pierre joseph proudhon sobre o princípio da associação

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44 10 2006 sobre o princípio da associação 1 pierr pierre-joseph proudhon* A Revolução de 1789 fundou o regime industrial, após ter feito tábula rasa do regime feudal. Voltando-se para as teorias políticas, ela nos lançou ao caos econômico. Em vez de uma ordem natural, concebida segundo a ciência e o trabalho, fomos agraciados com uma ordem artificial, à sombra da qual se desenvolveram interes- ses parasitas, costumes anormais, ambições monstru- osas, preconceitos alheios ao senso comum, considera- dos hoje todos legítimos; invocam uma tradição de ses- senta anos, e não querendo nem abdicar nem se modificar, colocam-se entre si em estado de antagonis- mo, e em relação ao progresso, em estado de reação. * Pierre-Joseph Proudhon, nascido em Besançon, em 1809, publicou, em 1840, “O que é a propriedade?”, inaugurando o que ficou conhecido mais tarde por anarquismo. Foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Traba- lhadores, em 1864. verve, 10: 44-74, 2006

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Pierre joseph proudhon sobre o princípio da associação

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102006

sobre o princípio da associação1

pierr

pierre-joseph proudhon*

A Revolução de 1789 fundou o regime industrial, apóster feito tábula rasa do regime feudal. Voltando-se paraas teorias políticas, ela nos lançou ao caos econômico.

Em vez de uma ordem natural, concebida segundo aciência e o trabalho, fomos agraciados com uma ordemartificial, à sombra da qual se desenvolveram interes-ses parasitas, costumes anormais, ambições monstru-osas, preconceitos alheios ao senso comum, considera-dos hoje todos legítimos; invocam uma tradição de ses-senta anos, e não querendo nem abdicar nem semodificar, colocam-se entre si em estado de antagonis-mo, e em relação ao progresso, em estado de reação.

* Pierre-Joseph Proudhon, nascido em Besançon, em 1809, publicou, em 1840,“O que é a propriedade?”, inaugurando o que ficou conhecido mais tarde poranarquismo. Foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Traba-lhadores, em 1864.

verve, 10: 44-74, 2006

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Sobre o princípio da associação

Como esse estado de coisas, cujo princípio, meio eobjetivo é a guerra, não consegue responder às exigên-cias de uma civilização totalmente industrial, seu re-sultado necessário é a Revolução.

Mas como tudo neste mundo é sujeito à agiotagem,mal a necessidade de uma revolução revela-se às mas-sas, em todos os partidos surgem imediatamente teori-as, escolas e seitas, que tomam a palavra, capturam ofavor do povo por meio de exibições mais ou menos curi-osas e, sob pretexto de melhorar sua sorte, reivindicarseus direitos e restabelecê-los no exercício de sua auto-ridade, trabalham arduamente para sua própria fortuna.

Portanto, antes de buscar a solução do problema co-locado às sociedades modernas, convém apreciar o va-lor das teorias oferecidas ao repasto popular, bagagemobrigatória de todas as revoluções. Em um trabalho des-ta natureza, a utopia não poderia ser deixada de lado,pois, de uma parte, como expressão dos partidos e sei-tas, ela desempenha um papel nesse drama; em segun-do lugar, como o erro é na maioria das vezes apenasuma mutilação ou plágio da verdade, a crítica das vi-sões parciais facilita a compreensão da idéia geral.

Elaboremos, inicialmente, uma regra de crítica comrespeito às teorias revolucionárias; da mesma elaborare-mos um criterium sobre a hipótese mesma da revolução.

Perguntar se há razão suficiente de revolução no sé-culo XIX é, como afirmamos, perguntar qual é a ten-dência da sociedade atual.

E respondemos: pelo fato da Sociedade se encontrarengajada em uma via fatal e progressivamente desas-trosa, todas as estatísticas, todas as pesquisas, todasas avaliações mostram, e todos os partidos, embora sobdiferentes considerações, admitem, que uma revoluçãoé inevitável.

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Foi esse o nosso raciocínio sobre a utilidade e a ne-cessidade da Revolução. Exigindo dele um pouco mais,iremos fazê-lo produzir a regra de que necessitamos.

Já que a tendência da Sociedade é que é má, o pro-blema da Revolução consistirá em mudar essa tendên-cia, em endireitá-la, como se endireita, com a ajuda deum suporte, a postura de uma jovem árvore; em fazê-latomar uma direção diferente, como se redireciona umcarro depois de retirá-lo de uma falsa trilha. É nessacorreção que deve consistir toda inovação revolucioná-ria: não se trata de tocar a própria Sociedade, que deveser considerada como um ser superior dotado de vidaprópria, e que conseqüentemente exclui de nossa partequalquer idéia de reconstituição arbitrária.2

Esse primeiro dado encontra-se integralmente nosinstintos do povo.

O povo, de fato, como revela a prática constante dasrevoluções, não é de forma alguma utopista. A fantasiae o entusiasmo só o tomam a raros e curtos intervalos.Ele não busca, com os antigos filósofos, o Bem Sobera-no, nem com os socialistas modernos a Felicidade; nãotem qualquer fé no Absoluto e rejeita para longe, emsua natureza mortal, qualquer sistema a priori e defini-tivo. Seu sentido profundo diz-lhe que o absoluto, damesma maneira que o statu quo, não pode entrar nasinstituições humanas. O absoluto, para ele, é a própriavida, a diversidade na unidade. Como ele não aceitaqualquer fórmula última, como precisa estar sempre emmovimento, a missão de seus precursores consiste, emconseqüência, unicamente em alargar seu horizonte edesembaraçar seu caminho.

Essa condição fundamental da solução revolucioná-ria não parece ter sido compreendida até agora.

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Os sistemas proliferam: os projetos se multiplicam.Um, organiza o lugar de trabalho; outro, aquilo que lhe émais caro, o governo. Conhecemos as hipóteses societá-rias dos saint-simonianos, de Fourier, Cabet, Louis Blancetc. Bem recentemente, o público foi presenteado comas dádivas dos Srs. Considérant, Rittinghausen, e E.Girardin3 sobre a forma da soberania. Mas ninguém, queeu saiba, afirmou que a questão, tanto para a políticaquanto para a economia, era tendencial, muito mais queconstitucional; que se tratava antes de mais nada de nosorientar, não de nos dogmatizar; em suma, que a solu-ção consistia em retirar a Sociedade da perigosa veredana qual ela se precipita, para fazê-la tomar a grande viado senso comum e do bem-estar, que é sua lei.

Nenhuma das teorias socialistas e governamentaispropostas apreendeu o ponto capital da questão. Longedisso, todas elas são sua negação formal. O espírito deexclusão, de absolutismo, de reação é o caráter comumde seus autores. Com eles, a Sociedade não vive, ela seencontra em uma bancada de dissecação. Sem contarque as idéias desses senhores não remediam nada, nãogarantem nada, não abrem qualquer perspectiva, dei-xando a inteligência mais vazia, a alma mais cansadaque antes.

Em vez, portanto, de examinar os sistemas, o queseria um trabalho interminável, e o que é pior, sem con-clusão possível, iremos, com o auxílio de nosso critério,examinar o ponto de partida deles. Buscaremos, do pon-to de vista da revolução atual, aquilo que os princípioscontêm, o que eles podem produzir; pois é evidente quese os princípios nada contêm, nada podem produzir, eseria inútil passar aos sistemas. Estes serão, de fato,julgados: os mais belos serão os mais absurdos.

Começo pela Associação.

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Se eu quisesse apenas bajular o proletariado, a re-ceita não seria difícil. Em vez de uma crítica do princí-pio societário, eu faria um panegírico das sociedadesoperárias; seu espírito de caridade, sua maravilhosainteligência; eu celebraria os milagres de seu devota-mento, preconizaria seus triunfos. O que eu não pode-ria dizer sobre o assunto, caro a todos os democratas?As sociedades operárias não servem neste momento deberço à revolução social, como as comunidades evan-gélicas serviram outrora de berço para o catolicismo?Elas não são a escola sempre aberta, ao mesmo tempoteórica e prática, onde o operário aprende a ciência daprodução e da distribuição das riquezas; onde ele estu-da, sem livros e sem mestres, apenas segundo sua ex-periência, as leis dessa organização industrial, objetivofinal da revolução de 1789, vislumbradas somente pornossos maiores e mais famosos revolucionários? Quebelo texto eu faria, cheio de manifestações de uma sim-patia fácil, que por ser sempre sincera, suponho, nempor isso deixa de ser mais desinteressada! Com que or-gulho lembraria que também eu quis fundar uma as-sociação, mais que uma associação, a agência central,o órgão circulatório das associações operárias! E comoeu amaldiçoaria esse governo que, num orçamento de1.500 milhões, não encontra um só centavo a disporem favor dos pobres trabalhadores!...

Tenho algo melhor para oferecer às associações. Es-tou convencido que neste momento elas trocariam cemelogios por uma única idéia, e são idéias que lhes ofere-ço. Eu recusaria seus votos, caso seu preço fossem adu-lações. Que aqueles de seus membros que lerem estaspáginas permitam-se apenas lembrar que, tratando-seda associação, é um princípio, e menos que isso, é umahipótese que estou discutindo; não é de maneira algu-ma tal ou tal empresa que, apesar de seu título, seria

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responsável por isso, e cujo sucesso, de fato, não de-pende disso. Falo da Associação, não das associações,quaisquer que elas sejam.

Sempre considerei a Associação em geral, a fraterni-dade, como um engajamento equívoco, que da mesmaforma que o prazer, o amor e muitas outras coisas, soba mais sedutora aparência, contém mais mal do quebem. Talvez isso seja um efeito do temperamento querecebi da natureza: desconfio tanto da fraternidadequanto da volúpia. Vi poucos homens vangloriando-sede ambas. Particularmente, a Associação apresentadacomo instituição universal, princípio, meio e objetivoda Revolução, parece-me esconder uma segunda inten-ção de exploração e despotismo. Vejo aí uma inspiraçãodo regime governamental, restaurado em 1791, refor-çado em 1793, aperfeiçoado em 1804, erigido em dog-ma e sistema de 1814 a 1830, e reproduzido nestes últi-mos tempos, sob o nome de governo direto, com umentusiasmo que mostra muito bem até onde chega en-tre nós a ilusão dos espíritos.

Apliquemos o criterium.

O que a sociedade quer hoje?

Que sua inclinação para o pecado e para a misériatorne-se um movimento em direção ao bem-estar e àvirtude.

O que é necessário para realizar essa mudança?

Restabelecer o equilíbrio nas forças econômicas.

A Associação é o equilíbrio de forças?

Não.

A Associação seria ao menos uma força?

Não.

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O que é então a Associação?

Um dogma.

Tanto a Associação é, aos olhos daqueles que a pro-põem como expediente revolucionário, um dogma, algofixo, completo, absoluto e imutável, que todos os quecaíram na armadilha dessa utopia acabaram por desem-bocar, sem exceção, em um sistema. Irradiando umaidéia sobre as diversas partes do corpo social, eles de-veriam conseguir, e de fato conseguiram, reconstruir asociedade em um plano imaginário, quase como aqueleastrônomo que, por respeito a seus cálculos, refazia osistema do mundo.

Assim, a escola saint-simoniana, ultrapassando odado por seu fundador, produziu um sistema; Fourier,um sistema; Owen, um sistema; Cabet, um sistema;Pierre Leroux, um sistema; Louis Blanc, um sistema;como Babeuf, Morely, Thomas Morus, Campanella, Pla-tão e outros, seus antecessores, cada um partindo deum princípio único, pariram sistemas. E todos essessistemas exclusivos uns aos outros, o são igualmenteem relação ao progresso. Antes pereça a humanidadeque o princípio! É essa a divisa, tanto dos utopistasquantos dos fanáticos de todos os séculos.

O socialismo, interpretado dessa maneira, tornou-se uma religião, que poderia, há uns cinco ou seis sé-culos, ser considerada um progresso em relação ao ca-tolicismo, mas que, no século XIX, é o que existe demenos revolucionário.

Não, a Associação não é um princípio diretor, nãomais do que uma força industrial; a Associação, por elamesma, não possui nenhuma virtude orgânica ou pro-dutora, nada enfim, que como a divisão do trabalho, aconcorrência etc., torne o trabalhador mais expeditivoou mais forte, diminua as despesas de produção, ex-

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traia de elementos menores um valor mais considerá-vel, ou que, a exemplo da hierarquia administrativa,ofereça uma veleidade de harmonia ou de ordem.

Para justificar esta proposição, preciso citar em pri-meiro lugar alguns fatos, a título de exemplo. Em se-guida, irei provar, de uma parte, que a Associação não éuma força industrial; em segundo lugar, e como corolá-rio, que ela não é um princípio de ordem.

Provei em algum lugar, em Confissões de um Revolu-cionário,4 que o comércio, independentemente do servi-ço prestado pelo fato material do transporte, é por si sóum estímulo direto ao consumo, portanto uma causade produção, um princípio de criação dos valores. À pri-meira vista, isto pode parecer paradoxal, mas é demons-trável pela análise econômica: o ato metafísico da troca,tanto quanto o trabalho, mas de modo diferente do tra-balho, é produtor de realidade e de riqueza. De resto,esta proposição nada mais terá de surpreendente, serefletirmos que produção ou criação significam apenasmudança de formas e que, em conseqüência, as forçascriadoras, o próprio trabalho, são imateriais. Assim, é ajusto título que o comerciante, enriquecido por especu-lações reais, despojadas de qualquer agiotagem, gozada fortuna que adquiriu. E a antiguidade pagã, assimcomo a Igreja, difamou injustamente o comércio, sobpretexto de que seus benefícios não eram a remunera-ção de um serviço positivo. Ainda uma vez: a troca, essaoperação puramente moral, que se realiza pelo consen-timento recíproco das partes, abstração feita do frete edas distâncias, não é apenas uma transposição ou subs-tituição, é também uma criação.

Portanto, como o comércio é por si próprio produtorde utilidade, os homens de todas as épocas a ele sededicaram com ardor: nenhum legislador precisa lou-

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var seus méritos ou recomendar sua prática. Vamossupor, o que não é absolutamente absurdo, que o co-mércio não existisse; que com nossos imensos meiosde execução industrial, não tivéssemos qualquer idéiade troca: podemos imaginar então que quem ensinasseaos homens a permuta de seus produtos e o comércioentre eles, prestar-lhes-ia um imenso serviço. A histó-ria da humanidade não menciona nenhum revolucio-nário que pudesse ser comparado a tal personagem. Oshomens divinos que, outrora, inventaram o arado, a vi-nha, o trigo, nada teriam sido comparados a aquele que,nesse momento, inventasse o comércio.

Outro exemplo.

A união das forças que, como mostraremos a seguir,não deve ser confundida com a associação, também é,como o trabalho e a troca, produtora de riquezas. É umapotência econômica cuja importância creio ter sido oprimeiro a ressaltar, em meu primeiro trabalho sobre aPropriedade.5 Cem homens, unindo ou combinando seusesforços, produzem, em certos casos, não cem vezescomo um, mas duzentas vezes, trezentas vezes, mil ve-zes. Foi isso que nomeei força coletiva. Cheguei até aretirar desse fato um argumento, que como tantos ou-tros permaneceu sem respostas, contra certos casos deapropriação: pois não basta então simplesmente pagaro salário a um certo número de operários para adquirirlegitimamente seu produto: seria preciso pagar essesalário em dobro, triplo, décuplo, ou senão prestar acada um, um por vez, um serviço análogo.

A força coletiva, eis então mais um princípio que, emsua nudez metafísica, não deixa de ser menos produtorde riqueza. Assim, vamos encontrá-lo aplicado em to-dos os casos em que o trabalho individual, repetido tan-tas vezes quanto se queira, permaneceria impotente.

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Nenhuma lei, entretanto, prescreve essa aplicação. De-vemos mesmo assinalar que os utopistas societários demaneira alguma imaginaram dele se prevalecer. Pois aforça coletiva, de fato, é um ato impessoal, ao passo quea associação é um engajamento voluntário: entre uma eoutra, mesmo que elas se encontrem, não há identidade.

Vamos supor ainda, como no caso precedente, que asociedade operária seja composta apenas de operáriosisolados, que na ocasião não saibam nem combinar nemagrupar seus meios: o industrial que viesse subitamen-te lhes revelar tal segredo faria sozinho mais pelo pro-gresso das riquezas que o vapor e as máquinas, poispor si só tornaria possível o emprego das máquinas e dovapor. Seria um dos maiores benfeitores da humanida-de, um revolucionário realmente fora de série.

Passo rapidamente por outros fatos de mesma natu-reza, que também poderiam ser citados, como a concor-rência, a divisão do trabalho, a propriedade etc., e queconstituem todos o que chamo de forças econômicas,princípios produtores de realidade. Encontraremos adescrição dessas forças ao longo das obras dos econo-mistas que, com seu desdém absurdo pela metafísica,demonstraram sem perceber, pela teoria das forças in-dustriais, o dogma fundamental da teoria cristã, a cria-ção de nihilo.

Trata-se agora de saber se a Associação é uma des-sas forças essencialmente imateriais que, por sua ação,tornam-se produtivas de utilidade e fonte de bem-es-tar; pois é evidente que apenas sob essa condição o prin-cípio societário — não estou fazendo aqui nenhuma dis-tinção de escolas — pode se produzir como solução doproblema do proletariado.

Em uma palavra: a Associação é uma potência econô-mica? Ela é preconizada já há vinte anos, anunciada en-

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quanto maravilha. Como acontece que ninguém demons-tre sua eficácia? A eficácia da Associação seria, por acaso,mais difícil de ser demonstrada que a do comércio, o cré-dito ou a divisão do trabalho?

Quanto a mim, respondo categoricamente: não, a As-sociação não é absolutamente uma força econômica. AAssociação é, por sua natureza, estéril, e mesmo nociva,pois é um entrave à liberdade do trabalhador. Os autoresresponsáveis pelas utopias fraternitárias, pelas quais tantagente ainda se deixa seduzir, atribuíram sem motivo, semprovas, ao contrato de sociedade, uma virtude e uma efi-cácia que só pertencem à força coletiva, à divisão de tra-balho e à troca. O público não percebeu a confusão: daí oacaso das constituições das sociedades, suas sortes tãodiversas e as incertezas da opinião.

Quando uma sociedade, industrial ou comercial, tempor objetivo, seja colocar em ação uma das grandes forçaseconômicas, seja explorar um fundo cuja natureza exigeque ele permaneça indiviso, um monopólio, uma cliente-la, a sociedade formada por esse objeto pode ter um resul-tado próspero; mas esse resultado, ela não o cria em vir-tude de seu princípio, ela o deve a seus meios. Isso é tãoverdadeiro que, todas as vezes que o mesmo resultadopode ser obtido sem associação, preferimos não nos asso-ciar. A associação é um vínculo ao qual a liberdade temnaturalmente aversão, e ao qual consentimos nos sub-meter caso aí encontremos uma compensação suficiente,de forma que podemos opor a todas as utopias societáriasa seguinte regra prática: é somente a contragosto, e por-que é impossível proceder de outra forma, que o homemse associa.

Estabeleçamos, portanto, uma distinção entre o princí-pio de associação e os meios, infinitamente variáveis, dosquais uma sociedade, por efeito de circunstâncias exteri-

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ores, alheias à sua natureza, dispõe, e que eu coloco emprimeiro lugar entre as forças econômicas. O princípio, é oque nos afastaria dessa empresa, caso não houvesse umoutro motivo; os meios, são o que nos fazem decidir porela, na esperança de obter, por um sacrifício de indepen-dência, uma vantagem em riqueza

Examinemos, de fato, esse princípio: em seguida fala-remos dos meios.

Quem diz associação diz necessariamente solidarieda-de, responsabilidade comum, fusão, e no que diz respeitoa terceiros, direitos e deveres. É bem assim que a enten-dem todas as sociedades fraternitárias, e mesmo as har-monistas, apesar de seu sonho de concorrência emulativa.

Na associação, quem faz o que pode, faz o que deve:para o associado fraco ou preguiçoso, e para esse somen-te, podemos dizer que a associação produz utilidade. Daía igualdade dos salários, lei suprema das as-sociações.

Na associação, todos respondem por todos: tanto omenor quanto o maior; o recém-chegado tem o mesmodireito que o mais antigo. A associação apaga todos oserros, nivela todas as desigualdades: daí a solidariedadetanto da incompetência quanto da incapacidade.

Portanto, a fórmula da associação é a seguinte, elabo-rada por Louis Blanc:

De cada um de acordo com suas capacidades,

A cada um de acordo com suas necessidades.

O Código, em suas diversas definições da sociedadecivil e comercial, está de acordo com o orador de Luxem-burgo: qualquer derrogação a esse princípio é uma voltaao individualismo.

Assim explicada pelos socialistas e juristas, a As-sociação pode se generalizar, tornar-se a lei universal e

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superior, o direito público e civil de toda uma nação, daprópria humanidade?

É essa a questão colocada pelas diversas escolas so-cietárias, que, embora variem sua regulamentação, pro-nunciam-se todas, com unanimidade, pela afirmativa.

E é a isso que respondo: Não, o contrato de associa-ção, sob qualquer forma, nunca pode se tornar a lei uni-versal, pois sendo por sua natureza improdutivo e cons-trangedor, aplicável apenas em condições completamenteespeciais, seus inconvenientes crescendo muito mais doque suas vantagens, é repugnante tanto para a econo-mia do trabalho quanto para a liberdade do trabalhador.De onde concluo que uma mesma sociedade não pode-ria nunca abarcar nem todos os operários de uma mes-ma indústria, nem todas as corporações industriais nem,por uma ainda mais forte razão, uma nação de 36 mi-lhões de homens; portanto, que o princípio de associa-ção não contém a solução demandada.

Acrescento que a associação não somente não é umaforça econômica, mas que ela só é aplicável em condi-ções especiais, dependentes desses meios. É fácil perce-ber hoje, pelos fatos, essa segunda proposição, e por meiodisso determinar o papel da associação no século XIX.

O caráter fundamental da associação, como dissemos,é a solidariedade.

Ora, qual razão pode levar os operários a se tornaremsolidários uns aos outros, a alienarem sua independên-cia, a se colocarem sob a lei absoluta de um contrato, eainda pior, de um gerente?

Essa razão pode ser muito diversa, mas ela é sempreobjetiva, exterior a qualquer sociedade.

Nós nos associamos ora para conservar uma cliente-la, formada inicialmente por um empresário único, mas

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que os herdeiros correriam o risco de perder caso se se-parassem; ora para explorar em comum uma indústria,um brevê, um privilégio etc., que não é possível fazervaler de outra forma, ou que se tornaria menor para cadaum, caso caísse na concorrência; ora pela impossibilida-de de obter de outra maneira o capital necessário; final-mente, para nivelar e repartir as chances de perda pornaufrágio, incêndio, serviços repugnantes e penosos etc.

Se forem ao fundo, verão que qualquer sociedade queprospera, deve-o a uma causa objetiva, que lhe é estran-geira e não se refere de maneira alguma a sua essência:sem isso, repito, a sociedade, por mais cientificamenteorganizada que fosse, não conseguiria viver.

Assim, no primeiro dos casos que acabamos de as-sinalar, a sociedade tem por objetivo explorar uma velhareputação, que é por si só o mais claro de seus benefíci-os; no segundo, ela é fundada sobre um monopólio, istoé, sobre o que há de mais exclusivo e anti-social; no ter-ceiro, a comandita, é uma força econômica que a socie-dade coloca em ação, seja a força coletiva, seja a divisãodo trabalho; no quarto, a sociedade confunde-se com oseguro: é um contrato aleatório, inventado precisamentepara superar a ausência ou a inércia da fraternidade.

Em nenhuma dessas circunstâncias, vemos a socieda-de subsistir em virtude de seu princípio; ela depende deseus meios, de uma causa externa. Ora, é um princípioprimeiro, vivificante, eficaz, que nos foi prometido, e deque necessitamos.

Nós ainda nos associamos pela economia de consumo,para evitar o prejuízo das compras a varejo. É esse o meioque M. Rossi6 aconselha às famílias pequenas, cujos re-cursos não permitem compras por atacado. Mas essa es-pécie de associação, que é a dos compradores de carneem leilões, é uma testemunha contra o princípio. Dêem

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ao produtor, em troca de seus produtos, a facilidade decomprá-los por atacado; ou, o que dá na mesma, organi-zem o comércio varejista em condições que lhe deixemquase que as mesmas vantagens em termos de baratea-mento de preços que as das vendas por atacado, e a asso-ciação torna-se inútil. Pessoas abastadas não precisamentrar nesses grupos: neles encontrariam mais tédio quelucro.

E notem ainda que em toda sociedade assim constitu-ída sobre uma base positiva, a solidariedade do contratonunca se estende para além do estritamente necessário.É verdade que os associados respondem uns pelos outrosdiante de terceiros e diante da justiça, mas apenas no quediz respeito aos negócios da sociedade; fora disso, elespermanecem não solidários. É de acordo com essa regraque várias associações operárias de Paris, que inicialmenteteriam desejado, por excesso de devotamento, supervalo-rizar o uso organizando-se segundo o princípio de igual-dade de salários, foram forçadas a renunciar a isso. Hoje,em toda parte, os associados são remunerados por pro-dução, de modo que ali onde o investimento social con-siste principalmente em trabalho, cada um sendo remu-nerado em salário e benefícios, proporcionalmente a seuproduto, a associação operária não passa de uma contra-partida da comandita; é uma comandita onde o investi-mento, que em vez de ser constituído de dinheiro, é feitoem trabalho, o que é a própria negação da fraternidade.Em suma, em qualquer associação, os associados, bus-cando pela união das forças e dos capitais certas vanta-gens que não poderiam ser desfrutadas de outra forma,irão se arranjar para ter a menor solidariedade e a maiorindependência possíveis. Isso está claro? E não é o casode clamar, como São Tomás: Conclusum est adversus ma-nichaeos?7

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Sim, a associação formada especialmente em funçãodo vínculo familiar e da lei de devotamento e fora de qual-quer consideração econômica exterior, de qualquer inte-resse preponderante, enfim, a associação por ela mesmaé um ato de pura religião, um vínculo sobrenatural, semvalor positivo, um mito.

É o que se torna especialmente espantoso quando sãoexaminadas diversas teorias de associação propostas àaceitação dos adeptos.

Fourier, por exemplo, e depois dele Pierre Leroux, ga-rantem que caso os trabalhadores se agrupem segundocertas afinidades orgânicas e mentais, cujas característi-cas eles fornecem, irão crescer, apenas por isso, em ter-mos de energia e capacidade; que o estado de espírito dotrabalhador, habitualmente tão penoso, irá se tornar ale-gre e feliz; que o produto, tanto individual quanto coleti-vo, será aumentado em muito; que a virtude produtora daassociação consiste nisso, podendo assim, a partir daí,integrar o rol das forças econômicas. O trabalho atraente éa fórmula combinada para designar esse resultado mara-vilhoso da associação. Como vemos, isso é completamen-te diferente do devotamento, no qual se detêm tão piedo-samente as teorias de Louis Blanc e de Cabet.

Ouso dizer que os dois eminentes socialistas, Fouriere Pierre Leroux, tomam o simbólico por uma realidade.Em primeiro lugar, essa força societária, análoga à forçacoletiva e à divisão do trabalho, nunca foi vista em exercí-cio em lugar algum; os próprios inventores, e seus discí-pulos, que tanto falaram disso, ainda estão à espera deviver sua primeira experiência. Por outro lado, o mais su-perficial conhecimento dos princípios da economia políti-ca e da psicologia basta para fazer compreender que nãopode existir nada de comum entre uma excitação da alma,como a alegria do companheirismo, o canto de manobra

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dos remadores etc., e uma força industrial. Freqüente-mente, essas manifestações seriam mesmo o contrário dagravidade, do clima taciturno do trabalho. O trabalho é,juntamente com o amor, a função mais secreta, mais sa-grada do homem: ele se fortalece com a solidão, decom-põe-se com a prostituição.

Mas, abstraindo-se todas essas considerações psíqui-cas e a ausência de qualquer dado experimental, quemnão vê que aquilo que esses dois autores acreditaram des-cobrir após tantas e profundas pesquisas, um na Série degrupos contrastados, o outro na Tríade, é apenas a ex-pressão mítica e apocalíptica do que sempre existiu naprática industrial: a divisão do trabalho, a força coletiva, aconcorrência, a troca, o crédito, a própria propriedade e aliberdade? Quem não vê que é possível encontrar utopis-tas antigos e modernos, como teólogos, de todas as religi-ões? Enquanto estes últimos, com seus mistérios, nadafazem além de narrar as leis da filosofia e do progressohumanitário, aqueles, com suas teses filantrópicas, so-nham sem saber com as grandes leis da economia social.Ora, essas leis, essas potências da produção que devemsalvar o homem da pobreza e do vício, eu acabei de citá-las, em sua maioria. Eis as verdadeiras forças econômi-cas, princípios imateriais de toda riqueza, que, sem acor-rentar o homem ao homem, deixam ao produtor a maiscompleta liberdade, tornam o trabalho mais leve, maisanimado, dobram seu produto, criam entre os homensuma solidariedade que nada tem de pessoal, unindo-osatravés de vínculos mais fortes do que todas a combina-ções simpáticas e todos os contratos. Essa graça eficaz daqual o organizador da série teria tido uma visão; a influên-cia desse dom do divino amor que o discípulo de Saint-Simon8 promete a seus ternários, pode ser observada, pormais corrompida que seja, por mais anárquica que tenhanos sido legada, pelos revolucionários de 1789 a 1793, e

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podemos seguir sua oscilação na Bolsa e em nossos mer-cados. Portanto, que os utopistas despertem de seus êx-tases sentimentais, que eles se dignem observar o queacontece a sua volta; que eles leiam, escutem, experimen-tem, e verão que aquilo que atribuem com tanto entusias-mo, um à série, o segundo à trindade, outros ainda aodevotamento, é apenas o produto das forças econômicasanalisadas por Adam Smith e seus sucessores.

Como foi principalmente no interesse da classe traba-lhadora que entrei nesta discussão, não quero encerrá-lasem dizer algo ainda sobre as associações operárias, so-bre os resultados que elas obtiveram, sobre o papel quedevem desempenhar na Revolução.

Essas sociedades foram formadas, na grande maioria,por homens imbuídos das teorias fraternitárias, e con-vencidos, embora não percebessem, da eficácia econômi-ca do princípio. Elas foram geralmente acolhidas com sim-patia, gozaram do favor republicano que valeu a todas,desde o início, um começo de clientela, e tampouco lhesfaltou publicidade nos jornais: portanto, todos elementosde sucesso, aos quais não se deu grande atenção, masque são completamente estranhos ao princípio.

Mas agora, em que ponto encontra-se sua experiên-cia?

Entre essas sociedades, um bom número se sustentae ainda promete se desenvolver: sabemos o porquê.

Umas são compostas dos operários mais hábeis na pro-fissão: é o monopólio do talento que as impulsiona.

Outras, atraíram e conservam a clientela pelo bommercado: é a concorrência que as faz viver.

Não falo daquelas que obtiveram encomendas e crédi-to do Estado: encorajamento, portanto, gratuito.

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Geralmente, enfim, em todas essas associações, osoperários, para descartar os intermediários, comis-sionários, empresários, capitalistas etc., que no antigo es-tado de coisas se interpunham entre o produtor e o con-sumidor, tiveram que trabalhar um pouco mais, conten-tar-se com um pouco menos de salário. Nada aqui quenão seja completamente ordinário na economia política eque, para ser obtido, como mostrei acima, não tem qual-quer necessidade da associação.

Certamente, os membros dessas sociedades, uns emrelação aos outros, e no que diz respeito ao público, estãorepletos dos mais fraternos sentimentos. Mas perguntem-lhes se essa fraternidade, longe de ser a causa de seusucesso, não tem sua fonte, ao contrário, na justiça seve-ra que reina em suas relações mútuas: que eles digam noque se transformariam se não encontrassem a garantiade sua empreitada em um lugar diferente da caridade queos anima, e que não é outra coisa senão o cimento doedifício do qual o trabalho e as forças que o multiplicamsão as pedras.

Quanto às sociedades que não encontram para se sus-tentar nada além da virtude problemática da as-sociação, e que a indústria pode exercer privativamente,sem reunião de operários, elas têm uma dificuldade infi-nita para funcionar, e é apenas por esforços devotados,com sacrifícios contínuos, uma resignação ilimitada, queelas conjuram o vazio de sua constituição.

Como exemplo de um rápido sucesso, são citadas asassociações de açougueiros,9 cuja moda hoje se estendepor toda parte. Esse exemplo, mais do que qualquer ou-tro, mostra até onde vai a desatenção do público e a incor-reção das idéias.

Os açougues por assim dizer societários, só têm desocietário suas placas: são concorrências suscitadas com

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despesas comuns por cidadãos de todo estado, contra omonopólio dos açougueiros. É a aplicação tal e qual deum novo princípio, para não dizer de uma nova força eco-nômica, a reciprocidade,10 que consiste no fato de que oscambistas garantam uns aos outros e irrevogavelmente,seus produtos, a preço de custo.

Ora, esse princípio, no qual reside toda a importânciados açougues ditos societários, é tão pouco a essência daassociação que, em muitos desses açougues, o serviço éfeito pelos operários assalariados, sob a direção de umdiretor que representa os comanditários. Para esse ofício,qualquer açougueiro, de fora da coalizão, seria mais quesuficiente: não haveria necessidade de arcar com uma novadespesa de pessoal, e nem de novos materiais.

O princípio de reciprocidade, sobre o qual foram fun-dados os açougues e mercearias societárias, tende atual-mente a substituir, como elemento orgânico, o da frater-nidade nas associações operárias. Eis como a República11

de 20 de abril de 1851 descreve uma nova sociedade for-mada pelos operários talhadores, a reciprocidade:

“Eis que operários atacam na justiça esta sentença daantiga economia: sem capital, nenhum trabalho, a qual,caso fosse fundada em princípio, condenaria a uma ser-vidão e uma miséria sem esperança e sem fim a incontá-vel classe de trabalhadores que, vivendo para sobreviver acada dia, encontra-se desprovida de qualquer capital. Nãopodendo admitir essa desesperadora conclusão da ciên-cia oficial, e questionando as leis racionais da produçãodas riquezas e do consumo, esses operários acreditam queo capital, que consideramos um elemento gerador de tra-balho, só possuiria uma utilidade convencional; que, comoa inteligência e os braços humanos são os únicos agentesda produção, seria então possível organizar a produção,garantir a circulação dos produtos e seu consumo normal

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apenas pela comunicação direta dos produtores e consumi-dores, convocados, após a supressão de um intermediá-rio oneroso e do estabelecimento de novas relações, a re-colher os benefícios atribuídos atualmente ao capital, essesoberano dominador do trabalho, da vida e das neces-sidades de todos.

Segundo essa teoria, a emancipação dos trabalhado-res é portanto possível pela reunião, em feixe, das forçasindividuais e das necessidades; em outros termos, pelaassociação dos produtores e dos consumidores que, dei-xando de ter interesses contrários, escapam irrevogavel-mente da dominação do capital.

De fato, como as necessidades do consumo são per-manentes, como produtores e consumidores entram emrelação direta, associam-se, dão-se crédito, fica claro quea alta ou a baixa, o aumento artificial ou a depreciaçãoarbitrária que a especulação faz o trabalho e a produçãosofrerem, não têm mais razão de ser.

É esse o ideal da reciprocidade, que seus fundadores járealizaram na medida de sua ação, pela criação de bônusditos de consumo, sempre passíveis de troca por produtosda associação. Assim comanditada por aqueles que a fa-zem trabalhar, a associação entrega seus produtos a pre-ço de custo, não realizando nenhuma retirada para a re-muneração de seu trabalho, além do preço médio da mão-de-obra. É uma solução racional dada pelos fundadores atodas as grandes questões de economia levantadas nes-tes últimos tempos, especialmente às seguintes:

Abolição da exploração sob todas as suas formas;Aniquilação gradual e pacífica da ação do capital;Criação do crédito gratuito;Garantia e retribuição eqüitativa do trabalho;Emancipação do proletariado.”

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A associação dos talhadores foi a primeira a ser funda-da oficialmente e, por assim dizer, cientificamente, sobreuma força econômica que até hoje permanecera obscurae não aplicada na rotina comercial. Ora, é evidente que oemprego dessa força não constitui de forma alguma umcontrato de sociedade, mas no máximo um contrato detroca, no qual a relação sinalagmática ou de reciprocida-de entre o comerciante e a clientela, se não é formalmenteexpressa, é ao menos subentendida. E quando o autor doartigo, antigo comunista,12 emprega a palavra associaçãopara designar as novas relações onde se pretende desen-volver a reciprocidade entre os produtores os consumido-res, é evidente que está cedendo a antigas preocupaçõesde espírito, ou então se curvando ao hábito.

Assim, sem deixar de atribuir aos fundadores da reci-procidade as honras desse grande princípio, o colabora-dor de La Republique deveria ter lembrado a eles, para seugoverno, uma noção elementar em sua própria teoria: deque a obrigação, essencialmente comutativa e bilateral daparte do produtor com relação ao consumidor, de entre-gar seus produtos a preço de custo, e que constitui anova potência econômica, não seria mais suficientepara motivar uma associação de trabalhadores se alei de reciprocidade fosse universalmente adotada ecolocada em prática; que uma sociedade formada poressa base única tem neces-sidade, para se sustentar,de que a maioria, desconhecendo-a, deixe-lhe seubenefício; e que no dia em que, pelo consentimentode todos os cidadãos, a reciprocidade se torne umalei de economia social, quando o primeiro recém-che-gado não associado puder oferecer ao público as mes-mas vantagens que a sociedade, e com mais vanta-gem ainda, pois ele não teria despesas gerais, a soci-edade perderá seu sentido.

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Uma outra associação do mesmo tipo cujo meca-nismo é mais próximo da fórmula elementar da reci-procidade é la Menagère [a dona de casa],13 cuja des-crição é feita pelo mesmo jornal, La Republique, noseu número de 8 de maio. Ela tem como objetivo for-necer aos consumidores, a preços reduzidos, com qua-lidade superior, e sem nenhuma fraude, todos os ob-jetos de consumo. Para participar dela, basta investira soma de 5 francos, a título de capital social, mais50 centavos para despesas gerais de administração.Notem que os associados, não aceitam nenhum ônus,não assumem nenhum compromisso, não têm qualquerobrigação além de pagar pelos objetos que lhes sãofornecidos segundo sua demanda, e a domicílio. Oagente geral é o único responsável.

É sempre o mesmo princípio. Nos açougues societá-rios, a garantia de bom preço, qualidade e preço, é obti-da por uma comandita cujo resultado é fundar um açou-gue especial, dirigido ad hoc, por um agente designadoque cumpre a função de patrão e empresário. Em laMenagère, é um empresário geral, representando todosos tipos de comércio possíveis, que se encarrega, medi-ante 5 francos de subscrição e 50 centavos de despesa,de fornecer todos os objetos de consumo. Entre os ta-lhadores, há uma engrenagem a mais, de grande alcan-ce, mas que, no estado atual das coisas, não traz gran-de vantagem adicional, que é o bônus de consumo. Va-mos supor que todos os comerciantes, fabricantes eindustriais da capital assumam, em relação ao público,e uns com os outros, um compromisso semelhante àque-le que os açougues societários, o fundador de la Mena-gère, e os talhadores da Reciprocidade assumem comrespeito a seus clientes. Nesse caso, a associação seriaentão universal. Mas, é claro, aqui não teríamos maisexatamente uma associação: pois, em suma, os costu-

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mes comerciais teriam mudado; a reciprocidade teriase tornado uma lei, e todo mundo seria livre, nem maisnem menos que antes.

Assim, embora eu esteja longe de pretender que aassociação desapareça para sempre do sistema das tran-sações humanas, pois pelo contrário, admito circuns-tâncias onde ela é indispensável, posso constatar, semmedo de ser desmentido, que o princípio societário sedestrói a cada dia por sua própria prática. E emboramal faça três anos que os operários tendiam todos àassociação fraterna, hoje eles convergem para um sis-tema de garantias que, uma vez realizadas, farão comque, em um grande número de casos a associação setorne supérflua; ao mesmo tempo, sublinhemos esteponto, em que muitos outros irão exigi-la. No fundo, asassociações existentes não têm outro objetivo, formandouma massa inelutável de produtores e de consumidoresem relação direta, do que levar a esse resultado.

Que, se a associação não é uma força produtiva, se, aocontrário, ela constitui para o trabalho uma condição one-rosa da qual ele tende naturalmente a se liberar, é claroque a associação não pode tampouco ser considerada umalei orgânica; que, longe de garantir o equilíbrio, ela tende-ria antes a destruir a harmonia, impondo a todos, em vezda justiça, em vez da responsabilidade individual, a soli-dariedade. Portanto, não é mais do ponto de vista do di-reito e como elemento científico que ela pode se susten-tar: é como sentimento, como preceito místico e institui-ção divina.

Apesar disso tudo, aqueles que promovem a associa-ção, mesmo sentindo quanto seu princípio é estéril, anti-pático à liberdade, e quão pouco, em conseqüência, elepode ser aceito como fórmula soberana da Revolução, fa-zem os mais inacreditáveis esforços para manter vivo o

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fogo fátuo da fraternidade. Louis Blanc chegou até a in-verter a divisa republicana, como se quisesse revolucio-nar a revolução. Ele não diz mais, como todo mundo, ecomo a tradição, Liberdade, Igualdade, Fraternidade, elediz Igualdade, Fraternidade, Liberdade! É pela Igualdadeque começamos hoje, é a igualdade que devemos tomarcomo primeiro termo, é sobre ela que devemos construir oedifício novo da Revolução. Quanto à Liberdade, ela serádeduzida da Fraternidade. Louis Blanc promete-a após aassociação, como os padres prometem o paraíso após amorte.

Fico imaginando como seria um socialismo que brincaassim com as transposições de palavras.

A Igualdade. Sempre acreditei que ela era o fruto natu-ral da Liberdade que, por sua vez, ao menos não tem ne-cessidade nem de teoria, nem de coerção. Como disse, euacreditava que cabia à organização das forças econômi-cas, à divisão do trabalho, à concorrência, ao crédito, àreciprocidade, sobretudo à educação, a tarefa de fazernascer a Igualdade. Louis Blanc mudou tudo isso. NovoSganarelle, ele coloca a Igualdade à esquerda, a Liberda-de à direita, a Fraternidade entre as duas, como JesusCristo entre o bom e o mau ladrão. Deixamos de ser livres,como a natureza nos fez, para tornarmo-nos de antemão,por um golpe de Estado, o que apenas o trabalho podenos fazer, iguais; após o que nos tornaremos novamentemais ou menos livres, na medida das conveniências doGoverno.

De cada um segundo sua capacidade;

A cada um segundo suas necessidades;

Assim o quer a igualdade, segundo Louis Blanc.

Lamentemos aqueles cuja capacidade revolucionáriase reduz, peço misericórdia pelo trocadilho, a esta casuís-

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tica! mas que isso não nos impeça de refutá-los, pois oreino dos inocentes a eles pertence.

Lembremos ainda uma vez o princípio. A associação é,como bem a define Louis Blanc, um contrato que, em todoou em parte (Sociedades universais e sociedades particula-res, Código civil, art. 1835), nivela os contratantes, subor-dina sua liberdade ao dever social, despersonaliza-os, tra-ta-os mais ou menos como o Sr. Humann tratava os con-tribuintes quando colocava o seguinte axioma: “Fazer oimposto devolver tudo o que ele pode dar!” Quanto o ho-mem pode produzir? Quanto custa alimentá-lo? É essa aquestão suprema que resulta da fórmula, como eu pode-ria dizer? Declinatória — De cada um... A cada um... —pela qual Louis Blanc resume os direitos e os deveres doassociado.

Então, quem fará a avaliação da capacidade? Quemserá o juiz da necessidade?

Os senhores me dizem que minha capacidade é 100;eu sustento que ela é de apenas 90. Os senhores acres-centam que minha necessidade é 90; eu afirmo que é 100.Temos uma diferença de 20, tanto sobre a necessidadequanto sobre a capacidade. É esse, em outros termos, oconhecido debate da oferta e da procura. Quem fará o jul-gamento entre mim e a sociedade?

Se, malgrado meu protesto, a sociedade quiser fazerprevalecer seu sentimento, eu irei abandoná-la, e fim deconversa. A sociedade acaba, por falta de associados.

Se, recorrendo à força, ela pretender me coagir: casoela me imponha o sacrifício e o devotamento, eu direi:Hipócrita! Você prometeu me livrar da exploração do capi-tal e do poder, e eis que em nome da igualdade e da frater-nidade, agora é sua vez de me explorar. Antigamente, parame roubar, minhas capacidades também eram superva-lorizadas, minhas necessidades atenuadas. Diziam-me que

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o produto me custava tão pouco! Que eu precisava de tãopouco para viver! Qual diferença existe então entre a fra-ternidade e o regime assalariado?

De duas, uma. Ou a associação será forçada, e nessecaso temos a escravidão; ou ela será livre, e daí pergunta-mos: qual será a garantia da sociedade que o associadotrabalhe segundo sua capacidade, qual garantia terá oassociado de que a associação o remunere de acordo comsuas necessidades? Não é evidente que tal debate só podeter uma única solução? É que o produto e a necessidadesejam considerados como expressões adequadas, o quenos leva pura e simplesmente ao regime da liberdade.

Que isso nos leve a refletir. A associação não é de for-ma alguma uma força econômica: é exclusivamente umvínculo de consciência, obrigatório no foro íntimo, e denenhum efeito, ou melhor, de efeito nocivo quanto ao tra-balho e à riqueza. E não é me apoiando em uma argumen-tação mais ou menos hábil que posso prová-lo: isso é oresultado da prática industrial, desde a origem das socie-dades. A posteridade não conseguirá entender como, emum século inovador, escritores considerados os primeirosno que se refere à compreensão das coisas sociais, te-nham feito tanto barulho em torno de um princípio total-mente subjetivo, que foi explorado até suas mais íntimasprofundezas por todas as gerações do globo.

Em uma população de 36 milhões de homens, hápelo menos 24 milhões ocupados com trabalhos agríco-las. Estes, vocês nunca conseguirão associar.14 Qual avantagem? O trabalho do campo não tem necessidadeda coreografia societária, e a alma do camponês a repe-le. Lembremos que o camponês aplaudiu a repressãode junho de 1848, por ter visto nessa repressão um atode liberdade contra o comunismo.

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Dentre os 12 milhões de cidadãos restantes, pelo me-nos 6, fabricantes, artesãos, empregados, funcionários,para quem a associação não tem objetivo, vantagem ouatrativo, irão sempre preferir permanecer livres.

São portanto as outras 6 milhões de almas, compondoem parte a classe assalariada, que apresentam hoje con-dições de serem engajadas nas sociedades operárias, semoutro exame, e confiando em suas promessas. A esses 6milhões de pessoas, pais, mães, crianças, velhos, ousodizer de antemão que elas não vão demorar muito para selibertar de seu jugo voluntário, se a revolução não lhesfornecesse motivos mais sérios, mais reais de se associar,do que aqueles que elas imaginam perceber no princípio,cuja nulidade demonstrei.

Sim, a associação tem seu emprego na economia dospovos; sim, as companhias operárias, protesto contra oassalariado, afirmação da reciprocidade, a esse duplo títu-lo tão cheias de esperança, têm um papel considerável adesempenhar em nosso futuro próximo. Este papel con-sistirá principalmente na gestão dos grandes instrumen-tos do trabalho e na15 execução de certos labores que,exigindo uma grande divisão das funções, uma grandeforça de coletividade, são ao mesmo tempo uma grandesementeira do proletariado se aí não se aplicar a associa-ção, ou dizendo de uma melhor forma, a participação. Entreoutros, temos nesse caso as estradas de ferro.

É por isso que as associações operárias, hoje quaseque totalmente transformadas quanto aos princípios queas dirigem, não devem de forma alguma ser julgadas se-gundo os resultados mais ou menos satisfatórios que elasobtêm, mas unicamente segundo sua tendência secreta,que é afirmar e propiciar a república social. Que os operá-rios saibam disso ou o ignorem, não é nos pequenos inte-resses da sociedade que reside a importância de sua obra;

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é na negação do regime capitalista, regime agiota e gover-namental, que a primeira revolução deixou em seu rastro.Mais tarde, vencidas a mentira política, a anarquia mer-cantil e o feudalismo financeiro, as companhias de traba-lhadores, abandonando o artigo de Paris, e as panfleta-gens deverão lançar-se sobre os grandes departamentosda indústria, que são seu apanágio natural.

Mas como dizia um grande revolucionário, São Paulo,é preciso que o erro tenha seu tempo: O portet haeresesesse.16 Receio que as utopias societárias não acabem tãocedo. A associação, para uma certa classe de predicantese de desocupados, será ainda durante muito tempo umpretexto para agitação e um instrumento de charlatanis-mo. Com as ambições que pode despertar, a inveja disfar-çada sob seu suposto devotamento, os instintos de domi-nação que provoca, ela permanecerá ainda por muito tem-po uma das incômodas preocupações que retardam, entreo povo, a compreensão da Revolução. As próprias socie-dades operárias, justamente orgulhosas de suas primei-ras façanhas, arrastadas pela concorrência que fazem aseus antigos patrões, embriagadas com os testemunhosque nelas já saúdam uma nova potência, ardorosas comoo são todas as companhias no estabelecimento de suapreponderância, ávidas de poder, terão dificuldade pararenunciar a quaisquer exageros e para permanecer noslimites de seu papel. Pretensões exorbitantes, coalizõesgigantescas, irracionais, flutuações desastrosas, poderãose produzir, e que poderiam ter sido evitadas por um co-nhecimento superior das leis da economia social.

Nesse sentido, uma grave responsabilidade irá pesarna história sobre Louis Blanc. Foi ele que, no Luxembur-go, com seu logogrifo Igualdade-Fraternidade-Liberdade,com seu abraxas De cada um... A cada um... começou comessa miserável oposição entre a ideologia e a idéias, le-vantando o senso comum contra o socialismo. Ele pensa-

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va ser a abelha da revolução, mas foi apenas sua cigarra.Que ele finalmente possa, depois de ter envenenado osoperários com suas fórmulas absurdas, trazer para a cau-sa do proletariado, caída em um dia de erros em suasfracas mãos, o óbolo de sua abstenção e de seu silêncio!

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas:1 Capítulo “Sobre o princípio da associação”, extraído de Idée generale de la revolutionau XIXéme siècle (1851), Paris, Edition du groupe Fresnes-Antony de la FederationAnarchiste, 1979, pp. 59-80.2 Cf. “Toast à la Revolution”, in Le peuple, 17 de outubro de 1848.3 Cf. Considérant. La Solution ou le gouvernement direct, 1850; Rittinghausen. La législati-on directe, 1850; Girardin. L‘abolition de l´autorité par la simplification du gouvernement.4 Cf. Capítulo XV, “Banque du Peuple”. Cf. também Contradictions économiques, capi-tulo IX, parte I.5 Cf. Qu´est-ce que la proprieté?, capítulo III, § V. Cf. também nossa introdução.6 Cf. Contradictions économiques, capítulo XII, capítulo X, “La communauté est la reli-gion de la misère”.7 “Concluiu-se contra os maniqueus” (NE).8 Ou seja, Pierre Leroux.9 Cf. Boucherie en commandite à Besançon. Ver a carta a Darrimon, de 10 deabril de 1850.10 A reciprocidade não é a mesma coisa que a troca; no entanto, ela tende a setornar cada vez mais a lei da troca e a se confundir com ela. A análise científicadessa lei foi feita pela primeira vez em uma brochura, Organisation du crédit et de lacirculation, e sua primeira aplicação foi tentada pelo Banco do povo.11 La Republique, jornal democrata socialista, contava com Pierre Leroux entreseus colaboradores.12 Artigo assinado por Savary, empregado no gás.13 Associação fundada pelo cidadão “Jean” para a “compra em atacado e o consu-mo, pela venda a preço de custo a todos os associados, de certos objetos de

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consumo de primeira necessidade”. Em 1º de abril de 1851, o número de ade-sões era de 400.14 No sentido estrito que Proudhon acabou da dar ao termo Associação; mas elerecomendará a prática da mutualidade — ou reciprocidade — aos camponeses(Nota da edição francesa).15 A edição francesa diz “da”, mas evidentemente é “na” que deve ser lido (NT).16 “É preciso que haja heresias [i.e., opiniões, sistemas, doutrinas...]” (NE).

RESUMO

Crítica às organizações que procuram direcionar a revolução.Problematização radical das associações operárias evitandoadulações. Demolição do sentido despótico da Associação noséculo XIX e do blanquismo.

Palavras-chave: associação, revolução, blanquismo.

ABSTRACT

Criticism to organizations aiming to direct the revolution. Radi-cal discussion of worker’s associations avoiding flatterings.Demolition of the despotic understanding of the Association inthe 19th Century and of blanquism.

Keywords: association, revolution, blanquism.

Indicado para publicação em 08/09/2005.