os dois lados da maconha

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Os dois lados da MACONHA A erva mais polêmica do mundo tem tanto efeitos negativos quanto terapêuticos, capazes de amenizar e até curar doenças texto Helena Ometto / colaboradora ilustrações Puro Malte 32 POPULAR SCIENCE BRASIL

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Reportagem de capa produzida para a revista Popular Science Brasil (edição 6), da Editora Alto Astral

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Page 1: Os dois lados da maconha

Os dois lados da MACONHA

A erva mais polêmica do mundo tem tanto efeitos negativos quanto terapêuticos, capazes

de amenizar e até curar doenças

textoHelena Ometto /

colaboradora i lustrações Puro Malte

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Os dois lados da MACONHA

semelhantes aos do tabaco. O dano mais rápido

e aparente é o do sistema respiratório, com a

inflamação das vias e o aparecimento de doen-

ças como bronquite crônica, enfisema e asma,

além de problemas gastrointestinais, câncer e

problemas odontológicos.

O contato por ingestão é mais raro, mas

ideal para fins terapêuticos como, por

exemplo, o controle de náuseas e vômitos

causados pela quimioterapia do câncer e o

aumento do apetite em pacientes com AIDS.

O uso de cápsulas por via oral ou adminis-

tração bucal em forma de spray permite a

ingestão de componentes isolados e contro-

lados da planta.

MocinhaFalar dos efeitos positivos da maconha

ainda é uma polêmica, até mesmo entre os

pesquisadores. Parte dos acadêmicos acredita

na eficiência dos poderes medicinais da planta

acima de seus efeitos negativos, se ministrada

via oral e da maneira indicada. Outra parte

está desenvolvendo estudos para comprovar

essa eficácia antes de caracterizar a maconha

como um medicamento.

Fabrício Moreira, especialista em farma-

cologia da Universidade Federal de Minas

da planta. Atualmente, os efeitos de cerca

de 80 canabinoides já são conhecidos, e

muitos deles mostram um potencial tera-

pêutico”, revela Crippa.

O principal componente da maconha, o

THC, já teve seus efeitos terapêuticos com-

provados por ensaios clínicos controlados.

Pesquisas focadas em aperfeiçoar o trata-

mento do câncer e da AIDS com a utilização

do THC foram realizadas na Universidade

de Harvard, em 1991, e obtiveram resulta-

dos positivos. O efeito orexígeno pode agir

na caquexia (enfraquecimento extremo)

causada pela AIDS e na falta de apetite oca-

sionada pela quimioterapia do câncer. Os

efeitos antieméticos também controlam as

náuseas e os vômitos quimioterápicos, tor-

nando o processo menos agressivo.

O THC alivia a pressão ocular nos quadros

de glaucoma, diminui os espasmos mus-

culares, as dores neuropáticas (nervos) e

miopáticas (músculos) nos quadros de escle-

rose múltipla e também das dores crônicas,

auxilia no combate às convulsões e alivia as

cólicas menstruais.

O THC induz alguns efeitos terapêuticos

da maconha, mas outro componente tam-

bém pode ser usado para fins medicinais:

cérebro produz uma substância semelhante

ao THC, mas em quantidades bem menores.

É a anandamida, um canabinoide endógeno.

Descoberta em 1992, é conhecida como “subs-

tância da felicidade”. A anandamida pode ter

efeito analgésico, calmante e antidepressivo,

além de agir na percepção do tempo e sensa-

ção de fome, assim como o THC.

Porta de entradaO contato da maconha com o organismo pode

acontecer de duas maneiras: fumo ou ingestão.

Ela é mais utilizada pelo fumo, como cigarro,

com substâncias, efeitos e exposição à fumaça

Gerais (UFMG), afirma que “o mais apro-

priado seria dizer que ela induz alguns

efeitos que podem ser explorados para fins

terapêuticos. Mas não se pode afirmar que,

do ponto de vista da saúde, haja algo posi-

tivo em fumar maconha”.

José Crippa aponta explicações para

esses efeitos. “A maconha possui mais de

400 componentes, sendo vários deles cana-

binoides. Na primeira metade dos anos

1960, foram determinadas as estruturas

químicas dos principais canabinoides,

incluindo o ∆9-tetrahidrocanabinol (∆9-

THC), responsável pelos efeitos psicoativos

“O Brasil ainda nãO cOnhece a macOnha. QuandO O sujeitO fuma um cigarrO de macOnha, ele nãO saBe a dOsagem nem a prOpOrçãO das suBstâncias presentes”, ressalta José Crippa.

“OBrasil ainda não conhece

a maconha. Quando o sujeito

fuma um cigarro de maconha,

não sabe a dosagem nem a pro-

porção das substâncias presentes”. É o que

diz o médico especialista em neuroimagem

José Crippa, da Universidade de São Paulo,

em Ribeirão Preto.

É claro que a população sabe dos efeitos

negativos da maconha no cérebro e em todo

o corpo. Mas também é necessário extermi-

nar o preconceito que existe em torno da

droga e conhecer suas propriedades terapêu-

ticas. Alíás, algumas delas já são utilizadas

há vários séculos.

A maconha é uma planta própria da

região entre o deserto da Ásia e a floresta

tropical. Cientificamente conhecida por

Cannabis sativa, pode atingir de quatro a

cinco metros de altura.

O Homo sapiens levou a Cannabis para

além da Ásia Central quando descobriu que

ela podia ser cultivada e outras característi-

cas específicas: as sementes da Cannabis são

bastante nutritivas e alimentaram homens e

animais por milênios; o caule é rico em fibras

e foi utilizado na produção de papel e tecido,

além de reservar poderosos efeitos farmaco-

lógicos e psicoativos.

As plantas Cannabis existem nos gêneros

macho e fêmea. O pólen da flor do macho

fecunda a fêmea, que pode gerar semen-

tes e morrer ou economizar essa energia

e excretar uma resina pegajosa composta

por diversas substâncias. Essa resina age

como um filtro solar e, considerando-se

que a planta é originária dos desertos,

ela se recobre para evitar os danos do sol.

Entre as substâncias que compõem a resina

está o THC, que fica concentrado na flor da

fêmea. A maconha é exatamente essa flor.

Além de proteger contra os raios solares,

o THC tem outra característica exclusiva:

fixar-se na parede dos neurônios de animais

ou humanos quando inalada ou ingerida. O

cérebro humano tem receptores específicos

de canabinoides, substâncias como o THC

e, com essa interação, alterações químicas

acontecem dentro da célula.

Mas por que o nosso cérebro tem uma

estrutura própria para se ligar a uma subs-

tância da maconha? Na verdade, o próprio

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Page 3: Os dois lados da maconha

o canabidiol (CBD). Na USP de Ribeirão

Preto, são desenvolvidos estudos especiali-

zados nessa substância. O professor Antonio

Zuardi, especialista em psicofarmacologia da

Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto,

divulgou a descoberta dos efeitos ansiolítico,

antipsicótico, anti-inflamatório, anti-isquê-

mico e neuroprotetor da substância. Para

José Crippa, o uso isolado do CBD não apre-

senta os efeitos negativos típicos do uso da

maconha, ao contrário do THC.

O canabidiol também age no sistema

nervoso aumentando a quantidade de cana-

binoides produzidos pelo próprio organismo,

como a anandamida. Diante disso, Fabrício

Moreira, da UFMG, defende o aumento dos

níveis de anandamida no cérebro para poten-

cializar os efeitos benéficos do canabidiol.

Isso evitaria a administração do THC e funcio-

naria como medicamento. “Desde a década de

1980, sabemos da interferência da maconha

em regiões específicas do cérebro, mas não se

sabe como evitar seus efeitos maléficos para

transformá-la em medicamento”, diz.

Grupos brasileiros estão na vanguarda

das pesquisas sobre o potencial terapêutico

desta substância e já desenvolvem estu-

dos sobre os efeitos do CBD na doença de

Parkinson, esquizofrenia, fobia social,

estresse pós-traumático, tabagismo, epilep-

sia, depressão e outras.

na Medicina antigaO mais antigo texto medicinal conhecido,

o Pen Ts’oo Ching, escrito há mais de 6.000

anos, revela que as antigas dinastias chinesas

já usavam a maconha contra dores mens-

truais, reumatismo, prisão de ventre, malária,

asma e inflamações da pele. Na Índia, seus

poderes curativos já eram aplicados na medi-

cina ayurvédica contra diarreia, insolação e

falta de apetite.

Antes de as pesquisas científicas sobre os

efeitos terapêuticos da maconha começarem a

se desenvolver, a planta já era ministrada aos

doentes, mas os estudos comprovaram esses

efeitos terapêuticos e tornaram possível a

produção de um medicamento oficial a partir

da droga.

A Faculdade de Medicina da USP de Ribei-

rão Preto é a principal instituição brasileira

que desenvolve estudos na área. Antonio

Zuardi afirma que “o ideal é utilizar os com-

ponentes isoladamente, já que a planta

possui mais de 80 canabinoides e alguns

deles têm efeitos opostos, caso do THC e

do CBD. Os efeitos da planta no organismo

dependem da concentração relativa entre

esses canabinoides”. Por exemplo, doses

elevadas de THC, responsável pelos efeitos

psicoativos da maconha, podem produzir

alucinações e delírios, ao mesmo tempo em

que o CBD atenua esses efeitos.

As pesquisas precisam se ater ao fato de

que uma amostra rica em THC vai produzir

um efeito muito diferente do produzido por

uma amostra rica em CBD.

Segundo José Crippa, “O que se sabe é que

os estudos indicam que fumar maconha não

tem o mesmo efeito de ser medicado com

o canabidiol, o THC ou outro componente.

Além disso, outra grande dificuldade para

conduzir estudos nesse campo é a neces-

sidade de avaliar um grande número de

voluntários, desde a adolescência até a fase

adulta e de modo prospectivo.”

A reação da maconha no organismo vai

depender da parte da planta que está sendo

Estudos realizados por uma parceria de três universidades de Israel (Bar Ilan University, Sheba Medical Center e Tel Aviv University), em 2003, concluíram que o uso de maconha por indivíduos vulneráveis à esquizofrenia é um fator de risco para o desenvolvimento da doença. Quatro linhas de pesquisa foram realizadas. A primeira delas se desenvolveu na Suíça durante 15 anos e analisou após quanto tempo de uso frequente de maconha os primeiros sintomas de esquizofrenia começavam a aparecer. A análise de 50 mil jovens concluiu que o uso de maconha durante a adolescência está diretamente associado a um risco maior de desenvolver a esquizofrenia. Mas esse resultado foi contestado pelo argumento de que o contato com outras drogas poderia ter produzido esse efeito.Uma segunda análise continuou a observar os suíços por mais 11 anos e o resultado confirmou a primeira conclusão. A novidade foi que o desenvolvimento de esquizofrenia é mais frequente em usuários de maconha do que de outras drogas.A terceira linha de pesquisa realizada pela parceria

aconteceu na Holanda com cerca de quatro mil adolescentes. Ao final, aqueles que utilizavam maconha frequentemente apresentaram um risco três vezes maior de desenvolver sintomas psicóticos.Por fim, cerca de mil indivíduos da Nova Zelândia foram acompanhados por pesquisadores das três universidades israelenses desde o nascimento, e os jovens que utilizaram maconha apresentaram um risco quatro vezes maior de serem diagnosticados como esquizofrênicos aos 26 anos de idade.Esses foram os únicos estudos específicos realizados, mas os resultados são consistentes e comprovam a tese de que o uso frequente da maconha, juntamente com outros fatores de risco, tem uma relação direta com a manifestação da esquizofrenia.É importante destacar que essa relação é aplicada aos indivíduos geneticamente vulneráveis, que já apresentam outros fatores de risco para a esquizofrenia. Para pessoas não vulneráveis, as pesquisas ainda são inconclusivas.

Alto risCo Segundo pesquisa na Nova Zelândia, jovens que utilizaram maconha tiveram risco quatro vezes maior de serem diagnosticados como esquizofrênicos aos 26 anos.

a relação com a esquizofrenia

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a relação com a esquizofrenia fumada (flores, folhas ou galhos) e do solo

onde a planta foi cultivada, afinal a concen-

tração relativa dos canabinoides depende

desses fatores. Antonio Zuardi destaca o fato

de que, considerando essas condições, os efei-

tos da maconha de origem desconhecida são

muito pouco previsíveis e ela não deve ser

usada com finalidade terapêutica.

Um dos maiores desafios para a produ-

ção de medicamentos a partir da maconha

em nosso país ainda é contornar os efeitos

negativos do THC. Uma alternativa para tal

é a combinação do THC com o canabidiol.

Essa estratégia baseia-se em estudos feitos

inicialmente no país, e dela já resultou um

medicamento, utilizado em certos países

para o tratamento da esclerose múltipla,

uma doença neurológica.

Pesquisas desenvolvidas em maio de 2002 no Hospital James Paget, em King’s Lynn (Inglaterra), indicam resultados positivos no tratamento da esclerose múltipla com cápsulas de extrato de maconha.William Nottcutt, anestesista e especialista no tratamento de pacientes com dores crônicas persistentes, liderou as pesquisas e disse que as convulsões, principal sintoma da doença, foram amenizadas pela droga.Apesar do resultado positivo dessa pesquisa, pacientes testados em outros estudos apresentam conclusões opostas. Alguns pacientes afirmam que o tratamento melhorou a qualidade de vida, enquanto outros não notaram diferença.Diante dessa dúvida, foram realizados novos testes científicos em 350 pacientes. Todos apresentaram uma redução significativa da dor causada pela doença.Considerado um resultado conclusivo, o medicamento foi legalizado e começou a ser produzido.Em abril de 2005, o Canadá começou a produção do Sativex, um spray sublingual de Cannabis, para o tratamento de pacientes com esclerose múltipla. Esse foi o primeiro remédio do mundo feito de maconha, permitindo um tratamento seguro e consistente a partir da substância. Em 2006, o Sativex também estava disponível no Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia, sendo produzido pela empresa britânica GW Pharmaceuticals.Pesquisadores do Centro de Pesquisa Dinamarquês da Dor desenvolveram um novo estudo com 24 voluntários portadores de esclerose múltipla. Durante três semanas, foram administradas cápsulas de dronabinol,

o extrato de maconha, para metade dos pacientes e, para a outra metade, placebos. Os pacientes expostos ao dronabinol apresentaram melhora, e os outros não. A conclusão foi que o extrato de maconha age como um analgésico. Na USP de Ribeirão Preto, foram desenvolvidos estudos recentes sobre os efeitos terapêuticos da maconha no tratamento da esclerose múltipla. Pesquisadores evidenciaram a presença de um efeito miorelaxante na maconha, que pode ser utilizado no tratamento da esclerose múltipla. O efeito se dá a partir da mistura do THC e do canabidiol, outro componente da planta, que ficam concentradas no dronabidiol.

combate à esclerose múltipla

EnigmátiCA “É uma doença muito enigmática. Cuido dela reforçando meu sistema imunológico, me alimentando bem”, diz a atriz Claudia Rodrigues, diagnosticada com esclerose múltipla há 10 anos. Abaixo, embalagem do spray sublingual Sativex, vendido na França para tratamento de pacientes com a doença.

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Em açãoComo a maconha age no organismoCom o fumo ou a ingestão da maconha, o THC (∆9-tetrahidrocanabinol) é liberado na corrente sanguínea e, nesse trajeto, se liga aos receptores canabinoides e começa a agir. Os principais danos acontecem no cérebro.

O modelo de chave-fechadura é uma analogia que explica o processo: o THC é a chave que encontra sua fechadura específica (o receptor canabinoide) na membrana das células (neurônio, no caso cerebral). Ao se encaixarem, ele altera o funcionamento da célula e o ambiente químico do cérebro. Outros efeitos no corpo estão representados no infográfico.

olho: pode causar hiperemia

(olhos avermelhados) devido à dilatação

dos vasos sanguíneos intraoculares.

boca: causa xerostomia (boca seca) em curto prazo. O THC adquirido com o fumo

provoca uma deficiência nas glândulas salivares ao

reagir em sua estrutura.

PulMão: a curto prazo causa problemas respiratórios como bronquite, enfisema e asma. A fumaça

inalada com o fumo da maconha é rica em THC e penetra diretamente nos

alvélos pulmonares, alterando seu funcionamento.

coração: pode causar taquicardia

(coração disparado). O THC age no sistema circulatório e nas hemácias, diminuindo a

pressão arterial.

Mão: a curto prazo, prejudica a coordenação motora. Com o fumo da maconha, o THC

causa intoxicação no sistema nervoso e inibe os neuro-

transmissores de enviarem os comandos de uma célula

nervosa a outra.

bENEfíCIOS

EfEItOS NEgAtIvOS

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• estimula o apetite auxiliando no tratamento da AIDS e do câncer • combate náuseas e vômitos causados pela quimioterapia • combate convulsões • em pequenas doses, distorce os sentidos • pode alterar a percepção de tempo e distância • em altas doses, causa confusão mental, paranoia, pânico, agitação, alucinação e delírio • o uso contínuo interfere na capacidade de aprendizagem e memorização • em curto prazo, ocasiona sonolência • causa dependência

dentro do cérebro

eStÔMago: a ingestão do extrato de maconha produz

um efeito protetor no estômago, já patenteado

no Japão.

abdÔMen: com a ingestão do extrato de maconha, nas mulheres

o THC age como um analgésico e alivia as

cólicas menstruais.

MúSculoS: ao ingeir medicamentos a partir da

maconha, o THC age diretamente no sistema nervoso, diminuindo espasmos

musculares e aliviando dores neupáticas e miopáticas, que envolvem músculos e

nervos. Melhora os quadros de esclerose múltipla e também age como um

analgésico, aliviando as dores crônicas. Além disso, auxilia no combate à

caquexia (enfraquecimento extremo) causado pela AIDS.

Page 7: Os dois lados da maconha

oS ruMoS acadêMicoS no braSilA opinião pública brasileira sobre a maco-

nha ainda está embasada em ideologias,

crenças e preconceitos, tanto para o lado

negativo quanto para o positivo, com poucos

argumentos científicos. Para o Brasil chegar

a um nível internacional de discussão sobre

o assunto, é preciso progredir nas pesquisas

acadêmicas. Várias universidades estão preo-

cupadas em esclarecer o tema e inserir o país

no grupo de países pesquisadores.

Atualmente, o Instituto Nacional de

Ciência e Tecnologia Translacional em Medi-

cina (INCT-TM) concentra as pesquisas

relacionadas aos efeitos da maconha e cola-

bora com diversas universidades nacionais.

Os membros do Instituto são professores de

importantes centros acadêmicos do Brasil e

buscam compreender o potencial terapêutico

da Cannabis. A rede de pesquisadores envolve

a USP de Ribeirão Preto, a UFRGS, a UNESC,

a PUC-RS e a UFRJ, e colabora com pesquisas

paralelas na UFSC, UFC, UNIFESP e UFMG.

As pesquisas já apresentaram resulta-

dos positivos no tratamento de doenças e

distúrbios como esquizofrenia, fobia social,

transtorno do pânico, doença de Parkinson e

até tabagismo e dependência de maconha.

Recentemente, o Instituto firmou uma par-

ceria com o Núcleo de Neurociências Aplicadas

(NAPNA) na USP de São Paulo, para a realiza-

ção de estudos de neuroimagem cerebral.

As descobertas estão sendo divulgadas

para outras universidades do mundo com

a participação de uma imprensa séria e

imparcial. “O compromisso deve vir tanto de

cientistas quanto de jornalistas para que as

pessoas possam ponderar o tema e formar

suas opiniões a partir de fontes confiáveis”,

ressalta Fabrício Moreira.

As pesquisas mais recentes estão bus-

cando alternativas ao uso do THC e tentando

compreender detalhadamente seus efei-

tos. As principais universidades envolvidas

são a Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG), a Universidade de São Paulo (USP),

em Ribeirão Preto, a Universidade Federal de

São Paulo (UNIFESP) e a Universidade Fede-

ral de Santa Catarina (UFSC).

Cada uma das equipes desenvolve pesqui-

sas em áreas diferentes que se completam.

Confira nos boxes estudos em duas das prin-

cipais instituições do Brasil.

Desde a década de 1970, as pesquisas estão direcionadas ao canabidiol (CBD), um dos derivados da Cannabis. A principal linha de investigação é o estudo de seus efeitos ansiolíticos e/ou antipsicóticos.

O primeiro estudo com voluntários normais verificou que doses elevadas de THC produzem muita ansiedade e alguns sintomas psicóticos. Mas, quando os voluntários ingeriam o THC junto com o CBD os sintomas eram atenuados. A partir dessa observação, surgiram as suspeitas dos efeitos ansiolíticos e/ou antipsicóticos do CBD.

Em 1982, os estudos investigaram tais efeitos do CBD com a realização de testes em animais de laboratório e em humanos, confirmando os efeitos. Em 1993, os pesquisadores publicaram um trabalho detalhando testes feitos em voluntários normais submetidos à simulação de falar em público. A aplicação do CBD atenuou a sensaçâo de ansiedade desse ato.

Em 2004, voluntários também verificaram que a ansiedade decorrente de um exame, como uma tomografia computadorizada, também era amenizada pelo componente da maconha. Esse último estudo comprovou um padrão de ativação cerebral compatível com o produzido por drogas ansiolíticas sintéticas. Os mesmos testes foram aplicados a voluntários portadores de ansiedade social, com resultados positivos semelhantes.

Estudos sobre os efeitos psicóticos da substância foram iniciados a partir de testes em ratos de laboratório. O estudo foi publicado em 1991 e comprovou que o CBD age da mesma maneira que antipsicóticos conhecidos, mas sem produzir catatonia, um efeito que se correlaciona com a “impregnação”, típico dos antipsicóticos clássicos em humanos.

Em 1995, os pesquisadores relataram o caso de uma paciente com esquizofrenia que apresentava muitos efeitos colaterais com o uso dos

antipsicóticos convencionais. Tratada com CBD por um mês, apresentou significativa redução dos sintomas. O teste foi feito em outros pacientes nas mesmas condições e apresentou resultados semelhantes.

O último teste envolveu seis portadores da doença de Parkinson que apresentavam sintomas psicóticos com a medicação utilizada. Esse é o maior desafio enfrentado por neurologistas no tratamento de Parkinson: a droga que o paciente necessita para controlar os sintomas motores também provoca sintomas psicóticos. Os antipsicóticos convencionais utilizados agravam o Parkinson. Nos pacientes observados, o uso do CBD atenuou os sintomas psicóticos sem agravar os sintomas motores.

USP Ribeirão Preto

Antonio ZuArdi ”Os efeitos da maconha obtida na rua e de origem desconhecida são muito pouco previsíveis e ela não deve ser usada com finalidade terapêutica.”

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Na Universidade Federal de Minas Gerais, as pesquisas exploram as propriedades terapêuticas da maconha evitando efeitos indesejáveis. Por exemplo, o próprio canabidiol (CBD) poderia ser um medicamento com aplicações na psiquiatria, no tratamento de ansiedade, depressão e sintomas de esquizofrenia. Outra possibilidade está na anandamida, substância semelhante ao THC produzida no cérebro. Ela é um tipo de THC endógeno e se encaixa nos mesmos receptores do componente da maconha. A solução seria administrar medicamentos que aumentem seus níveis no organismo.

A UFMG realiza testes com ratos que também identificam se existem outras substâncias que induzam efeitos semelhantes ao ansiolítico, antidepressivo ou antiepiléptico. Um dos testes realizados avalia se, após receberem certa substância, os animais exploram mais um ambiente muito iluminado ou aberto de uma caixa ou um labirinto. Normalmente, evitam esse ambiente e só o exploram sob efeito de ansiolíticos como o diazepam. Logo, substâncias que induzem o mesmo efeito são potencialmente ansiolíticos. Tal efeito é observado com compostos que aumentam os níveis daquelas substâncias do cérebro semelhantes ao THC. O mesmo se aplica ao efeito antiepiléptico. Compostos que aumentam os níveis cerebrais dessas substâncias impedem que os animais experimentais tenham crises convulsivas, mostrando o potencial deles para o tratamento da epilepsia.

Tanto o CBD quanto os compostos que aumentam níveis do “THC endógeno” induzem efeitos positivos do THC, com menor tendência a ocasionarem problemas de memória, alterações motoras, etc. Essas substâncias podem ser desenvolvidas como medicamentos analgésicos, ansiolíticos, antidepressivos e anticonvulsivantes (para tratar epilepsia).

As pesquisas da UFMG são publicadas em revistas internacionais especializadas nas áreas de farmacologia e neurociência e os resultados são coerentes com pesquisas de outros países. Mas é cedo para transformar as certezas dos efeitos em medicamentos legalizados. O especialista em farmacologia Fabrício Moreira acredita que há a possibilidade de o Brasil adotar a maconha como um medicamento legalizado, mas “ainda temos um longo caminho a percorrer até encontrar uma boa justificativa para isso”.

UFMG

Em 2003, cientistas americanos divulgaram um estudo com evidências de que Jesus Cristo e seus apóstolos podem ter usado óleos à base de maconha na cura de doenças incapacitantes. O estudo foi publicado na revista “High Times”, especializada em drogas.

Chris Bennett, cientista envolvido na pesquisa, disse que as descobertas se baseiam no estudo das sagradas escrituras, revelando que a medicina dos primeiros anos da era cristã se fundamentava num bálsamo feito a partir de kaneh-bosem, um extrato da maconha. Os efeitos medicinais ocorriam com a absorção do extrato pela pele. Caindo na corrente sanguínea, curava doenças físicas e mentais. Quanto mais grave a enfermidade, maior a concentração do extrato.

Segundo Bennett, “o óleo sagrado da consagração, conforme descrito no livro do Êxodo, continha até 2 kg de kaneh-bosem

na bíbliaHaveria maconha nos milagres proporcionados por Cristo?

(substância vista por botânicos e outros estudiosos como maconha), com adição de óleo de oliva e outras ervas”.

O estudo aponta ainda que, na antiguidade, os portadores de males como a epilepsia eram tidos como possuídos por demônios, e tratar alguém com o problema, mesmo com o uso de ervas, era exorcismo ou cura milagrosa. A cura de outras doenças realizadas por Jesus, como as moléstias de pele (lepra), olhos e problemas menstruais, foram consideradas milagres.

A intenção da pesquisa não foi colocar as realizações divinas em dúvida, mas analisar se foi feito uso de alguma substância proveniente da maconha nas curas, sem descartar o papel da fé no processo e na execução desses milagres.

FABríCio morEirA “Ainda temos um longo caminho a percorrer até encontrar uma boa justificativa para adotar a maconha como medicamento legalizado.”

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