obtenção e caracterização de cimentos de fosfato de ... · obtenção e caracterização de...

4
Obtenção e caracterização de cimentos de fosfato de cálcio por processo de precipitação via úmida Mônica B. Thürmer , Douglas R. Marques, Rafaela S. Vieira, Juliana M. Fernandes, Wilbur T.G. Coelho e Luís A. Santos. Departamento de Biomateriais – Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. [email protected] RESUMO Cimentos ósseos de fosfato de cálcio apresentam várias vantagens para uso em ortopedia e traumatologia, com bioatividade e osteocondutividade, podem ser moldado e substituir partes do tecido ósseo. A fase principal do cimento de fosfato de cálcio é α-fosfato tricálcico (α- TCP) que pode ser obtido por via seca, misturando e reagindo carbonato de cálcio e pirofosfato de cálcio em altas temperaturas, porém não há relatos da obtenção de α-TCP puro. O objetivo deste trabalho foi estudar e obter, por reação via úmida, a partir nitrato de cálcio e ácido fosfórico, puro α-TCP. A influência da concentração dos reagentes sobre o pó precipitado foi avaliada, bem como a influência da temperatura de calcinação para a obtenção desta fase do cimento. As amostras de cimento foram obtidas com adição de solução aquosa de Na 2 HPO 4 (2,5% w/v) ao pó moído. Os pós e os blocos de cimento foram caracterizados por análise granulométrica, difração de raios X, resistência mecânica à compressão e microscopia eletrônica de varredura. Os resultados mostram a influência da concentração dos reagentes nas fases cristalinas, e do tamanho de partículas do pó sobre as propriedades mecânicas do cimento. Palavras-chave: biomateriais, alfa-TCP, nitrato, biocerâmica. INTRODUÇÃO Apesar da existência de diversos sistemas de cimentos de fosfato de cálcio (CFC) estudados, os baseados no α-fosfato tricálcico (α-TCP) são de especial interesse em função da obtenção, durante a reação de pega, de uma fase de hidroxiapatita deficiente em cálcio, similar à hidroxiapatita óssea. A hidroxiapatita favorece o crescimento ósseo para os locais em que ela se encontra, estabelecendo ligações de natureza química entre a hidroxiapatita e o tecido ósseo (bioativo), permitindo a proliferação de fibroblastos, osteoblastos e outras células ósseas [1-3]. Tem sido relatado que o α-TCP é uma fase metaestável e que só pode ser obtida após tratamento térmico do β-TCP, onde se aquece este até 1250°C, por 15 horas, seguido de choque térmico, resultando em um material composto majoritariamente pela fase α-TCP [4]. Este trabalho visa o estudo e a obtenção de alfa-fosfato tricálcico por reação via úmida a partir de nitrato de cálcio e ácido fosfórico, sem a realização de choque térmico e tempos reduzidos de patamar. Foram avaliadas três metodologias de precipitação química e a utilização de três temperaturas de calcinação para a obtenção desta fase de cimento. MATERIAIS E MÉTODOS O TCP foi sintetizado em laboratório utilizando-se nitrato de cálcio (Ca(NO 3 ) 2 .4H 2 O) e ácido fosfórico (H 3 PO 4 ), conforme a seguinte reação: 9 Ca(NO 3 ) 2 . 4 H 2 O + 6 H 3 PO 4 3 Ca 3 (PO 4 ) 2 + 36 H 2 O + 18 HNO 3 As metodologias de precipitação química estão descritas na Tabela 1. A solução obtida pela mistura dos reagentes foi mantida na temperatura de 90°C ± 2, por 24 horas. Após este

Upload: voduong

Post on 22-Nov-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Obtenção e caracterização de cimentos de fosfato de cálcio por processo de precipitação via úmida

Mônica B. Thürmer, Douglas R. Marques, Rafaela S. Vieira, Juliana M. Fernandes, Wilbur T.G.

Coelho e Luís A. Santos. Departamento de Biomateriais – Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

[email protected] RESUMO

Cimentos ósseos de fosfato de cálcio apresentam várias vantagens para uso em ortopedia e traumatologia, com bioatividade e osteocondutividade, podem ser moldado e substituir partes do tecido ósseo. A fase principal do cimento de fosfato de cálcio é α-fosfato tricálcico (α-TCP) que pode ser obtido por via seca, misturando e reagindo carbonato de cálcio e pirofosfato de cálcio em altas temperaturas, porém não há relatos da obtenção de α-TCP puro. O objetivo deste trabalho foi estudar e obter, por reação via úmida, a partir nitrato de cálcio e ácido fosfórico, puro α-TCP. A influência da concentração dos reagentes sobre o pó precipitado foi avaliada, bem como a influência da temperatura de calcinação para a obtenção desta fase do cimento. As amostras de cimento foram obtidas com adição de solução aquosa de Na2HPO4 (2,5% w/v) ao pó moído. Os pós e os blocos de cimento foram caracterizados por análise granulométrica, difração de raios X, resistência mecânica à compressão e microscopia eletrônica de varredura. Os resultados mostram a influência da concentração dos reagentes nas fases cristalinas, e do tamanho de partículas do pó sobre as propriedades mecânicas do cimento. Palavras-chave: biomateriais, alfa-TCP, nitrato, biocerâmica.

INTRODUÇÃO

Apesar da existência de diversos sistemas de cimentos de fosfato de cálcio (CFC) estudados, os baseados no α-fosfato tricálcico (α-TCP) são de especial interesse em função da obtenção, durante a reação de pega, de uma fase de hidroxiapatita deficiente em cálcio, similar à hidroxiapatita óssea. A hidroxiapatita favorece o crescimento ósseo para os locais em que ela se encontra, estabelecendo ligações de natureza química entre a hidroxiapatita e o tecido ósseo (bioativo), permitindo a proliferação de fibroblastos, osteoblastos e outras células ósseas [1-3]. Tem sido relatado que o α-TCP é uma fase metaestável e que só pode ser obtida após tratamento térmico do β-TCP, onde se aquece este até 1250°C, por 15 horas, seguido de choque térmico, resultando em um material composto majoritariamente pela fase α-TCP [4].

Este trabalho visa o estudo e a obtenção de alfa-fosfato tricálcico por reação via úmida a partir de nitrato de cálcio e ácido fosfórico, sem a realização de choque térmico e tempos reduzidos de patamar. Foram avaliadas três metodologias de precipitação química e a utilização de três temperaturas de calcinação para a obtenção desta fase de cimento. MATERIAIS E MÉTODOS

O TCP foi sintetizado em laboratório utilizando-se nitrato de cálcio (Ca(NO3)2.4H2O) e ácido fosfórico (H3PO4), conforme a seguinte reação:

9 Ca(NO3)2 . 4 H2O + 6 H3PO4 → 3 Ca3(PO4)2 + 36 H2O + 18 HNO3

As metodologias de precipitação química estão descritas na Tabela 1. A solução obtida pela mistura dos reagentes foi mantida na temperatura de 90°C ± 2, por 24 horas. Após este

período a solução foi seca em estufa a 120°C ± 2 por 24 horas e então calcinada em diferentes temperaturas por 1 hora, resultando nas amostras nomeadas na Tabela 1.

Tabela 1 – Concentração dos reagentes utilizados na precipitação química Reagente Método 1 Método 2 H3PO4 0,5 M 1,0 M Ca(NO3)2.4H2O 0,5 M 1,0 M Calcinação a 1300°C M05T13 M10T13 Calcinação a 1500°C M05T15 M10T15

Após a calcinação das amostras nas diferentes temperaturas, o produto da reação, foi facilmente desaglomerado utilizando-se almofariz e pistilo até obtenção de um pó fino o qual foi passado por peneira #325. Após foi realizada a caracterização das amostras.

A avaliação da composição de fases dos pós obtidos, após calcinação, foi feita utilizando difração de raios X. Foi utilizado para esta análise um Difratômetro Phillips X´Pert MPD com tubo de cobre (radiação Kα = 1,5418 Ǻ). A tensão e a corrente utilizadas no tubo foram de 40 KV e 40 mA, respectivamente, para a obtenção dos difratogramas. A velocidade de varredura do goniômetro foi de 0,05º/s, sendo o intervalo de varredura de 10 a 40º.

A análise granulométrica foi realizada utilizando-se difração de laser. A faixa de detecção do aparelho é de 0,04 a 2500 µm. As medidas foram feitos em um difratômetro de laser Cilas 1180.

Foram preparadas pastas cimentícias pela adição de solução aquosa de Na2HPO4 (2,5% w/v) ao pó moído. As pastas obtidas foram conformadas em um molde segundo a norma ASTM F 451-95 [5]. O molde utilizado foi de aço inoxidável contendo cavidades de 6 mm +/- 0,1 mm de diâmetro e 12 mm +/- 0,1 mm de altura para moldagem plástica dos corpos de prova. Os corpos de provas foram imersos em solução de SBF (simulated body fluid) por 5 dias. Utilizou-se uma máquina universal de ensaios ATS, modelo 1105C a uma velocidade de travessa de 0,5 mm/min para o ensaio de resistência mecânica a compressão.

Por microscopia eletrônica de varredura (MEV) foi analisada a superfície de fratura dos corpos de prova utilizados no ensaio de compressão. Para esta análise utilizou-se microscópio eletrônico de varredura, marca JEOL, modelo JSM 6060.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O ensaio de difração de raios X (DRX) dos pós obtidos mostra que a concentração dos reagentes e a temperatura de calcinação, influenciaram no produto obtido. Os picos assinalados no difratograma da Figura 1 correspondem às fichas de padrão de difração de número 00-029-0359 (α-TCP) e 00-009-0432 (hidroxiapatita) do Joint Committee on Powder Difraction Standards – JCPDS.

Figura 1: Difratogramas de raios X para os pós obtidos, sendo α para α-TCP e ο para

hidroxiapatita.

Analisando a Figura 1 nota-se a presença da fase α-TCP e de hidroxiapatita para todas as amostras, exceto para a amostra M05T15. A presença de β-TCP como fase indesejada no processo de síntese do α-TCP tem sido reportada [6]. Atualmente ainda não são conhecidos registros sobre a obtenção de α-TCP puro, independentemente do método

10 15 20 25 30 35 40

οο ο

ο

α

α

α

α

αα

α

α

αα

αα

α

M10T15

M10T13

M05T15

2θ (°)

M05T13

Intensidade (u.a.)

ο

de síntese utilizado [7]. Geralmente a transformação de β-TCP em α-TCP é lenta e reversível, sendo exigida, para a obtenção do α-TCP de maior pureza, a utilização de tempos de patamar elevados a temperaturas superiores a 1200 °C, visando assegurar a máxima conversão, e resfriamento brusco para preservar a fase α-TCP à temperatura ambiente. Neste trabalho não foi necessária a utilização desta metodologia para obtenção da fase α-TCP.

A análise de difração de laser foi utilizada para verificar o tamanho de partícula dos pós, obtido pela reação e calcinação do material. Os resultados obtidos pela análise granulométrica das diferentes amostras e a resistência mecânica a compressão dos corpos de provas preparados são apresentados na Tabela 2.

Tabela 2: Tamanho médio de partículas (TMP) dos pós e resistência mecânica Diâmetro (µm)

Até M05T13 M05T15 M10T13 M10T15 TMP 7,35 17,66 15,27 17,15 Resistência Mecânica (MPa) 25,00 ± 4,60 30,22 ± 4,52 9,51 ± 3,49 21,66 ± 2,95

Pode-se observar, a partir dos valores expostos na Tabela 2, que o tamanho médio de partículas após a moagem apresentou valor compatível com os encontrados na literatura, isto é, distribuição de tamanho de partículas entre 2 a 20µm [8]. Sabe-se que a distribuição de tamanho das partículas do cimento pode influenciar a quantidade de líquido necessário para a obtenção do material com consistência de pasta, bem como na resistência mecânica do material. A quantidade de solução de Na2HPO4 2,5% mínima utilizada para a obtenção de uma pasta com consistência adequada (0,4 mL/g), é diferente da reportada pela literatura por Santos (2002) e Driessens et al. (1994) (0,32 mL/g) [4,9]. Isso pode ser explicado pelo fato de haver uma porcentagem de partículas menores que 2 µm superior a 10%.

Pelo ensaio de resistência mecânica à compressão, pode-se observar que a amostra M05T15 apresentou valor médio de resistência ligeiramente maior que as outras amostras, porém o acréscimo não foi significativo. A amostra M10T13 apresentou a menor resistência mecânica em relação às demais amostras, sendo ainda observada ligeira dissolução dos corpos de prova, quando imersos em SBF. Possivelmente a moagem obtida dessa amostra não seja suficiente para que ela reaja com o líquido e permita o aumento da resistência mecânica, o que demonstraria uma baixa reatividade do pó obtido.

A Figura 2 apresenta as micrografias obtidas por MEV da superfície de fratura das amostras, após imersão em SBF por 5 dias. Pelas micrografias das amostras M05T13 e M05T15 pode-se observar que houve formação agulhas de hidroxiapatita e de grãos de Hadley [10]. A formação desta estrutura se inicia com a reação de pega que começa com a dissolução das partículas de α-TCP na fase líquida do cimento. A fase líquida passa a receber íons Ca e P até se tornar sobresaturada nestes íons, precipitando assim a fase mais estável, hidroxiapatita deficiente em cálcio (CDHA), sobre a superfície das partículas de α-TCP, por ser o local de maior concentração de íons e também o de menor energia superficial. As partículas de α-TCP continuam a solubilizar, entretanto os íons têm agora de vencer a barreira de CDHA precipitada, que se torna mais espessa à medida que a reação de pega evolui. No final da reação, quando praticamente todo α-TCP foi consumido, haverá uma casca de hidroxiapatita (CDHA) com um vazio em seu interior (Grãos de Hadley), local onde originalmente se encontrava a partícula de a-TCP totalmente solubilizada [10].

Na micrografia da superfície de fratura dos corpos de provas da amostra M10T13 não se observa a precipitação de agulhas, característica da formação de hidroxiapatita. Já na micrografia da superfície de fratura dos corpos de provas da amostra M10T15 pode ser observada a precipitação de agulhas em rosáceas de hidroxiapatita.

Figura 2: Micrografias da superfície da região fraturada das (a) M05T13, (b) M05T15, (c) M10T13 e (d) M10T15, com aumento de 5000X.

CONCLUSÕES

Pelo método de precipitação via úmida foi possível a obtenção de pós de α-fosfato tricálcico com hidroxiapatita e, possivelmente, β-fosfato tricálcico como fases indesejáveis. O método de síntese se mostrou um processo eficiente e rápido para obtenção de fosfatos de cálcio, porém deve ser aprimorado. A observação dos resultados obtidos por difração a laser comprova que o pó obtido apresenta valor compatível com os encontrados na literatura, ou seja, entre 2 a 20µm. As amostras M05T13 e M05T15 apresentaram a formação de agulhas de hidroxiapatita e grãos de Hadley em sua estrutura. Pela micrografia da amostra M10T13 observa-se que esta amostra não apresentou formação de cristais de hidroxiapatita em sua estrutura, fato este que deve ter influenciado na baixa resistência mecânica desta amostra. Já na amostra M10T15 observa-se a formação dos cristais de hidroxiapatita.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à UFRGS, CNPq, Capes, BIOFABRIS e ao INCT.

REFERENCIAS [1] Gruninger SE, Siew C, Chow LC, O‘young A, Tsao NK, Brown WE. J. Dentistry Res 1984; 63: 200. [2] Hench L L. Anal. Quim. 1997; 93: 1. [3] Webster TJ, Ergun C, Doremus RH, Siegel RW, Bizios R. Biomaterials 2001; 21: 1803. [4] Santos LA. Desenvolvimento de cimento de fosfato de cálcio reforçado por fibras para uso na área médico-odontológica. 2002. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Brasil. [5] ASTM F 451-95 (Standard specification for acrylic bone cement). [6] Bermudez O, Boltong MG, Driessens FCM, Planell JA. J. Mater. Sci.: Mater. Medic 1994; 5: 160. [7] Raynaud S, Champion E, Bernache-Assollant D, Thomas P. Biomaterials 2002; 23: 1065. [8] Chow LC, Markovic M, Takagi S, Cherng M. Innov Tech Med. 1997; 18. [9] Driessens FCM, Fernández E, Ginebra MP, Boltong MG, Planell JA. Anal. Quim. Int. 1997; 93: S38. [10] Hadley DW, Dolch WL, Diamond S. Cement and Concrete Research 2000; 30: 1.

(a) (b)

(c) (d)