley

de Aragão and myself, in the Anthropology Department. The discussions organised between ourselves and an excellent group of students have inspired several of the ideas considered here, even those that only I agree with.

1 Salvador, 1975.2 Abreu, 1975 and 1988.3 Viana, 1991.4 Cunha, 1954.5 Sodré, 1941.6 Holanda, 1957 and 1986.7 Ricardo, 1940.8 Erterci, 1972.9 Velho, 1976.10 Coutinho, 1955.11 Cândido, 1964.12 Cristóvão, 1993-94.13 Teles, 1981.14 Rosa, 1965.15 Dantas, 1993.16 Rosa, 1965.17 Cortesão, 1958, p.28.18 Godinho, 1990, p.96.19 Nunes, 1784, p.428.20 Teles, 1991.21 Godinho, 1983, p.145,173.22 Report from the President of the province of Mato Grosso, 1778.23 Vianna, 1935, p.81.

24 Pohl, 1976, p.249,287.25 Saint-Hilaire, 1937, p.378.26 For a similar analysis of this acceptance of “Sertão” to the one developed here, cf. Amado (1990) and Dean (1990).27 Sousa, 1974, p.138.28 Salvador, 1975, p.35.29 Freyre, 1977; 1984.30 Prado, 1961, p.137.31 Machado, n.d., p.231.32 Bassin, 1991, p.764.33 Hurbon, 1993, pp.205-16.34 Mazzoleni, 1992, pp.5-22.35 Prado, 1961, p.234.36 Santos, 1965, p.118.37 Jobim, 1957, p.179.38 Freyre, 1977a, p.147.39 Goulart, 1961, p.49.40 Brandão, n.d., p.28.41 Souza, 1978, p.12.42 Prado, 1961, p.337.43 Silva, 1922, p.693.44 Dicionário português, 1874, p.625.

Referências bibliográficas | Bibliography

ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial. São Paulo: Edusp, 1988. . Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

AMADO, Janaína. “The frontier in comparative perspective: the United States and Brazil”, em Frontiers in comparative perspectives. Washington D.C.: The Woodrow Wilson Center, 1990.BASSIN, Mark. “Inventing Siberia: visions of the Russian East”, The American Historical Review, vr.96, nº3, 1991.BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogo das grandezas do Brasil. Rio de Janeiro: Dois Mundos, s.d.CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. 2a ed. São Paulo: Martins, 1964.CORTESÃO, Jaime. Os descobrimentos portugueses. Lisboa: Arcádia, 1958. v.1.CRISTÓVÃO, Fernando. “A transfiguração da realidade sertaneja e sua passagem a mito”. Revista USP, dez./jan./fev., (20) p.43-53, 1993-94.COUTINHO, Afrânio. Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sulamericana, 1955. v.2.CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 23a ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1954.DANTAS, Francisco C. Os desvalidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.DEAN, Warren. “The frontier in Brazil”, em Frontiers in comparative perspectives, Washington D.C.: The Woodrow Wilson Center, 1990.DICIONÁRIO PORTUGUÊS. Lisboa: Ed. do Porto, 1874.ESTERCI, Neide. O mito da democracia no país das bandeiras. Rio de Janeiro: Museu Nacional (mimeo), 1972.FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. 5a ed. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympo/MEC. t.1., 1977.

. Ingleses no Brasil. 2aEd. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/MEC, 1977. . Casa grande e senzala. 24aed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco. São Paulo: Brasiliense, 1981.GODINHO, Vitorino. Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar. Lisboa: Difel, 1990.

. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa: Presença. v.1., 1983.GOULART, José Alípio. Tropas e tropeiros na formação do Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 1961.HOLANDA, Sérgio Buarque de. Moções. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1945.

. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Brasiliense, 1957. . O extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense, 1986.

HURBON, Laënnec. El bárbaro Imaginário. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história (ensaio antropogeográfico e político). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, s.d.MAZZOLENI, Gilberto. O planeta cultural. São Paulo: Edusp, 1992.NUNES, Duarte. Ortografia da língua portuguesa. Lisboa: s. ed, 1784.POHL, Johann Emanuel. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1976.PRADO, J. F. de Almeida. São Vicente e as capitanias do Sul do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1961.RICARDO, Cassiano. Marcha para o Oeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 4a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1975.SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco e pela província de Goiás. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1937. t.2.SANTOS, Noronha. As freguesias do Rio antigo. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965.SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa (fac-símile da 2a edição, 1813), Rio de Janeiro: Officinas da S.A. Litho-Tipographia Fluminense, 1922.SODRÉ, Nelson Werneck. Oeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.SOUSA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. Brasília: MEC, 1974.SOUZA, Luiz Antônio da Silva. Memória sobre o descobrimento, governo, população e coisas mais notáveis da capitania de Goiás. Goiânia: Sudeco/Governo do estado, 1978.TELES, Gilberto Mendonça. “O lugar do sertão na poesia brasileira”, em Silvia Menezes-Leroy. Sertão: realité, mythe, fiction. Rennes: Colloque International, mimeo, 1991.VELHO, Otávio. Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo: Difel, 1976.VIANA, Oliveira. Ensaios inéditos. São Paulo: Unicamp, 1991.VIANNA, Urbino. Bandeiras e sertanistas bahianos. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1935.

Page 23: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 24: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 25: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

44

Page 26: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

46 47

Page 27: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

49

Page 28: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

50 51

Page 29: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

52 53

Page 30: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 31: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

56

Page 32: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

58 59

No sertão contam-se histórias

No Sertão, Lampião e Maria Bonita são a história de referência. Lampião, um cangaceiro sanguinário que mata muito – po-rém, dizem alguns, rouba para dar aos pobres. Lampião, Bom ou Mau, consoante o ponto de vista – ainda hoje muitos não se querem comprometer com o juízo moral final. Maria Bonita juntou-se a Lampião – parece que em pequena já sonhava com isso – e tornou-se uma Maria Bonita que mata. Eis então que no Sertão, no velho Sertão, se continuava a baralhar as clássi-cas atribuições gregas. Nos tempos em que tudo era claro ou escuro, o bonito era bom e verdadeiro. Mas isso era antiga-mente. No Sertão, continua-se a mistura moral, a mistura que confunde: Maria é bonita mas criminosa. Como tantos outros, antes ou depois.

(Há um verso de Walt Whitman de que gosto particular-mente: “o meu corpo não está contido entre as minhas botas e o meu chapéu”. Eis o que é claro: um corpo é bem mais do que a sua matéria. Assim também com um livro ou uma história. Um livro não está contido entre a capa e a contracapa. O leitor tem algo para acrescentar ao livro. E uma história também não está contida entre a primeira frase do narrador e a última. O imaginário do ouvinte participa, e muito.)

E no Sertão, como noutros sítios, as histórias também se contam com as mãos. Os contadores de histórias parecem es-tar a fazer artesanato enquanto relatam tiroteios, armadilhas e enamoramentos. Por vezes, ao ouvi-los, e ao ver as suas mãos em enorme rebuliço, quase apetece pôr-lhes, entre os dedos, um material moldável, como o barro ou outro, para que no fim da história que o narrador conta fique também o objecto que as suas mãos construíram embaladas pela narrativa. Qua-se apetece por vezes esquecer a audição e olhar apenas para o movimento das mãos, de modo a tentar reconstruir a narrati-va verbal. Será que o percurso das mãos dos narradores con-ta com a mesma história ou conta uma outra? Quem voltar ao Sertão que deslinde este enigma.

A natureza em Jericoacoara

No litoral. Uma pequena cidade onde só há areia. É pensar em Veneza, e onde está água colocar areia. Só se circula de jipe ou de cavalo. Anda-se descalço.A natureza em Jericoacoara mostra que é algo com carácter. A natureza não é uma paisagem, a natureza não é algo que está

Histórias no Sertão, areia em Jericoacoara

Gonçalo M. Tavares

In the sertão they tell stories

The main story in the Sertão tells of Lampião and Maria Bonita. Lampião, a bloodthirsty bandit who kills many people

– but some say that he steals to give to the poor. Lampião, Good or Bad, depending on your point of view – even today many people do not want to commit themselves to conclusive moral judgement. Maria Bonita joined up with Lampião

– it seemed that she even dreamed of this as a child – and became Maria Bonita who kills. So it is in the Sertão, the old Sertão, that classical Greek attributes still seem to be mixed together. In the times when everything was black or white, the handsome was good and true. But that was in the old days. In the Sertão the moral confusion continues, a confusing mixture: Maria is beautiful but criminal. Like so many others, before or after.

(There’s a line from a Walt Whitman poem that I particularly like: “[I] am not contain’d between my hat and boots”. It’s obvious: a body is much more than what it is made from. Just like a book or a story. A book is not contained between its front and back covers. The reader brings something to the book. And a story is also not contained between the narrator’s first and last phrases. The listener’s imagination plays a part, and a big one at that.)

And in the Sertão, just like other places, stories are also told with the hands. Storytellers seem to be working with their hands as they tell of gunfights, ambushes and love affairs. Sometimes when you hear them, and see their hands in such energetic movement, the fingers almost seem to be grasping for some mouldable material, like clay or some such, so that at the end of the story the narrator also has an object in their hands that has been made during the movement of the narrative. Sometimes one almost wants to forget the listening and just look at the movement of the hands, to try to reconstruct the verbal narrative. Could it be that the movement of the narrator’s hands tells the same story, or might it be a different one? You have to go back to the Sertão to unravel that puzzle.

Nature in Jericoacoara

On the coast. A small town where all there is sand. Think of Venice, with sand instead of water. You only move about by jeep or on horseback. You walk barefoot.

Stories in the Sertão, sand in Jericoacoara

Gonçalo M. Tavares

Page 33: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

60 61

atrás de uma família sorridente de humanos para que a foto-grafia fique bela. A natureza participa, e não apenas participa: em Jericoacoara, de uma forma extrema, e em toda esta região litoral do Sertão, a areia e o vento obrigam as pessoas, em al-guns momentos, a baixar os olhos para que a areia a grande velocidade não os cegue. Esse movimento de baixar os olhos, que se vê em muitos locais de Jericoacoara, é um movimento muito semelhante ao que os religiosos fazem quando entram na casa de Deus: um baixar de olhos de respeito, de quem está a mostrar que não é digno de olhar de frente para o que é mais poderoso do que ele. Em Jericoacoara (Jeri) é um pouco isso: a areia e o vento são de tal forma fortes que os homens baixam a cabeça. E é este enorme vento, que atira a grande velocida-de a areia de um lado para o outro, que faz com que as dunas estejam sempre a mudar de posição e funcionem como uma espécie de monstro natural que vai comendo tudo à sua frente. A natureza tem fome, eis o que é bem evidente em Jeri. Mesmo perto da duna do pôr-do-sol, avançando a cavalo, conseguem ver-se os vestígios de palmeiras, de altas palmeiras, que foram engolidas – é mesmo essa a sensação – por dunas. É que no meio das dunas vemos apenas a parte de cima da palmeira: o tronco já está todo debaixo da areia e a sensação que se tem é que a palmeira está a afogar-se e aquele resto não é mais do que um pedido de socorro desesperado ou um mero grito. E é isto que fazem as dunas desta região: vão mudando de lugar de uma forma quase imperceptível. Uma natureza que se move em bicos de pés, digamos. Mas move-se muito.

Nova cartografia

Nesses sítios em que a areia se move a grande velocidade, es-sas montanhas momentâneas, essas montanhas nervosas, cir-cunstanciais, essas montanhas efémeras fazem dos cavaleiros e dos condutores de jipes – que por aqui circulam – autênticos cartógrafos com capacidade para redesenhar mapas semanais. Andar sozinho de carro ou a cavalo pelas dunas é um perigo, pois, em poucos dias, o que antes era chão sólidos passa a ser buraco. Os guias, pelo contrário, conhecem o terreno, sabem onde está cada duna porque passam diariamente por ali.

Estes mapas mentais da localização das dunas obrigam--nos assim a pensar numa outra geografia, uma geografia meio dançante, em que estas tais montanhas efémeras parecem es-tar sempre a troçar do cartógrafo. Numa semana, como qual-quer produto alimentar, um mapa perde a validade, fica estra-gado, já não indica bem, engana; é até perigoso, como um ali-mento já estragado. Nestas terras, em que as dunas se movem de dia e de noite, os mapas deveriam ser feitos diariamente:

“Só aceito o mapa das dunas com a data do dia” – deverá dizer o visitante avisado.

Nature in Jericoacoara shows itself with character. Nature is not a landscape, it is not something lying behind a family of smiling people to make the photograph beautiful. Nature plays its own part, and that is not all: in Jericoacoara it can be extreme, and all along this coastal region of the Sertão, the sand and the wind sometimes force people to lower their eyes against being blinded by the speed of the sand. And that movement of lowering the eyes, which can be seen in many people from Jericoacoara, is very similar to the movement of religious people when entering the house of God: a lowering of the eyes in respect, of someone showing themselves as unworthy of looking directly at something more powerful. There’s a little of that in Jericoacoara (Jeri): the sand and the wind are so strong that people have to lower their heads. And it is that great wind that hurls the sand from one side to the other at such speed, which means that the dunes are always changing position and acting like some kind of monster of nature eating everything in its path. Nature is hungry, that is quite clear in Jeri. Even near the sunset dune, approaching on horseback, one can just see the remains of the palm trees, tall palm trees, which have been swallowed up – that is really the sensation – by the dunes. In the middle of the dunes we can just see the top part of the palm: all the trunk is beneath the sand and you get the feeling that the palm is drowning and what remains is a desperate plea for help, or just a cry. And that is what the dunes do in this region: they change place almost imperceptibly. Nature that moves on tiptoe, you might say. But it moves a lot.

New cartography

In those places where the sand moves at such speed, those momentary mountains, those nervous, circumstantial mountains, those temporary mountains turn the horse riders and jeep drivers – which move around this region – into genuine cartographers who can redraw the maps each week. Going alone into the dunes by car or horseback is dangerous, for in a few days what was previously solid ground turns into a hole. But the guides know the terrain, they know where each dune is, because they go there each day.

Those mental maps of the dunes’ location lead us to think of another kind of geography, a geography that is half dancing, in which those temporary mountains seem always to be mocking the cartographer. In the space of a week, a map may become out of date, like food, it might go off, no longer work well, lead one astray. It is even dangerous, like food that has gone bad. In these lands where the dunes are moving day and night, the maps have to be redrawn every day: “I only accept a dune map with today’s date” – the forewarned visitor should say.

Page 34: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

62 63

A epidemia

Tatajuba, pequena povoação próxima de Jericoacoara, é talvez o caso mais célebre. Há uma Velha Tatajuba que foi engolida pela areia. O que antes era povoação agora são dunas. Como nos vestígios de um bombardeamento, o que vemos são restos de algumas actividades humanas – dois metros quadrados de um terraço, um lavatório que deveria estar num ponto alto, etc.

Por cima das dunas, onde antes havia gente, há agora ape-nas uma barraca onde a contadora de histórias narra a tragédia da Velha Tatajuba. As tempestades de areia eram tão frequen-tes, a areia andava sempre tão excitada de um lado para o outro que, quando alguém em Tatajuba se deitava, cobrindo a cabeça com um lençol, em menos de dez minutos a areia acumulava-

-se e sentia-se no lençol o peso “de muitos quilos”. A contadora de histórias narra, então, a forma como os habitantes foram abandonando as suas casas na Velha Tatajuba – como se esti-véssemos diante de uma epidemia, de um contágio terrível. A areia invadiu as casas, entrou por todo o lado. Ocupou primei-ro os espaços públicos, e tapou depois as janelas, acumulando-

-se de uma maneira que parecia revelar ter uma intenção pró-pria. Quando só sobrava uma porta de casa que se conseguia abrir, o morador percebia que era o momento de sair. Por vezes, em poucas semanas, uma casa ficava toda soterrada pela areia.

Eis, pois, a história da Velha Tatajuba, local em que os ho-mens tiveram de abandonar as suas casas por causa da epide-mia da areia. Mudaram-se para um local, não muito afastado, que se chama, claro, a Nova Tatajuba. Podemos ver as novas ca-sas, e os moradores confiantes que, desta vez, os seus netos po-derão brincar nos mesmos quartos, durante muito tempo. No entanto, a areia não pára de ser atirada pelo vento. E as dunas continuam a mudar de posição. E não querem ser só paisagem. E continuam com fome.

The epidemic

Tatajuba, a little settlement near Jericoacoara, is perhaps the most famous case. Velha Tatajuba was swallowed up by the sand. What was once settlement is now sand dunes. Like some kind of bombsite, what we see are the traces of some human activities – two square metres of a terrace, a washbasin that should be high up, etc.

On the dunes, where once there were people, there is now just a tent with a storyteller telling the tragedy of Velha Tatajuba. The sandstorms were so common, the sand blew so violently from one side to another, that when someone in Tatajuba lay down, covering their head with a sheet, within ten minutes “several kilos” of sand had accumulated on top of it. The storyteller then tells of how the occupants began to abandon their homes in Velha Tatajuba – as if facing some terrible contagious epidemic. The sand invaded the houses from every side. First it entered the public spaces and then it clogged up the windows, accumulating as if it had a mind of its own. When only one door remained that would open, the occupant realised that it was time to leave. Sometimes a house would become completely buried by the sand in a matter of a few weeks.

That, then, is the story of Velha Tatajuba, a place that people had to leave because of the sand epidemic. They moved not too far away, to a place called Nova Tatajuba, of course. We can see the new houses and their occupants are now confident that their grandchildren will be able to play in the same rooms for many years. But the sand has not stopped being whipped up by the wind. And the dunes continue to change position. And they don’t want to be just landscape. And they are still hungry.

Page 35: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

64 65

Page 36: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

66 67

Page 37: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

69

Page 38: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 39: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 40: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 41: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

76 77

Page 42: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 43: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

81

Page 44: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

82 83

Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo – HCUrb. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

Angela Lúcia FerreiraGeorge Alexandre Ferreira DantasYuri Simonini

A falta de clareza encontrada na cartografia sobre o interior do Brasil, em especial na sua parte setentrional (grosso modo, a região atualmente delimitada como Nordeste), é ainda uma constante nas primeiras dé-cadas do século XIX. Do registro leigo de um viajante como Henry Koster, no Travels in Brazil (1816), ou do mapa oficial elaborado por John Luffman, em 1808, verifica-se a existência de vastas regiões ainda não totalmente exploradas ou, melhor, não cartografadas. Esse desconhecimento acarretou, por conseguinte, um problema durante o processo de transformação da antiga América Portuguesa em uma Nação independen-te, que se estendeu por todo o século XIX. Existia, entre as elites políticas imperiais, um esforço contínuo para suprir as lacunas deixadas por séculos de uma política de domínio geopolítico da Metrópole Portuguesa que implicou o controle estrito do conhecimento produzido sobre a colônia, notadamente daqueles ligados à defesa territorial e aos recursos naturais disponíveis.

Para construção desse conhecimento geográfico, o esforço dos intelectuais daquele período encontrava-

-se relacionado mais significativamente ao projeto ideológico de construção de uma Nação. Projeto que se embebeu também nos registros literários do obser-vador moderno, um “observador-em-trânsito” e que se imiscuía à paisagem na tentativa de apreensão do todo, conforme a proposta humboldtiana1. Projeto para o qual se tornou imprescindível a investigação sistema-tizada e o domínio do suporte físico do território, seus acidentes, relevos, bacias hidrográficas, cursos d’água, entre outros.

Para tanto, foi necessário superar a imagem do país “só-natureza”, do registro edênico, da abundância e, ao mesmo tempo, do maravilhoso e do exótico, tão comum no registro do período colonial. Certa unidade dos antigos mapas do período colonial seria cindida então na busca pelas especificidades das partes de um Império de características continentais – como, por exemplo, o conhecimento dos acidentes geográficos da costa brasileira para a navegação. Posteriormente, a ne-cessidade de integração territorial demandou, a partir da segunda metade do século XIX, a confecção de no-vos mapas sob o rigor dos instrumentos de observação e de desenho, elaborados, inicialmente pelos engenhei-ros militares e, em seguida, pelos politécnicos.

No que se refere à região em que as variações me-

Cartografia do (de)sertão do Brasil: notas sobre uma imagem em formação

– séculos XIX E XX

The lack of clear cartography of the Brazilian interior, particularly in its northern part (broadly speaking, the region currently defined as the Northeast) was still a constant feature in the early decades of the 19th century. The records of a lay traveller like Henry Koster, in Travels in Brazil (1816), or the official map produced by John Luffman in 1808 show the existence of huge regions still not fully explored, or rather, un-mapped. This lack of knowledge led consequently to problems during the transformation of the former Portuguese colony into an independent Nation, which continued throughout the 19th century. The imperial political elites were engaged in a continuous effort to fill the gaps left by centuries of a policy of geopolitical expertise from the Portuguese Metropolis that meant strict control of the knowledge produced about the colony and particularly that connected to territorial defence and the availability of natural resources.

The efforts of the intellectuals of the time towards constructing this geographical knowledge were more significantly related to the ideological project of Nation building. This same project was also steeped in the written records of the modern observer, a

“transient observer” intervening in the landscape in an attempt to apprehend the whole, according to the ideas of Humboldt1. It was a project that required the systematised investigation and domination of the physical aspects of the territory, its features, reliefs, hydrographic basins, watercourses and other aspects.

So it therefore became necessary to overcome the image of the country as “just nature”, an Eden, of abundance, and the wonderful and the exotic so common in records from the colonial period. A particular group of the old maps from the colonial period would then be separated out in the search for specific features of parts of an Empire of continental characteristics, such as knowledge of the geographical features of the Brazilian coast for navigation, for example. Later, the need for territorial integration from the second half of the 19th century required the making of new maps conforming to the strict instruments of observation and drawing, initially by military engineers and then by the polytechnics.

For a region of climatic variations bringing periods of drought, the inaccuracy appeared mainly in relation to the advancing and receding boundaries – as can be

The mapping of the Brazilian (de)sertão: notes about an image in formation

– 19th and 20th centuries

Research Group into the History of the City, Territory and Urbanism - HCUrb. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brazil

Angela Lúcia FerreiraGeorge Alexandre Ferreira DantasYuri Simonini

Page 45: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

84 85

teorológicas proporcionavam estiagem e intervalos de secas, a imprecisão se expressava principalmente em relação às fronteiras que recuavam e avançavam – como se verifica no registro da literatura formativa de tantos viajantes – de acordo com a virulência do fenômeno climático e que iria ganhar contornos nítidos e bem de-limitados com a problematização – técnica sobremanei-ra – do próprio fenômeno. Mais ainda, a procura pelo delineamento claro do “território das secas” levaria, já na primeira metade do século XX, a uma melhor defi-nição da própria palavra sertão: do vasto interior, como no registro português original do período colonial, o sertão torna-se praticamente uma metonímia do inte-rior das secas, da região marcada por uma paisagem múltipla que enfrenta, ciclicamente, longos períodos de irregularidades pluviométricas.

Nesses processos, nem sempre claros, de produção, de circulação e de difusão de conhecimento, formou-se uma imagem determinada sobre uma porção específi-ca dentro do Brasil: a região Nordeste. Região que surge em decorrência, em grande medida, do enfrentamento do problema dos efeitos causados pelas secas, da di-mensão técnica que o articulou – isto é, o conjunto de esforços governamentais para dar uma resposta propo-sitiva, formulada por um campo disciplinar técnico, às questões que abarcam a seca, vista como um problema nacional. Além disso, pode-se apontar igualmente a conjuntura política e econômica que reivindicou recur-sos e atenção próprios, das paisagens e cartografias, reais e imaginárias, que a representaram.

É neste contexto que o presente artigo procura discutir o papel da cartografia na delimitação, muitas vezes imprecisa, do sertão das secas, daquela porção setentrional do Brasil, ao longo do século XIX e da sua definição mais concisa dos mapas do início do XX. Pretende-se, assim, não somente acrescentar documen-tos gráficos às análises acerca da criação do território nordestino, como também contribuir para o avanço dos estudos sobre a formação de uma cultura técnica no Brasil moderno. Não se trata de uma inquietação nova, mas fruto de uma continuidade de investigações do Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo – HCUrb. 2

A busca, nessa trajetória, se iniciou por um ma-peamento dos usos e significados do próprio termo

“sertão”, nas representações de viajantes, cientistas e literatos – inscrita em artigo apresentado no VIII Colo-quio Internacional de Geocrítica e consta no número a ele dedicado da revista eletrônica Scripta Nova, volume X, nº2183. Observou-se, posteriormente, que para co-nhecer o sertão, ou melhor, os muitos sertões do país, a formação das sociedades corporativistas e instituições científicas e de vulgarização do conhecimento, assim

como de seus periódicos, foram importantes, a exem-plo da Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, tema discutido em outro estudo, divulgado no XIII Encuentro de Geógrafos de América Latina e publi-cado na Revista Geográfica de América Central, da Uni-versidad Nacional de Costa Rica – UNA4. No entanto, as primeiras tentativas de traduzir e reunir essas narrati-vas em peças cartográficas de cunho pedagógico, exem-plificado na obra do advogado, político e professor do Colégio Pedro II, Cândido Mendes de Almeida, foram analisadas em comunicação, apresentada no XIV En-contro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gra-duação em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR

– e publicado na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais5. Juntas, essas preocupações convergem em novos desdobramentos agora expostos neste texto.

Constata-se que, em meio a esse conjunto de refle-xões, permanece a questão da imprecisão (do conheci-mento sobre o território) e, nesse sentido, se incorpo-rarão outros olhares a partir de dados primários ainda pouco trabalhados. Pensa-se que um conjunto variega-do de mapas pode ajudar a entender tanto o que signifi-cou essa imprecisão quanto, mais importante ainda, no contexto da formação da dimensão técnica das secas, como foi enfrentada e superada. Produzidos no âmbito de acordos políticos e diplomáticos, de peças técnicas para informar ações de transformação e de construção do território, das ações pedagógicas para formação acadêmica e, de maneira especial, da ocupação de car-gos na burocracia estatal por membros oriundos das elites, as peças cartográficas documentam também o esforço institucional, técnico e intelectual para o co-nhecimento do território brasileiro e, por conseguinte, para a constituição da Nação. Pode-se citar, desse mate-rial gráfico, exemplos como o “New Map of Brazil” (1866), compilado por William Scully, o “Atlas do Império do Brazil” (1868), de Candido Mendes, o “Brasile Orienta-le” (1899), da Editora Ulrico Hoepli, o “South America” (1910), da Cambridge University Press, ou, antes ainda, os registros de Koster e de Luffman, supracitados, o

“Brazil” (1823), de Henry Charles Carey e os confecciona-dos pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, nas primeiras décadas do século XX.

Ao seguir o argumento central de John Brian Har-ley, sobretudo em “La Nueva Naturaleza de los mapas”6, assume-se a noção de mapa como “imagem retórica”, ou seja, um documento histórico, uma construção social do mundo que, por meio de imagens e de textos (muitas vezes subjacentes), dá a conhecer determina-das realidades ou, mais ainda, as representações (e seu aparato técnico, político, social, econômico) sobre a realidade. Isso implica, em consonância às novas prerrogativas de análise cartográfica sob o ponto de

seen in the formative literature of so many travellers – according to the virulence of the effects of climate, which would acquire clear and well defined outlines as the phenomenon itself was addressed – mainly in technical terms. Moreover, the search for clear demarcation of the “drought territory” would lead in the first half of the 20th century to a better definition of the word sertão: from the vast interior, as in the original Portuguese records of the colonial period, the sertão became practically synonymous with the drought-ridden interior, a region marked by a varied landscape that experienced cycles of long periods of irregular rainfall.

Despite the occasional lack of clarity of these processes of production, circulation and dissemination of knowledge, a particular image was formed about a specific portion of Brazil: the Northeast region. It is a region that largely arises as a result of facing the problems of the effects of drought, its related technical dimension – that is the set of governmental efforts to provide purposeful responses formulated by a field of technical knowledge, and issues concerning the drought, seen as a national problem. Moreover, political and economic events can also be seen to have claimed their own resources and the attention of the real and imaginary landscapes and cartographies that represented them.

This is the context in which this article seeks to discuss the role of cartography in the often inaccurate delimitation of the sertão of droughts, that northern portion of Brazil, throughout the 19th century and in a more concise definition on the maps of the early 20th century. It therefore intends not just to add graphic documents to the analyses of the creation of the territory of the northeast, but also to contribute towards further study about the formation of a technical culture in modern Brazil. This is not a new investigation, but rather the fruit of continuous study by the Research Group into the History of the City, Territory and Urbanism – HCUrb. 2

The search began by charting the uses and meanings of the term “sertão” in the representations of travellers, scientists and writers – in an article presented at the VIII Coloquio Internacional de Geocrítica and included in the related electronic magazine, Scripta Nova, volume X, nº2183. The formation of corporatist societies and scientific institutions and those for popularising knowledge, together with their magazines have also been important for finding out about the sertão, or rather the many sertões in the country, such as the Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, for example, discussed in another study at the XIII Encuentro de

Geógrafos de América Latina and published in the Revista Geográfica de América Central of the Universidad Nacional de Costa Rica – UNA4. But the first attempts at translating and assembling these narratives into educational cartographic works – as in the work of the lawyer, politician and lecturer at the Colégio Pedro II, Cândido Mendes de Almeida – were analysed in a presentation to the XIV Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR – and published in the Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais5. Together, these concerns converge into new developments that are now outlined in this text.

The question of inaccuracy (of knowledge about the territory) remains in these reflections, and accordingly other viewpoints will be incorporated based on primary data that are still little studied. A varied group of maps helps in understanding both the significance of this inaccuracy and, even more importantly, how, in the context of forming the technical dimension of the droughts, it has been confronted and overcome. Produced in the context of political and diplomatic accords, of technical instruments providing information about actions for transforming and constructing the territory, educational actions for academic instruction, and especially the occupation of positions in the state bureaucracy by members of the elites, the cartographic studies also document the institutional, technical and intellectual efforts for learning about the Brazilian territory and consequently the constitution of the Nation. This print material includes examples such as William Scully’s “New Map of Brazil” (1866), Candido Mendes’s “Atlas do Império do Brazil” (1868) the “Brasile Orientale” (1899), published by Ulrico Hoepli, “South America” (1910), from Cambridge University Press, or even earlier, the aforementioned work of Koster and Luffman, “Brazil” (1823), by Henry Charles Carey and those produced by the Federal Drought Prevention Works Inspectorate in the early decades of the 20th century.

Following the central argument of John Brian Harley, particularly in La Nueva Naturaleza de los mapas [The New Nature of Maps]6, the map is taken to be a

“rhetorical image” or rather, an historical document, a social construction of the world that uses images and (often underlying) texts to describe particular conditions or, moreover, the representations (and their technical, political, social and economic mechanisms) of reality. In line with the new prerogatives of cartographic analysis from the historical viewpoint according to Hector Mendonza Vargas and Carla Lois7, this implies considering that maps can and should be read as texts that dialogue with each other

Page 46: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

86 87

vista histórico, conforme observam Hector Mendonza Vargas e Carla Lois7, considerar que os mapas podem, e devem, ser lidos como textos, que dialogam entre si, sincrônica e diacronicamente, dentro da cultura téc-nica moderna em formação na qual foram elaborados; textos que constroem sua significância também no contexto social no qual se inserem, em dado período.

O trabalho pauta-se, num primeiro momento, na problematização dos produtos cartográficos como fonte válida. Em seguida, analisa-se uma seleção de mapas do território brasileiro, com ênfase a sua parte setentrional, desde o final do período colonial até os confeccionados por órgãos técnicos especializados na República (pós-1889), levando-se sempre em considera-ção as motivações para sua produção e, principalmente, as representações e as lacunas em suas linhas, traços e símbolos.

A cartografia como fonte documental

A utilização do mapa histórico em trabalhos científicos não é nenhuma novidade. Diversos artigos empregam o material cartográfico para ilustrar ou exemplificar os textos. Em conjunto com os Atlas, o estudo desses documentos iconográficos se conforma em novos eixos epistêmicos de análise:

“As imagens visuais que os atlas históricos propor-cionam, influenciam na criação e sustentação de noções de situações históricas e são particularmen-te apropriadas como tema de investigação devido a recente ênfase em nações como comunidades polí-ticas imaginadas, ênfase no papel de imagens como meio de criar percepções de poder e, de modo geral, ênfase em aspectos iconográficos da autoridade política e cultural”.8

Contudo, em muitos casos, à exceção daqueles voltados para a cartografia histórica, percebe-se o uso meramen-te ilustrativo, tal qual uma figura e, frequentemente, sem uma maior contextualização. Ou seja, “durante largo tiempo, el mapa antiguo no tuvo gran centralidad en los análisis del geógrafo ni del historiador”9. E mesmo quando os pesquisadores o transformaram em seu objeto de estudo, o empregaram como uma ferramen-ta do discurso oficial para a legitimação de processos políticos. Em outras palavras,

“Do mesmo modo que num processo de apropria-ção do território se observam margens de exclusão mais ou menos profundas, também a cartografia pode funcionar como um indicador muito suges-tivo dos desequilíbrios verificados no acesso às

formas de que os indivíduos ou grupos dispõe para intervir no espaço e dar ele a imagem pretendida”.10

Uma das razões apontadas consiste na dissociação do mapa como fonte, tal qual os documentos escritos, uma vez que, devido a uma persistente visão positivista, é entendido como um produto científico e, logo, reti-rado o aspecto subjetivista; ou seja, há uma carência de análise de uma dimensão social11. Ademais, há um problema de ordem metodológica, no estudo cartográ-fico12 de longa duração no que se refere a sua relação com outras documentações do período em estudo, uma vez que “el análisis cartográfico solía reducirse a una des-cripción superficial en la que el mapa se pesaba como un objecto tan singular que no parecía resistir el diálogo con otros objectos o imágenes de su época” 13. E para superar essa questão, se faz necessário uma “(...) interpretação baseada, por sua vez, numa teoria iconológica e semio-lógica da natureza dos mapas” 14. Todavia, trabalhos recentes, segundo Hector Mendoza Vargas e Carla Lois, revelaram uma função desse produto cartográfico que remete ao final do século XIX e início do XX: “rei-vindicar lecturas del pasado deliberadamente sesgadas apoyadas en una selección clave de mapas para reclamar derechos de toda clase” 15. Isso significa uma incorpo-ração crítica ao discurso cartográfico no qual emerge uma preocupação da “dimensão representacional” do mapa. 16

A dimensão proposta por Edward Said17 vai ao encontro do pensamento delineado por outros pes-quisadores, principalmente John Brian Harley18, para o qual se deve não somente analisar sua composição imagética, mas também as “reglas que gobiernan sus códigos y modos de producción, intercambio y uso social”. Nesse sentido, deve-se atentar que o mapa possui uma linguagem própria, carregada de simbologias e silên-cios que, em seu conjunto, carregam uma determinada percepção de mundo. Isso indica um aparente parado-xo: por um lado tem-se um artefato produzido sob pre-ceitos científicos e, por outro, fruto de uma composição subjetiva, feita de escolhas e olhares. Ou seja, “El mapa puede ser estudiado ya no solo como el resultado de una operación técnica, sino también intelectual, por medio de cual se estructura el espacio, se organiza y se le da una forma inteligible”. 19

Outra preocupação no trato analítico dos mapas consiste na sua dissociação com o meio e o momento no qual foi produzido. Segundo Maria do Carmo An-drade Gomes, “os mapas são inseridos em uma rede intertextual, entre relatórios técnicos, narrativas de viagem, desenhos e pinturas de paisagem, um conjunto articulado de práticas discursivas que, em cada contex-to discursivo, configuram uma dada produção carto-

synchronically and dichronically in the developing technical modern culture in which they were produced; texts that also construct their significance in the social context they are placed in, in a given period.This study first addresses cartographic products as a valid source. It then analyses a selection of maps of the Brazilian territory, with emphasis on the northern part, from the end of the colonial period to those produced by specialist technical bodies in the Republic (after 1889), always taking into consideration the motivations for their production and, principally, the gaps in their lines, marks and symbols.

Cartography as a documentary source

The use of historical maps in academic studies is nothing new. Several articles have used cartographic material to illustrate or exemplify texts. Together with the Atlas, the study of these visual documents conforms to new epistemic axes of analysis:

“The visual images they offer are influential in creating and sustaining notions of historical situations and are particularly appropriate as a theme for inquiry given the recent emphasis on nations as imagined political communities, on the role of images as a means of creating perceptions of power and, more generally, on iconographic aspects of political and cultural authority.” 8

However, in many cases, except those concerning historical cartography, their use can be merely illustrative, like a diagram, and often with no greater contextualisation. In other words, “durante largo tiempo, el mapa antiguo no tuvo gran centralidad en los análisis del geógrafo ni del historiador” [for a long period, antique maps did not have a central role in the analyses of geographers and historians]9. And even when researchers transform it into a legitimate object of study, it is used as an instrument of the official discourse for the legitimisation of political processes. In other words:

“Just as margins of greater or lesser exclusion can be seen in a process of appropriation of territory, cartography can also function as a very suggestive indicator of the imbalances seen in the access to the ways in which individuals and groups are able to intervene in the space and give it the intended image”.10

One of the reasons indicated involves disassociation of the map as a source like written documents,

since a persistent positivist view leads to it being understood as a scientific product and the subjective aspect is therefore removed; in other words there is a lack of analysis of any social dimension11. Moreover, cartographic study contains a long-term methodological problem concerning its relationship with other forms of documentation from the period being studied, since “el análisis cartográfico solía reducirse a una descripción superficial en la que el mapa se pesaba como un objecto tan singular que no parecía resistir el diálogo con otros objectos o imágenes de su época”

13 [cartographic analysis is reduced to a superficial description in which the map is considered as such a singular object that it cannot withstand dialogue with other objects or images of its period]. And to overcome this it is necessary to make “(…) an interpretation based in turn on an iconological and semiotic theory of the nature of maps”14. Moreover, Hector Mendoza Vargas and Carla Lois state that recent studies reveal a function of this cartographic product that related to the late 19th and early 20th centuries: “reivindicar lecturas del pasado deliberadamente sesgadas apoyadas en una selección clave de mapas para reclamar derechos de toda clase” 15 [involving deliberately skewed readings of the past supported by a selection of key maps to claim all kinds of rights]. This means including a critique of the cartographic discourse, which involves concern with the

“representational dimension” of the map.16

The dimension proposed by Edward Said17 goes to the heart of the thinking outlined by other researchers, principally John Brian Harley18, for whom analysis of its composition as image should also include “rules which govern their codes and modes of social production, exchange, and use”. One therefore needs to be aware that the map has its own language, laden with symbols and silences that in context convey a particular perception of the world. Which points to an apparent paradox: on the one hand we have an artifact produced under scientific precepts, and on the other the fruit of subjective composition, choices and viewpoints. In other words, “El mapa puede ser estudiado ya no solo como el resultado de una operación técnica, sino también intelectual, por medio de cual se estructura el espacio, se organiza y se le da una forma inteligible” [The map can be now be studied not just as the result of a technical operation but also an intellectual one, through which space is structured, organised and given intelligible form].19

Another concern in the analytical treatment of maps involves their disassociation from the environment and period in which they were produced. According to Maria do Carmo Andrade Gomes, “maps are placed into an inter-textual network between

Page 47: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

88 89

gráfica” 20. Ou seja, não se produz um produto cartográfico sob uma “tabula rasa”, mas a partir de uma intersec-ção de dados e de conhecimentos que criam um arcabouço intelectual o qual norteará sua representação. O conjunto desse material permitiria ao pesqui-sador maior inteligibilidade no seu objeto de estudo; portanto, no entender de Renato Amado Peixoto, “pensar o espaço não é apenas entender sua re-presentação, considerar sua inscrição, perscrutar sua construção; é também necessário buscar suas conexões”. 21

O problema reside na falta dessas conexões, devido ao tratamento dado ao mapa por parte dos arquivos e insti-tuições de pesquisa:

“Os processos históricos de preservação dos mapas sempre se caracterizavam pela separação dos documentos visuais e textuais, clivagem que significou a separação dos mapas dos contextos de sua produção documental, seja pelo seu alto valor de mercado antiquário, sejam pela estratégia de sigilo de Es-tado ou pelas políticas de preservação de arquivos, museus e bibliotecas que primaram pela prática de musealização da imagem cartográfica”. 22

O desafio atual do uso da cartografia como fonte documental consiste em reunir esses documentos visuais e textuais, sobre um dado momento histórico no qual o mapa foi produzido. Em muitos casos, as perdas são irrever-

síveis. Todavia, é possível adotar outras formas de im-bricação com o uso de outras fontes primárias comple-mentares ou transformando o mapa numa fonte per se. A cartografia incorpora, ademais dos registros frutos de observação direta e indireta, os elementos de uma geografia imaginativa, que se forma no confronto entre o saber estabelecido (e sua imagética preexistente) e a experiência que choca, confronta e, portanto, desarma muitas pré-convenções. Nesse sentido, o item a seguir propõe uma análise de cinco mapas sobre uma parte da antiga América Portuguesa – o atual Brasil – que demonstram a transformação de um espaço desconhe-cido, um (de)sertão, num território delineado por carac-terísticas físicas que, muitas vezes, se confundem com a própria representação de sua identidade, o Nordeste brasileiro.

Figura 01 | Brazil, or trans-atlantic Portugal, publicado por J. Luffman, Londres, 1808. Atente-se para a advertência: “interior of the country very imperfectly known”. Fonte: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5400.br000016. Nota: Editado pelos autores

Figure 01 | Brazil, or trans-atlantic Portugal, published by J. Luffman, London, 1808. Note the warning: “interior of the country very imperfectly known”. Source: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5400.br000016. Note: Edited by the authors

Figura 02 | Nova et accurata Brasiliae totius tabula, publicado por Joane Blaeu, 1640. Nota-se que mesmo sem uma descrição, percebe-se o vasto interior ainda desconhecido que se manteria por mais de 200 anos com nenhuma proposta para um mapeamento mais preciso. Fonte: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart168860.jpg

Figure 02 | Nova et accurata Brasiliae totius tabula, published by Joane Blaeu, 1640. Note that even without description, the vast interior region is shown as unknown, and will remain so for a further 200 years with no proposal for a more accurate mapping. Source: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart168860.jpg

technical reports, travel narratives, drawings and paintings of landscape, a connected set of discursive practices that shape a given cartographic production in each discursive context” 20. That is to say that a cartographic product is not produced on a “tabula rasa” but is instead based on an intersection of data and knowledge that create an intellectual framework for guiding its representation. This collection of material will offer the researcher greater intelligibility in the object of study; so, as Renato Amado Peixoto puts it, “thinking about space is not just understanding its representation, considering its application, scrutinising its construction; it is also necessary to look for its connections”.21

The problem lies in the lack of these connections, due to the treatment each map receives from archives and research institutions:

“The historical processes of map preservation have always involved separation of visual and text documents, a rift that meant the separation of maps from the contexts of their documentary production, whether because of the high value

of the antiques market, under strategies of state secrets, or through museum and library archive conservation policies that emphasize the cartographic image’s museum status”. 22

The present challenge to the use of cartography as a documentary source lies in reuniting these visual and textual documents about a given historical period in which the map was produced. In many cases the losses are irreversible. But other forms of overlapping can be adopted through the use of complementary primary sources or transforming the map into a source per se. More than just the fruit of direct and indirect observation, cartography incorporates the elements of an imaginative geography formed at the meeting between established knowledge (and its pre-existing imagery) and experience that strikes, confronts and therefore dismantles many prior conventions. The following item therefore proposes an analysis of five maps of part of the former Portuguese America – now Brazil – that demonstrate the transformation of an unknown space, a (de)sertão, in a territory defined by physical characteristics that are often interwoven with

the representation of its identity, the Brazilian Northeast.

From the (de)sertão to the Northeast: cartographic notes

Luciana Martins’s research23 clearly points out that cartography is not just founded on the discourses and mechanisms of power (and their intellectual outlines that determine a priori how and what to feature and to map); although such outlines are fundamental, they move and shift in the complex framework of 19th-century cultural relations, with the growth in the opening of ports, scientific exploration and the circulation of knowledge.24

Despite the more modern treatment of J. Luffman’s 1808 map (Figure 01) – as seen in the printed texts in the top and bottom margins, e.g., without ornament or affectation – the huge void marking the centre is quite significant. The brief description – Interior of the country / very imperfectly known – sums up the huge task opening out for cartography. The void represented has a double meaning, as can be seen in comparison with maps from earlier

centuries, such as Joan Blaeu’s 1640 Nova et accurata Brasiliae totius (Figure 02). It is worth pointing out the relationship between the aims of its title, emphasising accurata [accurate] and totius [complete], and what is actually represented, or rather, the absence of further detail of the interior regions of the Portuguese colony. But it does demonstrate extensive knowledge of the sea route to the provinces, from which one can infer its likely nautical function.

Page 48: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

90 91

Do (de)sertão ao Nordeste: notas cartográficas

Como bem define a pesquisa de Luciana Martins23, a cartografia não se funda apenas nos discursos e me-canismos de poder (e seus esquemas intelectivos que informam aprioristicamente como e o que detalhar e cartografar); embora esses esquemas sejam funda-mentais, eles se movem e se transformam no quadro complexo de relações culturais do século XIX, com crescente abertura de portos, de explorações científicas, de circulação de conhecimento. 24

Apesar do tratamento mais moderno do mapa de J. Luffman, de 1808 (Figura 01) –como se expressa na impressão dos textos nas abas superior e inferior, e.g., sem ornatos ou rebuscamento –, é significativo o gran-de vazio que marca o seu centro. A breve descrição – In-terior of the country / very imperfectely known – sintetiza a grande tarefa de cartografia que se descortinava. O vazio registrado é uma representação em sentido duplo, como se percebe ao comparar com mapas de séculos anteriores, a exemplo da Nova et accurata Brasiliae totius, tábula atribuída a Joan Blaeu, de 1640 (Figura 02). É interessante destacar a relação entre seu pre-tenso título, com ênfase ao accurata [preciso] e totius [completo], ao que se encontra representado, ou melhor, ao silêncio de um maior detalhamento do interior da colônia portuguesa. Porém, demonstra amplo conheci-mento das rotas marítimas às capitanias, o que se pode inferir a sua provável função náutica.

Representação gráfica e representação do interior como sertão e, antes ainda, como desertão, imagem re-corrente do Outro, do desconhecido. Imagem que se ali-menta também da recorrência das representações. Isto é, da circularidade do conhecimento estabelecido, que vai se repetindo, em maior ou menor medida, porque resolve o problema da representação gráfica (emulando soluções embasadas em convenções tecnicamente acei-tas) e confirma a representação – como imaginário – do vazio. Não à toa, é praticamente o mesmo vazio carto-gráfico do século XVII que marca o Amerique Meridiona-le, de Jean Baptiste D’Anville, de 1748 (Figura 03). Neste mapa, elaborado com o auxílio de observações de dois membros da academia de ciência francesa, registra-se, inclusive a seguinte informação: Brésil dont l’intérieur est inconnu en grande partie, ou seja, seu interior é am-plamente desconhecido.

O mapa de Luffman, do início do século XIX, ainda expressa essa recorrência, da mesma maneira que o registro literário de um viajante como Henry Koster:

“A palavra sertão é usada de maneira indefinida, não somente significando o interior do país, mas, às vezes, grande parte da costa cuja população é parca. Assim, toda a região situada entre [as províncias de] o Rio

Grande [do Norte] e a Paraíba é chamada sertão”25. O esboço de mapa que acompanha o livro de Koster tam-bém “registra” o vazio.

Interior desconhecido. Desertão. Deserto grande. Sertão. Essa operação linguística que vinha se pro-cessando, como registra Koster, ganharia também contornos específicos ao longo do século XIX e XX. Em-bora permaneçam os muitos sertões nas discussões e ensaios sobre o Brasil (ou mesmo e principalmente na literatura do século XX) para designar porções específi-cas do interior, um em especial seria objeto de atenção específico: o sertão da porção setentrional do Brasil, o interior assolado de tempos em tempos pelo fenômeno climático das secas.

Esse processo já foi relativamente bem demarcado e discutido26. Ainda assim, é significativa a sobrepo-sição entre o vazio do registro cartográfico colonial e a posterior delimitação da região das secas. Contudo, apontar apenas as recorrências não é suficiente para entender a cartografia do (de)sertão que se formaria a partir de meados do século XIX.

A necessidade de integração do território brasileiro, em fins do século XIX, principalmente com a interiori-zação desse processo e a ascensão de um corpo técnico qualificado – proveniente dos quadros da Escola Poli-técnica do Rio de Janeiro, criada em 1878 – delinearam ações propositivas ante os problemas oriundos da gran-de seca de 1877-1878. Em outras palavras,

“As ações técnicas, encampadas e promovidas pelos engenheiros politécnicos enviados pelo Governo Federal, passaram, destarte, a ser também um elemento delimitador e caracterizador da região da seca no tocante à sua espacialidade, pois atua-vam no sentido de estruturá-la e integrá-la tanto externa – com as outras regiões da nação –, como internamente – na comunicação entre as cidades e as zonas de produção localizadas em seus limites, com o intuito de promover a ‘circulação de riqueza’ a partir do escoamento das mercadorias e o estrei-tamento das relações”.27

Isso significou que, sob a égide da régua e do compas-so, novas representações cartográficas para a região nordestina se mostravam imprescindíveis. Segundo Angela Ferreira, Gabriel L. Medeiros e Yuri Simonini, a forma de atuação desses profissionais se dava em três etapas, “primeiro, conhecer cientificamente o território para descobrir o que lá existia, segundo, explorar as suas potencialidades econômicas em prol do progresso e, por último, assegurar o controle físico dos limites e garantir a unidade territorial tão caro ao projeto de uma nação”. 28

Nesse sentido, o Mapa da região flagellada pela

Graphic representation and portrayal of the interior as sertão, and moreover as Great Desert, is a recurring image of the Other, of the unknown. It is an image fed also through the recurrence of representations, that is, on the circularity of established knowledge which to a greater or lesser extent repeats itself, because it resolves the problem of graphic representation

(emulating solutions based on accepted technical conventions) and confirms the representation – as imagery – of the void. It is not surprising that Jean Baptiste D’Anville’s 1748 Amerique Meridionale (Figures 03 and 04) is marked by practically the same 17th-century cartographic void. This map was produced with the aid of observations by two members of the French academy of science, and also records the following: Brésil dont l’intérieur est inconnu en grande partie, that is, its interior is generally unknown.

The same occurs in Luffman’s map, from the early 19th century, as it does in the written record by a traveller such as Henry Koster: “The word sertão is used rather indefinitely, as it does not only mean the interior of the country, but likewise a great part of the coast, of which the population is yet scanty, receives this general name. Thus, the whole of the country between Rio Grande [do Norte] and Pernaiba is called Sertam.”25. The sketch map accompanying Koster’s book also “records” the void.

Unknown interior. Desertão. Great Desert. Sertão. The linguistic operation that Koster records would also take on specific features throughout the 19th and 20th centuries. Although the many sertões remain in discussions and essays about Brazil (even and principally in 20th-century literature) to define specific parts of the interior, one in particular would be the object of specific attention: the sertão of the northern part of Brazil, the interior plagued from time to time by the climatic phenomenon of drought.

This process has been relatively well outlined and discussed26. Nonetheless, the overlapping of the void of colonial cartography with the later definition of the drought region is quite significant. But indication of the recurrences is not enough on its own to understand the cartography of the (de)sertão that would be formed from the mid 19th century.

The need to integrate the territory of Brazil in the late 19th century, principally with the internalisation of this process and the development of a qualified technical body – from the Polytechnic School of Rio de Janeiro, founded in 1878 – outlined positive actions in the face of the problems of the great drought of 1877-78. In other words:

“The technical actions taken over and promoted by the polytechnic engineers sent by the Federal Government then also became a defining element in characterising the drought region in terms of its space, since they acted towards structuring and integrating it both externally – with other regions of the nation – and internally, with the aim of promoting the ‘circulation of wealth’ based on outlets for goods and closer relations”.27

This meant that new cartographic representations of the northeast region became essential, governed by ruler and compass. According to Angela Ferreira, Gabriel L. Medeiros and Yuri Simonini, these professionals operated in three stages, “firstly, finding out about the territory scientifically to discover what was there, secondly exploring its economic potential in pursuit of progress and, finally, ensuring physical control of the boundaries and guaranteeing the territorial unity so dear to the project of nation”. 28

In this sense, the Mapa da região flagellada pela secca de 1877 (Figure 05), printed by the Litografia Imperial, under Alexandre Speltz, synthesizes this relationship, which incorporates the project of transformation of territory into the cartographic representation of data, in this case the plans for relief railways developed by the engineer André Rebouças. The broken red lines described a rectangular web, here

Figura 03 - Amerique Meridionale. Publiee sous les Auspices de Mon-

seigneur le Duc D’Orleans ... Map of South America by J.B. D’Anville, Paris, 1748 e detalhe. Tal qual o mapa de Blaeu, o interior brasileiro igualmente continha a descrição de vasto território desconhecido. Fonte: http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUM-SEY~8~1~203996~3001758#

Figure 03 - Amerique Meridionale. Publiee sous les Auspices de Monseigneur le Duc D’Orleans ... Map of South America by J.B. D’Anville, Paris, 1748 and detail. Like Blaeu’s, map, the interior of Brazil similarly contains the description of a vast unknown territory. Source:http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~203996~3001758#

Page 49: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

92 93

secca de 1877 (Figura 05), impresso pela Litografia Im-perial, sob a responsabilidade de Alexandre Speltz, sin-tetiza essa relação que, na representação cartográfica do dado sensível, incorpora o projeto de transformação do território. No caso, o projeto das estradas de ferro de socorro, elaborado pelo engenheiro André Rebouças. As linhas tracejadas em vermelho articulam uma trama de lógica ortogonal, aqui adaptada às linhas topográ-ficas da costa do setentrião brasileiro e, a partir delas, estabelece linhas transversais que configuram, por fim, uma malha que teria grande acessibilidade regional.

A lógica geométrica ideal que subjaz a proposta da Rebouças, presente tam-bém em outros esquemas e esboços (como na proposta de uma planta cadastral para o Brasil, desen-volvida no livro

“Garantia de Juros”, de 1874), esteve na raiz de muitas des-sas propostas abrangentes (de sistemas de circulação, transporte e comunicação) para o Brasil e acabou apon-tando para novas configu-rações, novas maneiras de enquadrar e de ler as partes do Império.

A peça car-tográfica docu-menta, assim, pelo menos três níveis de representação:

primeiro, a atualização dos dados geográficos da região setentrional, parte da antiga porção norte da Colônia e do Império. Essa atualização, deve-se dizer, é ainda muito limitada, a despeito do desenho mais rigoroso do quadro de latitudes e de longitudes, o que permite maior precisão no traçado da costa litorânea. Como se

percebe, falta ainda mapear, de maneira extensiva, o interior “vazio”, o antigo (de)sertão.

Os dois outros níveis são ainda mais importantes, do ponto de vista político e das disputas pela formula-ção dos imaginários e imaginações sobre a Nação, para entender essa peça como documento histórico. Um segundo nível, ao delimitar a região assolada pelas se-cas, se evidencia pela grande mancha de cor amarelada no qual o Mapa expressa e materializa, assim, um dos primeiros, se não o primeiro, documento a sobrepor diretamente a definição dessa região específica dentro do Império, marcada pelo fenômeno das secas. O vazio pode ainda se encontrar impreciso, mas, agora, ao me-nos se enquadra em uma clara delimitação e diferen-ciação regional – que seria desenvolvida ao longo das décadas seguintes.29

O terceiro nível é o do projeto de Rebouças: mais importante, nesse momento, do que a documentação e o registro precisos, a criação de uma proposta de arti-culação territorial, para melhor informar e direcionar os esforços e os recursos dos chamados combates ou socorros às secas. No lugar da emergência, a previsão e a provisão. Essa perspectiva, que aponta claramente para uma determinada representação de Nação, de-veria dirigir, dessa maneira, também os esforços para conhecer a região, esquadrinhá-la, mapeá-la.

Essa perspectiva iria permanecer no horizonte de ação de vários profissionais nas décadas seguintes, de fato. A construção do fenômeno climático das secas como um problema técnico e, mais ainda, como uma questão nacional, levaria à institucionalização, em âmbito federal, dos esforços para o seu enfrentamento, com a criação da Inspetoria de Obras Contras as Secas

– IOCS –, em 1909. Aproveitando o acúmulo de discus-sões e a colaboração direta de diversos profissionais de renome, nacionais e estrangeiros, a exemplo de Roderic Crandall, Gerald Waring e do engenheiro Aarão Reis, os anos iniciais de atuação da IOCS foram marcados pela publicação de dezenas de estudos, provenientes de pes-quisas de campo extensas e minuciosas.

Nesse sentido, pode-se falar que, finalmente, o de-sertão – como representação do desconhecido e como vazio cartográfico – foi superado. A publicação do mapa esquemático “Regiões Secas do Nordeste” (Figura 05), no Bulletin of the Pan American Union, de 1936, enviado pelo engenheiro Saturnino de Brito Filho, demonstra o acúmulo de conhecimento, cartográfico inclusive, sobre a região, o que permitia a construção de mapas sínteses para, nesse caso, divulgação das ações federais na prevenção do fenômeno no Brasil.

Note-se ademais que essa construção de conheci-mento sobre a região é determinante para delimitar a própria região, como já se afirmou. Aqui, antecedendo

adapted to the topographic lines of the north Brazil coast, and establish transverse lines that shaped a grid with great access into the region.

The ideal of geometric logic that underlies the Rebouças project, which is also present in other plans and drawings (such as the proposal for a property-boundary plan for Brazil, developed in the 1874 book “Garantia de Juros”), lay at the root of many of these comprehensive proposals (for circulation, transport and communication systems) for Brazil and led to new configurations and ways of framing and reading the parts of the Empire.

The cartographic object therefore documents at least three levels of representation: firstly, updating geographical data about the northern region, part of the former northern portion of the Colony and the Empire. It should be added that this updating is still very limited, despite the more rigorous drawing of the framework of latitudes and longitudes, which allows more accurate drawing of the coastline. There is still a lack of extensive mapping of the

“empty” interior, the former (de)sertão.

The other two levels are even more important in understanding this object as an historical document from the political viewpoint and in terms of discussing the formulation of imagery and imagination of the Nation. A second level, defining the region plagued by drought, is shown by the large yellow area of the Mapa, which thus expresses and materialises one of the first documents, if not the first, to directly overlay the definition of this specific area of Empire marked by the phenomenon of drought. The empty area is still imprecise, but at least it now fits into a clear regional definition and differentiation – which would be developed over future decades.29

The third level is the Rebouças project: more important at the time than documentation and accurate records was the creation of a proposal for connecting the territory, for better informing and

directing the efforts and resources for the combat and relief of drought. Prediction and provision instead of emergency. This viewpoint, which points clearly

to a particular representation of Nation, should thus also drive the efforts for learning about the region, examining it and mapping it.

This perspective would indeed remain the target of the actions of a series of professionals in the following decades. The construction of the climate phenomenon of drought as a technical problem, and also a national problem, would lead to the

institutionalisation of efforts for tackling it at federal level with the creation of the Drought Protection Works Inspectorate – IOCS – in 1909. Benefitting from accumulated discussions and the direct collaboration of well known foreign and domestic figures, such as Roderic Crandall, Gerald Waring and the engineer Aarão Reis, the early years of the IOCS actions were marked by the publication of dozens of studies arising out of extensive and detailed field investigations.

In this sense one can finally say that the desertão – as a representation of the unknown and a cartographic void – was overcome. The publication of the schematic map of the “Drought Regions of the Northeast” (Figure 05) in the 1936 Bulletin of the Pan American Union, submitted by the engineer Saturnino de Brito Filho, demonstrates the accumulation of knowledge,

Figura 04 – “Mapa da região flagellada pela secca de 1877”, pelo eng. André Rebouças, de 1878. Uma das primeiras delimitações gráficas do que se configuraria no Nordeste atual e associado às questões relacionadas às secas. Fonte: Arquivo Nacional; Acervo digital do HCUrb

Figure 04 – “Mapa da região flagellada pela secca de 1877”, by the engineer André Rebouças, 1878. One of the first graphic definitions to depict the present Northeast and connect it with issues related to drought. Source: Arquivo Nacional; Acervo digital do HCUrb

Figura 05 – Regiões Secas do Nordeste, de Saturnino de Brito Filho, 1936. A delimitação do “polígono das secas” determinava a região de ação de obras contra os efeitos das irregularidades pluviométricas. Fonte: BRITO FILHO, 1936.

Figure 05 – Drought prevention in Brazil by Saturnino de Brito Filho, 1936. Demarcation of the “drought polygon” determined the region of actions against the effects of irregular rainfall. Source: BRITO FILHO, 1936.

Page 50: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

94 95

a oficialização da primeira proposta de divisão admi-nistrativa e regional do Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE –, em 1939, aparece claramente a denominação “Nordeste”, vinculada à (política de) delimitação da região das secas. A crescen-te precisão do levantamento cartográfico, do registro das especificidades geográficas, oriundas também de vários estudos temáticos patrocinados pela IOCS, alia-da aos dados já estabelecidos sobre longitude e latitude, permite construir uma primeira proposta de definição do que viria a ser conhecido como “polígono das secas” (oficialmente, seria instituído apenas em 1951). O po-lígono volta assim a circunscrever, guardada as devidas proporções em relação às diferenças de técnicas de mapeamento e aos dados geodésicos, o antigo registro do vazio. Ao excluir a zona costeira, de conformação fisiográfica distinta, de fato, o mapa consolida o sertão

– esse sertão específico – com estatuto oficial, adminis-trativo.

Para além do vazio: considerações finais

A imagem do desertão é uma síntese do obstáculo a superar. É necessário o seu mapeamento para correta-mente equacionar os problemas que se afiguravam gra-ves para a constituição do Brasil como Império e, antes ainda, como Nação. Da feitura de mapas com pouca acuidade e muitas vezes elaborados por não-especia-listas30, à produção cartográfica sob o rigor técnico dos engenheiros, percebe-se um sistema de representações, simbologias e silêncios que ultrapassam o que se en-contra impresso.

Isso significa enfatizar, no estudo cartográfico, os “processos cognitivos que a originaram e dos métodos em que se investe sua inscrição” sem deixar de lado a forma como foi produzida31. Logo,

“Para se pensar um espaço é necessário considerar antes um espaço imaginário onde se produz uma linguagem através de múltiplas experiências de outras linguagens; entender cada um dos mapas das imaginações e das geografias pessoais que extrapolavam em um dado momento seus limites para constituir uma gramática e uma sintaxe car-tográfica”. 32

Portanto, a imagem em formação é tanto fruto de um momento histórico no qual foi processado quanto do ponto de vista do historiador atual, desafio que se mos-tra importante no momento em que se percebem poucas elucubrações nessa perspectiva de uso do mapa como fonte e texto e não somente imagem ilustrativa. Nesse sentido, é válido o uso da produção cartográfica para se compreender a formação do território nordestino.

A representação imagética de uma grande área vazia encontrada no mapa de Blaeu (1640) e a descrição existente no mapa de D’Anville (1748), condensam-se

including cartographic knowledge, about the region, which allowed the construction of synthesis maps, in this case for publicising federal drought-prevention actions in Brazil.

It should further be noted that this construction of knowledge about the region is a determining feature for defining the region itself, as we have seen. Here, prior to the official adoption of the first proposal for the administrative and regional division of Brazil by the Brazilian Geography and Statistics Institute – IBGE

– in 1939, the Northeast is clearly denominated and linked to (the policy of) defining the drought region. The growing accuracy of cartographic surveying and recording geographical features, due also to various thematic studies sponsored by the IOCS, allied to pre-established data about latitude and longitude, allows construction of the first proposal for defining what will become known as the “drought polygon” (officially established only in 1951). The polygon was focused on demarcating what was previously recorded as empty in correct proportions in relation to the different mapping techniques and geodesic data. By excluding the coastal zone, with its own distinct physical conformation, the map consolidates the sertão – that specific sertão – with official administrative status.

Beyond the void: final considerations

The image of the desertão is a synthesis of the obstacle to be overcome. Its mapping is necessary for measurement of serious problems for the constitution of Brazil as Empire, and even more so as Nation. From mapmaking with little accuracy often produced by non-specialists,30 to cartographic production under the technical scrutiny of engineers, a system of representations, symbols and silences can be seen that go beyond what appears in print.

This means emphasising in the cartographic study the “cognitive processes behind it and the methods involved in it” without overlooking the way in which it was produced31. Therefore,

“To think about a space it is necessary firstly to consider an imaginary space that produces a language through the multiple experience of other languages; understanding how each of the maps of personal geographies and imaginations project their limits at a given moment to construct a grammar and syntax of cartography”. 32

The image in formation is therefore both the fruit of an historical period in which it was processed and the viewpoint of a current historian, which becomes important in the context of sparse academic studies of this view of using the map as source and text rather than just as illustration. In this sense the use of cartographic production offers a valid approach to

na construção cartográfica de Luffman (1808), que se apropria e mantém esses elementos anteriores, ou na ilustração de Henry Koster ao seu livro, mesmo no sé-culo XIX. O esforço das elites técnicas e intelectuais do século XIX, de dar a conhecer o Brasil aos brasileiros, vai levar à formação de várias comissões de explora-ção geográfica e à compilação de muitos dados para construção e reconstrução cartográfica, superando, ainda que parcialmente, as dificuldades e as limitações, sobremodo de recursos humanos, para os trabalhos de campo. Como demonstra o mapa do engenheiro Rebouças, de 1878, a construção desse conhecimento geográfico esteve atrelada desde o início, inclusive na cartografia, à perspectiva da construção e transforma-ção do território em prol de um projeto de Nação. Essa perspectiva seria decisiva para mobilizar os esforços de gerações de técnicos que, por meio de estudos contínu-os, longas pesquisas de campo e extensos apontamen-tos, ajudariam não apenas a cadastrar, mas, principal-mente, a construir a noção de uma região específica, a exemplo do mapa de divulgação das áreas de prevenção das secas, enviado por Saturnino de Brito Filho na dé-cada de 1930 ao Bulletin of the Pan American Union.

De maneira significativa, o antigo desertão, o vazio do registro cartográfico, será reposto, no contraprelo dos avanços no mapeamento, nos recursos técnicos, humanos e materiais, para exploração e documentação científicas sobre a região. O desertão tornou-se, final-mente, sertão, um dos sertões do Brasil, um interior específico marcado pelos ciclos irregulares de precipi-tação pluviométrica. Objeto de atenção da cultura téc-nica, mas também dos interesses políticos, eleitoreiros e econômicos e dos intelectuais preocupados com a questão da modernização do país e (dos costumes) do seu povo, a batalha pela sua representação (pelo con-trole da possibilidade de nomear o que pode ou não ser representado, o que lhe significa ou não) vai marcar a construção cartográfica da região Nordeste ao longo do século XX.

understanding the formation of the northeast territory.The illustration of a large empty area in Blaeu’s

map (1640) and the description on D’Anville’s map (1748) condenses into the cartographic construction of Luffman (1808), who makes use of and retains those earlier elements, or in the illustration to Henry Koster’s book in the 19th century. The efforts of the 19th-century technical and intellectual elites in revealing Brazil to the Brazilians will lead to the formation of various geographical exploration committees and the compilation of considerable amounts of data for cartographic construction and reconstruction, overcoming, albeit partially, the difficulties and limitations, particularly of human resources, for field studies. As can be seen in the 1878 engineering map of Rebouças, the construction of this geographical knowledge was linked from the outset to the prospect of construction and transformation of the territory for the project of Nation, and in cartography as well. This process would be decisive in mobilising the efforts of generations of technicians, whose continuous studies, extensive field investigations and detailed notes helped not just to register but also and principally to construct the notion of a specific region, as in the map of drought-prevention areas sent by Saturnino de Brito Filho to the Bulletin of the Pan American Union in the 1930s.

The former desertão, the empty space in the cartographic record will be significantly restored, despite the advances in mapping, in the technical, human and material resources for the scientific exploration and documentation of the region, even though the advances in mapping. The desertão finally became the sertão, one of the Brazilian sertões, a specific interior region marked by cycles of irregular rainfall. The object of technical attention, but also of political, electoral and economic interest and the concern of intellectuals engaged in the issue of modernising the country and (the customs) of its people, the battle for its representation (for control of the possibility of nominating what can or cannot be represented, what it means or not) will mark the cartographic construction of the Northeast region throughout the 20th century.

AgradecimentosOs autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Científico e Tecnológico – CNPq – pelas bolsas e apoio financeiro à pesquisa e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – pela concessão de recur-sos para participação no XII Coloquio Internacional de Geocrí-tica, onde foi apresentado este trabalho. Igualmente, nosso obrigado ao professor Hector Mendonza Vargas (UNAM, Méxi-co), pelas contribuições e indicações bibliográficas de cunho teórico-metodológicas, que deram base às discussões do tema acerca da cartografia histórica.

AcknowledgementsThe authors wish to thank the Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico – CNPq – for grants and financial support for research and the Coordenação de Aper-feiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – for fund-ing attendance at the XII Coloquio Internacional de Geocrítica, where this study was presented. We also extend our thanks to professor Hector Mendonza Vargas (UNAM, Mexico), for his contributions and technical-methodological bibliographical recommendations which formed the basis for discussing the topic of historical cartography.

Page 51: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

9796

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2001.ALMEIDA, Cândido Mendes. Atlas do Império do Brazil: comprehendendo as respectivas divisões administrativas, ecclesiasticas, eleitoraes e judiciárias. Dedicado a sua Magestade o Imperador Senhor D. Pedro II, destinado a Instrucção Publica no Império com especialidade a dos alumnos do Imperial Collegio de Pedro II. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomatico, 1868.BLACK, Jeremy. Mapas e história: construindo imagens do passado. Bauru: EDUSC, 2005.BRITO FILHO, Francisco Saturnino. Drought prevention and relief in Brazil. Bulletin of the Pan American Union, Washington, v.70, p.925–931, jan./dez, 1936.CAPEL, Horacio. Geografía e matemáticas en la España del siglo XVIII. Barcelona: Oikos Tau 10, 1982.CAPEL, Horacio. Filosofía y ciência en la Geografía contemporánea: una introducción a la Geografía. Barcelona: Barcanova, 1981.DANTAS, George Alexandre F; SIMONINI, Yuri; FERREIRA, Angela Lúcia. Desenhando territórios: a cartografia da Candido Mendes e o “Nordeste” brasileiro do século XIX. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 14., 2011, Rio de Janeiro, RJ. Anais eletrônicos... Rio de Janeiro, RJ: ANPUR, 2011. p. 1-18.FERREIRA, Angela Lúcia. Cultura técnica, projetos e reconfigurações urbanas e territoriais (Nordeste/Brasil, 1850-1930). Projeto de Pesquisa apresentado e aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico, 2011-2014.FERREIRA, Angela Lúcia; DANTAS, George Alexandre F.; SIMONINI, Yuri. Um olhar sobre o Nordeste: a contribuição técnico-científica da Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro - Brasil (1885-1932). In: ENCUENTRO DE GEÓGRAFOS DE AMÉRICA LATINA, 13., 2011, San José. Anais eletrónicos... San José: UNA, 2011. p. 1-15.FERREIRA, Angela Lúcia; DANTAS, George Alexandre F; FARIAS, Hélio Takashi M.. Pensar e agir sobre o território das secas: Planejamento e cultura técnica no Brasil (1870-1920). Vivência (Natal), v. 34, p. 41-62, 2008.FERREIRA, Angela Lúcia; DANTAS, George Alexandre F; FARIAS, Hélio Takashi M. Adentrando Sertões: considerações sobre a delimitação do território das secas. Scripta Nova: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, v. 10, n. 218 (64), 01 ago. 2006. Disponível em < http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-218-62.htm>. FERREIRA, Angela Lúcia; MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo; SIMONINI, Yuri. Obras contra as secas: a contribuição dos engenheiros para os estudos e a construção do território

no Nordeste Brasileiro (1877-1930). In: ENCUENTRO DE GEÓGRAFOS DE AMÉRICA LATINA, 12., 2009, Montevideo, Uruguai. Anais eletrônicos... Montevideo : Gega, 2009. v. 1. p. 1-15.GOMES, Maria do Carmo Andrade. O mapa fabricado entre o campo e o gabinete: dimensões técnicas e discursivas da Comissão Geográfica de Minas Gerais. In: MENDOZA VARGAS, Héctor; LOIS, Carla (coord.). Historias de la Cartografía Iberoamérica. Nuevos caminos, viejos problemas. México: UNAM, 2009. p.275-306.HARLEY, Brian. Mapas, saber e poder. Confins, n.5, p.1-24, 24 abr. 2009. Disponível em: <http://confins.revues.org/5724>. Acesso em: 20 nov. 2011.

. La nueva naturaleza de los mapas. Ensayos sobre la historia de la cartografía. México, FCE, 2005.KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. trad. e notas L. C. Cascudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. [orig. 1816]LAHUERTA, Flora M. Viajantes e a construção de uma idéia de Brasil no ocaso da colonização (1808-1822). Scripta Nova: Revista Electrónica de Geografia y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. 10, n. 218 (64), 01 ago. 2006. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-64.htm>.MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.MENDOZA VARGAS, Hector; LOIS, Carla. Viejos temas, nuevas preguntas: la agenda de la historia de la cartografía iberoamericana hoy. In: (coord.). Historias de la Cartografía Iberoamérica. Nuevos caminos, viejos problemas. México: UNAM, 2009. p.9-20.OLIVEIRA, Francisco Roque; MENDOZA VARGAS, Hector. Mapas de metade do mundo. In: (cood.). Mapas de la mitad del mundo: la cartografía y la construcción territorial de los espacios americanos, siglos XVI al XIX. Lisboa: Universidad de Lisboa/ México: UNAM, 2010. p.7-18.PEIXOTO, Renato Amado. Cartografias Imaginárias: estudos sobre a construção da história do espaço nacional brasileiro e a relação História e Espaço. Natal: EDUFRN, 2011. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.URROZ, Raquel; MENDOZA VARGAS, Hector. Los mapas de México: situación actual y análisis de las trayectorias. In: OLIVEIRA, Francisco Roque; MENDOZA VARGAS, Hector (coord.). Mapas de la mitad del mundo: la cartografía y la construcción territorial de los espacios americanos, siglos XVI al XIX. Lisboa: Universidad de Lisboa/ México: UNAM, 2010. p.19-42.

ReFeRêNCIASNOTAS* Artigo originalmente publicado na Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales Scripta Nova, da Universidad de Barcelona, v.16, n.418 (69), de 1 nov. 2012. Disponível em: <http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-418/sn-418-69.htm>. Martins, 2001; Capel, 1981.2 Desde 2004, interessam ao HCUrb os estudos sobre questões que entrelaçam temas acerca da engenharia, das secas e do Nordeste. Duas investigações já delinearam e analisaram essas vertentes, “Entre as secas e as cidades: formação de saberes, práticas e representações do urbanismo (1850-1930)” e “A Dimensão Técnica da Seca e a Construção e Planejamento do Território e da Cidade (1850 - 1935)”. Atualmente, tem-se como desdobramento dos anteriores o projeto intitulado “Cul-tura técnica, projetos e reconfigurações urbanas e territoriais (Nordes-te/Brasil, 1850-1930)”. Todos contaram com apoio financeiro do CNPq. 3 Ferreira, Dantas e Farias, 2006.4 Ferreira, Dantas e Simonini, 2011a.5 Dantas, Simonini e Ferreira, 2011b.6 Harley, 2005.7 Mendonza Vargas e Lois, 2009.8 Black, 2005, p.11. 9 Mendonza Vargas e Lois, 2009, p.9.10 Oliveira e Mendonza Vargas, 2010, p.8.11 Bueno, 2010; Burke, 2001.12 Para Renato Amado Peixoto (2011, p.20, grifos do autor), o “estudo cartográfico” pode ser definido em sete partes. Dentre elas, pode-se destacar: “6) entender o espaço registrado nos mapas como um campo sobre o qual são rebatidos enunciados e discursos, que se revelam nos enquadramentos utilizados (os quais denunciam a orientação do ter-ritório representado em relação a um espaço fora do mapa ou o privi-légio de um certo recorte do espaço que foi inserido no mapa sobre o território representado), por meio das sentenças que se inserem nos conteúdos e símbolos gráficos, e nos silêncios ou silenciamentos (os quais podem ser intuídos num símbolo cartográfico inacabado ou in-completo ou num espaço vazio ou esvaziado de significação no mapa; 7) procurar perscrutar os usos e as funções que estes produtos assu-mem inclusive procurando-se entender sua disseminação em outros produtos cartográficos ou mesmo outros saberes, sua divulgação e sua circulação”. E objetiva “(...) recolher e organizar os esforços da ciência cartográfica e compreender os avanços, afastamentos e incompatibili-dades em relação à norma técnica”. E conclui: “portanto, faria parte do discurso mesmo da cientificidade em torno do qual se articulou pro-gressivamente um saber sobre o espaço desde os séculos XVII e XVIII, ao qual a produção historiográfica teve que se remeter em busca de sua própria legitimação” (PEIXOTO, 2011, p.17). 13 Mendonza Vargas e Lois, 2009, p.10.14 Peixoto, 2011, p.86.15 Mendonza Vargas e Lois, 2009, p.9.16 Said, 1990.17 Said, 1990.18 Harley, 2005, p.81.19 Urroz e Mendonza Vargas, 2010, p.31-32.20 Gomes, 2009, p.277.21 Peixoto, 2011, p.157.22 Gomes, 2009, p.278. Inclusive, em concordância com os pressupostos de D. Cosgrove (2002), a autora ainda critica a “(...) distorção histórica que sempre privilegiou os mapas trabalhados artisticamente ou de im-portância estratégica, enquanto que os mapas de uso cotidiano foram sistematicamente descartados” (GOMES, 2009, p.278).23 Martins, 2001.24 Martins, 2001, p.21-38.25 Koster, 1942 [1816], p.87.26 Ferreira, Dantas e Farias, 2006.27 Ferreira, Medeiros e Simonini, 2009, p.2.28 Ferreira, Medeiros e Simonini, 2009, p.14.29 Este processo é muito mais complexo, de fato, e já tem sido discuti-do: Durval Albuquerque Júnior já apontou claramente como a temática das secas foi um dos fundamentos para a invenção do Nordeste como região com “identidade” e característica próprias no Brasil; as pesqui-sas do HCUrb (Cf. e.g. Ferreira, Dantas e Farias, 2008) têm demons-trado que, mais ainda, a compreensão do fenômeno climáticos das secas como um problema técnico foi fundamental, a partir da segunda metade do século XIX, para a configuração do Nordeste como região. Assim, esse mapa de 1877 vem corroborar esse conjunto de discussões.30 De acordo com Horacio Capel (1982, p.333), é somente a partir do século XVIII que “la realización de mapas se va convirtiendo en una tarea cada vez más compleja y que exige conocimiento altamente especializa-do”.31 Peixoto, 2011, p.159.32 Peixoto, 2011, p.159, grifos do autor.

NOTeS* Article originally published in Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales Scripta Nova, Universidad de Barcelona, v.16, n.418 (69), de 1 Nov. 2012. Available at: <http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-418/sn-418-69.htm>. Martins, 2001; Capel, 1981.2 Since 2004, HCUrb has been involved in studies concerning issues that connect topics about drought and the Northeast. Two investigations have defined and analysed these approaches: “Entre as secas e as cidades: formação de saberes, práticas e representações do urbanismo (1850-1930)” and “A Dimensão Técnica da Seca e a Construção e Planejamento do Território e da Cidade (1850 - 1935)”. Previous studies are now being developed into the project of “Cultura técnica, projetos e reconfigurações urbanas e territoriais (Nordeste/Brasil, 1850-1930)”. All are supported by CNPq. 3 Ferreira, Dantas and Farias, 2006.4 Ferreira, Dantas and Simonini, 2011a.5 Dantas, Simonini and Ferreira, 2011b.6 Harley, 2005.7 Mendonza Vargas and Lois, 2009.8 Black, 2005, p.11. 9 Mendonza Vargas and Lois, 2009, p.9.10 Oliveira and Mendonza Vargas, 2010, p.8.11 Bueno, 2010; Burke, 2001.12 For Renato Amado Peixoto (2011, p.20, author’s emphasis), “cartographic study” can be defined in seven parts. These include: “6) understanding the space recorded on maps as a field of statements and discourses that are revealed in the frameworks used (which reveal the orientation of the territory represented in relation to a space outside the map or the privilege of a particular section of the space that has been inserted on the map about the represented territory), through sentences containing graphic symbols and content, and the silences or silencings (which might be understood as an unfinished or incomplete cartographic symbol or an empty space or lack of meaning in the map); 7) seeking to investigate the uses and functions of these products and to understand their dissemination in other cartographic products or even other areas of knowledge, their publicising and circulation”. And seeking “(…) to gather and organise the efforts of cartographic science and understand the advances, separations and incompatibilities in relation to the technical norm”. And concludes: “it would therefore be part of the discourse of science around which knowledge of space was progressively articulated from the 17th and 18th centuries, which historiographical production had to refer to in pursuit of its own legitimation” (PEIXOTO, 2011, p.17). 13 Mendonza Vargas and Lois, 2009, p.10.14 Peixoto, 2011, p.86.15 Mendonza Vargas and Lois, 2009, p.9.16 Said, 1990.17 Said, 1990.18 Harley, 2005, p.81.19 Urroz and Mendonza Vargas, 2010, p.31-32.20 Gomes, 2009, p.277.21 Peixoto, 2011, p.157.22 Gomes, 2009, p.278. And, in accordance with the assumptions of D. Cosgrove (2002), the author also criticises the “historical distortion that always privileged maps produced by hand or of strategic importance, while maps in everyday use were systematically discarded” (GOMES, 2009, p.278).23 Martins, 2001.24 Martins, 2001, p.21-38.25 Koster, 1942 [1816], p.87.26 Ferreira, Dantas and Farias, 2006.27 Ferreira, Medeiros and Simonini, 2009, p.2.28 Ferreira, Medeiros and Simonini, 2009, p.14.29 This process is in fact much more complex, and has already been discussed: Durval Albuquerque Júnior has clearly indicated how the topic of droughts was one of the bases for the invention of the Northeast as a region with an “identity” and characteristic of Brazil; HCUrb research (See e.g. Ferreira, Dantas and Farias, 2008) has demonstrated furthermore that understanding of the climatic phenomenon of drought as a technical problem was fundamental in the formation of the Northeast as a region, from the second half of the 19th century. This Map from 1877 also corroborates this group of discussions.30 According to Horacio Capel (1982, p.333), it is only from the 18th century that XVIII “la realización de mapas se va convirtiendo en una tarea cada vez más compleja y que exige conocimiento altamente especializado” [map-making becomes an increasingly complex task and requires highly specialized knowledge].31 Peixoto, 2011, p.159.32 Peixoto, 2011, p.159, author’s emphasis.

Page 52: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus
Page 53: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

100 101

Page 54: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

102 103

Page 55: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

104 105

Page 56: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

106 107

Page 57: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

108 109

em 20/10/2013, Marina Camargo escreveu:

Querida Cris,

Pensei em darmos início à nossa conversa por escrito mesmo (via e-mail) como a distância permite e, assim, respeitando também o tempo do pensamento. Penso esta publicação como uma documentação do processo de trabalho para um projeto que se inicia.

O diálogo contigo é importante para mim por vá-rias razões. Entre elas, pela admiração que tenho pelo seu trabalho. Também porque percebo conexões ou paralelos entre nós, mesmo à distância. Temos relações próximas, íntimas até, com o nordeste em especial com o sertão, embora nossas origens estejam situadas em outros lugares também (você, em Brasília, e eu, em Por-to Alegre). Acho que esta mistura entre pertencimento e “estrangeirismo” em relação ao nordeste torna nosso diálogo potencialmente mais intenso e mesmo perti-nente. Também acho importante pensar o Brasil desde fora do centro do país, desde fora da região sudeste.

Obrigada pela indicação do livro A invenção do nordeste de Durval Muniz de Albuquerque Jr., tem sido uma leitura fundamental para pensar e repensar o ser-tão a partir da minha experiência com a região e, espe-cialmente, como contraponto à leitura de Os Sertões. A ideia de que este é um livro fundamental para pensar o Brasil profundo, um país esquecido em relação ao Bra-sil litorâneo, foi fundamental para iniciar este projeto, por ser um livro que funda uma noção do que é o sertão brasileiro e pelas contradições que o autor explicita entre a sua pré-concepção e sua percepção que se trans-forma ao longo da sua experiência no sertão. Os textos de Euclides da Cunha publicados na imprensa em 1897 (anteriores ao livro) são fundamentais neste sentido.

“Uma categoria geográfica que Hegel não citou” e “Como se faz um deserto” são textos que compõem o capítulo “A Terra”, de Os Sertões, e foram fundamentais como referência para pensar este projeto.

Há questões neles que me interessam e me fazem ter muitas dúvidas também.

Haveria de fato um determinismo em relação ao meio que forma o homem? Através de leituras, tendo a acreditar que não. Entretanto, vivendo o sertão, pen-sando o Brasil desde lá, de dentro, confesso que tendo a acreditar que o meio influencia no modo como as pes-soas que ali vivem pensam, que o meio forma sim, de algum modo o homem.

No sertão, a minha impressão era de estar não apenas isolada do mundo, mas como se esse isolamen-to fosse inevitável e irreversível. Como se a condição de estar ali fosse tão irreversível quanto a seca, quanto a distância do resto do mundo. É como se o meio deter-minasse uma aceitação em relação a todas as circuns-tâncias (culturais, geográficas, sociais). Essa impressão foi extremamente marcante por contradizer o que eu acredito intelectualmente – que este tipo de confor-

mismo com o presente seria um estereótipo cultural, e nunca determinado pelo meio. Ou seja, as contradições ou oposições estão presentes na minha pesquisa desde o início...

O sertão é para mim tanto uma memória íntima de infância, quanto uma ficção construída à distância, quando as conversas esparsas com o meu pai se restrin-giam às dificuldades geradas pela seca, ao clima hostil, à aridez do sertão (onde ele tinha uma fazenda e vivia as dificuldades da falta de água, embora estivesse à beira do rio São Francisco).

O sertão sempre foi para mim este lugar distante e próximo, contraditório em sua essência. Também espe-ro que o projeto “Como se faz um deserto” mantenha essas contradições em todo seu desenvolvimento.

Beijos, Marina

em 19/11/2013, Cristiana Tejo escreveu:

Querida Marina,

Seu projeto me faz remexer na minha bagagem senti-mental e repensar o lugar em que habito. Não que eu more no sertão, mas o sertão atravessa o litoral e todas as demais áreas da região Nordeste. Ele inunda com seu simbolismo nossas vidas. Fora isso, meu pai é ser-tanejo e isso garantiu a presença constante do sertão em minha casa, mesmo quando ela se situava em Bra-sília. Outra questão que tem me mobilizado desde que passei a estudar Sociologia é observar as marcas que os lugares por onde passamos deixa em nossa psiquê e em nossa visão de mundo. Cada paisagem física é também paisagem cultural em transformação e transformada por nós. Todos os atravessamentos que sofremos re-orientam nosso olhar para as coisas e não podem ser

“limpados” de nossa trajetória. Outro ponto que você traz também tem recebido minha atenção. Não acredi-to em determinismo, mas tenho passado a observar a influência do clima em nossas atitudes e nossos senti-mentos, e, por que não?, em nossa cognição. A vida se reorganiza em lugares em que há mudanças bruscas de temperatura, com o passar das estações. O humor muda, a concentração muda. E então acho muito perti-nente a sua busca pelo sertão.

Beijo grande, Cris

em 22/11/2013, Marina escreveu:

Cris, curioso pensar nessas marcas que os lugares dei-xam em nós. De certo modo, é algo que vivenciamos mesmo sem perceber, como um contágio da nossa per-cepção de mundo. Se for assim, pouco a pouco somos tomados por muitos mundos por onde passamos e que também nos atravessaram.

Acredito também que os lugares guardam muito

CONverSA

Cristiana Tejo e Marina Camargo

Marina Camargo, 20/10/2013:

Dear Cris,

I thought we might start our conversation by writing, using email to overcome distance, and also allowing time for thought. I am thinking of this publication as documentation of a working process for a project that is just beginning.

This dialogue with you is important to me for several reasons, one of which is the respect I have for your work. Also, I can see connections or parallels between us even at a distance. We have close, even intimate relations with the northeast and especially the sertão, despite having roots in other places as well (you in Brasília and me in Porto Alegre). I think this mixture between belonging and “outsiderness” in relation to the northeast makes our dialogue potentially more intense and even pertinent. I also think it important to consider Brazil from outside the centre of the country, or outside the southeast region. Thank you for the book A invenção do nordeste by Durval Muniz de Albuquerque Jr. It has been essential reading for considering and reconsidering the sertão based on my own experience of the region and particularly as a contrast to reading Os Sertões. The idea that this is a fundamental book for considering the inner Brazil, a forgotten country in relation to the coastal Brazil, was fundamental for the start of this project, as it seems to forge an idea of what the Brazilian sertão is through the author’s explanations of the contradictions between his changing preconceptions and perception during his experience of the sertão. Euclides da Cunha’s newspaper writings from 1897 (before Os Sertões) are also fundamental in this sense.

“A geographical category not mentioned by Hegel” and “The making of a desert” are extracts from the chapter titled “The Earth” in Os Sertões, and provided a key reference for thinking about this project.

They raise interesting issues and also suggest several doubts as well. Is the environment really a determining factor in shaping people? Having read those texts, I’m inclined to think not. But living in the sertão and thinking about Brazil from there, from the inside, I must admit that I am inclined to believe that the environment influences the way in which the people who live there think, that the environment does in some way shape the people.

Being in the sertão, I felt not just isolated from the world but also that this isolation was inevitable and irreversible, as if the condition of being there was as irreversible as the drought, as the distance from the rest of the world. It is as if the environment determined a kind of acceptance in relation to all the (cultural, geographical and social) circumstances. The most striking thing about this impression is that it contradicts what I believe intellectually – that this kind

of conformity with the present is a cultural stereotype, and never determined by the surroundings.

In other words, contradictions or oppositions have been present in my research from the outset…

For me, the sertão is both an intimate childhood memory and a fiction constructed from a distance, when infrequent conversations with my father were restricted to the difficulties created by the drought, the hostile climate, the aridity of the sertão (where he had a farm and experienced the difficulties of water shortages despite being on the edge of the São Francisco river).

The sertão has always been a place that is both distant and near for me, essentially contradictory. I also hope that the “Como se faz um deserto” project manages to retain those contradictions as it develops.

Best wishes, Marina

Cristiana Tejo, 19/11/2013:

Dear Marina,

Your project has led me to dig through my sentimental baggage and reconsider the place where I live. Not that I live in the sertão, but the sertão runs through the coast and all the other areas of the Northeast region. It fills our lives with symbolism. Moreover, my father comes from the sertão and this ensured its constant presence in my home, even when located in Brasília. Another issue that has attracted me since studying Sociology is to observe how the places we pass through leave marks on our psyche and our view of the world. Each physical landscape is also a cultural landscape in transformation and changed by us. All the passages we experience redirect our view of things and cannot be “erased” from our development. Another point you mention also interests me. I don’t believe in determinism, but I have noticed the influence of the climate on our attitudes and feelings, and, – why not? – on our cognition. Life is reorganised in places where there are sudden changes of temperature with the passing of the seasons. Humour changes, concentration changes. And so I think your search for the sertão is most relevant.

Best wishes, Cris

Marina, 22/11/2013:

Cris, it’s interesting to think about those marks that places leave on us. In a way it’s something we experience even without noticing, like a contagion of our perception of the world. If so, we are gradually taken over by the many worlds we have been to and been through.

I also think that places retain much of the memory

CONverSAtiON

Cristiana Tejo and Marina Camargo

Page 58: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

110 111

da memória dos que viveram ali ou dos viajantes que passaram pelos lugares. Pode ser uma memória coletiva, compreendida através da cultura mesmo (como, por exemplo, através dos relatos dos viajantes que estiveram no sertão em diferentes épocas da história do Brasil).

Mas há também algo que parece ser determinado pelo lugar em si. Como se as influências do lugar, da paisagem, do clima, conduzissem a uma percepção de mundo específica.

Enquanto viajava pelo sertão, percebi que a minha noção de mundo ia se alterando pouco a pouco. Parecia que o meu mundo havia sido reduzido aos limites do sertão, como se um outro tipo de fronteira se estabele-cesse entre o nosso mundo e o mundo exterior.

Na maioria dos textos de viajantes que vieram ao Brasil e fizeram relatos escritos de viagem, o sertão é sempre essa parte distante do país, um lugar vazio, lon-ge, de uma extensão tamanha que parece não ter fim. Claro que a distância é sempre pensada em relação ao litoral – a costa que “centraliza” o país através de suas margens, pelas bordas.

Fico também curiosa para saber sobre os teus ser-tões. Por acaso você ainda tem fotografias de família na região? Ou fotos de viagens suas pelo sertão?

Mando em anexo algumas fotografias: as primeiras foram feitas ainda em Maceió, a do bar “Os sertões” em Canudos, e a última foto é de fato a última imagem que fiz durante a viagem.

Aproveito e mando ainda o texto “Cartografia do (de)sertão do Brasil”, que será também publicado no livro. Foi um dos textos fundamentais para eu repensar os limites e definições dessa região.

em 29/11/2013, Cristiana escreveu:

Sua pergunta me fez ver que não tenho fotos do ser-tão ou no sertão... Somente fotos mais recentes feitas em minhas viagens a trabalho. Me dei conta de que o sertão estava na minha casa, mas eu nunca me senti pertencente a ele. Até porque cresci entre Brasília e Recife e a construção de minha identidade deu-se entre o cerrado e a zona da mata pernambucana. Olhando para as fotos de meu pai, vejo não aquele sertão da mi-séria e do sofrimento, afinal, meu pai era filho de juiz e sempre foi classe média, mas um sertão com distinção de classes e com a presença de pessoas brancas e de olhos claros. Nas minhas recordações de visitas a tios distantes, lembro muito de meu estranhamento com a paisagem dura e com as casas pequenas com chão batido e poucos móveis. Contrastava com a vida urba-na que eu levava na capital do Brasil. Tenho refletido muito sobre os processos e as situações que ajudaram a moldar minha personalidade e minha identidade cultural. Por eu ter migrado muito pequena, vivenciei desde cedo a subalternidade nordestina. Minha mãe relatava que procurando apartamento nos classificados de um jornal de Brasília, deparou-se com um anúncio de trabalho que a chocou. Após a enumeração das qualidades que o/a candidato(a) deveria ter, constava a frase: “Favor não se apresentar nordestino”. O precon-ceito com as pessoas do Nordeste tornou-se comum em outros lugares do Brasil, a exemplo de São Paulo em sua busca cosmopolita. Criada em Brasília e assistindo a programas de televisão feitos no eixo Rio-São Paulo, foi incutido em mim (não por meus pais, que tinham muito orgulho de sua origem) que o Nordeste é “infe-rior, arcaico, marginal”, que as pessoas do Nordeste são as empregadas, os porteiros, o cangaceiro, o bobo

da corte. Não havia nada que mostrasse a contribuição nordestina à intelectualidade brasileira, por exemplo. E isso acontece também com os negros e os índios do Brasil. Portanto, não estranho que acabei camuflando quando criança traços de minha identidade. Dentro de casa, continuava a usar palavras tipicamente nordesti-nas, como “mainha”, “painho”, “macaxeira”, “jerimum”. Na rua, eu fazia a tradução para os termos usados em Brasília. O sotaque foi perdido rapidamente e até hoje se passo muito tempo num lugar começo a me comu-nicar com a sonoridade local... Observando outros filhos de migrantes e de imigrantes, noto que quando a mudança se dá para um lugar que tem uma importân-cia econômica ou cultural maior, a tendência é que os filhos não queiram ser reconhecidos pelos traços cultu-rais de origem e que acabem se esforçando para fazer parte da paisagem cultural de onde vivem. A mensagem que recebi quando era criança foi a de que o Nordeste é subalterno. O sertão é longe demais. Levou anos para eu compreender todo este processo e começar a me reconciliar com minha história.

Você, que mora num lugar que tem uma presença grande e recente de imigrantes europeus, sentiu cons-trangimento com relação às suas raízes sertanejas?

em 30/11/13, Marina escreveu:

Curioso que inicialmente pensava em abordar mesmo questões mais geográficas, da paisagem, intrínsecas do sertão como um lugar em processo de definição. Aos poucos, nossa conversa se volta para as pessoas, para as nossas origens, nosso lugar neste contexto. Talvez não seja possível pensar os lugares sem pensar na relação com as pessoas, sem pensar na nossa relação com os lugares.

Suas colocações me fizeram pensar que eu também não tinha imagens do sertão em casa. De certo modo, acho que este projeto é um maneira de construir (ou refazer?) este imaginário.

Após a minha volta ao sertão para o enterro do meu pai, uma tia começou a me trazer inúmeras fotografias, tanto do sertão quanto da família, da casa dos avós, talvez no intuito de preencher esse vazio de referências. As imagens não preenchem os vazios simbólicos, mas agora percebo que eu precisei voltar e construir o meu próprio imaginário do sertão.

O fato de ter origem nordestina (sou nascida em Maceió, mas de família tanto de Alagoas quanto do Rio Grande do Sul) foi um pouco complicado quando nos mudamos para o sul do país. Era criança, e o efei-to mais imediato foi perder o sotaque, tentando me

“camuflar” o mais rápido possível. E funcionou. Logo todos acharam que eu sempre fui apenas do sul, e o resto virou esquecimento. Mas foi em Porto Alegre onde passei praticamente toda a minha vida, onde tive a maior parte de minha formação.

Você tem razão quando fala sobre os filhos de imi-grantes. Acho também que um dos maiores efeitos é a sensação de não pertencimento a nenhum lugar – ou a de um pertencimento múltiplo, diverso, arriscaria até dizer confuso. Confesso que a questão das minhas origens (seja no sul, seja no nordeste) é algo ainda em aberto para mim, pois me sinto pertencendo às duas regiões e, ao mesmo tempo, a nenhuma delas. Me sinto um pouco estrangeira por todos os lados.

Durante a viagem que fez parte deste projeto “Como se faz um deserto”, tive uma preocupação enor-

me em não me deixar tomar por um olhar estrangeiro,

of those who have lived in them or the travellers who have passed through them. It might be a collective memory, understood through culture even (such as the reports of travellers who went to the sertão at different periods in the history of Brazil).

But there is also something that seems to be determined by the place itself. As if the influence of the place, the landscape and climate, led to a specific perception of the world.

While I was travelling in the sertão I realised that my notion of the world was gradually changing. My world seemed to have been reduced to the boundaries of the sertão, as if another type of frontier had been established between our individual worlds in relation to the outside world.

Most of the writings by travellers to Brazil portray the sertão as always that distant part of the country, an empty, faraway place that seems to stretch on forever. Of course the distance is always considered in relation to the coast, which “centralised” the country through its borders, its margins.

I’m also interested in knowing about your sertões. Might you have photographs of your family in the region, or photos of your travels in the sertão?

I’m attaching some photographs. The first ones were taken in Maceió, the “Os Sertões” bar was in Canudos and the last photo is in fact the final image I made during the trip.

I’m also sending the essay “The mapping of the Brazilian (de)sertão”, which will also be published in the book. This was one of the key texts for my reconsidering of the boundaries and definitions of this region.

Cristiana, 29/11/2013:

Your question made me realise that I have no photos of the sertão or in the sertão… Only more recent photos taken on work trips. I realised that the sertão was in my home, but I never felt that I belonged to it. Because I grew up between Brasília and Recife and the construction of my identity occurred between the cerrado region and the Pernambuco forest zone. Looking at the photos of my father, I don’t see that sertão of poverty and suffering – my father was always middle class and the son of a judge, after all – but instead a sertão of class distinction and with pale-eyed white people. My memories of visits to distant uncles are full of my unfamiliarity with the harsh landscape and the little houses with beaten-earth floors and few furnishings. It contrasted with the urban life I led in the Brazilian capital. I have reflected a lot on the process and situations that helped to shape my personality and my cultural identity. Having migrated when I was very young, I experienced northeastern inferiority from an early age. My mother told of her shock when she came across a job advertisement while looking for an apartment in the classified advertisements in a Brasília newspaper. The list of qualities required of the candidate was followed by the phrase, “Northeasterners need not apply”. Prejudice against people from the Northeast became commonplace in other regions of Brazil, such as São Paulo in its pursuit of cosmopolitanism. Growing up in Brasília and watching television programmes made in Rio and São Paulo, I was instilled with the idea (not by my parents, who were very proud of their roots) that the Northeast is “inferior, archaic and marginal”, that people from the Northeast work as maids, doormen,

outlaws and jesters. There was nothing that showed the northeast contribution to Brazilian intellectual production, for example. And this also happens with black people and Indians in Brazil. So I don’t find it strange that I tended to hide traces of my identity as a child. At home I continued to use typically northeastern words like “mainha”, “painho”, “macaxeira”, “jerimum”. Outside I’d translate them into the terms used in Brasília. I lost my accent quite quickly, and even today if I spend a long time in one place I start communicating with the local intonation… Looking at other children of migrants and immigrants I notice that when the move is to a place with greater economic or cultural importance, children tend not to want to be recognised by the cultural traits of their roots and make an effort to become part of the cultural landscape of where they are living. The message I was given as a child was that the Northeast is inferior. The sertão is too far away. It took me years to understand that process and start to come to terms with my history.

You live in a place with a strong and recent presence of European immigrants, did you feel any embarrassment in relation to your sertão roots?

Marina, 30/11/13:

Interestingly, I initially thought of dealing more with geographical issues and the intrinsic landscape of the sertão as a place in the process of being defined. This conversation is gradually shifting towards people, to our roots, our place in that context. Perhaps it’s not possible to think about places without thinking about the relationship with people, without thinking about our relationship with the place.

The points you raise made me realise that I have no images of the sertão at home either. In a way, I think that this project is a way of constructing (or remaking) those images.

After returning to the sertão for my father’s funeral, an uncle started to show me lots of photographs of the sertão and my family, my grandparents’ house, perhaps trying to fill that void of references. The images don’t fill the symbolic voids, but now I realise that I needed to go back and construct my own imagery of the sertão.

The fact that I have northeastern roots (I was born in Maceió, but my family is as much from Alagoas as from Rio Grande do Sul) was a little complicated when we moved to the south. As a child, the most immediate effect was losing my accent, trying to “camouflage” myself as much as possible. And it worked. Everyone soon thought that I came from the south, and the rest was forgotten. But I have spent nearly all my life in Porto Alegre, and that is where I received most of my education.

You are right when you talk about the children of immigrants. I also think that one of the strongest effects is the feeling of not belonging to anywhere, or of a multiple, diverse, even confused belonging. I must admit that the issue of my roots (in the south or the northeast) is something that is still open for me, as I feel that I belong to both regions and neither at the same time. I feel a bit of an outsider everywhere.

During the journey for this “Como se faz um deserto” project, I was very concerned not to be overcome by an outsider’s viewpoint, seeing everything as exotic. At the same time the tension between familiarity and strangeness was what always allowed my viewpoint to remain attentive.

Page 59: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

112 113

que vê tudo com um tom de exotismo. Ao mesmo tem-po, foi a tensão entre familiaridade e estranheza foi que me permitiu manter o olhar atento todo o tempo.

Agora me dei conta de que você veio de uma cidade em construção (Brasília, como o maior dos sonhos utópicos que se tornou realidade) para outra região em formação, mas esta em formação conceitual, que é o nordeste (já que a noção de nordeste é bastante recente). Quer dizer, a sua formação cultural é provavelmente constituída por lugares em processo de estruturação. Daí volto a pensar numa ideia que comentamos no iní-cio, sobre a influência do meio sobre o modo de pensar como as pessoas veem o mundo...

(Sabe que fico sempre um pouco incômoda quando falo muito de dados mais biográficos... Será que são relevantes para o trabalho? Até que ponto pode ser in-teressante para quem vê o trabalho? São perguntas que sempre me faço, e não sei responder...)

em 03/12/2013, Cristiana escreveu:

Pois é, eu entendo o teu desconforto com relação aos dados biográficos... Eu, antes de cursar Sociologia, tam-bém tinha muitas restrições... Mas depois de ler alguns teóricos cheguei ao entendimento de que todos nós somos movidos por nossa biografia... Não há neutrali-dade em nada que escolhemos ou fazemos... E como teu projeto em especial tem uma motivação que parte de um dado de vida, não vejo muitos problemas...

em 03/12/2013, Marina escreveu:

Sabe, não é nenhum tipo de pudor a que me refiro quando falo de alguma restrição em enfatizar dados biográficos. Penso mais no sentido de não supervalori-zar o indivíduo artista em relação a outras informações mais restritas ao trabalho/produção do artista em si.

Mas é fato que não há neutralidade em nada que fazemos...

Pra mim é especialmente interessante quando você traz referências da sociologia, em especial num projeto como este. Embora atualmente eu tenha me interessado muito por questões relacionadas à geogra-fia. Pensar a terra, as formações de solo, as definições de fronteiras, os mapas dos lugares, até mesmo os tratados políticos de definição geográfica acabam pare-cendo estimulantes no processo de trabalho. De algum modo, consigo pensar em muitas aproximações de questões do campo da geografia com a arte.

Há algo de atraente nos outros campos de conheci-mento, que de modo mais ou menos direto acabam for-mando o nosso pensamento, retornando para o campo da arte, talvez até constituindo esse próprio campo. Acho que “Como se faz um deserto” acaba sendo meio híbrido neste sentido.

em 09/12/2013, Marina escreveu:

Penso agora em uma permeabilidade entre meio e pes-soas, um sendo a extensão do outro. Não num sentido determinista, mas como uma troca contínua entre am-bos, de modo a não se distinguir mais o que são carac-terísticas do meio e o que são características culturais. (Teria a ver com a ideia de continuidade que projetamos sobre as coisas, sobre o ambiente que nos cerca?)

Relendo nossa conversa (o que desenvolvemos até

aqui), me chamou a atenção como projetamos nossas memórias falhas ou lembranças vagas de um sertão em construção, ainda com vazios a serem pensados. Talvez pensar esse espaço geográfico em processo de defini-ção (partindo de uma suposto “vazio” no mapa) abra espaço não só para nossas ideias, mas tenha servido ainda como justificativa para alimentar a indústria da seca (embora tenha lido textos que abordam “indústria da seca” como sendo um termo em desuso, ainda que em algumas ocasiões de seca prolongada haja uma

“reedição” de seu uso). A transposição do rio São Fran-cisco promete solucionar problemas de falta de água na região, mas ao mesmo tempo compromete e enfra-quece ainda mais o rio, que parece estar aos poucos morrendo. O maior deserto que encontrei na viagem pelo sertão foi o próprio rio. Um ecossistema alterado, com algas que não são originais dali, os peixes e pitus desaparecendo das águas e, próximo à foz, a correnteza já mais fraca, deixando o mar invadir cada vez mais o seu leito. As razões são diversas, e talvez assunto para outros trabalhos. Um deserto se amplia por terra, e outro pelas águas do sertão são-franciscano.

Espero que a gente possa seguir nossa conversa para além desta publicação, ampliando os contornos dos mapas e expandindo noções sobre lugares, repen-sando nossos lugares no mundo.

Beijos e obrigada pelas trocas.

em 10/12/2013, Cristiana escreveu:

Querida Marina,

De fato não podemos falar sobre o sertão sem abordar-mos a indústria da seca e as motivações para a perma-nência de um estado de abandono social e econômico desta região. Há séculos diversos interesses sustentam esta situação. É um dado geográfico, mas é principal-mente um dado político. A primeira grande seca ocor-reu em 1877 e foi amplamente utilizada pela elite açu-careira decadente para conseguir recursos do governo federal. Em paralelo, deu-se convenientemente a cons-trução de sentidos de um lugar miserável, predestinado para o atraso que serviu localmente e nacionalmente. O Norte, que posteriormente tornou-se Nordeste, pas-sou a se confundir com o sertão. Matérias de jornais paulistas do final do século XIX reforçavam esta identi-ficação, mesmo quando o repórter passava pela cidade do Recife, na verdejante Zona da Mata pernambucana. Não podemos esquecer que esta imagem foi sendo ma-terializada pelos intelectuais e artistas da época, majo-ritariamente filhos da elite decadente. Por isso nosso modernismo é nostálgico e contrário ao novo. Há um senso de demarcar uma diferença a partir de um lastro cultural. Nossa literatura, artes plásticas, música, cine-ma contribuiu para a construção deste lugar chamado sertão e, por consequência, Nordeste.

Como seu projeto é artístico e não acadêmico, tens completa liberdade poética de expressar este lugar... E acho que te posicionas com uma abertura de sentidos muito pertinente. Sem buscar reafirmar clichês e cru-zando percepções com a de outras pessoas. Eu queria te agradecer por me fazer voltar a este tema. Achei impor-tante revisitá-lo por um viés sentimental!

Beijo grande,Cris

I realise now that you moved from a city under construction (Brasília, as the biggest utopian dream to become reality) to another region in formation, but this time a conceptual formation, which is the northeast (since the idea of the northeast in Brazil is quite recent). I mean your cultural development has probably been formed by places in the process of construction. So then I went back to the idea we mentioned at the start, about the influence of surroundings on the way of thinking about how people consider or view the world…

(I always tend to feel a little uncomfortable when talking much about more biographical details… Are they really relevant to the work? How much interest do they hold for the person looking at the work? I always ask those questions, and I don’t know the answer…)

Cristiana, 03/12/2013:

I quite understand your discomfort in relation to biographical information… Before I studied sociology I also had many reservations… But after reading the theory, I came to the understanding that we are all driven by our biography… There is nothing neutral about what we choose or what we do… And as the driving force behind your project began with an event in your life, I don’t really see many problems…

Marina, 03/12/2013:

You know, I don’t mean that I’m ashamed when I mention reservations about stressing biographical information. It’s more that I don’t want to overestimate the individual artist in relation to other information closer to the artist’s work/output itself.

But you’re right, there is nothing neutral about anything we do…

I find your references to sociology particularly interesting, especially in a project like this. Although I am currently more interested in issues related to geography. Thinking about the earth, the formation of the soil, definitions of boundaries, maps of places and even political treaties defining geography are what seem to have stimulated the work process. Somehow I can see many proximities between issues of geography and those of art.

There’s something appealing about other fields of knowledge, which seem to have greater or lesser effects on our thinking, feeding the field of art and perhaps even forming that field itself. I think that “Como se faz um deserto” becomes a bit of a hybrid project in that sense.

Marina, 09/12/2013:

I’m thinking now about a kind of permeability between the environment and people, with one as an extension of the other. Not in a deterministic sense, but rather as a continuous exchange between the two, so that you can no longer make out which are environmental characteristics and which are cultural. (Could it be related to the idea of continuity that we project onto things and our surroundings?)

Rereading our conversation (so far), I’ve noticed how we project our failing memories or vague recollections of a sertão under construction, still with

empty spaces to be filled. Maybe thinking about that geographical space in the process of being defined (based on the supposedly “empty” space on the map) leaves room not just for our ideas but has also served as a justification for feeding the drought industry (although I have read that the term ‘drought industry’ has fallen into disuse, but that it might be “re-adopted” during periods of extended drought). The São Francisco river transfer promises to solve water-shortage problems in the region, but at the same time it further compromises and weakens the river, which seems to be gradually dying. The biggest desert that I found on my journey to the sertão was the river itself. The ecosystem has changed, with algae that don’t come from there, fish and prawns disappearing from the water and a weaker current at the mouth, allowing the sea to enter further upstream. There are various reasons for this, which perhaps provide a topic for other works. One desert expands over the earth, and another through the waters of the São Francisco sertão.

I hope we can continue our conversation beyond this publication, broadening the contours of the map and expanding ideas about places, reconsidering our places in the world.

Best wishes and thanks for your contributions.

Cristiana, 10/12/2013:

Dear Marina,We can’t in fact talk about the sertão without addressing the drought industry and the motivations behind the permanent state of social and economic neglect in this region. The situation has been supported by various different interests for centuries. It’s a geographical feature, but principally a political one. The first great drought occurred in 1877 and was widely used by the declining sugar-industry elite to attract funding from the federal government. At the same time, it became convenient to construct a sense of an impoverished place, predestined to backwardness, which was used both locally and nationally. The North, which later became the Northeast, began to be identified with the Sertão. Late 19th-century São Paulo newspapers reinforced this meaning, even when the reporter was passing through Recife in the verdant Pernambuco Forest Zone. We shouldn’t forget that this image was being constructed by the intellectuals and artists of the period, mostly the children of the declining elite. Which is why our modernism is nostalgic and opposed to the new. There is a sense of outlining difference according to a cultural basis. Brazilian literature, visual art, music and cinema contributed towards the construction of this place called sertão, and as a consequence the Northeast.

As your project is artistic and not academic, you have complete creative freedom in expressing this place… I think you position yourself towards meanings in a very relevant way. Without seeking to restate clichés and exchanging perceptions with other people. I’d like to thank you for bringing me back to this topic. I found it valuable to revisit it from a sentimental approach!

Best wishes,Cris

Page 60: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

114 115

Page 61: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

116 117

p.1 Diccionario da lingua portuguesa, por Antonio Moraes Silva (1813):

“The interior, the heartland, contrasting with the maritime and the coast; The sertão city, sertão merchants. The river’s source in the sertão of the earth” Fig. Right through the sertão of a thought. The sertão of forest far from the coast; the sertão of calm, i.e., the place where it is more intense; “entering the sertão of calm that existed in those days”.

p.2 Raso da Catarina, Bahia.p.7 Parede do ateliê.p.8 Maceió, Alagoas.p.13 Os sertões – campanha de Canudos, de Euclides da

Cunha (1902):“Let us now give a summary and pick up these

scattered threads.Hegel outlines three geographical categories

that worked with other forces in the creation of the ethnic differentiation of mankind.

Steppes with stunted vegetation, or vast arid planes; the fertile, abundantly irrigated valleys, the coasts and the islands.

The Venezuelan llanos, the savannahs that broaden the Mississippi valley; the boundless pampas and the Atacama desert spread across the Andes – a huge terrace of shifting sands – all belong strictly to the first category.

In spite of their long summers, their formidable sand dunes, and sudden downpours, they are not incompatible with life.

But they do not bind people to the land. (...)They have the centrifugal force of the desert; they

repel; disunite; disperse. (...)” pp.14-15 Mercado da Produção, Maceió.p.24 Os sertões – campanha de Canudos, de Euclides da

Cunha (1902):“(...) Because there they remained utterly divorced

from the rest of Brazil and the world, walled in to the east by the Serra Geral and shut off to the west by the broad sweep of the Campos Gerais, which stretch away to Piauí and which to this day the local inhabitants believe to be boundless.

The milieu at once attracted them and kept them there”.

Lista de imagens | List of imagesFotos | Photos Marina Camargo

p.25 Paulo Afonso, Bahia.p.26 Rio São Francisco, Bahia.p.27 Diccionario da língua brasileira, por Luiz Maria da

Silva Pinto (1832):“The interior regions. Forest far from the coast.

Sertão of calm, i.e., the place where it is more intense.” p.28 Piranhas, Alagoas.p.29 Canudos, Bahia.pp.30-31pp. 40-41 Estradas na Bahia.pp.42-43 Canudos, Bahiap.44 Referência: Mapa do Brasil por Giacomo Gastaldi,

1565. p.45 Referência: Paisagem rural, por Louis Agassiz,

década de 1930.p.46 Paulo Afonso e Euclides da Cunha, Bahia.p.48 Os sertões – campanha de Canudos, de Euclides da

Cunha (1902):“(...) A desert region has taken shape there in flagrant

opposition to the geographical lay of the land, on a promontory where there is nothing to suggest the lack of drainage found in depressions in classic deserts.”

pp.49-52 Batalha, Alagoas.p.53 Jeremoabo, Bahia.pp.54-55 Estrada, Bahia.pp.62-63 pp. 67-75 Estrada para Canudos, Bahia.p.76 Os sertões – campanha de Canudos, de Euclides da

Cunha (1902):“The contrast is most striking. (...) It is as if one had

found one’s self suddenly in the desert.” pp.77-79 Raso da Catarina, Bahia.p.96 Referência: Mapa do Brasil de Sanson Nicolas, 1656.p.97 Referência: Mapa do Brasil, 1719.pp.98-101 Referências na parede do ateliê.pp.102-103 Raso da Catarina, Bahia.pp.104-105 Rio São Francisco, divisa entre Bahia e Alagoas.pp.112-113 Propriá, Sergipe.

Page 62: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

118 119

Catalogação na publicação: Bibliotecária Mara R. B. Machado, CRB 10/1885

C172c Camargo, Marina. Como se faz um deserto / Marina Camargo, com colaboração de Janaína Amado ... [et al.]. -- Porto Alegre : M. Camargo, 2013. 120 p. : il.

ISBN 978-85-916613-0-5

1. Arte. 2. Artes Visuais : Geografia : História. 3. Fotografia. I. Amado, Janaína. II. Título.

CDU 7 : 91

O texto “Região, Sertão, Nação”, de Janaína Amado, foi repu-blicado com autorização da autora (originalmente publicado na revista Estudos Históricos, vol.8, n.5, 1995).

O texto “Histórias do Sertão, areias em Jericoacoara” de Gon-çalo M. Tavares, foi republicado com autorização do autor (ori-ginalmente publicado na UP Magazine, em outubro de 2011).

“Cartografias do (de)sertão: notas sobre uma imagem em formação - séculos XIX e XX” foi originalmente publicado na Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales Scripta Nova, da Universidad de Barcelona, em 2012, sendo republica-do com a autorização dos autores.

Marina Camargo (Maceió, 1980)

É artista visual, trabalha com fotografia, video, entre outras mídias. Estudou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brasil), Universitat de Barcelona (Espanha), School of Visual Artes (Nova York), Akademie der Bildenden Künste - München (Alemanha), tendo recebido diversas bolsas e prêmios. Seu trabalho foi mostrado em exposições individuais e coletivas no Brasil e exterior. Vive em Porto Alegre.

Janaína Amado (Salvador - BA, 1947)

Historiadora e escritora. Foi professora da Universidade Federal de Goiás e da Universidade de Brasília (UnB), além de pesquisadora em diversas instituições norte-americanas. Publicou 21 livros, de história, ficção ou literatura infanto-juvenil. Atualmente vive em Maceió.

Gonçalo M. Tavares (Luanda, 1970).

Escritor português e professor na Universidade de Lisboa. Atualmente estão em curso cerca de 250 traduções de seus livros em trinta línguas, com edição em quarenta e seis países. Recebeu vários prêmios literários em diversos países como Portugal, França, Brasil, Sérvia e Itália. Vive em Lisboa.

Profa. Dra. Angela Lúcia Ferreira (São Gotardo - MG, 1950)

Arquiteta e Urbanista, Doutora em Geografia pela Universitat de Barcelona/Espanha. Professora do Departamento de Arquitetura e dos Programas de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e em Estudos Urbanos e Regionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenadora do Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Prof. Dr George Ferreira Dantas (Natal - RN, 1975)

Arquiteto e Urbanista, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Engenharia de São Carlos/USP. Professor do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Vice-Coordenador do Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo.

MsC. Yuri Simonini (Natal, RN, 1976)

Historiador, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (Bolsista CAPES). Membro do Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo.

Cristiana Tejo (Recife - PE, 1976)

Curadora independente, doutoranda em Sociologia (UFPE) e cofundadora do Espaço Fonte - Centro de Investigação em Arte. Foi diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, curadora de Artes Plásticas da Fundação Joaquim Nabuco e cocuradora do 32o Panorama da Arte Brasileira do MAM - SP. Publicou Paulo Bruscky - Arte em todos os sentidos, Panorama do Pensamento Emergente e Salto no Escuro - curadoria como experimento.

Vitor Cesar[Fortaleza CE, 1978]

Artista visual. Mestre em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará. Vem desenvolvendo propostas que procuram constituir noções de público através de dinâmicas da vida cotidiana por meio de exposições, trabalhos gráficos, debates e outros projetos.

Marina Camargo is a visual artist working with photography and other media. She studied at Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brazil), Universitat de Barcelona (Spain), School of Visual Arts (New York), Akademie der Bildenden Künste - Munich (Germany), and has received several grants and awards. Her work has been shown in solo and group exhibitions in Brazil and abroad. Lives in Porto Alegre.

Janaína Amado is an historian and writer. She taught at the Universidade Federal de Goiás and Universidade de Brasília (UnB), and has also done research in several North American institutions. She has written 21 books of history, fiction or children’s literature. She currently lives in Maceió.

Gonçalo M. Tavares is a Portuguese writer who teaches at the Universidade de Lisboa. 250 translations of his books exist in thirty languages, and have been published in forty-six countries. He has won literary awards in countries such as Portugal, France, Brazil, Serbia and Italy. He lives in Lisbon.

Angela Ferreira is an Architect and Urbanist with a doctorate in Geography from Universitat de Barcelona/Spain. She teaches in the Architecture Department and on the Postgraduate Architecture and Urbanism Programme and Urban and Regional Studies Programme at Universidade Federal do Rio Grande do Norte and is coordinator of the História da Cidade, do Território e do Urbanismo Research Group, She has a Research Productivity grant from do CNPq.

George Dantas is an Architect and Urbanist with a doctorate in Architecture and Urbanism from the Escola de Engenharia de São Carlos/USP. He teaches in the Architecture Department and on the Postgraduate Architecture and Urbanism Programme at Universidade Federal do Rio Grande do Norte and is Vice-coordinator of the História da Cidade, do Território e do Urbanismo Research Group.

Yuri Simonini is an historian with a Master’s Degree in Architecture and Urbanism from Universidade Federal do Rio Grande do Norte, taking a doctorate in the Postgraduate History Programme at Universidade Federal de Minas Gerais (CAPES Grant) and is a member of the História da Cidade, do Território e do Urbanismo Research Group.

Cristiana Tejo is an independent curator taking a doctorate in Sociology (UFPE) and is co-founder of Espaço Fonte - Centro de Investigação em Arte. She has been director of Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Visual Art curator for Fundação Joaquim Nabuco and co-curator of the 32º Panorama da Arte Brasileira do MAM - SP. She has written Paulo Bruscky - Arte em todos os sentidos, Panorama do Pensamento Emergente and Salto no Escuro - curadoria como experimento.

Vitor Cesar is a visual artist with a master’s degree in Visual Poetics from the Universidade de São Paulo School of Communication and Arts and a degree in Architecture and Urbanism from the Universidade Federal do Ceará. He has been developing work that seeks to address notions of the public through the dynamics of everyday life in exhibitions, graphic work, debates and other projects.

Page 63: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus

Como Se fAz um deSeRTo

Organização editorial | Editorial OrganizationMarina Camargo

Textos | TextsJanaína AmadoGeorge A. Ferreira DantasÂngela Lúcia Ferreira Yuri SimoniniGonçalo M. TavaresCristiana Tejo

Projeto gráfico | Graphic designVitor Cesar

Fotografias | PhotographyMarina Camargo

Tradução para o inglês | English translationNick Rands

Revisão | ProofreadingRicardo Romanoff

Agradecimentos | AcknowledgementsÂngela Lúcia FerreiraCristiana Tejoespaço FonteFundação ecartaGeorge A. Ferreira DantasGonçalo M. TavaresJanaína P. AmadoJordi RocaLeo FelipeLiterarische Agentur MertinNik NevesVitor CesarYuri Simonini

www.marinacamargo.com

Todos os direitos reservados aos autores. Não é permitida reprodução total ou parcial sem prévia autorização dos mesmos.

Este projeto foi contemplado pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Nacional de Artes – Funarte no edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais 2013.

Page 64: PIPA Prize...Por todo o mar, por todo o chão, até onde for sertão. Across all the sea, across all the land, until it becomes sertão. 13 17 Era início do ano de 2012. Os mandacarus