o zaratustra de nietzsche pierre heber-suffrin

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o "ZARATUSTM' DE NIETZSCHE Jorge Zahar Editor

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Page 1: o Zaratustra de Nietzsche Pierre Heber-suffrin

o"ZARATUSTM'DE NIETZSCHE

Jorge Zahar Editor

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o "Zaratustra"de Nietzsche

Page 3: o Zaratustra de Nietzsche Pierre Heber-suffrin

o, 'Zaratustra ' ,de Nietzsche

Tradução:Lucy Magalbães

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

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Título original:Le Zamthollstm de Niet::.sche

Tradução autorizada da primeira edição francesa,publicada em 1988 por Presses Universitaires de France, de Paris,França, na coleção "Philosophies". dirigida por Françoise Balibar,

Jean-Pierre Lefebvre, Pierre Macherey e Yves Vargas

7 ApresentaçãoPreâmbulo 7Algumas indica~ões práticas

Copyright © 1988, Presses Universitaires de France

Copyright © 1991 da edição em língua portuguesa:Jorge Zahar Editor Ltda.rua México 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2240-02261 fax: (21) 2262-5123

e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

Tradução de: Le Zarathoustra de NietzscheISBN: 85-7110-165-5

11 O prólogo de Zaratustra(texto integral), tradução de Ivo Barroso

31 Um novo profetaPor que Zaratustra fala assim 31Uma transformação completa. O anúncio de

uma nova cultura (Prólogo, § 1) 40A morte de Deus (Prólogo, § 2) 46

53 O primeiro discurso de ZaratustraDo homem ao super-homem (I).

A derrubada dos antigos valores, primeiraetapa de sua transmutação (Prólogo, § 3) 53

Do homem ao super-homem (11).A vontade criadora de novos valores, segundaetapa de sua transmutação (Prólogo, § 4) 71

O niilismo do último homem .(Prólogo, § 5) 85

Todos os direitos reservados.A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou

em parte, constirui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Héber-Suffrin, PierreH349z O "Zaratustra" de Nietzsche 1Pierre Héber-Suffrin;

tradução, Lucy Magalhães. - Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed., 2003.

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900.Assim falou Zararustra. 2. Filosofia alemã. L Título. 93 Novas experiências, novas resoluções,

novas profeciasO homem superior (Prólogo, § 6) 93O fracasso de Zaratustra (Prólogo, § 7) 97

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de mais de um leitor, mesmo entre os mais bem-inten-cionados e mais dispostos a se deixarem seduzir.

Já se vê que nosso projeto, bem modesto, é ao mesmotempo bastante ambicioso.

Modesto, seu objetivo primeiro e fundamental é co-mentar, de maneira pedagógicR, isto é, articulada, me-ticulosa, atenta às perguntas e reações do leitor, asprimeiras páginas da obra: o Prólogo.

Nessa ótica, nossos três primeiros capítulos acom-panham o leitor desse Prólogo passo a passo, linhaa linha, procurando mais a clareza que a elegânciae evitando mais a obscuridade que as repetições, e,se necessário, o que acontece muitas vezes, que asparáfrases.

Mas nosso projeto é, ao mesmo tempo, bastanteambicioso. Trata-se de ajudar a "entrar em Zaratustra"aqueles que estão perplexos e colhidos pelo desânimo,e de facilitar-Ihes a leitura completa da obra.

Veremos, de fato, que o Prólogo constitui umaintrodução sistemática, muito estruturada, ao conjun-to do Zaratustra, um recenseamento dos problemas eum levantamento de todos os conceitos. Vamos com-preender então que, comentando o Prólogo, queremosintroduzir ao conjunto. Um panorama rápido desseconjunto bastará, efetivamente, para que nele nossituemos.

O Capítulo V servirá de guia para essa leitura deconjunto; guia muito menos detalhado e diretivo queaquele que acompanhava os primeiros passos no Prólo-go, mas suficiente para o leitor cioso de sua inde-pendência de espírito, que decifrou conosco, passo a

passo, o Prólogo, e preferirá, talvez, partir à descobertado Zaratustra com mais autonomia.

Nosso projeto é ainda mais ambicioso: a leitura doZaratustra constitui certamente a melhor abordagempossível do pensamento de Nietzsche ...

Nosso comentário - aliás provavelmente ininteligívelsem um conhecimento direto do texto de Nietzsche -não pretende, evidentemente, dispensar a sua leitura,mas, simplesmente, ajudar o seu leitor. Nessa perspec-tiva, o procedimento que nos parece mais desejável, eque corresponde melhor à nossa intenção, consistiria emLER PREVIAMENTE, inicialmente sem interrupção, oPrólogo de Zaratustra, cujo texto integral colocamos,para isso, à frente de nosso estudo; depois em RELER omesmo PRÓLOGO, dessa vez parte por parte, SEGUINDO-SE, só ENTÃO, A CADA UMA DELAS, A LEITURA DE SEUCOMENTÁRIO. O mesmo procedimento, constituído deuma leitura inicial contínua, depois de uma leitura al-temada do texto e do comentário, poderia posteriormen-te ser de novo utilizado para os Discursos deZaratustra. Para facilitar a tarefa, lembraremos, nocomeço de cada capítulo, qual é a parte da obra deNietzsche que será diretamente comentada, e semprecitaremos, no interior de nosso comentário, em caracte-res itálicos, os trechos dessa parte específica que comen-tamos e apenas esses.

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Fica convencionado que o asterisco' remete, no léxi-co (Cap. VI), à definição do termo que o precedeimediatamente; quando esse termo apresenta váriasacepções, assinalamos com um ou vários algarismoso sentido ou os sentidos a que se remete. Exemplos:Niilismo'3 ou Morte de Deus'3,4. A fim de evitarcomplicações inúteis, geralmente utilizamos apenasuma única vez essa prática remissiva para cada termodefinido, quando de sua primeira ocorrência em nossoestudo. Excepcionalmente, de novo recorremos a elaquando a identificação de um ou vários sentidos preci-sos é indispensável para a plena compreensão de nossasconsiderações.

Precisemos, enfim, que todas as citações das obras deNietzsche, exceto Assim falou Zaratustra,* são extraídasda Nouvelle édition des oeuvres philosophiques com-pletes de Nietz.sche em 14 tomos, publicada sob a res-ponsa bilidade de Gilles Deleuze e Maurice de Gandillac(Paris, NRF, Gallimard).

o Prólogo de Zaratustra

Quando tinha trinta anos, Zaratustra deixou sua terranatal, e o lago de sua terra natal, e foi para as montanhas.Lá, durante dez anos, cultivou seu espírito e a solidão.Mas, por fim, seu coração se transformou - e levantan-do-se, um dia, com a aurora, pôs-se diante do sol e lhefalou assim:

"Grande astro! Qual seria tua felicidade sem aquelesa quem iluminas?

Há dez anos que vens subindo até a minha caverna;já te terias cansado de dar a tua luz e descrever estepercurso se aqui não estivéssemos nós, eu, minha águiae a serpente.

Mas, a cada manhã, nós te esperávamos e te aliviá-vamos de teu excesso, abençoando-te por isso.

Vê! Estou saturado de minha sabedoria, como aabelha que acumulou demasiado mel; anseio por mãosque se estendam.

Quero oferecer e partilhar, para que os sábios entreos homens de novo se rejubilem de sua loucura, e ospobres venham de novo a amar !:luariqueza .

, Nesta edição brasileira as citações e os títulos dos capítulos de Ássimfalou Zaratustra, de Nietzsche, são feitas de acordo com a tradução deMário da Silva (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977).

A pedido do autor, Pierre Héber-Suffrin, a tradução do "PlÚlogo deZaratustra" foi feita a partir da ve.rsão de Chantal Sautier e LaurentValette que consta da edição francesa deste livro. A tradução desse•'PlÚlogo" foi realizada por Ivo Barroso.

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Preciso, pois, descer ao mais profundo, como fazesà noite, ao mergulhares por trás do mar, levando tua luzao mundo inferior, ó astro exuberante!

Como tu, é necessário que eu 'decline' para falarcomo os homens aos quais quero descer.

Abençoa-me, pois, olho sereno, tu que podes con-templar sem mágoa uma ventura tamanha!

Abençoa este cálice que anseia transbordar para quedele escorra a água dourada capaz de levar a toda a parteo reflexo de tua fruição!

Vê! Este cálice quer de novo esvaziar-se, e Zaratus-tra quer de novo ser homem. "

- Assim começou o declínio de Zaratustra.

Zaratustra está mudado, Zaratustra fez-se criança,Zaratustra é homem desperto: que procuras agora entreos que dormem?

Vivias na solidão como no mar, e esse mar te levava.Pobre de ti, queres acostar? Queres de novo, infeliz,arrastar teu próprio corpo?"

Zaratustra respondeu: "Amo os homens.""Por que pensas", disse o santo, "que busquei a

floresta e o deserto, senão porque amava demasiada-mente os homens?

Agora, amo a Deus; e não aos homens. Acho pordemais imperfeito o ser humano. O amor aos homensme faria perecer."

Zaratustra respondeu:"Por que falei de amor? Narealidade, trago aos homens um presente!':

"Não lhes dês nada", disse o santo. "É preferívelaliviá-los de alguma coisa que possas carregar com eles- será o que de melhor farás em seu favor se acaso issote satisfizer!

Se insistes em dar-lhes um presente, que não sejanada mais do que uma esmola, e, mesmo assim, depoisde a mendigarem!"

"Não", respondeu Zaratustra, "não lhes darei es-molas. Não sou bastante pobre para isso."

O santo riu de Zaratustra e lhe falou assim:"Então, procura fazer com que aceitem teus tesou-

ros! Desconfiam dos eremitas e não querem acreditarem nossas dádivas.

Para eles, nossos passos soam por demais solitáriosnas vielas. De tal forma que, à noite, ao ouvirem, já noleito, andar lá fora um homem, muito antes do raiar dosol, perguntam-se com certeza: 'Aonde irá esse ladrão?'

Zaratustra desceu só da montanha, sem encontrar nin-guém. Mas ao chegar à floresta, viu-se de súbito diantede um ancião, que deixara a sua sagrada choça para ir àprocura de raízes silvestres. O ancião dirigiu a Zaratus-tra estas palavras:

"Este viandante não me é desconhecido; há muitosanos o vi passar por aqui. Então se chamava Zaratustra;mas agora está mudado.

Naquela época, levavas tuas cinzas para o monte.Queres agora trazer teu fogo para o vale? Não temes ocastigo que sofre o incendiário?

Sim, reconheço Zaratustra. Seu olhar é límpido, esua boca não encerra mágoas. Não caminha como umdançarino?

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Não busques os homens, e fica na floresta! Vaiantes ter com os animais! Por que não queres ser oque eu sou: um urso entre os ursos, um pássaro entreos pássaros?"

"E que faz o santo na floresta?", perguntou Zara-tustra ..

O santo respondeu: "Componho canções e canto-as,e quando componho canções, rio, choro, e murmuro: éassim que louvo a Deus.

Cantando, chorando, rindo e murmurando, louvo aDeus que é meu Deus. Mas, afinal, que nos trazes depresente? "

A essas palavras, Zaratustra saudou o santo, dizen-do-lhe: "Que teria eu para vos dar? Mas deixai-mepartir depressa, antes que vos tire alguma coisa!" Eassim se separaram, o ancião e o homem, a rir como doisjovens.

Mas quando Zaratustra ficou só, falou consigo mes-mo: "Como é possível? Este santo ancião na sua flores-ta não sabe ainda que Deus está morto?"

desse grande fluxo, preferindo antes voltar ao animal doque chegar ao super-homem?

O que é o símio para o homem? Objeto de riso ouignomínia. E é justamente isso que o homem deve serpara o super-homem: objeto de riso ou ignomínia.

Já fizestes o caminho que vai do verme ao homem,mas ainda há muito de verme em vós. Outrora fostessímios, contudo ainda hoje o homem é mais símio quequalquer dos símios.

O mais sábio entre vós não passa de um conflito, umser híbrido entre a planta e o espectro. Porventura orde-nei que vos tornásseis espectro ou planta?

Vede, eu vos ensino o super-homem!O super-homem é o sentido da terra. Fazei dizer à

vossa vontade: que o super-homem seja o sentido daterra!

Eu vos conclamo, irmãos, permanecei fiéis à terrae não acrediteis nos que vos falam de esperançasultraterrenas! Não passam de envenenadores, cons-cientes ou não.

São gente que despreza a vida, seres agonizantes,igualmente intoxicados, dos quais a terra se cansou. Queeles, pois, desapareçam!

Outrora, a ofensa a Deus era a maior das ofensas, masDeus está morto, e com ele morreram seus detratores. Oterrível, agora, é injuriar a terra, pois seria dar maisvalor às entranhas do insondável que ao sentido da terra!

Outrora, a alma olhava o corpo com desprezo, e essedesprezo era o que havia de mais sublime. A alma queriao corpo magro, horrendo, faminto. Pensava, assim, so-brepor-se a ele e à terra.

Assim que chegou à cidade mais próxima, na orla dafloresta, Zaratustra encontrou muita gente reunida napraça principal, para ver um funâmbulo que fora anun-ciado. E Zaratustra dirigiu-se assim à multidão:

"Eu vos proponho o super-homem. O homem é algoque deve ser superado. O que fizestes para isso?

Até então, todos os seres unaginaram algo superior,acima de si mesmos, e vós quereis ser acaso o reverso

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Oh, mas essa alma era também magra, horrenda efaminta, e a crueldade era toda a sua volúpia!

Mas vós, irmãos, dizei-me: que vos informa o vossocorpo sobre vossa alma? Não é ela miséria, imundície ereles bem-estar?

Em verdade, um rio imundo é o homem. E só o marpode absorver um rio imundo sem macular-se.

Vede, eu vos ensino o super-homem. Ele é o mar quepode absorver o vosso grande desprezo.

Qual a mais sublime experiência que poderíeis vi-ver? É a hora do grande desprezo. Essa hora em quemesmo para vós a felicidade se transforma em náusea,e bem assim vossa razão e vossa virtude.

A hora em que dizeis: 'Que é afmal minha felicida-de? Simplesmente miséria, imundície e reles bem-estar.Ora, minha felicidade devia ser a própria justificação deminha existência!'

A hora em que dizeis: 'Que é armal minha razão?Aspira ela ao saber como o leão cobiça seu alimento?Qual nada! Não passa de miséria, imundície e relesbem-estar!'

A h9ra em que dizeis: 'Que é afinal minha virtude!Ela ainda não me fez revoltado. Como estou farto demeu bem e de meu mal! Aqui só há miséria, imundíciee satisfação grosseira!'

A hora em que dizeis: 'Que é afmal a minha justiça?Não me sinto um carvão em brasa. Ora, o justo é umcarvão em brasa!'

A hora em que dizeis: 'Que é afmal a minha compai-xão? A compaixão não é a cruz onde se prega aquele queama os homens? Ora, minha compaixão não crucifica!'

Já falastes assim? Já gritastes assim? Ah! por queainda não vos ouvi gritar assim?

Não é vosso pecado, mas vossa medida que brada aoscéus, é vossa avareza no pecar que brada aos céus!

Mas onde está o raio que vos virá lamber com sualíngua? Onde a loucura de que deveríeis inocular-vos?

Vede, eu vos ensino o super-homem: ele é esse raio,essa loucura!"

Ao terminar Zaratustra de falar assim, alguém excla-mou na multidão: "Já ouvimos demais sobre o funâm-bulo, queremos agora vê-Io!" E toda a multidão se riude Zaratustra. Quanto ao funâmbulo, acreditando queestas palavras lhe dissessem respeito, logo se preparoupara iniciar o seu trabalho.

Mas Zaratustra contemplava, admirado, a multidão elhe falou assim:

"O homem é uma corda estendida entre o animal eo super-homem - uma corda sobre o abismo.

Perigosa a travessia, perigoso o percurso, perigosoolhar para trás, perigoso o tremor e a paralisação.

A grandeza do homem está em ser ponte e não meta:o que nele se pode amar é o fato de ser ao mesmo tempotransição e declínio.

Amo os que só sabem viver em declínio, pois são osque transpõem.

Amo os que desprezam com intensidade, pois sabemvenerar intensamente, e são flechas lançadas pelo an-seio-da-outra~margem.

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Amo os que não se satisfazem em procurar além dasestrelas uma razão para serem declínio e oferenda,mas que, ao contrário, se sacrificam à terra para queesta um dia se torne a terra do super-homem.

Amo o que vive para conhecer, e quer conhecer paraque um dia o super-homem viva. E quer assim o seupróprio declínio.

Amo o que trabalha e inventa para construir a moradado super-homem, e prepara para ele a terra, os animaise as plantas. Pois assim quer o seu declínio.

Amo o que ama a sua própria virtude, pois que avirtude é vontade de declínio e flecha do desejo.

Amo o que não guarda para si nem uma só gota deseu espírito mas quer ser inteiramente o espírito de suaprópria virtude. É dessa forma que ele, como espírito,atravessa a ponte.

Amo o que faz da virtude inclinação e destino, poisele, por amor à sua virtude, quer viver ainda e não maisviver.

Amo o que não quer virtudes em demasia. Uma únicavirtude é mais virtude do que duas, pois ela é o nó maisforte onde se ata o destino.

Amo o que prodigaliza sua alma, e que, ao fazer isso,não visa à gratidão nem ao pagamento; pois sempre dáe nada quer em troca.

Amo o que se envergonha quando o dado cai a seufavor, e então pergunta: serei um trapaceiro? - pois épara sua ruína que ele quer se encaminhar.

Amo o que antecede com palavras de ouro os seusatos e sempre cumpre mais do que promete; pois elequer o seu declínio.

Amo o que justifica os que serão e resgata os queforam; pois quer perecer por aqueles que são.

Amo aquele que pune seu Deus porque o ama; por-quanto só poderá perecer pela cólera de seu Deus.

Amo o que, mesmo ferido, tem a alma profunda, eque um simples acaso pode fazer perecer. Assim, eleatravessa de bom grado a ponte.

Amo aquele cuja alma transborda e a tal ponto seesquece de si que todas as coisas nele encontramlugar. Assim, todas as coisas se tornam seu declínio.

Amo o que tem o espírito livre e livre o coração.Assim, sua cabeça não passa de vísceras para seu cora-ção; mas o coração o empurra para o decIínio.

Amo todos aqueles que são como pesadas gotascaindo uma a uma da negra nuvem que paira sobre Oshomens; anunciam a chegada do raio e perecem comoanuncia dores.

Vede, sou o anunciador do raio, uma gota pesadadessa nuvem. Mas o raio se chama super-homem."

Depois de pronunciar estas palavras, Zaratustra cQnsi-derou de novo a multidão e se manteve em silêncio."Ei-Ios diante de mim", disse consigo mesmo, "eei-Ios que riem. Não me compreendem, não sou a bocaque éonvém a esses ouvidos.

Será preciso antes furar-Ihes os ouvidos para queaprendam a ouvir com os olhos? Será preciso retumbarcomo os tambores e os sermoneiros da quaresma? Ousó acreditam naquele que gagueja?

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Há algo de que se orgulham. Como chamam a issode que se orgulham? Cultura, é como lhe chamam, e épor ela que se distinguem dos guardadores de cabras.

Por isso não gostam de ouvir a palavra 'desprezo'usada contra eles. Vou antes falar-lhes ao orgulho.

Para tanto, devo falar do que há de mais desprezível:do último homem."

E assim falou Zaratustra à multidão:"É chegado o tempo de o homem estabelecer a sua

meta. É chegado o tempo de o homem depositar na terrao grão de sua esperança mais alta.

Seu solo é ainda bastante rico para isso. Mas um diaesse solo estará tão pobre e exaurido, que nele nenhumaárvore de porte poderá mais crescer.

Ai de vós! Eis chegado o tempo em que o homem nãomais lançará a flecha de seu desejo para além do ho-mem, o tempo em que a corda de seu arco terá desapren-dido de vibrar!

Eu vos digo: é preciso ter caos ainda dentro de si parapoder gerar uma estrela piscante. Eu vos digo: aindatendes caos dentro de vós.

Ai de vós! Eis que chega o tempo em que o homem nãopoderá mais dar à luz uma estrela. Ai de vós!Eis quechegao tempo do mais desprezível dos homens, aquele que nemé mais capaz de desprezar-se a si mesmo.

Vede! Eu vos mostro o último homem.'Que é o amor? Que é a criação? Que é o desejo? Que

é uma estrela?' Assim pergunta o último homem comum piscar de olhos.

Eis que a terra encolheu-se e sobre ela saltita o últimohomem, que amesquinha tudo. Sua espécie é indestru-

tivel, como a dos pulgões; o último homem, o queperdura mais tempo.

'Inventamos a felicidade', dizem os últimos homenscom um piscar de olhos.

Abandonaram as regiões onde era difícil viver; poisprecisam de calor. Ainda amam seu vizinho e a ele seaconchegam, pois precisam de calor.

Adoecer e desconfiar, para eles é pecado; avança-secom cautela. Insensato aquele que ainda tropeça empedras ou em homens!

De quando em quando, um pouco de veneno: trazsonhos agradáveis. E muito veneno, no fun, para semorrer agradavelmente.

Trabalham ainda, pois o trabalho é uma distração. Masficam atentos para que esse divertimento não os canse.

Ninguém fica mais nem pobre nem rico: é algo pe-noso, tanto um quanto o outro. Quem ainda desejagovernar? Quem ainda deseja obedecer? São amboscansativos demais.

Nenhum pastor e um só rebanho? Todos querem omesmo, todos são iguais. Quem sente de maneira diver-sa se condena ao hospício.

'Outrora, todo o mundo era louco', dizem os maisastutos, com um piscar de olhos.

Estamos bem avisados, sabemos tudo o que aconte-ce. Por isso, não paramos de escarnecer. Acontece aindadiscutirmos, mas logo nos reconciliamos - as brigasfazem mal ao estômago.

Temos nossos pequenos prazeres diurnos e nossopequenos prazeres noturnos; mas cuidamos da saúde.

'Inventamos a felicidade', dizem os últimos homenscom um piscar de olhos."

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vel, "anda, seu preguiçoso, seu impostor, vil aprendiz!Cuidado, que te vou pisar o calcanhar! Que fazes aquientre as torres? Lá dentro delas é que é o teu lugar, ládeviam te encerrar para não estorvares o caminhode quemé melhor que tu!" A cada palavra mais se aproximava dooutro. Quando estava a apenas um passo dele, aconteceua coisa terrível que fez emudecer as bocas e arregalar osolhos. Deu um uivo diabólico e saltou por cima daqueleque lhe impedia o caminho. Ora, este, vendo seu rivaltriunfar, perdeu a cabeça e a corda; largou a vara deequihbrio, e, mais rapidamente do que esta, num rodopiarde braços e pernas, mergulhou no vazio. A praça e amultidão pareciam um mar fustigado pela tempestade. Amultidão espalhou-se em atropelo, fugindo do local ondeo corpo devia vir se espatifar.

Só Zaratustra permaneceu imóvel; o corpo caiu bemao seu lado, todo disforme, mas ainda vivo. Após ummomento, o homem recuperou os sentidos e viu Zara-tustra ajoelhar-se junto dele. "Que fazes aqui?", disseenfim, "há muito que sabia que o diabo me daria umarasteira. E agora, ele me arrasta para o inferno. Acasopodes impedi-lo?"

"Amigo, juro-te pela minha honra", respondeuZaratustra, "que isso de que falas não existe: não hánem diabo nem inferno. Tua alma morrerá ainda maisdepressa que teu corpo. Agora já não tens o quetemer!"

O homem ergueu os olhos, desconfiado. "Se dizes averdade", disse então, "nada perco por perder a vida.E não passo de um animal a quem ensinaram a dançarà custa de pancadas e magros bocados:'

Com isso teve fim o primeiro discurso de Zaratustra,também chamado prólogo, pois os gritos de júbilo damultidão o interromperam nesse ponto: "Dá-nos esseúltimo homem, Zaratustra", gritavam eles. "Paz de nósesses últimos homens, que te daremos o super-homemde presente!" E a multidão inteira se rejubilava eestalava a língua. Mas Zaratustra, tomado de tristeza,assim falou consigo:

"Não me compreendem: não sou a boca que convéma seus ouvidos.

Sem dúvida passei muitos anos na montanha, a escu-tar demais os riachos e as árvores, e agora lhes falocomo a guardadores de cabras.

Minha alma está serena e clara como a montanha aoamanhecer. Mas eles me tomam por um cínico, umzombeteiro de sinistras ironias.

E, então, olham para mim e riem; e rindo, tambémme odeiam. Há um gelo no seu riso."

Mas algo então se passou que fez emudecer as bocas earregalar os olhos. É que, nesse ínterim, o funâmbulotinha dado inicio a seu trabalho: saíra de uma pequenaporta e estava caminhando sobre a corda estendida entreduas torres, e conseqüentemente suspensa sobre a praçae a multidão. Achava-se exatamente a meio de seupercurso, quando a porta de novo se abriu e nela apare-ceu um indivíduo todo pintado à maneira dos bufões,que se pôs a seguir o primeiro a passos largos. "Vamos,mais depressa, ó paralítico", gritava com sua voz terrí-

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"Não", disse Zaratustra, "fizeste do perigo o teuofício; não há nada de desprezível nisso. Morres vítimade tua profissão. Por isso, quero te sepultar com minhaspróprias mãos."

Depois dessas palavras de Zaratustra, o moribundonão mais respondeu; moveu apenas a mão como seprocurasse a de Zaratustra para agradecer-lhe.

var-te ao lugar onde te sepultarei com minhas própriasmãos."

Após ter falado assim consigo, Zaratustra colocou ocadáver às costas e se pôs a caminho. Mal dera cempassos, surgiu um homem que lhe veio falar junto aoouvido. E - vejam só! - quem lhe falava assim era obufão da torre. "Vai-te embora daqui, ó Zaratus-tra", disse-lhe, "há gente demais aqui que te odeia.Odeiam-te os bons e os justos, chamam-te inimigo ejulgam que os desprezas; os fiéis da verdadeira fétambém te odeiam, consideram-te um perigo para opovo. Tua sorte foi terem rido de ti; e na verdadefalaste como um bufão. Tua sorte foi teres te acum-pliciado com esse cão morto; ao te rebaixares assim,te salvaste por hoje. Mas parte da cidade - senãoamanhã saltarei sobre ti, eu que estarei vivo, sobre tique estarás morto." Com estas palavras, o homemdesapareceu; e Zaratustra prosseguiu seu caminhoatravés das escuras ruelas.

À porta da cidade, encontrou-se com os coveiros que,aproximando-lhe do rosto seus archotes, reconheceramZaratustra e se puseram a fazer pesados gracejos a seurespeito: "Lá vai Zaratustra arrastando o cão morto;ainda bem que Zaratustra se fez coveiro! Porque nossasmãos são limpas demais para essa carniça! Zaratustraquer disputar ao diabo a porção que lhe cabe? Pois quefaça bom proveito, se regale no festim! Isso, se ó diabonão for melhor ladrão que Zaratustra, pois, do contrário,

Enquanto isso, a tarde caíra e a praça do mercado seenvolvia na sombra. Então a turba dispersou-se, poismesmo a curiosidade e o pavor acabam por cansar. MasZaratustra continuou sentado no chão ao lado do morto,e, mergulhado em seus pensamentos, esqueceu-se assimdo tempo que passava. Por fim, a noite veio, e um ventofrio soprou sobre o solítário. Então, Zaratustra levan-tou-se e disse para si mesmo:

"Em verdade, Zaratustra fez hoje uma bela pesca!Não pegou um homem, mas assim mesmo um cadáver.

Angustiante é a existência humana, e, até este ponto,desprovida de sentido: um bufão pode lhe ser fatal.

Quero ensinar aos homens o sentido de seu ser: ouseja, o super-homem, raio da nuvem negra que é ohomem.

Mas ainda estou longe deles, e o sentido do quefalo não lhes fala ainda aos sentidos. Para eles, oshomens, ainda estou a meio caminho entre o louco eo cadáver.

Sombria é a noite, sombrios são os caminhos deZaratustra. Vem, companheiro rígido e frio! Vou le-

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acaba então por devorar os dois!" E, falando uns paraos outros, escarneciam entre si.

Zaratustra não disse palavra e seguiu seu caminho.Depois de caminhar por duas horas ao longo de pânta-nos e bosques, ouvindo o uivo esfaimado dos lobos, afome <> assaltou, por sua vez. Foi então que se detevediante de uma casa solitária, onde brilhava um lume.

"A fome me assalta como um bandido", disse Zara-tustra. "Minha fome assalta-me no meio dos bosques edOs pântanos e no seio da noite profunda.

Minha fome tem caprichos estranhos. Não raro elasó me vem depois das refeições, e hoje, durante o diainteiro, não me apareceu: onde teria andado?"

E enquanto assim falava, Zaratustra bateu à porta dacaSa. Apareceu um ancião, trazendo um lume, que lheperguntou: "Quem chama por mim e pelo meu mausono?"

"Um vivo e um morto", respondeu-lhe Zaratustra;"dá-me de comer e beber, pois disso não cuidei duranteo dia. Quem nutre o faminto, conforta sua alma: eis avoz da sabedoria."

O velho retirou-se para logo voltar, oferecendo aZaratustra pão e vinho. "Estas são más paragens paraos famintos", disse ele, "por isso moro aqui. Bichos ehomens procuram por mim, o eremita. Mas convida teucompanheiro também a beber e comer, ele está maiscansado do que tu." Zaratustra respondeu: "Meu com-panheiro é um morto, vai ser difícil convencê-Io disso."

"Tanto se me dá", disse o velho, resmungando,"quem bate à minha porta deve aceitar o que ofereço.Comei e passai bem!"

Depois disso, Zaratustra caminhou outras duas ho-ras, guiando-se pelo curso e a luz das estrelas: poisestava habituado a caminhar à noite e gostava deolhar a face de tudo quanto donne. Mas quando des-pontou a aurora, Zaratustra se encontrou numa flores-ta sombria, onde nenhuma passagem parecia haver.Então, vendo uma árvore que tinha um oco à altura deum homem, ali depositou o cadáver - pois queriamantê-Ia a salvo dos lobos - estendendo-se no musgodo chão. E logo adonneceu, o corpo fatigado, mas aalma tranqüila.

Por muito tempo esteve adonnecido Zaratustra, e osraios da aurora bem como os da manhã giraram-lhesobre a face. Por fim seus olhos se abriram, e Zaratustramaravilhou-se com a floresta, com o silêncio, e mara-vilhou-se também consigo mesmo. Depois ergueu-se deum lance como um marinheiro que de súbito vê terra, eexultou: pois via agora uma verdade nova. E então falouassim consigo mesmo:

"Fez-se uma luz em mim: preciso de companhei-ros, companheiros vivos - não de companheiros mor-tos ou cadáveres, que eu leve comigo aonde eu for.

"Não, quero companheiros vivos, que me sigampara onde eu for, porque querem seguir a si mesmos.

"Fez-se uma luz em mim: Zaratustra não deve maisfalar à multidão mas a seus companheiros! Zaratustranão se deve tomar pastor nem o cão do rebanho!

"Seduzir e afastar muitos do rebanho - eis a meta aque vim. Multidão e rebanho, que tudo atroe contra

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mim: Zaratustra quer que os pastores o chamem debandido.

"Emprego a palavra pastores, mas eles próprios sedesignam como os bons e os justos. Emprego a palavrapastores, mas eles próprios se designam como os fiéisda fé verdadeira.

"Olha i, esses bons e esses justos! Que mais odeiam?Aquele que destrói suas tábuas de valores, o demolidor,o criminoso - mas este é que é um criador.

"Olhai, esses crentes de todas as crenças! Quemais odeiam? Aquele que destrói suas tábuas de va-lores, o demolidor, o criminoso - mas esse é que é umcriador.

"O criador procura companheiros para si e não ca-dáveres, e bem assim nem rebanhos e nem crentes. Ocriador procura companheiros de criação, para queinscrevam novos valores sobre novas tábuas.

"O criador procura companheiros, companheiros decolheita: porque nele tudo está amadurecido para aceifa. Mas faltam-lhe as cem foices: por isso que, na suacólera, sai arrancando espigas.

"Os companheiros que o criador procura são os quesabem afiar as foices. Serão chamados de destruidorese desdenhosos do Bem e do Mal. Mas na verdade são osceifadores, aqueles que celebram a festa.

"Companheiros de criação é o que busca Zara-tustra, companheiros de ceifa e de festa procuraZaratustra: nada tem a ver com rebanhos, pastores ecadáveres!

"E tu, meu primeiro comparsa, repousa em paz!Estás bem sepulto nesse oco de árvore, posto a salvodos lobos.

"Mas devo deixar-te, já se foi o tempo. Entre umaaurora e outra, uma nova verdade despontou em mim.

"Não devo ser nem pastor nem coveiro. Não queronunca mais falar às multidões; pela última vez falei aum morto.

"O criador, o ceifeiro, o que celebra a festa, a estesquero unir-me: a eles quero revelar o arco-íris e todosos graus do super-homem.

"Aos solitários vou erguer meu canto e mesmo aoscasais que vivem em solidão. Quem ainda tiver ouvidospara o inaudito, a esse quero inundar o coração com aminha felicidade.

"Quero atingir a minha meta, seguir o meu caminho;saltarei por cima dos hesitantes e dos descuidados. Eque meu passo seja o seu declínio!"

Zaratustra dizia essas palavras em seu coração, en-quanto o sol estava a pino: então lançou um olharinterrogador para os altos cimos - pois ouvia acimade sua cabeça o grito agudo de uma ave. Eis que umaáguia atravessa os céus, descrevendo grandes círcu-los, a transportar uma serpente, não como presa, masamiga, pois esta lhe pendia no pescoço.

"São os meus animais!", dizia Zaratustra, regozi-jando-se de todo o coração.

"O animal mais altivo sob o sol e o animal maissagaz sob o sol; vieram saber notícias.

"Querem saber se Zaratustra continua vivo. Na ver-dade, será que ainda estou vivo?

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"Encontrei mais perigos entre os homens que entreos animais pois perigosos são os caminhos que trilhaZaratustra. Possam meus animais orientar-me."

A estas palavras, lembrou-se do que lhe havia dito osanto na floresta e suspirou, dizendo para si:

"Quem me dera ser mais sagaz! Quem me dera seressencialmente sagaz, como a serpente!

"Mas estou querendo o impossível, porque peço à mi-nha altivez que acompanhe sempre a minha sagacidade!

"E, se algum dia, minha sagacidade me abandonar -ah! como ela gosta de voar! - possa minha altivez seguirentão o vôo de minha loucura!"

E assim começou o declínio de Zaratustra.

Um novo profeta

Por que iria um pensador alemão do século XIX falar-nos pela boca de um profeta iraniano do século VII antesde nossa era, e pôr-nos à sua escuta?

Essa primeira pergunta, o próprio Nietzsche, sur-preendendo-se com o fato de que ninguém a fizera, asuscitará (Ecce Romo, t. VIII, voI. I). É que, mais quesimplesmente pertinente, essa questão é essencial, e aresposta de Nietzsche vai situar-nos no próprio centrode todo o seu pensamento, e, pois, no próprio centro dasteses do Zaratustra.

Percebemos logo alguma ironia na explicação fome-cida: Nietzsche diz ter escolhido Zaratustra precisa-mente para que seu personagem diga "exatamente ocontrário" (ibid.) do que disse o Zaratustra histórico.Assim, Nietzsche escolheu Zaratustra*2 para opô-Io aZaratustra*l.

E, de fato, ele os opõe radicalmente: de um lado, opapel do Zaratustra histórico consistiu, com efeito, nainvenção de um dualismo de inspiração moral, dualismo

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que explicava todas as coisas pela ação de dois princí-pios em luta, dualismo moral para o qual um dessesprincípios é o Bem e o outro o Mal. Essa invenção,Zaratustra a fez - segundo Nietzsche - extrapolandonossa experiência moral humana do bem e do mal,dando-lhe uma dimensão teológica (há um Deus Bem eum Deus Mal) e cosmológica (no universo, tudo' seexplica pela ação de um ou outro desses dois princípios,e por sua rivalidade); "a transposição, em metafísica,da moral (...), tal é a sua obra ..:' (ibid.). Ora, por outrolado, precisamente, é esse dualismo e esse momlismoque Zaratustra, o personagem literário, vai rejeitar, poisprecisamente é a recusa desse dualismo e·desse mora-lismo que constitui um ponto essencial do pensamentode Nietzsche.

Um ponto essencial, dissemos, e não O ponto essen-cial, pois esse ponto já é conseqüência de um outro,mais essencial ainda. O ponto mais profundo do pensa-mento de Nietzsche não poderia ser uma recusa. Nietzs-che tem uma razão positiva para recusar(l).

Mas se é o próprio Zaratustra que vem contradizer suaprimeira mensagem, não é apenas por ironia - a ironia deNietzsche nunca é gratuita - é porque o Zaratustra histó-rico foi - exatamente como Nietzsche - lúcido e sincero,e porque essa lucidez e essa sinceridade o teriam logica-mente levado a essa transformação operada pelo Zaratus-tra nietzschiano.

Nietzsche encontra a prova dessa lucidez no fato deque Zaratustra foi "o primeiro a ver" (ibid.) o funda-mento do real na oposição entre o bem e o mal. Enten-da-se bem que existem aqui duas idéias distintas: odualismo e a lucidez sobre a base desse dualismo.

Por um lado, o que Nietzsche observa é que Zaratus-tra foi o primeiro a pregar um dualismo e um moralismoque, recebidos depois, como herança, da Bíblia e daGrécia, impregnarão toda a nossa cultura.

Seríamos talvez tentados a fazer aqui algumas obje-ções: nem a Bíblia nem a fLiosofiagrega são tão delibe-radamente dualistas quanto o zoroastrismo. É verdadeque, do ponto de vista judaico-cristão, só há um princí-pio: Deus, princípio bom. O maniqueísmo que distinguedois princípios (um bom e um mau) é uma heresia. Mas,justamente, essa heresia é uma tentação constante, ten-tação denunciada ainda mais vigorosamente por sermais forte. Além disso, mesmo segundo a ortodoxiajudaico-cristã, se o demônio não é um princípio, nãodeixa de ser muito poderoso. Quanto à filosofia grega,se a oposição platônica, simultaneamente metafísica emoral, entre o mundo sensível e o mundo das Idéias,certamente nem sempre é admitida, concedamos entre-tanto a Nietzsche que ela ocupa ali um lugar central efundamental.

Mas, por outro lado, o que interessa a Nietzsche éprincipalmente o fato de que Zaratustra foi o primeiroa VER esse dualismo moralista, o primeiro a descobrirclaramente o fundamento moral de sua metafísica, aoperar deliberadamente essa transposição do ético parao cósmico, a discernir a "genealogia" moral da suaconcepção do mundo.

Ora, em linguagem nietzschiana, esse discernimentoé sinceridade: "O que eu chamo mentira: recusar-se aver algo que se vê" (O Anticristo, § 55, t. VIll, vol. I).Ser lúcido é, pois, ser sincero em relação a si mesmo,

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ter a coragem de suas opiniões, a coragem da verdade;é ter, antes da coragem de dizê-Ias, a coragem de pen-sá-Ias, de V~-LAS. É nesse sentido que Zaratustra foi"mais sincero que nenhum outro pensador" (Ecce Ho-mo, t. VIU, vol. I). E é por isso que Nietzsche o esco-lheu; em razão dessa sinceridade-lucidez quecaracteriza o próprio Nietzsche, dessa sinceridade-luci-dez que permitiu ao Zaratustra real ver o fundamentomoral de sua metafísica e que, agora, o obriga logica-mente a tornar-se o exato contrário do que ele era: oZaratustra nietzschiano.

§ 3 - A mesma lucidez vai levá-Io a tirar as conclu-sões desse fato, a destruir todas as ilusões que poderiamsubsistir, a perfazer a destruição da antiga cultura querepousava inteiramente sobre a idéia de Deus, a recusartanto o mundo transcendente da metafísica dualista,quanto a moral de que se nutriu essa metafísica, e à qual,em retribuição, a moral serviu de fundamento. Zaratus-tra vai, pois, por sua vez, trabalhar na DERRUBADA DOSANTIGOS VALaRES.

Mas a intenção profunda de Nietzsche é positiva,criadora; Nietzsche só rejeita e destrói para construir. Éo homem da moral tradicional, justamente por essemotivo que Nietzsche derruba a sua moral; Nietzschesó destrói uma moral para substituí-Ia por uma outra, eas exigências do imoralismo que ele defende são ocontrário das facilidades da imoralidade. Assim, se Za-ratustra se alegra com a morte de Deus, é que esse fatotoma possíveis novas construções, é que esse fato his-tórico constitui um novo princípio meta físico, e, a partirdaí, tudo, e até a esperança mais louca, é permitido, epoderá nascer uma nova moral, tão superior à moraltradicional, que se pode dizê-Ia super-humana, e poderánascer, animado de um justo desprezo pelo homem e suamoral, o SUPER-HOMEM:

§ 4 - É esse SUPER-HOMEM que, levado pela novavirtude de uma nova moral, A VONTADE DE POT~NCIA ~,vai proceder à segunda etapa da transmutação· dosvalores, isto é, à CRIAÇÃO DE NOVOS VALaRES, valoresnovos pelo fato de que nenhum ser transcendente estarápresente para impô-Ios.

§ 5 - Entretanto, mais desprezíveis ainda que oshomens, os ÚLTIMOS HOMENS· não compreendem o

Pode-se, a partir desse ponto central, apreender todo oencadeamento dos conceitos no Prólogo de Zaratustra,onde NIEfZSCHE INTRODUZIU UM A UM, EM TORNO DAIDÉIA CENTRAL DE SUPER-HOMEM, TODOS OS TEMASQUE SERÃO DESENVOLVIDOS PELA SEQO~NCIA DA

OBRA(2).§ 1 - Zaratustra nos é logo apresentado como O

ANUNCIADOR DE UMA COMPLlIT A TRANSFORMAÇÃOcultural, o profeta de uma nova civilização, nem grega,nem cristã, radicalmente nova.

§ 2 - É que a lucidez de Zaratustra lhe faz ver umnovo estado de fato: A MORTE DE DEUS·2; ninguém mais,em nossa civilização, salvo alguns homens· atrasados,acredita mais em Deus, nem mesmo na existência de ummundo transcendente.

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"tudo é permitido" como Zaratustra: para eles, isso nãosignifica "o homem é capaz de tudo", significa "ohomem tem todos os direitos"; não significa "gran-des coisas são possíveis" , significa' 'todas as peque-nas coisas são autorizadas". Compreendem que, seDeus está morto, não existem mais moral, nem dever,nem regra de vida; confundem o imoralismo com aimoralidade.

Condição necessária de uma nova moral, e, maisgeralmente, de uma nova cultura, a morte de Deus nãoé, pois, a sua condição suficiente; e, se não for animadapor uma nova exigência, pela virtude da vontade depotência'2, se for animada pela vontade de fraqueza oude nada, pode, ao contrário, conduzir à extrema deca-dência, muito mais baixa ainda que a antiga moral, aoNIILISMO'2 mais extremo. Eis o que a sua lucidezrevela a Zaratustra, e o que a sua sinceridade o obrigaa proclamar: a morte de Deus é ambivalente; elapermite imensas esperanças, mas também comportaum terrível risco.

§ 6 - Não existe nenhuma solução intermediária,nenhuma escapatória. Impossível tentar - como os HO-MENSSUPERIORES'- fazer como se Deus ainda existis-se. Deus está morto, total e definitivamente; é precisotomar plena e lúcida consciência desse fato.

§ 7 - Esta lição: com a morte de Deus, pode-se tudoganhar ou tudo perder, a multidão não quer compreen-dê-Ia, e Zaratustra experimenta um FRACASSO.

§ 8 - Entretanto, não há nada a lamentar, e quandose tiver completado o quadro-que, lucidamente, Nietzs-che estabelece das VIRTUDESHUMANAS,das virtudes

daqueles que ainda crêem em Deus, quando se tiverVISTOem que nível elas caíram, se poderá compreendermelhor o seu desprezo e o seu apelo para substituí-Ias,apesar do risco de cair mais baixo ainda.

§ 9 - Assim, Zaratustra não se desespera com ofracasso, pois sabe que, se a multidão é incapaz deapreender sua lição, alguns indivíduos de elite saberãocompreendê-Ia, e fazer-se, com ele, CRIADORES' dosuper-homem.

§ 10 - O Prólogo termina com o mais alto pensamen-to de Zaratustra, aquele de que só os criadores com-preenderão e só os super-homens saberão assumir; essepensamento nos deixa entrever o que poderia ser umanova visão do mundo, não-dualista, uma nová metafísi-ca, cujo objeto não se situaria "além" (meta) do con-creto físico, mas seria esse mundo físico, ao qual adoutrina do ETERNO RETORNO' dá toda a densidadeontológica que a sua temporalidade pareceria lhe retirar.Entrevê-se, ao mesmo tempo, em que seria sobre-huma-na uma ação desenvolvida em tal mundo.

Resta, antes de abordar o próprio texto, examinar ainda umponto, o do estilo do Zaratustra, o da forma inseparável -como sempre, e mais ainda que sempre - do fundo.

Se esse estilo, ao mesmo tempo profético e poético,é bastante incomum, é porque Nietzsche é incomum.Mas com isso não se deve supor simplesmente que ele

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se abandone a um temperamento pessoal de poeta entu-siasta: nada se ganha, querendo explicar Nietzsche porseu temperamento; todas as suas razões são muito maisprofundas, filosóficas; é por razões filosóficas queNietzsche é original; ou, pelo menos, sua originalidadetem sentido filosófico. Ver-se-á, de fato, que, pela trans-mutação dos valores, Nietzsche empreende uma con-testação radical de toda a nossa cultura, com oambicioso projeto de substituí-Ia por uma outra tãodiferente e superior que se pode dizê-Ia super-humana.É a este duplo empreendimento que está ligado o estilodo Zaratustra, e é assim que se pode explicá-Io:

Por um lado, nossa cultura se caracteriza por sua féna razão, sua confiança na ordem das coisas e do pen-samento; ela se pretende essencialmente "racionalis-ta": é esse racionalismo que começa com o método deSócrates. Sócrates, precisamente, inaugura essa cultura.É esse mesmo racionalismo que, durante dois milênios,imobiliza seus esquemas de pensamento na lógica deAristóteles. É ainda esseracionalismo que os teólogosintroduzem no religioso - antes que uma revoluçãopreste culto à deusa Razão. É ele que se renova e inventaa ciência, com o método cartesiano; é ele ainda que seencontra, outra vez renovado, na dialética de Hegel eseu famoso "o que é racional é real, e o que é real éracional" (3).

Contestar essa cultura será, pois, contestar a confian-ça nessa razão, será ao menos contestar que sua compe-tência seja sempre, e em tudo, suficiente.

Ver-se-á, por outro lado, que as características essen-ciais da nova cultura, à qual aspira Nietzsche, são a

criação, a espontaneidade, a' arte, das quais o jogo, aatividade infantil ou a dança são as melhores imagens,e Dioniso', deus da embriaguez e da dança, e não maisSócrates, seria o símbolo. O que pretende Nietzsche éuma cultura na qual o dionisíaco, sufocado desde aGrécia clássica pelo apolíneo e pelo socratismo, reen-contraria o seu justo lugar (sobre esses termos e essestemas, cf. O nascimento da tragédia, t. I, voI. I).

É por isso que, às "longas cadeias de razões", quetanto seduziam Descartes, Nietzsche prefere a poesia, oprovérbio, o aforismo, a alegoria, o canto ditirâmbico,a metáfora, a máxima, a paródia, toda essa profusão queconstitui a forma excepcional do Zaratustra. Existemnele um pensamento e uma expressão que procedemdessa outra cultura anunciada e não são formados pelosmoldes de nossa cultura racionalista.

O comentarista não ignora que infringe essa exigên-cia fundamental ao traduzir o pensamento de Nietzscheem termos prosaicos e em processos racionais. Mas,entre os maiores pensadores, a inspiração poética emnada prejudica o rigor do pensamento, que ela realça,ao contrário. Escutemos, a esse respeito, Paul Valéry -um ourives em matéria de aliança entre rigor e poesia -quando observa, em Nietzsche, , 'não sei que íntimaaliança do lírico e do analítico, que ninguém aindatinha tão deliberada mente consumado (...) No jogo des-sa ideologia alimentada pela música, eu muito aprecia-va a mistura e o uso muito feliz de noções e de dados deorigem erudita" (4). Disso resulta que o essencial dopensamento de Nietzsche escaparia a quem visse noZaratustra apenas um magnífico poema, cujo leitor -salvo exceção extremamente improvável de um visio-

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2. Uma transformação completa.O anúncio de uma nova cultura

(Prólogo, § 1)

"quando tinha trinta anos, Zaratustra deixou sua terranatal, e o lago de sua terra natal, e foi para as monta-nhas. Lá, durante dez anos, cultivou seu espírito e asolidão".

Para Platão, o sábio, aquele que contempla o sol -símbolo do Bem(7), fonte suprema de todos os conhe-cimentos e de todas as realidades - é aquele que escapouda caverna, onde o comum dos mortais vive na ignorân-cia(8); no exato oposto, Zaratustra, aquele que "pôs-sediante do sol e lhefalou assim", vive numa "caverna",onde o sol vem iluminá-lo.

Assim os adversários são logo claramente designa-dos, e estamos no nível mais alto: Jesus Cristo, Platão.

Esse nível mais alto é, ao mesmo tempo, o maisradical: Jerusalém, Atenas, são, em sua raiz, toda acultura ocidental (sua religião, sua filosofia, sua arte,sua ciência, sua moral), indissoluvelmente grega e ju-daico-cristã, cujo desuso Zaratustra constata e cujasubstituição preconiza. Anti-Jesus Cristo, anti-Platão,Nietzsche pode também ser caracterizado como o anti-Hegel, pois Hegel apresenta seu pensamento como oacabamento da cultura que ele engloba e coroa, enquan-to Nietzsche, ao contrário, recusa essa cultura em suaprópria base: segundo ele, e por meio dele, é toda acivilização que desmorona, e deve recomeçar de zeropara construir outra coisa.

Mas, justamente por ser radical, o procedimento deZaratustra não parte de uma crítica de Platão e deJesus Cristo; seu ponto de partida está aquém dessacrítica, e seu pensamento se enraíza e germina deoutra forma.

nário em perfeita afinidade com Nietzsche - é obrigadoa uma lenta decifração. É essa a desculpa do comenta-rista, que quer ajudar o leitor nessa decifração, semprejudicar a emoção poética, mas, ao contrário, parafavorecê-Ia, já que, para o próprio Nietzsche, ela só valepor estar a serviço de uma verdade.

É a mesma aliança de rigor e poesia que se encontrana combinação de lenta reflexão e brutal inspiração quepreside à composição do Zaratustra. Por um lado, cadauma das quatro partes foi escrita com uma incrívelrapidez, em uma dezena de dias, e Nietzsche narra aformidável inspiração de que gozava em Rapallo, Sils-Maria e Nice, durante esses períodos de exaltação:"Ouve-se, não se procura; (...) um pensamento vosilumina como um raio" (Ecce Homo, t. VIII, voI. 1)(5).Por outro lado, vários meses, o tempo da maturação,separam as redações das diferentes partes. A primeirafoi escrita no começo de 1883, a segunda durante overão do mesmo ano, a terceira no começo de 1884, e aquarta somente no início de 1885.

a) Uma crítica radical de toda a nossatradição cultural

Aos trinta anos, Jesus Cristo desceu às margens doJordão e começou sua vida pública(6); no exato oposto,

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Segundo PIa tão, existe um outro mundo, mundo dasIdéias, das coisas em si, em relação ao qual este mundosensível não tem mais consistência que uma sombra; eo conhecimento, o verdadeiro saber, ultrapassa a sim-ples opinião, justamente porque não se refere ao mundosensível, mas relaciona-se com o mundo inteligível, doqual o sensível é apenas um vago reflexo(9).

Ora, o pensamento de Zaratustra se situa além e temseu ponto de partida aquém dessas oposições sensí-vel/inteligível, opinião/saber. Ele recusa a oposiçãoentre além e aquém, inteligível e sensível, ele os recon-cilia. O empirismo que se liga aos fatos, o realismo quese cola ao real, como "uma serpente"', animal destemundo, que rasteja no solo, e o racionalismo, as grandesidéias, o idealismo, os sobrevôos da "águia"', animaldo alto, são ambas, ao mesmo tempo, familiares deZaratustra.

Logo avaliaremos melhor a importância desse pri-meiro tema, e perceberemos que, através de Platão, étoda a nossa cultura - platonizante - que é visada porNietzsche.

Mas ele também recusa o Deus cristão, essencial-mente moralizador e culpabilizante. A reconciliação daserpente e da águia é também, e principalmente, a re-conciliação do diabo (a serpente do Gênese) e do bomDeus (Júpiter e sua águia). D Deus cristão, escarnecidopor nosso pecado original, que vem, em pessoa, resgataressa falta com sua dor, aumentando assim o nossoremorso, o nosso sentimento de culpa e de indignidade,envenenando nossas felicidades terrestres, sempre ime-recidas e vis em face do que ele propõe, dá lugar ao astro

que encontra a sua felicidade nos homens: "Grandeastro! Qual seria tua felicidade sem aqueles a quemiluminas?' •

O profeta do remorso, "lumen de lumine"(IO), dálugar a Zaratustra, profeta da felicidade, que desce àterra, como o sol em seu declínio, para que escorra aágua dourada capaz de levar a toda a pane o reflexode tuafruição!"(ll); assim, do mesmo modo que Deusse encarnava em Jesus Cristo para levar a sua mensa-gem ("Homo factus est")(12), "Zaratustra quer (...)ser homem".

Precisemos entretanto que, antes que como "o Anti-cristo", Zaratustra se mostra como o anti-São JoãoBatista (Nietzsche fará quase explicitamente a compa-ração, cf. Assim falou Zaratustra, quarta parte, "Osinal"). De fato, mesmo apresentando várias de suascaracterísticas, Zaratustra não é o próprio super-ho-mem, mas vem anunciá-lo (cf. Prólogo, § 3), vem,segundo a fórmula do livro de Isaías(13), retomada apropósito de João Batista nos três evangelhos sinóticos,"preparar suas vias e aplainar seus caminhos".

Poderia se julgar contestável a visão que Nietzschetem do Deus cristão e da missão redentora de JesusCristo, visão certamente influenciada por um luteranis-mo particularmente severo, mas nos parece essencialnotar que, aquilo que ele opõe a essa visão não é, porisso, menos profundo ou menos interessante.

Aliás, a recusa de Deus não é a recusa apenas doDeus judaico-cristão; é também a recusa dos deusesantigos, sob todas as suas formas.

Efetivamente, é, por um lado, a recusa de deuses quepassariam, longe, no Olimpo, indiferentes a tudo o que

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diz respeito a este mundo, uma eternidade de felicidade.Niet71>chenão é um novo Epicuro, não é assim que elequer nos libertar do temor aos deuses; a morte destesnão deve sua retirada para o além. Ao contrário, o solde Zaratustra encontra a sua felicidade nos homens queilumina. "A natureza te parece, livre, isenta de senhoresorgulhosos, fazer tudo por si mesma (...), sem a partici-pação dos deuses (...), que levam uma vida sem pertur-bação", felicitava-se o epicurista Lucrécio(14). É a eleque Niet71>cheresponde quando Zaratustra se alegra:"Grande astro! Qual seria tuafelicidade sem aquelesa quem iluminas?"

Mas, se a Antigüidade prefere ver os deuses bemlonge, é porque, quando estes se ocupam dos homens, épara invejá-Ios; ciumentos, punem o homem por causade suas ambições e de seus êxitos, coisas que, de direito,lhes são reservadas, e que o homem não pode ter semcometer o pecado - mortal - da hybris: "Olha as casasmais altas, e também as árvores: sobre elas desce o raio,pois o céu sempre rebaixa o que ultrapassa a medida(...), pois só a si mesmo permite o orgulho."(15) É porisso que Zeus pune Prometeu, que, oferecendo o fogoaos homens, deu-Ihes um poder excessivo.

Diante desses deuses, o sábio antigo é aquele que,prudente, conserva-se modesto, e que, para viver feliz,vive escondido (dos deuses): "Terás a sabedoria dereduzir tuas velas, excessivamente infladas por um ven-to favorável."( 16)

Mas, Zaratustra, novo doador do fogo, nada teme: osol ao qual ele se dirige pode "contemplar sem mágoauma ventura tamanha!". Assim corno não aceita o

remorso, Niet71>chetambém não aceita a inibição, amediocridade prudente, o ""nada de ruidos, nada devagas!" ou o temeroso "contanto que dure" .

b) Panorama da nova cultura

Mas a fmalidade essencial já está determinada. Partindode novas bases, de novas raizes, Zaratustra anuncia ainstauração de uma nova cultura. Nossa cultura judai-co-grega, sua moral, sua ciência, sua arte, têm comoresultado essencial instaurar um mundo de valores, deideais - o bem, o verdadeiro, o belo, todos mais oumenos confundidos com o sagrado - e julgar todas ascoisas por referência e esses valores. Retomando essacultura em sua raiz, Niet71>chepretende derrubar todaessa hierarquia e substituí-Ia por outra, com uma raizdiferente.

É essa derrubada e essa reconstrução que Zaratustravem anunciar: "Quero oferecer (...) para que os sábios(...) de lIOVO se rejubilem de sua loucura, e os pobresvenham de lIOVO a amar sua riqueza.'"

Assim, a sabedoria, a felicidade, serão loucura. Es-tamos muito além das sabedorias racionais, tristes emesquinhas, longe da resignação do estóico e do prazeravaramente calculado do epicurista.

Assim, a pobreza será riqueza e felicidade. Estamosmuito além dos valores econômicos, materiais; a críticanietzschiana dos valores utilitários do seu século - e donosso - será feroz (Prólogo, § 5). Mas também estamosmuito longe do Sermão da Montanha, que promete ao

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Zaratustra é um verdadeiro menino, não vem gravemen-te, adulto antes da idade, ocupar-se dos assuntos de seupai(18); menino depois da idade, brinca, é "um dança-r; no" . O que Zaratustra prefigura aqui é o super-homemque ele vai anunciar: essa criança(19) - sem passado,imprevisível, despreocupada -, esse dançarino - criadorespontâneo de gestos harmoniosos -, é o criador denovos valores, o criador de uma nova cultura, nemsocrática, nem cristã.

A luz que Zaratustra quer difundir é o segredo queele guardou durante dez anos, o fogo que ele deixouarder sob as cinzas, no alto da montanha, e com o qualele quer agora abrasar o mundo dos homens;'a notíciaque o alegra assim é que, como proclamará no fim docapítulo, "Deus está morto."

Por que essa notícia é tão rejubilante?

pobre o reino dos céus( 17); é outra coisa que prometeNietzsche, que sempre suspeita aqueles que pregam umoutro mundo de querer denegrir o nosso.

E essa transmutação é a restauração de uma ordemantiga: "que os sábios (...)DE NOVO (••. ) e os pobres DENOVO"; a derrubada de todos os valores é uma correção.Zaratustra vem apagar um pecado original de nossacultura, que inverteu os valores, vem restituir ao homemuma ordem natural.

"Zaratustra está mudado, Zaratustrafez-se criança."Aqui, ainda, é em relação a Jesus Cristo que se defme onovo profeta, pois há, evidentemente, uma comparaçãocom a encamação divina no menino Jesus. É porquetambém ele faz essa comparação, que o eremita· cristãoencontrado por Zaratustra, que se lembra da crucifica-ção de seu Mestre, surpreende-se com essa descida àterra, e previne Zaratustra: •.Pobre de ti, queres acos-tar? Queres de novo, infeliz, arrastar teu própriocorpo?"

Mas Nietzsche só compara Zaratustra a Jesus paramelhor opô-los. Jesus é triste, seu olhar é aflito, pois ohomem é mau e não merece o amor que ele lhe dágratuitamente. Quanto a Zaratustra, ao contrário, "Seuolhar é límpido, e sua boca não encerra mágoas";

b) A morte de Deus, destruição do dualismo

A morte de Deus anunciada por Zaratustra não é,evidentemente, a crucificação de Jesus Cristo, na qualpensa o eremita; e, de um certo modo, o "Deus estámorto" se opõe ao "Jesus ressuscitou" (Morte deDeus·I).

A morte de Deus·2 é, antes de mais nada, esse fato,que Nietzsche constata: na civilização do século XIX,depois do século dos filósofos, que pregavam as "Lu-zes" contra o obscurantismo e a tolerância contra ofanatismo, depois da Revolução Francesa, que retirou o

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poder político ao soberano de direito divino, até o sécu-lo da ciência positiva, da eficiência industrial e dasrevoluções políticas, o lugar de Deus fez-se cada vezmenor, e, pouco a pouco, Deus desapareceu. De modogeral, a morte de Deus é, pois, e em primeiro lugar, umfato; e esse fato, resta ao filósofo interpretá-lo.

Restar-lhe-á, depois, tirar as conseqüências previsí-veis desse fato, pregar aquelas que são desejáveis (Pró-logo, § 3 e § 4), e denunciar as que se deve temer(Prólogo, § 5 e § 6).

Pode-se imediatamente interpretar a morte de Deuscomo o DESAPARECIMENTODA NoçAo DE "ALÉM" DOCAMPO DE NOSSA CULTURA; ela é, primeiramente, amorte do além, a supressão da crença em um outromundo.

Ora, essa crença em um outro mundo, transcendenteao nosso, esse dualismo, constitui o traço essencial efundamental de nossa cultura.

É a oposição entre este mundo e o além, que cada umtraduz em sua linguagem, o religioso falando do sagradoe do profano, de existência terrestre e de vida sobrena-tural, o filósofo falando do sensível e da Idéia, dofenômeno e do númeno, do aparecer e do Ser, o psicó-logo, seguido pelo moralista, opondo a alma e o corpo,o cientista opondo o fato bruto à lei matemática que oexplica. Toda a nossa cultura se resume assim nessadesconfiança em relação a tudo aquilo que é imediato,só sendo considerado como real e digno de atenção oque está por trás, o mediato. O sábio é então aquele quenão se deixa iludir; ser culto é saber desconfiar, comose deve, daquilo que é dado; é afirmar, não sem algum

desprezo por quem não o vê (esse é o sentido da ironiasocrática), que há por trás, além, algo mais fundamental.E cada um em seu domínio de competência, padre,filósofo, cientista, trata de explicar o melhor que podeesse além.

Poderíamos achar um pouco apressado esse amálga-ma de conceitos vindos de horizontes diversos, se suaaproximação fosse superficial. Mas é no nível radical -e precisamente não superficial - da inspiração profun-da, que Nietzsche descobre ali um querer comum, umaintenção comum, de depreciação do aqui e de valoriza-ção de um alhures, que se pode caracterizar como umplatonismo, platonismo um pouco caricatural: a visãonietzschiana de um pensamento ocidental sempre pla-tonizante, nesse sentido amplo, é talvez tão contestávelquanto sua visão do cristianismo. Mas, de qualquermodo, aqui também, essa visão perde um pouco de seualcance - e quem o lamentaria? - mas nada perde de suaprofundidade, nem, pois, de seu interesse(20).

Em outros termos, toda a nossa cultura é, pois, paraNietzsche, fundamentalmente negativa, negadora, NII-LISTA*I;para ela este mundo nada vale, tudo o que nelese percebe é ilusão, tudo o que é humano é maculadopelo pecado; Jesus tem razão de ser angustiado. Zara-tustra é, ao contrário, aquele que experimenta "umaventura tamanha" (Prólogo, § 1), aquele que pode dizer••amo os homens", aquele que prega uma cultura posi-tiva e afirmativa. E, quando tivermos descoberto a queponto essa oposição entre afmnação* e negação* é funda-mental, compreenderemos melhor por que a morte deDeus*5 alegra assim Zaratustra: ela é, a seus olhos, o

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prio amor a Deus o desviou dos homens, que não mere-cem o amor que se pode ter por eles: ele "amavademasiadamente os homens".

Deve-se medir bem a gravidade dessa confissão doeremita; ele reconhece ter renunciado ao preceito doamor ao próximo pelo amor de Deus, que constitui odever essencial segundo o ensinamento moral de JesusCristo(21). Assim, Nietzsche não somente opõe-se àmoral cristã ideal, mas, além disso, constata que esta,na prática efetiva, caiu bem abaixo das exigências deseu fundador. Veremos, de fato, (Prólogo, § 8), queNietzsche inscreve essa recusa do amor ao próximo nointerior de uma degradação mais geral da moral tra-dicional no homem.

Assim, os homens são esmagados pelo peso dosvalores, das coerções e das instituições situadas nooutro mundo. Ainda nesse ponto, Zaratustra se opõeradicalmente a Jesus; este último veio ajudar os homensa carregar esse peso, e o santo eremita sugere a Zaratus-tra que faça o mesmo: "Não lhes dês nada (00') Épreferível aliviá-los de alguma coisa que possas carre-gar com eles." Mas Zaratustra recusa; ele não vem"redimir" os homens, partilhar seu fardo; vem supri-mi-Ia, livrá-Ias do além; e é por isso que ele podeironizar e responder ao eremita, que, certamente, nãopensava assim, mas, sem compreendê-Ia bem, aceita abrincadeira: "Mas deixai-me partir depressa, antes quevos tire alguma coisa!"

Mas, na realidade, a supressão do além é um dom, éa libertação do homem escravizado a esse além: "Tragoaos homens um presente"; e não se trata de uma mísera

desmoronamento de um modo de ser e de pensar nega-tivo; desmoronamento que constitui a primeira etapa doadvento de um modo de ser e de pensar afirmativo.

Desse ponto de vista, Nietzsche faz mais do queconstatar a morte de Deus*2, e mais do que alegrar-secom ela; ele provoca a morte de Deus*5. Mais preçisamen-te, ao menos para ele, e este é o sentido da mensagemde Zaratustra, é a substituição que produz o desmorona-mento, é a nova metafísica nascente que derruba a antiga.De modo que, a bem dizer, não é porque Deus estámorto que Zaratustra está alegre, é, antes, porque Zara-tustra está alegre que Deus está morto; são essa alegriae esse pensamento afirmativo que, em sua ação criativa,produzem a morte de Deus.

Ao mesmo tempo, os efeitos dessa alegria têm seualcance moral. É que, como sabemos, o dualismo étambém, e primeiramente, moral: de um lado, há o reinode Deus - que não é deste mundo - e, de outro lado, estemundo - cujo príncipe é o diabo. E, então, não é maisapenas este mundo, não é mais apenas o corpo humanoque são assim desvalorizados, denegridos; é o própriohomem em sua integralidade, corpo e espírito, que émau, culpado, maculado, originalmente pecador. É porisso que o eremita, que mede o homem pela medida deDeus, pode dizer: "amo a Deus; e não aos homens.Acho por demais imperfeito o ser humano". Seu pró-

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esmola, Zaratustra é rico demais para isso: "Não soubastante pobre"; trata-se de nada menos que de umareabilitação, de uma volta ao próprio homem, de umadesalienação, de uma restituição ao homem de sua hon-ra perdida. A porta está aberta para a segunda etapa datransmutação*: Deus está morto, é preciso situar emoutro lugar os valores morais. -

E esse outro lugar é o próprio homem; Zaratustratira-lhe um fardo, mas impõe-lhe um outro, ainda maispesado porque é um fardo digno de um super-homem.

o primeiro discurso deZaratustra

1. Do homem ao super-homem(l).A derru bada dos antigos valores,

primeira etapa de sua transmutação(prólogo, § 3)

Mas suprimir o fardo do transcendente não é suprimirtodo dever. NietlSche não prega a facilidade, a displi-cência, que caracterizam o último homem; ele prega, aocontrário, .o dever da superação, do avanço em direçãoao super-homem: ••Eu vos proponho o super-homem. Ohomem é algo que deve ser superado."

Essa idéia do super-homem é a idéia essencial doPrólogo, é o único dos conceitos fundamentais do pen-samento de NietlSche que ali está explicitamente no-meado (os outros conceitos fundamentais: Niilismo,Vontade de Potência, Eterno Retomo, estão certamentepresentes, mas implícitos).

Mais precisamente, é esse o tema central do primeirodiscurso de Zaratustra, discurso central, fundamental,que compreende as partes 3,4 e 5 do Prólogo e constituio prólogo propriamente dito, já que, terminando-o,

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Nietzsche explica de que modo não se deve compreen-dê-Ia. Antes de dizer-nos o que deve ser o super-homem,Nietzsche nos diz o que ele não é de modo algum. Essasuperação, não se deve, de modo algum, entendê-Ia -como fazem a moral e a meta física tradicionais - comouma superação do corpo pela alma: o super-homem nãoé um puro espírito.

De fato, tradicionalmente, a meta física opõe essesdois aspectos da nossa natureza: o homem é um serhíbrido, que tem em si, como dizia Pascal, algo do anjoe da besta(2). Tradicionalmente, estabelece-se uma hie-rarquia entre esses dois aspectos da natureza humana,e, tradicionalmente, mostra-se o homem dividido entreessas duas partes de si mesmo. E, também nesse ponto,Atenas e Jerusalém estão perfeitamente de acordo. Porum lado, a alma participa do divino, "quando se olhapara ela, e quando se reconhece tudo o que ela tem dedivino, é assim que o homem poderá melhor conhecer-se"(3). Dando-lhe essa alma, Deus pode dizer: "Faça-mos o homem à nossa imagem"(4). Por outro lado, ocorpo, espaço do desejo e da tentação, é uma prisão, daqual a filosofia, e depois a morte, fazendo-nos escapara este mundo, nos libertam(5J: -

Nietzsche reconhece a natureza compósita do ho-mem e até alarga o leque pascaliano, desde o infra-ani-mal até o ultra-angélico, tomando-se o homem' 'um serhíbrido entre a planta e o espectro." Mas, imediata-mente, precisa que o novo ser, cujo advento prega, nãodeve abandonar um dos dois aspectos dessa natureza embenefício do outro: "Porvelltura ordenei que vos tor-násseis espectro ou planta?" Nietzsche não vem,depois de tantos outros, convidar o homem a escolher

Nietzsche afirma: "Com isso teve fim o primeiro dis-curso de Zaratustra, também chamado prólogo."

O que designa esse termo? O que é o super-ho-mem?

O anúncio do super-homem é imediatamente seguidode uma alusão às teorias evolucionistas de Darwin:"Até então, todos os seres imaginaram algo superior,acima de si mesmos (...) Oque é osímio para o homem?(...) E é justamente isso que o homem deve ser para osuper-homem."

Mas não se deveria tomar essa passagem ao pé da letra,e esse exemplo é particularmente representativo do usoque Nietzsche faz da ciência: não utiliza o evolucionismocomo argumento, mas como comparação pedagógica,imagem. Assim, o super-homem não é uma nova espécie,engendrada pela seleção natural, que substituiria o homematual, como a espécie homo sapiens substituiu espéciesanteriores de símios (contra uma tal interpretação, cf.principalmente Fragments posthumes, 1888, t. XIV, p.233; também Ecce Homo, t. VIII, vol. I, p. 278). O super-homem não pertence a uma nova raça(l).

Mas existe nisso um imperativo: se o super-homemé o que o próprio homem poderia ser, é, ao mesmotempo, o que o homem deve ser depois da morte deDeus: "O homem é algo que DEVE ser superado."

Mas, antes mesmo de dizer-nos de que modo é precisocompreender essa superação do homem por si mesmo,

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entre duas naturezas. É porque, como já dissemos,Nietzsche vê em tal divisão uma nova forma do dualis-mo da metafísica tradicional, que se prolonga nessaoutra hierarquia igualmente difundida em nossa cultura.Nietzsche não vem forçar o homem a destruir umametade de sua natureza para fazer triunfar a outra; eleinsiste para que ele desenvolva plenamente os doisaspectos de sua natureza.

Se o super-homem não é o puro espírito desencarna-do da metafísica tradicional, é ainda menos, como seprevia, o homem voltado para o além, desprezando estemundo, dessa mesma metafísica tradicional; ele é, aocontrário, aquele que recusa a Deus, que não crê noalém, mas acredita apenas na terra: "O super-homem éo sentido da terra (... ) Outrora, a injúria a Deus era amaior das ofensas, mas Deus está morto, e com elemorreram seus detratores. O terrível, agora, é injuriara terra, pois seria dar mais valor às entranhas doinsondável que ao sentido da terra!"

Em que tudo isso é super-humano? Antes de responder(Prólogo §4), Nietzsche vai aprofundar ainda a sua análisedo nülismo. Vai assim revelar-nos a presença da vontadede negar subjacente à nossa cultura dualista e, ao mesmotempo, mostrar-nos com que embuste, com que passe demágica, essa vontade de negar conseguiu se impor.

Para perceber a presença da vontade negativa, doniilismo, em toda a nossa cultura, basta fazer a pergunta- tipicamente nietzschiana - da genealogia: Qual é aorigem dessa cultura dualista? Qual é sua genealogia?QUEM pensou tais oposições? Quem é o homem quepensa assim? Que QUER ele?

Seria tentador responder que o homem só rebaixaeste mundo profano, sensível, terrestre, bruto, corporal,para melhor exaltar o outro, sagrado, supra-sensível,ideal, matemático, imaterial, eterno. Mas Nietzsche,que julga a origem pelos resultados, percebe que éexatamente o inverso que é verdadeiro. Não se depreciaum universo para exaltar um outro, inventa-se um uni-verso magnífico para melhor depreciar o primeiro. Oque quer primeiramente o dualismo é denegrir, rebaixar,reduzir a nada; o dualismo é niilismo'l: "Não acreditaisnos que vosfalam de esperanças ultraterrenas! (... ) Sãogente que despreza a vida, seres agonizantes, igualmen-te intoxicados (...) Outrora, a alma olhava o corpo comdesprezo, e esse desprezo era o que havia de mais sublime.(...) Oh, mas essa alma era também magra, horrenda efaminta, e a cmeldade era toda a sua volúpial"

Evidentemente, se é uma vontade de negar, de desa-creditar, que Nietzsche discerne no fundamento da me-tafísica, e, mais geralmente, no fundamento da culturado homem', será, inversamente, uma vontade de afIr-mar, de valorizar, que caracterizará a nova cultura, a dosuper-homem.

Esse ponto, absolutamente capital, vai permitir-nosapreender mais profundamente o pensamento deNietzsche, aplicando-lhe, por sua vez, a questão dagenealogia.

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Até agora, apresentamos sua recusa do dualismo edo moralismo como ponto de partida de sua filosofia.Mas, antes de desenvolver os dois temas negativos daderrubada dos valores e da morte de Deus, o Prólogocomeçava pela veneração de um novo Deus. Com-preendemos agora que Nietzsche não poderia partir deuma recusa, de uma negação, e assim podemos escavar,um pouco mais profundamente ainda, à procura dasraizes dessa filosofia. Essa recusa do dualismo mora-lista, na verdade, não é um axioma imotivado, umponto de partida absoluto; tem a sua razão profundae repousa sobre uma vontade positiva. A vontadeprofunda de Nietzsche não poderia ser uma vontadede negar, de destruir, de recusar. Nietzsche não éfundamentalmente crítico nem está tomado de ne-nhum ressentimento. Se prega "o grande desprezo"para com a nossa civilização e sua moral, é porquetem algo melhor a propor; não inventa outra paradenegrir esta (querer negativo), mas, ao contrário, sósecundariamente a denigre, em sua veneração pelaoutra, que ele chama e anuncia (querer positivo). ParaNietzsche, é a vontade de afirmar, de dizer sim à vida,sim ao ser, é a vontade de criar e de criar-se a simesmo que dá valor às coisas e aos atos, e, evidente-mente, é essa vontade que é a primeira. É isso queAndré Gide já havia admiravelmente compreendido eadmiravelmente dito: "Sim, Nietzsche demole; elesolapa, mas não como um desalentado, ele destróiferozmente. Nobremente, gloriosamente, sobre-hu-manamente, como um conquistador novo viola coisasvelhas. O seu fervor, ele o transmite a outros para

construir ( ...) Demolir, Nietzsche? Ora! Ele constrói -ele constrói, digo-lhes! Ele constrói vorazmente"(6).

Mas, precisamente a sua vontade positiva, a suavontade de construir, encontra imediatamente em seucaminho, em sua marcha construtiva, o obstáculo detoda a nossa civilização dualista e moralista, comple-tamente impregnada - como ele mostra - de umavontade de negar, de macular, de rebaixar; e é por issoque sua primeira providência será a destruição dessacivilização. Mais exatamente, pois acontece que esseobstáculo está perdendo a sua importância, e aconteceque a metafísica dualista está em regressão, a primei-ra providência de Nietzsche será, simplesmente, co-laborar para o seu declínio. Assim, na ordem lógicados conceitos, segundo a ordem das razões, segundoa ordem genealógica, A IDÉIA DE VONTADE DE AFIR-MAÇÃO É A PRIMEIRA, EM RELAÇÃO A IDÉIA DE DERRU-BADA DOS VALORES E A IDÉIA DE MORTE DE DEUS - édaquela que derivam estas: "Os que desprezam comintensidade (... ) sabem venerar intensamente" (Pró-logo, § 4).

Encontra-se o mesmo movimento do negativo e doafirmativo na sucessão das obras de Nietzsche: as gran-des obras críticas, negativas, pois, (Humano demasiadohumano, Aurora, A gaia ciência, I a V) são cronologi-camente anteriores ao Zaratustra, obra afirmativa dosuper-homem e do eterno retorno; mas, logicamente, oessencial é o positivo, só a afirmação do super-homeme do eterno retorno dá todo o seu sentido à crítica queNietzsche retomará posteriormente (Além do bem e domal, Genealogia da moral, O Anticristo). Compreende-

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d) o homem e sua moral reativa; a hora do"grande desprezo"

tafísica dualista, como Zaratustra - o Zaratustra"histórico - já sabia, é o resultado de uma moral. É,pois, nessa moral que a investigação genealógica vainos mostrar em ação essa vontade de negar, de macu-lar, de desacreditar; e é assim que vamos compreen-der o seu modo de funcionamento, o seu êxito, e daíapreender melhor o que será, inversamente, o com-portamento do super-homem.

O que se percebe é uma cumplicidade da vontadenegativa, niilista, com as forças reativas (ação ereação').

Que significa isso? Nietzsche, como veremos, serálevado a considerar a totalidade do ser como uma pro-fusão de forças que se opõem ou se conjugam, mistu-ram-se e influenciam-se mutuamente. É essa, serecusarmos, como ele, falar de um mundo mais essen-cial e estável, a descrição mais satisfatória que somoslevados a dar desse único mundo existente (cf. em nossoCapo III o § 5 b, pp.11l-1l2)(8). Ora, podemos distin-guir duas espécies nessas forças que constituem o mun-do: as que agem e as que reagem, que sofrem a ação; asforças ativas e as forças reativas (um corpo está emmovimento, seja porque é motor, seja porque é movido,a planta cresce sob o efeito de sua ação própria, ela écortada, sob o efeito da força ativa de quem a corta,sofrendo essa ação, dobrando-se passivamente, reagin-do à ação de quem a corta; do mesmo modo, executo talou qual ato, seja porque o decidi livremente - ação -seja porque obedeço - reação). O que Nietzsche perce-be, e Zaratustra vai agora fazer-nos compreender, é queem toda a parte a vontade negativa faz triunfar as forças

se que, conseqüentemente, não se poderia, em casoalgum, aderir a uma certa opinião muito divulgada eformulada, por exemplo, por Eugen Fink, segundo aqual "esse método de Nietzsche dá margem a extrapo-lações: também poderia ser aplicado ao próprio Nietzs-che. Teríamos o mesmo direito de perguntar o quesignifica o fato de que um homem só veja espírito devingança na moral do amor ao próximo, só veja neurosena veneração de Deus. Uma tal psicologia das profun-dezas não é, ela própria, a expressão de uma vida queestá morrendo, de uma vida cega para o valor?" (7).Toda filosofia de Nietzsche desmente essa leitura; oprofeta do super-homem certamente não exprime' 'umavida que está morrendo", o apelo à criação de novosvalores não se deve a "uma vida cega para o valor".Aliás, não é no amor ao próximo em si, nem na venera-ção de Deus em si, que Nietzsche vê "vingança eneurose"; é num certo amor e numa certa veneração.

Mas é preciso remontar ainda mais longe na genealogia.Resta descobrir como, com que mistificação, a vontadede negar conseguiu impor-se. De onde vem esse triunfoda difamação?

Para compreender, deve-se examinar esse niilismoem seu aspecto moral, pois não esqueçamos que a me-

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reativas e calar as forças ativas; em toda a parte ela faztriunfar aquele que obedece e em toda a parte ela obriga olíder a calar-se. O que triunfa na moral do homem é apequenez, a parcimoniosa medida, a obediência, a reação.

A primeira etapa no caminho que conduz ao super-homem será, pois, a etapa moral, onde se tomará cons-ciência dessa total derrubada dos papéis; será, pois, ahora do "grande desprezo" para com a moral reativa.E é para esse grande desprezo que Zaratustra apela,examinando um a um, enumerando-os rigorosamente,todos os conceitos fundamentais da nossa moral tradi-cional(9). Em toda a parte, ele vai apelar para que setome consciência do caráter pobre, temeroso, e armalvingador das noções e da vida morais. Em toda a parte,ele vai nos mostrar como a vontade de negar privilegiaa frágil docilidade. Ao mesmo tempo, começando aesboçar por contraste o retrato do super-homem, ele vaiem toda a parte sugerir como uma outra moral, super-humana, poderia pensar essas mesmas noções morais eser vivida.

Desprezar A FELICIDADE será constatar que se fazdela uma reação passiva e um pouco .envergonhada,enquanto "minha felicidade deveria ser a própria jus-t!ficação de minha existência!", enquanto ela deveriaser, se não a finalidade da vida - veremos (no mesmocapítulo, no § 2 d p. 77) que aquele que a atinge não sepreocupa com isso -, ao menos seu acabamento aprópria marca de uma plena atividade coroada de êxito.Será ver que as filosofias que fizeram da felicidade ofundamento da moral a espoliaram de todos os seuselementos ativos, dinâmicos, para ver somente nela uma

resignação passiva, como os estóicos, ou uma prudenteataraxia, como os epicuristas, ou ainda, o que é pior,uma beatitude futura, que depende menos de minhaatividade que da de Deus.

Desprezar a RAZÃO, isto é, a consciência moral,segundo Kant, será discemir nela o triunfo das forçasreativas e desprezar as decisões previsíveis, esperadase sem riscos, daquele que confunde a lei comum com arazão universal.

Essa razão merece, aliás, o mesmo "grande despre-zo" em seu papel especulativo de instrumento de co-nhecimento quanto no seu papel prático de legisladoramoral. E uma grande parte da obra de Nietzsche nosrevela quanto o conhecimento animado por uma vonta-de negativa pode ser miserável e lamentável. Longe deaspirar ao saber "como o leão cobiça seu alimento", oconhecimento racional, isto é, a filosofia, mas, tambéma ciência, só procura, de fato, uma verdade completa-mente tranqüilizante; uma verdade objetiva, isto é,desembaraçada de todo instinto, de toda preferênciaindividual, e, conseqüentemente, desencarnada, pois ocorporal, o carnal, sempre tiveram algo de inquietante;uma verdade clara, coerente, isto é, uma verdade previ-sível e suscetível de ditar uma ação bem-comportada,sem riscos inesperados. Um tal conhecimento não éávido de saber, está preocupado com a segurança, nãoquer conhecer, quer (vontade fraca e negativa, mentiro-sa) tranqüilizar e tranqüilizar-se; o que ele procura, narealidade, é, nos próprios termos de Hegel, a doméstica"satisfação" que se tem em ficar em casa(lO); é aimagem de um mundo inteiramente submetido às cate-

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gorias de NOSSO pensamento lógico: identidade, causa-lidade, finalidade; imagem de um mundo inteiramenteprevisível, no qual o acaso não tem nenhum lugar,inteiramente querido e criado por um Deus infmitamen-te bom e infmitamente poderoso, no qual o mal sópoderia ser uma ilusão ou um fenômeno marginal, doqual o homem é o único culpado. Assim, em suma, arazão, como conhecimento, tem muitas vezes másrazões (sobre essas más razões, cf. principalmente Agaia cfência, I, § 37, t. V).

Desprezar a VIRTUDE, isto é, a disposição moral, oapego ao bem e ao mal, será constatar que, o que deveriaser atividade transbordante, coragem, entusiasmo "fu-rioso", é apenas hábito conformista de um bem e de ummal, confundidos com a obediência ou a desobediênciaa Deus; ou, simplesmente, ao mais forte.

Desprezar a JUSTIÇA será compreender até que pontoessa virtude essencial (tanto para os moralistas - segun-do Platão, por exemplo, ela equilibra as outras virtudes- quanto para os políticos que a exigem e pretendeminstaurá-Ia), até que ponto essa justiça, que deveria sero "carvão em brasa", se tomou um igualitarismo tãosimplista que ficou ridículo (cf. a caricatura de justiçado Prólogo, § 8) ou o cálculo desconfiado do invejoso,que teme ser lesado.

Desprezar a COMPAIXÃO, enfun - a caridade cristã -,será ver que ela foi confundida com a pena, com umcontágio do sofrimento, com uma abdicação de alguém-que se deixa influenciar, invadir, pela infelicidade dooutro, mas, ao mesmo tempo, continua desprezando oser digno de pena, com uma atitude niilista, conserva-

dora de tudo aquilo que só merece desaparecer (sobreessa questão da pena, cf. O Anticristo, § 7, t. VIII).Estamos bem longe do verdadeiro amor ao próximo, quenão é nada se não for absoluto, se não for "a cruz ondese prega aquele que ama os homens".

Vemos aqui que Jesus Cristo, mesmo sendo o repre-sentante do niilismo'l, não se abandonou ao descasoreativo. Nisso, ele é o ancestral do funâmbulo' e maisgeralmente, dos homens superiores'. É por iss~ queNietzsche não apenas nunca ataca a sua pessoa, masaté, como aqui, o dá como exemplo.

Em todas essas noções tradicionais de nossa moral,o grande desprezo disceme "miséria, imundície e relesbem-estar", pois, por trás de tudo isso, a genealogianietzschiana disceme a atitude reativa, medrosa, dequem curva as costas e deixa caírem os golpes; por trásde tudo isso, ela disceme a pequenez, a mediocridade,a parcimoniosa medida. Por trás dessa moral doentia,para a qual a consciência tranqüila já é um pecado deauto-suficiência e de arrogância, para a qual o únicosentimento moral válido é o da culpabilidade, por trásdessa atitude de inibição da ação pela reação, a genea-logia nietzschiana disceme uma sobrevivência dessaidéia, comum entre os Antigos(ll), de que o piordos pecados seria ter êxito e ser feliz, de que todosucesso, e até mesmo toda pretensão à ação, seria ex-cesso, hybris, e toda hybris sacrílega, atentado a umaprerrogativa divina. O verdadeiro pecado do homem,que atrai a punição divina, "que brada aos céus"(12),é a pequenez, a fraqueza, a mesquinharia. E o grito deapelo à maldição divina é um grito de vingança. Na

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verdade, por trás de toda essa moral, o que a genea-logia nietzschiana distingue mais profundamente éum ressentimento, é o espírito de vingança do fra-co, cheio de azedume e ódio, que se volta contra oforte e quer obrigá-Io à mesma atitude fatigada queé a sua. Nietzsche distingue até o pior dos espíritosde vingança: o ressentimento contra si mesmo, osentimento de culpa (sobre essas noções, cf. A genea-logia da moral, t. VII).

A viêla é culpada, nós somos culpados, como nosensinou a religião. Vê-se claramente aqui o queNietzsche recusa. Primeira e principalmente, se nãoexclusivamente, recusa uma religião moralizante e cul-pabilizante - religião que não seria tanto o pensamentode Jesus, mas sua deformação, desenvolvida pelos evan-gelistas e principalmente por São Paulo. Essa religião,que ele ataca sob uma forma certamente caricatura I, é,sem dúvida, a seus olhos, a religião de seu ambiente, ade seu pai pastor, e também a de Kant, que só descobreDeus a título de postulado da razão prática, e assim, emúltima análise, só descobre um Deus moral.

Mas a metafísica é o fruto de uma moral que ela vemdepois consolidar, e se a metafísica dualista é o fruto damoral da difamação e do sentimento de culpa, que emtoda a parte fazem triunfar as forças reativas, resta sabermais exatamente qual é a genealogia da metafísica dosuper-homem, e sobre que moral vai repousar a metafí-sica do sentido da terra. O que é, precisamente, essamoral ativa, para qual a felicidade é "a própria Justifi-cação de minha existência", para a qual a razão seapega ao saber, como "o leão cobiça o seu alimento",

à qual sua virtude toma •'furioso" , para a qual a justiçaé "carvão em brasa", e a compaixão, "cruz"?

e) As noções de genealogia e de vontade depotência

A GENEALOGIA da metafísica e da moral elo homem nosrevelou, em seu niilismo básico, um certo tipo de VON-

TADE DE POTJ;NCIA. A continuação de nossa leituraexige um exame mais amplo dessas noções essenciais edo procedimento que elas fundamentam.

Sobre essas noções - como vimos e veremos -Nietzsche funda todas as suas interpretações, transfor-mando sistematicamente a pergunta do ser: "O queé ?" na pergunta da genealogia: "Qual é a genealogiade ?", e esta última na pergunta do querer: "O que

?"quer .....Esse procedimento consiste, pois, num primeiro tem-

po, em considerar todas as coisas como um conjunto deforças que estão executando um trabalho, como umapotência; e, num segundo tempo, em observar para ondevai esse conjunto de forças, o que quer essa potência.Assim, analisar uma crença, uma instituição ou umcomportamento é primeiramente considerá-Ios comopotências, como atividades eficazes; é depois perguntarde onde vêm essas potências, de que intenção elasprocedem, para que objetivo elas se dirigem, o quequer aquele que nelas acredita, as institui, assim secomporta.

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É esse um procedimento novo em filosofia. Com ele,Nietzsche introduz um procedimento comparável - mu-tatis mutandis, evitemos assimilações superficiais, mes-mo se forem escIarecedoras - aos que efetuam, mais oumenos na mesma época, cada um em sua área e à suamaneira, Marx ou Freud. Como estes, Nietzsche nosensina a procurar um sentido profundo, latente, media-to, e que escapa, pois, em grande parte, aos atores, sobo sentido aparente e imediatamente consciente dos fatoshumanós. Por trás de um comportamento, assim comoFreud psicanalisa uma motivação inconsciente ou comoMarx denuncia uma ideologia(I3), Nietzsche nos ensi-na a discemir um querer, uma vontade de potência, umacerta intenção que procura realizar-se, uma força, umapotência que visa um objetivo, que é facilmente identifi-cável para o olho experimentado do genealogista. Dissoresulta, e aí está, em grande parte, a novidade, que a moralem particular e a filosofia em geral não serão mais aauto-análise de um sujeito consciente e responsável, comoelas o eram para Descartes ou para Kant, mas vão se tomardetecção das intenções, diagnose e prognóstico.

Se Nietzsche transforma a pergunta do ser em per-gunta do querer, transforma também a pergunta doquerer em pergunta do valer: o "0 que QUER?" signi-fica "0 que VALE?". O que Zaratustra aprecia ou não,em um comportamento, é o querer que ele distingue nessecomportamento, e é por isso que os termos "quer","vontade", se repetem em suas ladainhas: " Amo o que(...) pois assim QUER" (Prólogo, § 4). Uma potênciapode querer estender-se, ampliar-se, tomar-se mais po-tente; pode, ao contrário, querer diminuir, desaparecer.

Neste último caso, falaremos de uma potência comvontade negativa, falaremos de niiIismo*I.2,3; no primei-ro caso, falaremos de uma potência*2 que se quer a simesma, de uma potência que quer a potência, de umavontade de afirmação.

Nesse ponto, Nietzsche funda todo um novo sistemade apreciação, no qual o "sim" e o "não" substituemtodos os valores tradicionais, sistema de avaliação, cujaoriginalidade só se iguala à sua profundidade. É assimque vemos Zaratustra substituir o bem da antiga moralpor uma certa qualidade do querer: o querer criar, avontade de estender-se, de desenvolver-se, a vontade desua própria potência; e apresentar, inversamente, comovalor negativo, para substituir o mal da moral, o quererinverso, o querer destruir, o descaso e o contentamentoconsigo mesmo, a sonolenta quietude, que impedemqualquer vontade de renovação.

Será, talvez, tentador dizer que semelhante métodotem alcance limitado, e objetar, como Eugen Fink, que"a neurose pode às vezes disfarçar-se em fenômenoreligioso, o espírito de vingança em moral. Mas isso nãodeve nos induzir a crer que toda religião é neurose, etoda moral, espírito de vingança"(I4). Detectando "más"razões sob um sistema moral ou religioso, Zaratustranão poderia pretender - irá se dizer - que não existam,em outros casos, para outros, ou de modo absoluto, dedireito, outras razões bem melhores. Acrescentar-se-áque, mais ainda, qualquer que seja a genealogia subje-tiva de uma certa crença em Deus, esta não provarigorosamente nada quanto à existência ou à não-exis-tência objetivas de Deus, assim como suas motivações

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profundas não alteram, no que quer que seja, o valor -objetivo - de um comportamento.

Tudo isso, certamente pouco contestável, não nosparece entretanto constituir objeções pertinentes contraNietzsche, que conhece e respeita perfeitamente esseslimites exatos de seu método.

Não se poderia reprovar a Nietzsche um duplo para-logismo, em virtude do qual ele faria da genealogiasubjetiva de uma religião um argumento contra a exis-tência bbjetiva de Deus e também contra o valor dequalquer atitude religiosa em geral. Por um lado, não éfundamentando-se sobre a vontade niilista descobertaem uma religião que Nietzsche conclui a inexistênciade Deus, já que, como sabemos, a morte de Deus não épara ele a conclusão de um raciocínio, mas um fatoobservado, uma evidência. Aliás, do fato de que uma ccrtaatitude religiosa é, a seus olhos, "neurose", Nietzschenão conclui, evidentemente, que todas o são necessaria-mente, pois não hesita, ao contrário e por várias vezes,em apresentar como religiosa a atitude, fundada sobreuma outra vontade, que ele quer instaurar (assim, Onascimento da tragédia opunha o Dionisíaco ao Apolí-neo, assim o Prólogo § I começa com uma "prece",assim o Prólogo § 4 propõe uma nova imagem de Deus);a morte de um certo Deus não é talvez a de todos osdeuses ...

Não se poderia, também, reprovar-lhe uma extrapo-lação temerária, pela qual ele estenderia a qualquermoral, sem distinção, a vontade vindicativa percebidaem uma certa moral, pois irá propor, fundada sobre umaoutra vontade (Prólogo, § 4), uma nova moral.

Assim, uma rigorosa delimitação do alcance exatodo procedimento genealógico, longe de desvalorizá-Ia,constitui, ao contrário, a melhor garantia de sua vali-dade. É realmente a raiz profunda de uma certa atitudemoral, de uma certa atitude religiosa, ambas muitodifundidas e bem enraizadas em nossa cultura, e nãotoda religião e toda moral como tais, que Nietzschedenuncia. Não podemos, sem má fé - uma má fé cujagenealogia se faria facilmente ... - negá-Io a Nietzschee recusar-nos ao exame de consciência ao qual ele nosconvida.

2. Do homem ao super-homem (11).A vontade criadora de novos valores,segunda etapa de sua transmutação

(Prólogo, § 4)

Nem puro espírito purificado de seu corpo, nem con-templativo do além, esquecido deste mundo, o super-homem não é um anjo; mas também não é um animal,tem ciência e moral. Nem espectro nem planta, é - talera a lição do Prólogo, § 3 - o homem da transmutação.

Com a noção de vontade de potência, Nietzsche nãodescobriu apenas o vício profundo que rói a cultura

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mo, na invenção de um mundo transcendente, em nomedo qual ela pode depreciar este mundo. É, pois, evidenteque a vontade do super-homem será aquela que, inver-samente, recusará qualquer além-mundo; seus valoresserão aqueles que não caucionam nenhum dualismo,nem são caucionados por nenhuma transcendência. Suavontade é, fundamentalmente, VONTADE DE lMA~N-

elA, ela tem sua fonte e seu ftm neste mundo: "Amo osque não se satisfazem em procurar além das estrelasuma razão para serem declínio (...) mas que, ao contrá-rio, se sacrificam à terra."

Como sua investigação genealógica leva Nietzschea valorizar a noção de vontade, e como Zaratustra nãocessa de repetir "amo o que (...) QUER", ficaríamostentados a ver em seu pensamento um formalismo, parao qual apenas a intenção é importante. E, certamente, ébem verdade que, segundo ele, a realização materialefetiva importa menos do que a atividade desenvolvidapara chegar a ela; que "a grandeza do homem está emser ponte e não meta: o que nele se pode amar é ofatode ser (...) TRANSIÇÃO"; é bem verdade que a vontadeque inspira o ato importa menos que o resultado. Nãose deve, todavia, confundir essa vontade com uma sim-ples intenção, pois só se pode julgar o vigor de umquerer exatamente por sua capacidade de ultrapassar aintenção para agir. A vontade de potência deve se reali-zar em ATIVIDADES EFETIVAS: "Amo o que TRABALHA".

Uma vontade que ficasse nas intenções seria apenasveleidade, e, justamente, vontade fatigada, "perigo-so o tremor e a paralisação". Não nos enganemos,Kant está entre os adversários visados por Nietzsche; a

tradicional; ao mesmo tempo, encontrou a fonte da qualpoderia jorrar uma nova cultura. Vimos como a críticade uma certa meta física ede uma certa moral conduziraZaratustra a nelas perceber um certo tipo de vontade depotência: o querer diminuir, destruir. Restava ver - e talé o objeto do Prólogo, § 4 - o que seria exatamente umavontade de potência positiva e criadora, e depois, quemoral e que metafísica dela poderiam resultar (15).

Em outras palavras, assistimos agora à criação denovos valores. Os valores novos transmutados sãoefetivamente, os valores destacad~s da vontade d~ des~truição que os dominava, e reanimados por uma vontadecriadora, afrrmativa. Com esse enxerto dos valores so-bre um outro tipo de vontade de potência, Zaratustraprocede a uma transvaloração, isto é, a uma reabilitaçãototal de todos os valores esgotados em nossa cultura: arazão, a moral e suas virtudes, e até os grandes conceitosda metafísica tradicional são reintroduzidos, não maiscomo os pensa e vive uma vontade negativa e vindica-tiva, mas como os pensa e vive a vontade dos "quetranspõem". O que vemos, pois, é como essa vontadeafrrmativa faz calarem-se as forças reativas e devolveseu justo lugar às forças ativas; assiste-se, enfim, àdominação da reação, da passividade, da escravidão,pela ação, pela atividade, pelo domínio.

Vimos que a atividade principal, a característica até, davontade negativa consiste na instauração de um dualis-

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vontade de potência'2 não é a boa vontade, é a vontadeque passa ao ato.

O super-homem é, antes de mais nada, aquele quese vence a si mesmo. O que ele procura é "seu declí-nio", é "uma razão para serem declínio e oferen-da"; e Nietzsche multiplica as fórmulas paradoxais:••Amo os que s6 sabem viver em declínio, pois são osque transpõem. Amo os que desprezam com intensi-dade, pois sabem venerar intensamente". Mas todasessas contradições não devem surpreender-nos nemdesorientar-nos.

Elas não devem surpreender-nos; a filosofia de Re-gel já familiarizou os leitores com essa idéia de umanegação que é afirmação, de um declínio que é passa-gem, de uma destruição que é construção.

Mas é preciso que se note bem a diferença, e até aoposição fundamental entre Regel e Nietzsche: paraNietzsche, é a afirmação e não a negação que é aprimeira. Gilles Deleuze o mostra claramente: "O anti-hegelianismo atravessa a obra de Nietzsche como o fioda agressividade (... ). Para Nietzsche, nunca a relaçãoessencial de um força com uma outra é concebida comoum elemento negativo da essência. Em sua relação coma outra, a força que se faz obedecer não nega a outra,ou aquilo que ela não é; ela afirma a sua própriadiferença e goza dessa diferença. O negativo nãoestá presente na essência como aquilo de que aforça tira a sua atividade: ao contrário, ele resultadessa atividade, (00') O negativo é a agressividadede uma afirmação" (16).

Todas essas contradições também não nos devemdesorientar; essas fórmulas vigorosas significam sim-

plesmente que o homem deve progredir, e, conseqüen-temente, RENEGAR O QUE ELE É, em benefício do queele será. O que é importante para Nietzsche não é odeclínio, é a passagem, não é o desprezo (do presente),é a veneração (do futuro). É esta que motiva aquele.

"Amo os que s6 sabem viver em declínio". Uma talfórmula bastaria para demonstrar definitivamente quan-to são aberrantes as interpretações que fazem da vonta-de de potência um apetite de dominação, pretensamenteinspirado pela "luta pela vida" descrita por Darwin,apetite, a partir do qual se pretenderia explicar, e atéjustificar, tanto a autoridade de um indivíduo, quanto ocomportamento de uma classe dirigente ou a políticaimperialista de um Estado. A vontade de potência nãopertence ao espaço do ter, mas ao do ser; querer apotência é querer-se a si mesmo maior; ela só podetornar-se o querer de uma possessão indiretamente, seacontecer que essa possessão atome maior.

Avaliamos aqui o contra-senso (e a lamentável tra-paça), conforme tentou-se fazer a filosofia de Nietzscheavalizar o fascismo nazista. Ainda que totalmente isentode qualquer culpa a esse respeito, Nietzsche sofre da máreputação que lhe construíram nesse ponto. Lembremosalgumas linhas de Thomas Mano, que, parece-nos, en-cerram definitivamente esse processo equivocado: "Ofascismo, essa armadilha para as massas, pior forma dedemagogia e de aviltamento da cultura que a históriajamais produziu, é profundamente estranho ao espíritodaquele para quem tudo girava em torno da pergunta '0

que é nobre?'''(l7). Mais nada, o fascismo apareceprecisamente como uma das figuras do último homem,

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cuja vinda Nietzsche teme (Prólogo, § 5) e ThomasMann pode assim, legitimamente, escrever: "Não foiNietzsche que fez o fascismo, mas o fascismo que fezNietzsche; ( ...) essencialmente estranho à Política e es-piritualmente inocente, Nietzsche pressentiu, na suafilosofia da potência, assim como um sensibilíssimoaparelho receptor e emissor, a ascensão do imperialis-mo, e anunciou ao Ocidente, como um ponteiro trêmulo,a vinda da época fascista ...•• (18).

real tal qual é, com sua parte de acaso, de mal, deimprevisível, de absurdo, de intolerável para quem nãotenha' 'uma pele dura" (ibid., § 32 p. 79). E este mundotal qual é, esse saber não visa assumi-Io, mas agir nele,transformá-Io. Trata-se, pois, de um conhecimento quenão se satisfaz com abstrações, mas se quer (vontadecriadora) concreto, orientado para a ação, isto é, nãopara a procura do útil, do conforto, procura que procedede um querer dominado por uma força reativa de recusado esforço (cf. Prólogo, § 5), mas para a dominação doreal e de si mesmo. "Amo o que trabalha (...) para (...)o super-homem (...) prepara, para ele, a terra,l'

A razão "miséria, imundície e reles bem-estar" (doPrólogo, § 3), vai ser substituída pela RAZÃO ATIVA, que"aspira (... ) ao saber como o leão cobiça seu alimento"(ibid.); e, após ter pregado o "grande desprezo" pelarazão e pelo conhecimento, Zaratustra pode proclamar:"Amo o que vive para conhecer, e quer conhecer paraque um dia o super-homem viva." Ao conhecimentomiserável e lamentável, animado pela vontade nega-tiva, a transmutação substitui uma "gaia ciência",um saber animado por uma vontade afirmativa e cria-dora: um saber que não quer (vontade mentirosa,negadora do ser) interpretar o real segundo seus de-sejos, que não quer (vontade fraca, doentia, reativa,abulia) tranqüilizar-se, mas um "desejo de certeza"que tem "o valor da mais íntima cobiça e da maisprofunda necessidade" (A gaia ciência, I, § 2, t. V.) quequer (vontade afirmativa), sem restrição, conhecer o

Após a reabilitação do conhecimento, Zaratustra con-clama à reabilitação da moral. Vimos como as pretensasvirtudes praticadas pela vontade fatigada da moral tra-dicional são apenas' 'miséria, imundície e reles bem-es-tar" (Prólogo, § 3). Veremos como uma vontade aindamais negativa pode conduzir a virtude para mais baixoainda, em direção à miséria, à imundície e ao lastimável(Prólogo, § 5). Aqui, Zaratustra nos faz pressentir o queseria uma VIRTUDE animada por uma vontade de potên-cia criadora e afirmativa.

Essa vontade de potência positiva é, primeiramente,como já sabemos, domínio de si, vontade de superar-sea si mesmo, esforço para transcender-se, antes que sersubmetido a uma transcendência: "Amo o que ama a

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sua própria virtude (...) pois ele, poramorasua vinude,quer viver ainda e não mais viver" (19).

Essa virtude deve ser considerada como uma ver-dadeira paixão, pois é absoluta, não tem limites emobiliza todas as energias: "Amo o (... ) que quer serinteiramente o espírito de sua própria virtude." Esta-mos longe do "justo meio" , que faria de "toda causa(... ) uma causa medíocre (... ) uma concessão" (A gaiaciência, § 32, 1. V), e onde, segundo Aristóteles, deveresidir a virtude (20).

Assim absoluta, ela é, evidentemente - esta é a pró-pria defmição da paixão - única e exclusiva: "Amo oque não quer virtudes em demasia. Uma única virtudeé mais virtude do que duas. "Estamos longe da cri te-riosa dosagem cristã das quatro cardinais e das trêsteologias.

A virtude é semelhante à paixão também no sentidoem que, bem mais que uma disposição preferencial,constante, habitual (o que Aristóteles chama exis(21), e que se traduz, em latim, por habitus), bemmais que um hábito, pois, é um verdadeiro fatum:"Amo o que faz da virtude inclinação e destino (...)ela é o nó maisforte onde se ata o destino." Uma taldeterminação empenha e cria o futuro; ela proporcio-na a única memória que seja vontade positiva, criado-ra, e não reação ao passado, ou ressentimento; amemória das promessas: "Amo o que antecede compalavras de ouro os seus atos e sempre cumpre maisdo que promete,"

"Amo o que prodigaliza sua alma, e que, ao fazerisso, não visa à gratidão nem ao pagamento". Essa

virtude é aquela que o fIm da primeira parte do Zaratus-tra chamará "a virtude que dá". Ela não é procura denenhuma recompensa, de nenhuma felicidade; ela exe-cuta atos sem outra intenção senão a de realizar-senesses atos, comparável, ao menos nisso, com a mora-lidade segundo Kant, que realiza o dever sem motivoafetivo, mas por puro respeito ao dever.

Essas expressões kantianas não são gratuitas, e o queKant chama "patológico" (22) coincide, em certo sen-tido, com o que Nietzsche chama reativo. Certamente,a oposição nietzschiana entre ativo e reativo não seidentifIca com a oposição kantiana entre prático e pato-lógico, e Nietzsche, como vimos, recusa-se categorica-mente a considerar como passivo aquilo que depende dasensibilidade e do corpo, e como ativo aquilo que resul-ta de uma razão desencarnada, pretensamente a únicalivre. Entretanto, mesmo se Kant e Nietzsche não têmas mesmas defmições de liberdade e de virtude, concor-dam em recusar qualquer dependência da virtude emrelação a outra coisa que não seja a própria virtude.

Pode-se, a respeito disso, notar que, entre todos osvalores que foram alvo do "grande desprezo" (Prólogo,§ 3), apenas a "felicidade" não foi objeto de nenhumareabilitação. Será preciso esperar o Prólogo, § 9, relati-vo aos criadores, para que Zaratustra a reintroduza. Éque, para Nietzsche como para Kant, a procura da feli-cidade é "patológica", a felicidade não poderia consti-tuir um objetivo moral, pode simplesmente ser dada poracréscimo a quem cumpre o que Kant chama "dever"e Nietzsche ·'criação".

É essa virtude pródiga que sempre anima Zaratustra,"este cálice que anseia transbordar" (Prólogo, § 1); é

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ela que anima todos aqueles que, como "criadores"(Prólogo, § 9), anunciam e preparam o super-homem,empenhando o futuro; é ela que anima o próprio Nietzs-che, anunciador do super-homem, e cujo querer positivoo ergue contra toda a cultura; Nietzsche, cuja obra é aação que prepara a terra para o super-homem, e que irá,na renúncia de si, até o fIm de suas forças físicas ementais: "Amo todos aqueles que são como pesadasgotas (...); anunciam a chegada do raio eperecem comoanunciadores. Vede, sou o anunciador do raio, umagota pesada dessa nuvem. "

O primeiro dever é renegar-se a si mesmo. Partindodessa idéia fundamental, Zaratustra reintroduz agora,para mostrar o que lhes trará a transmutação, duas outrasdas noções atingidas pelo "grande desprezo". Depoisda razão e da virtude, vemos o que se tornam para osuper-homem a JUSTIÇA e a COMPAIXÃO.

Nessa questão, aproximou-se, freqüentemente,o pontode vista de Nietzsche daquele que Platão nos apresentaatravés das palavras de Caliclés (23). Mas é evidente quehá nisso um grave contra-senso, e é até opondo-o ao deCaliclés, visado aqui por Nietzsche quase que explicita-mente, que se pode melhor apreender seu ponto de vista.

Sabemos que, para Caliclés, uma justiça real, umajustiça segundo a natureza, legitimaria a dominação dosfracos pelos fortes, dominação que a justiça segundo alei procuraria impedir. E certamente, tambémpara Nietzs-che; trata-se de denunciar uma pseudojustiça, que faztriunfar os escravos sobre os senhores, em nome de umaverdadeira justiça, que faria triunfar os senhores sobreos escravos. Mas, a partir desse ponto de partida apa-

rentemente comum, a oposição é dupla: por um lado, ostermos "forte" e "fraco" não têm o mesmo sentidonos dois casos, e os fortes de Caliclés são exata-mente os fracos de Nietzsche. De fato, para Cali-clés, os fortes são aqueles que se abandonam à suanatureza, isto é, aos seus sentidos e às suas paixões;no exato oposto dos fortes de Nietzsche, cuja von-tade de potência é domínio de suas fraquezas natu-rais; mais que uma diferença, há uma total contradiçãoentre o ponto de vista de Nietzsche, para quem oprimeiro dever é vencer-se a si mesmo, e um hedo-nismo, para o qual o único dever é, ao contrário,abandonar-se a si mesmo; "o super-homem (... ) seele tem como divisa o 'Sejamos duros', tantas vezescitado e tantas vezes mal interpretado, não é contraos outros que ele exercerá essa dureza, mas con-tra si mesmo. A humanidade que ele pretende su-perar é a sua"(24): "Amo os que só sabem viver emdeclínio, pois são os que transpõem." Por outro lado,daí resulta que, para Nietzsche, a justiça não é, comopara Caliclés, reivindicação rancorosa de um créditosupostamente natural, procura brutal do reconhecimentode uma superioridade; ela é, ao contrário, temor escru-puloso de lesar alguém: "Amo o que se envergonhaquando o dado cai a seu favor, e então pergunta: sereium trapaceiro?"

Essa justiça, que não é restituição eqüitativa, retri-buição, mas dom gratuito, se supera em uma generosi-dade sem limites, que não é compaixão apiedada, masconfunde-se com aquela caridade, aquele amor que po-de conduzir à "cruz onde se prega aquele que ama os

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tes, consciência isolada, cortada de um mundo mais oumenos hipotético, ele opõe aquela na qual "todas ascoisas nele encontram lugar".

E essa última fórmula, ao mesmo tempo que se opõeao "todas as coisas são exteriores a ela", ao qual sepoderia, esquematicamente, reduzir a psicologia carte-siana, se opõe igualmente - e mais diretamente ainda -ao "ela está em todas as coisas", ao qual se poderiareduzir a crítica kantiana de uma razão pura que "só vêo que ela produz por si mesma, segundo seus própriosplanos" (26), e resumir, mais exatamente ainda, toda afilosofia de Hegel, que tende para que todo fato empí-rico "se torne a representação e a reprodução daatividade primitiva e perfeitamente autônoma do pensa-mento"(27). O super-homem não é nem sujeito trans-cendental que impõe suas formas ao mundo, nem Espíritosatisfeito de encontrar no mundo o Universal, ao qualele aspirava espontaneamente; o super-homem é aqueleque recebe o mundo tal qual ele é: "Todas as coisas setornam seu declínio."

A liberdade que Nietzsche introduz agora é LIBERDA-

DE de espírito E de coração: "Amo o que tem o espíritolivre e livre o coração." Não se trata, pois, da liberdadeintelectual, severa, do racionalismo, que faz dela -como os estóicos ou Spinoza - uma resignação razoávelà necessidade universal ou, como Kant, a obediência aoimperativo da razão.

Principalmente, não se trata, pois, de uma liberdadeque livraria o espírito do corpo, libertaria o pensamentoda influência dos instintos. O nascimento da tragédia jádenunciava, nessa ambição e nessa definição da liber-dade, uma desordem aberrante, da qual Sócrates se teria

tomado culpado, uma inversão da relação normal entrea consciência e o instinto (cf. t. I, p. 99). A inversão dosvalores vai, pois, repor de pé o que Sócrates havia postode cabeça para baixo: '''Eu' - dizes; e ufanas-te destapalavra. Mas ainda maior - no que não queres acreditar- é o teu corpo e a sua grande razão" (Assim falouZaratustra, primeira parte "Dos desprezadores do cor-po"; cf. também A gaia ciência I, § 11, t. V).

"Assim, sua cabeça não passa de vísceras para seucoração". Trata-se, pois, da liberdade daquele cujapaixão e entusiasmo alimentam o pensamento; "o co-ração entra na cabeça e então só se fala de paixão" (Agaia ciência, I, § 3, t. V). Trata-se do poder de agir enão reagir; poder que não cessa nunca de desenvolver-se, de realizar-se, de dar sua marca à sua vida, de criaro seu destino.

3. O niilismo *2 do último homem(Prólogo, § 5)

o advento do super-homem implica necessariamente amorte de Deus, a derrubada dos valores: "É preciso tercaos ainda dentro de si para poder gerar uma estrelapiscante." Os ouvintes de Zaratustra, os contemporâ-neos de Nietzsche, libertados de suas antigas crenças,

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preenchem essa condição e são cap:.zes do melhor:"Ainda tendes caos dentro de vós."

Mas essa condição não é suficiente, e os riscos defracasso são consideráveis. O primeiro risco é o niilis-mo que espreita "o último homem" (28). Os ouvintes deZaratustra são iguahnente capazes do pior: se não avan-çarem em direção ao super-homem, criador de valoresnovos, correm sérios riscos de orientar-se para o homemsem valor, "o mais despreZÍvel dos homens".

Tendo fracassado em persuadi-Ios a interessar-sepelo super-homem ("Não me compreendem, não sou aboca que convém a esses ouvidos. ")(29), Zaratustravai, para tentar convencê-Ios, dizer-lhes quão terrívelpode ser sua queda se tomarem o outro caminho.

Assim, o último homem tudo destruiu e nada criou,NADA, "NIHIL". Encontra-se ele, então, diante do nadade todo valor, deste mundo ou do outro: "Que é o amor?Que é a criação? Que é o desejo? Que é uma estrela?Assim pergunta o último homem." A crítica nietzschia-na se faz nesse ponto, simultaneamente feroz e angus-tiada: depois da morte de Deus, se não tomar o durocaminho do super-homem, o homem - último homem -vai soçobrar no pior desamparo: a ausêncilJ total de todamoral. Para ele, se Deus não existe, tudo é permitido,no sentido de não haver mais nenhuma razão para proi-bir - e proibir-se - o que quer que seja.

b) A morte de Deus,senhor demasiado exigente

Para compreender a organização do discurso de Zara-tustra, convém, mais uma vez, remontar à dupla fontegrega e judaico-cristã de nossa cultura.

Sabe-se que toda uma tradição moral (30) repousasobre a distinção de três grupos de faculdades (as facul-dades de conhecimento, as faculdades de ação e asfaculdades afetivas), e que ela define, a partir dessadistinção,o comportamento moralmente bom como obom exercício e a boa organização hierárquica dessastrês faculdades: trata-se, para ser moral, de conhecercom SABEDORIA, agir com CORAGEM, dominar pelaTEMPERANÇA as afeições vis, e atribuir com JUSTIÇA seujusto papel a cada faculdade e sua justa recompensa aobom exercício das virtudes.

Tudo depende da vontade profunda que presidiu à der-rubada dos valores e ao assassinato de Deus. Enquantoos criadores' negarão o outro mundo e Deus por vontadecriadora de auto-afirmação, porque estes só serviampara diminuí-Ios, para impedir seu pleno desenvolvi-mento, os últimos homens, ao contrário, negam Deuspor vontade negativa, por niilismo'2, não porque Deusos apequene, mas porque ele os engrandece, porque,demasiado exigente, ele os considera demais e os impe-de de viver - e de dormir - tranqüilos.

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Pintar o quadro da moral do último homem será, pois,antes de mais nada, descrever o que são, para ele, essasquatro virtudes, e Nietzsche vai então examiná-Ias umaa uma(31). Percebemos que os últimos homens sãoaqueles que, deliberada mente, renunciam a todas asvirtudes, que, desde a Antigüidade, defmem a moral.

Eles renunciam à SABEDORIA, virtude essencial doanimal racional, eles a confundem com o distanciamen-to altivo e cínico de quem muito viveu, muito viu, tudoconhece, e em nada mais acredita: "Esramos informa-dos, sabemos tudo o que acontece. Por isso, nãoparamosde escarnecer. " Refugiados na quietude dos preconcei-tos e das idéias já prontas, consideram que ••descon-fiar", não ter segurança, é condenável, é um erro, um"pecado" .Pouco preocupados em fazer prosélitos, longede estar prontos para a luta, como fizeram até entãogerações de filósofos, de sábios ou de padres, paradefender ou impor sua verdade, preocupam-se princi-palmente com sua tranqüilidade: "Acontece ainda dis-cutirmos, mas logo nos reconciliamos - as brigasfazemmal ao estômago." A verdade, não fazem muita questãode conhecê-Ia. A lucidez - primeira forma da sincerida-de - falta a quem prefere fugir da objetividade, freqüen-temente cruel: "De quando em quando, um pouco deveneno: traz sonhos agradáveis." Assim, fogem detodos os problemas angustiantes, e, sobretudo, do maisangustiante de todos, o problema da morte, do qual sedesviam, se "divertem", como diria Pascal(32): "Emuito veneno, nofim, para se morrer agradavelmente. "

Assim como renunciam à sabedoria, virtude do co-nhecimento, renunciam à CORAGEM, virtude da ativida-

de. Renunciam à luta contra as forças naturais: "Aban-donaram as regiões onde era difícil viver; pois preci-sam de calor." O trabalho, longe de ser ocasião de umaluta em que eles se superam, impondo sua marca ànatureza, é para eles apenas uma ocupação, um diverti-mento, isto é, mais uma vez, uma distração e um álibipara desviar-se do essencial: "Trabalham ainda, pois otrabalho é uma distração. Masficam atentos para queesse divertimento não os canse."

Também renunciam à TEMPERANÇA, virtude da afe-tividade, antes que se fale de amor ao próximo. Eles aconfundem com as precauções dietéticas, ou com asprecauções higiênicas que o medo do esgotamento im-põe a uma "sã brincadeira": "Temos nossos pequenosprazeres diurnos e nossos pequenos prazeres noturnos;mas cuidamos da saúde."

Enfim, renunciam à JUSTIÇA, que confundem, poramor à tranqüilidade, que os leva a evitar toda rivalida-de, com a igualdade: "Ninguém fica mais nem pobrenem rico: é algo penoso, tanto um quanto o outro. Quemainda deseja governar? Quem ainda deseja obedecer?São ambos cansativos demais. (...) todos são iguais.Quem sente de maneira diversa se condena ao hospí-cio." Ao bom pastor do evangelho, que deseja reunirtodas as suas ovelhas(33), os últimos homens não con-trapõem, como Zaratustra, "seduzir e afastar muitos dorebanho - eis a meta a que vim" (Prólogo, § 9), contra-põem "nenhum pastor e um só rebanho!"

Em grande parte, a tradição moral cristã concordacom a tradição moral grega; e, no catecismo, as trêsvirtudes teologais, fé, esperança e caridade, convivem,

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sem conflito, com as quatro cardinais(34). A grandediferença essencial é que a caridade, o amor, ao próximoe a Deus, toma o lugar principal(35), que Platão reser-vava à razão(36).

Para Zaratustra, resta, pois, profetizar o que se tor-nará, para o último homem, esse AMOR AO PRÓXIMO.

Ele anuncia - como esperávamos - que os últimoshomens renunciam totalmente ao preceito essencial damoral cristã, renunciam à caridade, a essa generosidade,na qual Descartes via o fundamento da vida moral(37).O amor é inacessível àqueles que não têm outra moti-vação senão seu conforto egoísta: "Ainda amam seuvizinho e a ele se aconchegam pois precisam de calor."Instalados numa admiração plácida pela boa saúde, pelaconsciência tranqüila e pelas idéias já prontas, olhamdesdenhosamente e condenam - Nietzsche, filósofo edoente, conhece isso muito bem - o intelectual que temhesitações escrupulosas e aquele que se cansou: "Adoe-cer e desconfiar, para eles é pecado; avança-se comcautela. Insensato aquele que ainda tropeça" (cf. sobreessa incompreensão irônica A gaia ciência, § 3, t. V.).

Em outro ponto ainda, gregos antigos e cristãos con-cordam: quanto ao lugar que reservam à FELICIDADE, e,em grande parte, quanto à idéia que fazem dela. Ofilósofo antigo procura a felicidade; o sábio seria aqueleque a teria encontrado. Aristóteles observava - epicu-ristas e estóicos conftrmarão sua observação - que tooosconcordam em considerar a felicidade como o soberanobem(38). Certamente, aquele que anuncia as Bem-Aven-turanças(39) não contradiria Arislótelesnesse ponto. Con-corda-se também, entre Atenas e Jerusalém, em dizer

que a felicidade é coisa difícil. Sem dúvida, os conceitosde felicidade são muito variáveis - é sobre o nome e nãosobre a idéia que o consenso é quase geral - mas todoseles têm em comum a idéia de que se trata de um idealdifícil. A contemplação de Arislóteles, a virtude estóicae até a ataraxia epicurista convergem, nesse ponto, ·coma bem-aventurança oferecida, em um outro mundo, aosaflitos que a tiverem merecido.

Mas o último homem tem a presunção de aftrmar:"Inventamos afelicidade" . Pois ele a "amesquinha",a rebaixa até o nível do conforto.

Em suma, todas as exigências do homem- - e noentanto veremos (Prólogo, § 8) que sua moral decaiumuito - parecem-lhe loucuras superadas por quemaprecia o conforto sonolento: "Outrora, todo o mun-do era louco."

Agora, compreendemos melhor o vigor de Zaratustra aopregar a criação de um novo universo; é que ele teme achegada daquele que estreita o universo, organiza parasi sua pequena casa, seu pequeno trabalho, sua pequenafamília, sua pequena saúde, e que, "com um piscar deolhos", num gesto de apelo à conivência, gesto vulgardo astuto, o "espertalhão", que "ninguém passa paratrás", a quem nada fará sair de seu pequeno nada, nosconvida a ali nos afundarmos com ele (sobre esse piscarde olhos, cf. A gaia ciência, I, § 3, t. V).

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Ora, Nietzsche (demasiado pessimista? ..) não temilusões: seus contemporâneos preferem a descida fácilque desliza para o último homem ao penoso caminhoque sobe para o super-homem. Sem pudor, os ouvintesde Zaratustra clamam: "Faz de nós esses últimos ho-mens, que te daremos o super-homem de presente!"

E esse terrível diagnóstico conduz ao mais sombriodos prognósticos: essa situação não terá saída. É porisso que o último homem será o último. Sem valor, e,conseqüentemente, sem nenhum critério para se julgar,ficará muito contente consigo mesmo e com uma situa-ção da qual nada o incitará a sair; será" aquele que nemé mais capaz de desprezar-se a si mesmo".

Novas experiências, novasresoluções, novas profecias

Nietzsche reduziu toda a nossa cultura à seguinte com-binação: DEUS + VONTADE DE POT~NCIA NEGATIVA +

FORÇAS REATIVAS = HOMEM. Mas ele quer esta outracombinação: MORTE DE DEUS + VONTADE DE POT~NCIAAFIRMATIVA + FORÇAS ATIVAS = SUPER-HOMEM. Alémdisso, advertiu-nos dos riscos da combinação: MORTEDE DEUS + VONTADE DE POT~NCIA NEGATIVA + FORÇASREATIVAS = ÚLTIMO HOMEM. Restava, e é o que ele fazagora, estudar o que produz a combinação: MORTE DEDEUS + VONTADE DE POT~NCIA NEGATIVA + FORÇASATIVAS.

Após a morte de Deus, poderiam as forças ativas,unicamente por meio de sua atividade, sem a inspiraçãode uma vontade criadora afirmativa, obedecendo escru-pulosamente a normas estabelecidas por outro caminho,inspirar um tipo de ação satisfatório? Mais concreta-mente, pode parecer, à primeira vista, que uma terceirasolução seja possível depois da morte de Deus, e que ohomem não seja condenado à incontornável alternativa

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do tudo (super-homem) ou nada (último homem). Nemheróis nem crápulas, não são muitos ateus dignos ehonestos, ainda mais louváveis porque sua moral não éapoiada por uma fé religiosa? Se não têm fé, isso nãosignifica que não tenham leis.

Nietzsche responde claramente: o funâmbulo' mor-re; a terceira via que ele toma é um beco sem saída. Emoutras palavras, a ação do HOMEM SUPERIOR, que éinspirada por uma vontade negativa - pois o funâmbuloé a pr.imeira figura que encontramos desse novo tipohumano, coroamento da combinação estudada, da quala quarta parte do Zaratustra nos apresentará outrosexemplares - é destinada ao fracasso.

teu ofício; não há nada de desprezível nisso." Efetiva-mente, ele escolheu agir e não deixar agir, e não reagir.Por isso, merece respeito e como Zaratustra o chama"amigo", o chamará "meu primeiro comparsa" (Pró-logo, § 9), e fará questão de não abandonar o seucadáver: "Quero te sepultar com minhas própriasmãos."

Mas, de certo modo, o funâmbulo não se desembaraçoutotalmente de toda adesão ao sobrenatural. Depois damorte de Deus, ele continua a agir como se Deus exis-tisse; sem senhor, ele continua a se comportar como sefosse escravo, não acredita mais em Deus mas ainda crêno diabo, não acredita mais no outro mundo, mas, aindainspirado por uma vontade niilista, ainda crê no não-va-lor deste mundo, e, espontaneamente, deixa-se impres-sionar quando um bufão lhe lembra a sua miserávelcondição, pretendendo-se "melhor que tu". O fu-nâmbulo continua acabrunhado por um sentimentotipicamente religioso, tipicamente judaico-cristão: o res-sentimento voltado contra si mesmo, o sentimento deculpa (sobre essas noções, cf. a segunda dissertação daGenealogia da moral: "La 'faute', Ia 'mauvaise cons-cience' ( ... )", t. VII, pp. 251s.). À espera de uma puni-ção, fica acabrunhado pelo sentimento de culpa: "Hámuito que sabia que o diabo me daria uma rasteira. Eagora, ele me arrasta para o inferno."

Lembremo-nos: "O homem é uma corda estendida en-tre o animal e o super-homem - uma corda sobre oabismo. Perigosa a travessia, perigoso o percurso"(Prólogo, § 4). Esse primeiro perigo, que fazia recuar oúltimo homem, o equilibrista vai afrontá-Io: "Perigosoolhar para trás, perigoso o tremor e a indecisão" (ibid.).Éesse segundo perigo que vai matar o pobre funâmbulo.Caminhando sobre a corda, pára e olha para trás, para oDeus morto, e essa hesitação lhe será fatal.

Assim, pois, o funâmbulo é ' 'superior" ao homemporque não crê mais em Deus. Ao mesmo tempo, ofunâmbulo é o contrário do último homem, a quemZaratustra o opõe, traço por traço: ••Fizeste do perigo o

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Essa atitude inconseqüente de quem não acreditamais em Deus, mas continua a agir" como se" , Nietzs-che não a inventa. Ele a observa entre muitos de seuscontemporâneos (cf. O Anticristo, t. VIll, voI. 1). É essa,de fato, a atitude de muitos moralistas do século XIX, que,como Saint-Simon em O novo cristianismo ou AugusteComte em A religião da humanidade, se apegam emconservar em "evangelhos" modernos a inspiração cristãcortada de suas bases religiosas. É essa, de modo maisgeral, para Nietzsche, a atitude das correntes de inspiraçãosocialista, que, ao mesmo tempo em que se voltam contraa ideologia burguesa, conservam os valores burgueses - e,no que diz respeito ásua inspiração, cristãos - insurgindo-se contra a sociedade burguesa justamente porque esta nãorealiza esses valores, e procurando instaurar uma organi-zação político-social cujo valor viria precisamente do fatode realizá-los (cf. Assimfalou Zaratustra, quarta parte,"Colóquio com os reis"). Mas encontramos tambémessa atitude entre muitos de nossos contemporâneos, eé o mesmo pensamento de Nietzsche que Jean-PaulSartre formula, ao criticar, em O existencialismo é umhumanismo, "a moral leiga" daqueles para quem "na-da mudaria, se Deus não existe ( ...) acharíamos asmesmas normas"(l).

Assim, nem engrandecido (como o super-homem),nem apequenado (como o último homem) pela morte deDeus, continua-se a respeitar os valores tradicionais, e,transpondo o catecismo para um código de saber-viversupostamente leigo, age-se em nome desse código.

Mas é preciso criar valores, e não tentar manter emvida os antigos; e não basta agir, é preciso agir em nome

de novos valores, e de novos valores inspirados por umaoutra vontade de potência *2. A transmutação, a transfi-guração total por que passam os antigos valores, quandosão animados por uma vontade positiva, afirmativa, éuma condição necessária. Na ausência disso - e tal é osentido da história do funâmbulo - a atividade estádestinada ao fracasso.

Após a morte de Deus, "novas lutas" restam, pois,a empreender, contra a sobrevivência de Deus nas men-talidades: "devemos vencer também a sua sombra" (Agaia ciência, m, § 108,1. V).

E essas lutas são necessárias, pois dizer que, sem oabandono dos valores antigos e a criação de valoresnovos, sem vontade positiva, sem transmutação, aatividade está destinada ao fracasso, é dizer nova-mente que o super-homem, o homem da transmuta-ção, é necessário.

Não há outra solução possível; o fracasso do funâm-bulo nos convence disso tanto quanto a pequenez doúltimo homem.

"Angustiante é a existência humana (...) um bufãopode lhe ser fatal", conclui Zaratustra. Quantos per-dem assim a sua vida, por uma pura quimera: a som-bra de um Deus?

Mas esse fracasso do funâmbulo simboliza tambémo fracasso de Zaratustra, que não foi compreendido: "o

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sentido do que falo não lhesfala ainda aos sentidos(2)(...) sombrios são os caminhos de Zaratustra"(3). Elepróprio ironiza seu insucesso: "Em verdade, Zaratustrafez hoje uma bela pesca! Não pegou um homem, masassim mesmo um cadáver"(4).

Zaratustra graceja, mas a hora é grave: foi conside-rado louco (Prólogo, § 8: "Na verdade, falaste como umbufão"), e, como louco perigoso, causa medo. Já pres-sente as ameaças de morte: "Para eles, os homens,ainda estou a meio caminho entre o louco e o cadáver."E essas ameaças não tardarão (Prólogo, § 8: "Mas parteda cidade - senão amanhã saltarei sobre ti, eu queestarei vivo, sobre ti que estarás morto!"). Mas Zara-tustra não renuncia e, mais decidido que nunca, repete:"Quero ensinar aos homens o sentido de seu ser: ouseja: o super-homem, raio da nuvem negra que é ohomem!"

Essa obscuridade do homem, de sua existência ,. atéeste ponto, desprovida de sentido", ele vai agora expe-rimentá-Ia. Sua experiência nos fará, melhor que seusdiscursos, perceber a necessidade de criar o super-ho-mememnós.

corriam o risco de transformar-se, se, depois da mortede Deus, o homem se deixasse deslizar pelo declive quedesce até o último homem, em vez de escalar a durasubida que conduz ao super-homem. Restava ver emque se transformaram essas virtudes no homem *, entreos contemporâneos de Nietzsche, ainda inspirados pelareligião e apegados à tradição.

Já sabemos que elas só merecem um "grande despre-zo": "Minha virtude! (... ) Aqui só há miséria, imundí-cie e reles bem-estar!" (Prólogo, § 3). Nietzsche vaiagora mostrar qual é, realmente, o estado de degeneres-cência, de dissolução, em que caíram o homem, suamoral e seus ideais. É isso que Zaratustra descobre,quando de sua fuga, ao experimentar aquilo em que setransformaram as quatro virtudes cardinais. Vamos exa-miná-Ias na ordem em que a narração de Zaratustra asevoca; vendo, na prática, no que se transformou, segun-do ele, essa moral humana, compreenderemos melhor ovigor de seu apelo para substituí-Ia.

A coragem, virtude da vontade, deveria ser a coragemfísica do funâmbulo, que afronta o perigo de morte, ouentão a coragem moral daquele que sabe confessar a simesmo a inutilidade de suas crenças, e derrubar ostranqüilizantes valores estabelecidos, assim como Zara-tustra reformulando suas primeiras idéias. Mas, à guisade coragem, Zaratustra encontra apenas a arrogânciados indivíduos bem-sucedidos, que se recusam a ver

Vimos anteriormente (p. 87) o lugar fundamental ocu-pado pela distinção das quatrà virtudes cardinais em todaa nossa cultura. Também vimos em que essas virtudes

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seus privilégios contestados, e temem os malefícios dasidéias subversivas sobre o povo humilde dominado gra-ças às ideologias reinantes: ~'Odeiam-te os bons e osjustos, chamam-te inimigo e julgam que os desprezas;os fiéis da verdadeira fé também te odeiam, conside-ram-te um perigo para o povo. "

Certamente, Zaratustra não encontra a moleza frágildos últimos homens, mas tudo o que encontra, à guisade coragem, são as ameaças de um selvagem: "Tesalvaste por hoje. Mas parte da cidade - senão amanhãsaltarei sobre ti, eu que estarei vivo, sobre ti que estarásmorto." O eremita, que encontrou na floresta, tinharazão de alertá-lo: "Não busques os homens (...) Vaiantes ter com os animais!" (Prólogo, § 2). E o pressen-timento de Zaratustra, inquietando-se: "Ainda estoua meio caminho entre o louco e o cadáver" (Prólogo,§ 7), se revela exato; agora, os homens, preocupados,tentam intimidá-lo com ameaças de morte. Não é semmotivo que, ele próprio, quando se lembrar' 'do que lhedissera o santo na floresta", poderá dizer: "Encontreimais perigos entre os homens que entre os animais"(Prólogo, § 10).

o filósofo se julga sempre indigno, eles cultivam osarcasmo, a zombaria maldosa: "Aproximando-lhe dorosto seus archotes, reconheceram Zaratustra e se pu-seram afazer pesados gracejos a seu respeito", e, nesseponto, sua atitude não é mais digna do que a dos últimoshomens.

A temperança, esse domínio sobre si mesmo, que é umaforma de liberdade, respeito pelo seucorpo epelo dooutro,certamente eles não a abandonaram, como os últimoshomens, que só conhecem a higiene alimentar e sexual,mas fizeram dela a vida eremítica: a infelicidade, o asce-tismo, o sofrimento e a mortificação erigidos em fmalida-de, o desprezo pelo corpo e por si; eles fundaram essavirtude sobre a consciência intranqüila de quem tem um"mau sono".

Quanto à justiça, virtude das relações com o outro,respeito à dignidade de cada um, exigência de solidarie-dade calorosa, fizeram dela uma esmola estúpida cujoúnico objetivo é tranqüilizar a consciência do doador,sem nenhuma preocupação com aquele que a recebe.Quando Zaratustra lhe explica: "Meu companheiro é

Em vez da sabedoria, do saber que ilumina todas ascoisas, os fins e os meios, da lucidez que o filósofoalmeja sem nunca esperar atingir, desse olhar penetran-te que confere uma autoridade moral legítima, da qual

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um morto", o velho responde, resmungando: "Tanto seme dá (...) quem bate à minha porta deve aceitar o queofereço."

E o que o eremita oferece é "pão e vinho"; ainda umavez, é, muito explicitamente, a religião cristã que Nietzs-che visa, com essa imagem caricatural da Santa Ceia e dascerimônias cristãs, que a repetem(5).

Zaratustra anuncia: "seduzir e afastar muitos do reba-nho - eis a meta a que vim. "

Aqui, de novo, Nietzsche lembra os evangelhos paramelhor opor-se a eles. Ele os evoca: "O criador procu-ra companheiros, companheiros de colheita: porquenele tudo está amadurecido para a ceifa. Masfaltam-lhe as cem foices: por isso que, na sua cólera, saiarrancando espigas"(8); mas, ao mesmo tempo, opõe-se a eles, e é a Jesus Cristo chamando os discípulos eexigindo "se alguém quiser me seguir, que renegue a simesmo"(9) que Zaratustra responde: "Preciso (...) decompanheiros vivos - não de companheiros mortos oucadáveres, que eu leve comigo aonde eufor. (...) com-panheiros vivos, que me sigam para onde eufor, porquequerem seguir a si mesmos."

Seguir-se a si mesmo é prolongar-se, expandir-se,realizar-se, dar-se à luz e dar à luz. Seguir-se a si mesmoé criar-se. O que criam esses criadores que se seguem asi mesmos é, antes de mais nada, ELES PRÓPRIOS.

O que caracteriza esses companheiros, o que fazdeles uma elite, é, pois, em primeiro lugar, sua vontadede aperfeiçoamento pessoal. A procura do pleno desen-volvimento, da plena realização de si mesmos, a vonta-de de afmnação e de autocriação que se pode discernirem todos os seus atos, é, de certo modo, o exato inversoda humildade cristã.

a) Uma verdade nova: a necessidade de umnovo público

Avalia-se melhor agora a gravidade do fracasso deZaratustra (prólogo, § 7): o abandono em que caiu ohumano nos faz, tanto quanto a abjeção do último ho-mem, compreender quanto é necessário que Zaratustranão renuncie a pregar o super-homem.

Felizmente, ao acordar de um longo sono reparador,Zaratustra "exultou: pois via agora uma verdade no-va". De fato, compreendeu a causa de seu fracasso eachou o remédio; percebeu que se enganara de públicoao dirigir-se à multidão e ao funâmbulo: "Não devo sernem pastor nem coveiro", e que o escutariam se ele sedirigisse a companheiros (6): "Preciso de companhei-ros". Falar de companheiros é falar de uma elite; opon-do-se ao "Bom Pastor", pronto a tudo arriscar paratrazer de volta ao rebanho uma ovelha desgarrada(7),

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Seguir-se a si mesmo é, ao mesmo tempo, criar seuspróprios VALORES, e é por isso que, principalmente, oscompanheiros de Zaratustra são ditos" criadores" , poiseles inscrevem "novos valores sobre novas tábuas".

Seguir-se a si mesmo é, pois, exatamente, para eles,não mais seguir a Deus, renunciar às tábuas da lei,diretamente gravadas por Deus, confiadas a Moisés, eimpostas aos homens(lO). Seguir-se a si mesmo é recu-sar-se a obedecer a Deus, para só obedecer a si mesmo,não, evidentemente, aos seus impulsos, como faz oúltimo homem, mas às suas próprias leis, aos seuspróprios valores, que são valores justamente porque nãosão impostos mas criados, de modo que obedecer a elesé obedecer apenas a si mesmo, segui-Ios é seguir-se,é comandar.

Vê-se que Nietzsche se situa no prolongamento deum movimento de pensamento que começa com J.-J.Rousseau e Kant, insistindo, ambos, na autonomia dosujeito moral que, como ser racional, só obedece a simesmo quando obedece à lei moral racional. Mas, paraNietzsche, não se trata mais de razão, nem, verdadeira-mente, de obedecer ...

Evidentemente, os indivíduos submissos à moral, osdevotos das religiões, aqueles que "se designam comoos bons e os justos (...) como osfiéis dafé verdadeira",odiarão esses companheiros, nos quais verão apenas"destruidores e desdenhosos do Bem e do Mal", comoodiarão Zaratustra, que tratarão de "bandido", comoodiarão Nietzsche, em quem verão apenas o destruidorde nossa cultura. Para eles, seguir-se a si mesmo é fazerabsolutamente tudo o que dá prazer, abandonar-se à

procura desenfreada do gozo, deixar-se arrastar peladevassidão; confundem o imoralismo de Nietzsche e aimoralidade do dissoluto, o super-homem e o últimohomem. Mas sua incompreensão já é um sintoma e umargumento contra eles: se eles vêem na recusa nietzs-chiana das interdições exteriores um apelo à displicên-cia, é, evidentemente, porque são incapazes de imaginarque se possa renunciar à displicência de outra forma quenão seja a obediência a uma interdição exterior. Elesvêem apenas a destruição, sem compreender que ela éo avesso de uma construção: "Aquele que destrói suastábuas de valores, o demolidor, o criminoso - mas esseé que é um criador."

Destruindo as tábuas de valores, o demolidor, o cri-minoso, o criador (como Nietzsche, o filósofo que em-punha um martelo que destrói e esculpe) é ainda, em umsentido novo, um niilista*4.

Só vêem o declive fácil do gozo e da devassidão láonde estão "o arco-íris e todos os graus do super-ho-mem." Pois, decididamente, é ele que se deve criar:Zaratustra procura CRIADORES DE SUPER-HOMEM seme-lhantes a ele, "companheiros de criação ... companhei-ros de ceifa. "

Essa precisão é duplamente interessante, pois permi-te, ao mesmo tempo, distinguir melhor o que são essescompanheiros, semelhantes a Zaratustra, e conhecermelhor Zaratustra, semelhante a seus companheiros.Rejeitado, também ele, pelos bons e pelos crentes, esseprofeta do super-homem é criador de si mesmo, denovos valores, e, mais que anunciador, parteiro do su-per-homem.

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s. Discreta alusão ao eterno retorno(prólogo, § 10)

Subsiste, entretanto, uma dificuldade capital: diga-mos, para simplificar, que Nietzsche se situa deiibera-damente em uma posição - outrora a de Heráclito - que,na opinião de Platão e Aristóteles, quase fez abortarpara sempre a filosofia.

É exatamente o futuro pensamento do próprioNietzsche que reconhecemos na apresentação que elemesmo fez desse pensamento de Heráclito, como elefilósofo afirmativo: "O mundo inteiro" oferece "oespetáculo de uma justiça soberana" (Escritos póstu-mos, 1870-1873, t. I, voI. lI) e, como ele, filósofomonista do devir: "Ele começou por negar a dualidadede dois mundos" e até "Ele negou o ser em geral"(ibid.). Ou antes, o próprio ser; aquilo que Platão pro-cura no mundo das Idéias reside, para ele, neste mundodo devir. A essência da realidade é ser devir.

Nietzsche (cf. Ecce Roma, t. VIII, voI. I) nuncarenegará esse parentesco(13), e tudo se passa, pois,como se a recusa nietzschiana da nossa tradição depensamento, e seu esforço para recomeçar de outramaneira, fosse uma tentativa para repensar outra vez,depois de 24 séculos, as verdades descobertas porHeráclito e ocultadas por toda a tradição filosóficaposterior.

Mas, ao mesmo tempo, existe nisso uma dificuldade,pois essa posição de Heráclito parece, na verdade, cons-tituir um impedimento à própria existência da filosofia.De fato, a teoria de Heráclito - Platão insistia nisso(14)_ converge com a de Protágoras: se as coisas são em simesmas mutáveis, diversas, são, por isso mesmo, paracada indivíduo, tais como elas lhe parecem. Daí resulta

Com seus "companheiros (...) defesta", Zaratustra,que leva "a toda a parte o reflexo de tua fruição"(Prólogo, § 1) divina, vai partilhar a alegria profunda,da qual o vimos animado logo no inicio do Prólogo,ESSA FELICIDADE, tão afastada da melancolia dos ere-mitas quanto do riso cínico dos homens ou da zombariagrosseira dos últimos homens, essa alegria de quemrealiza e anuncia grandes acontecimentos: "Quem ain-da tiver ouvidos para o inaudito (lI), a esse queroinundar o coração com a minhafelicidade."

Quanto àqueles que não o ouvem, Zaratustra os aban-dona à sua melancolia, ao seu cinismo ou à sua ironia,assim como o Espírito vomita os momos(12): "Queroatingir a minha meta, seguir o meu caminho; saltareipor cima dos hesitantes e dos descuidados .••

O Zaratustra não é apenas a obra de um poeta, é a deum filósofo, e filósofo completo: metafísico e moralista.A ordem das preocupações, assim como a própria forma(solidez dos planos, riqueza e precisão dos conceitos,rigor das articulações, freqüência das referências maisou menos implícitas a esta ou aquela tradição filosófi-ca ...) justificam inteiramente esses termos.

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que nenhum conhecimento pode pretender a universali-dade, pois nenhum conhecimento que fosse' verdadeiropoderia continuar a ser verdadeiro.

O dualismo de Piarão - ele próprio explica(15) eArlstóteles repete posteriormente(16) - é uma respostaa Heráclito, uma maneira de escapar a essa dificuldade;o mundo recusado e negado pelo dualismo, em benefí-cio de um outro, é o mundo de Heráclito: a primeirarazão de ser das Idéias é escapar ao devir sensível econstituir, assim, o objeto de um conhecimento possí-vel. A filosofia de Aristóteles constitui uma outra res-posta à mesma dificuldade. Sem dúvida, para ele, nãoexistem essências separadas das coisas nas quais elas serealizam, mas Aristóteles também é inspirado pela mes-ma vontade negadora do mundo de Heráclito que inspi-rava Platão. Na verdade, subsiste sempre, segundo ele,uma diferença entre a essência universal e o ser realsingular, e este é inferior àquela; há como que umaperda de realidade profunda, por ocasião da individua-ção da essência em uma realidade concreta, sempremais ou menos contingente. O real que experimenta-mos, mesmo se existe sozinho, é um ser menor(17). Domesmo modo, a teoria aristotélica do movimento e suadistinção fundamental entre potência e ato são aindauma resposta a Heráclito: trata-se de distinguir o devirpossível do devir impossível; e assim também a sualógica, que distingue o que é pensável, e constitui oobjeto de um saber possível, do que não é pensáveI.

. Platão e Arlstóteles ... é o mesmo que dizer que todaa nossa filosofia aparece como uma refutação do pensa-mento de Heráclito, com o qual Nietzsche reata.

Como, nessas condições, pode Nietzsche ser, aomesmo tempo, filósofo e partidário de Heráclito?Como são possíveis a meta física e a moral de Nietzs-che? O próprio Zaratustra se preocupa: "perigosossão os caminhos que trilha Zaratustra. Possam meusanimais orientar-me'"

b) A solução sugerida pelos animaisfamiliares

Ora, seus animais vão orientá-Io, pois a resposta estáinteira em duas palavras, duas palavras que seus doisanimais familiares vão lhe soprar: ••Eis que uma águia'atravessava os céus, DESCREVENDO GRANDES clRCULOS,

a transportar uma serpente, (...) POIS ESTA LHE PENDIA

do pescoço." A resposta que esse duplo círculo sugerea Zaratustra é, evidentemente, o eterno retorno, o mo-vimento circular de todas as coisas no tempo circular.E foi bem propositadamente que Nietzsche precisaraque "o sol estava a pino", pois sempre é meio-dia se otempo é circular.

Essa idéia do eterno retorno é ainda Heráclito que apropõe a Nietzsche (cf. Ecce Homo, voI. VIII, t. I). Mas,à primeira vista, essa teoria, que não nos espanta muitoem um grego do século VI antes de nossa era, parecesurpreendente, inesperada, em um pensador do séculoXIX, contemporâneo de consideráveis progressos daciência dita positiva, progressos que, para muitos,poderiam fazer caducar definitivamente esse gêne-ro de hipóteses metafísicas ousadas. O que vem

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fazer, no século do triunfo da ciência, semelhante mi-tologia oriental arcaica?

Já sabemos o pouco caso que Nietzsche faz da razãocientífica, quando é animada por uma vontade negativae reativa. Sabemos, principalmente, que uma idéia ver-dadeira não fica ligada a uma época, que o valor de umahipótese não se mede por sua conformidade ao espíritode um tempo; o único critério de sua verdade está na suariqueza, no número e na importância dos fatos e idéias,dos quais ela é capaz de dar conta. É, pois, unicamentedesse ponto de vista que convém examinar a doutrinado eterno retomo. Vamos então perceber que, nem maisnem menos aventurõsa que a hipótese inversa da exis-tência de um mundo das Idéias, formulada por Piatão, ahipótese de Nietzsche é, a seu modo, de uma igualriqueza.

A esse pensamento, o mais secreto de Zaratustra, oPrólogo faz apenas uma alusão muito discreta. Nãoinsistiremos, e não esgotaremos o seu significado, masse essa alusão vem no fim do Prólogo e lhe serve deconclusão, é porque esse tema constitui, aos olhos deNietzsche, o tema essencial de todo o Zaratustra. Everemos até que, enquanto a redigia, Nietzsche pareceter previsto acabar o Zaratustra na terceira parte, que,justamente, trata desse eterno retomo. É esse o pensa-mento principal de Nietzsche, o pensamento principalde seu herói Zaratustra, imaginado exatamente paraexpressá-Io: "0 fundo próprio para a figura desse heróié o pensamento do Eterno Retorno, no ponto exato emque esse pensamento não é expresso. Pois o 'pensamen-to dos pensamentos' e sua doutrina exigem um mestre

singular. A doutrina é imediatamente representada pelafigura do mestre."(18)

Afirmar o eterno retomo é abrir a porta a uma NOVA

MET AFíSICA antidualista (antiplatônica) e antifinalista(anti-hegeliana).

Afirmar que, por uma infinidade de vezes, tudovolta, é fazer com que o devir escape à temporalidadee ao inacabamento que ela implica, é dizer, efetiva-mente, que cada segundo, repetido uma infinidade devezes, dura uma eternidade, é dizer que cada objetotemporal é eterno; é, pois, dar ao sensível a imutabi-lidade, a densidade, a plena realidade que Platãoreservava às Idéias.

E o primeiro a beneficiar-se dessa nova forma deeternidade é, evidentemente, o homem. Ao funâmbulomoribundo, que sy entristecia: '''Se dizes a verdade,(...) não passo de um animal'" (Prólogo, § 6), ao cristãoe a Kant, que vêem nessa vida futura o postulado neces-sário da plena e justa realização da vida neste mundo,Nietzsche responde que já possuímos a vida plena ecompleta, eterna, não no além, mas aqui na terra, nestemundo da nossa ação.

Afirmar o eterno retomo é, ao mesmo tempo, fazerdo físico o objeto de uma metafísica. E, nisso, a descri-ção nietzschiana do universo revela agora o seu plenoalcance. Esse universo, onde ela mostra um emaranha-do, um equilíbrio sempre instável e sempre corrigido deforças que rivalizam, opõem-se, conjugam-se, é nãoapenas o único universo, mas, além disso, é eterno.Assim, a distinção mais elementar da mecânica clássica,a distinção, pelo físico, entre trabalho motor e trabalho

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resistente, entre ação e reação, que constitui como queuma primeira explicação, uma primeira organizaçãodesse universo, toma um alcance metafísico: é umaverdade universal e eterna, pois esse universo é todo oser e esse ser é eterno.

Essa metafísica não desvaloriza o sensível, o devir,em nome de uma inteligibilidade imutável, mas, aocontrário, eleva o devir sensível à condição de essênciainteligível. A metafísica do eterno retomo é a metafísicados que ficaram "fiéis à terra" (Prólogo, § 3). Assim,realiza-se a reconciliação da filosofia e do pensamentode Heráclito, das Idéias e do sensível. Assim, realiza-sea superação da oposição entre o dualismo, que, como aáguia, voa muito alto em um mundo que valeria muitomais que este, e o monismo materialista, que, como aserpente, rasteja sobre este mundo, único existente esem valor. Com o eterno retomo, no qual a águia -celeste - arrebata a serpente - terrestre - que ela toma"não como presa, mas amiga", existe apenas um únicomundo e esse mundo tem valor e sentido. Assim, reali-za-se finalmente a reconciliação do homem consigomesmo, desse animal orgulhoso, que desejaria ser umanjo, com o anjo que ele é, e bastante sagaz para saberque é um animal: "Mas estou querendo o impossível,porque peço à minha altivez que acompanhe sempre aminha sagacidade /"

Mas devolver seu valor ao mundo do devir nãopoderia ser, para Nietzsche, justificá-Io por sua fina-lidade. A explicação última das coisas não está nemno "amanhã" nem no "alhures"; não se vai a lugaralgum quando se anda em círculo. Ao mesmo tempo em

que é antiplatônica, a metafísica do eterno retomo éresolutamente anti-hegeliana, e não se trata, absoluta-mente, para Nietzsche, de mostrar que as coisas sesubordinam a um desígnio de conjunto, que uma oOastú_cia da razãoo°(l9) dá a cada acontecimento seu lugar emum todo, que toda decisão individual, todoprocedimen-to pessoal, se inscreve, como que contra a vontade, emum sentido da história.

Se este mundo tem valor, e sentido, é porque é omundo onde minha ação moral pode dar valor, e sentido,não Alhures, não Amanhã, mas Aqui, e Agora.

Uma meta física, como sabemos, traduz, e, recipro- .camente, inspira uma moral e costumes. Se a metafí-sica dualista tradicional traduz a vontade de negar e, ,ao mesmo tempo, inspira a dominação niilista dasforças reativas, inversamente, a metafísica do eternoretomo traduz a vontade de afirmação e inspira adominação da ação.

A meta física do eterno retomo traduz e inspira A

MORAL DO SUPER-HOMEM. Façamos, mais uma vez, apergunta da genealogia: QUEM afirma o eterno retomode todas as coisas? O que QUER ele? A resposta é clara:É aquele que é imortal, e que está, pois, livre de qual-quer ressentimento - de que desejaria ele vingar-se? -,é aquele que quer todo o ser, sem restrição, e para aeternidade. Com um entusiasmo bem superior à resig-nação estóica, com uma plena aceitação do real até emseus piores aspectos, bem mais corajoso que o otimista,que, como Leibniz, nega o mal para poder aceitá-Io,mais corajoso que aqueles para os quais todas as coisassão boas e este é o melhor dos mundos (Assim falou

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Zaratustra, terceira parte, "00 espírito de gravidade"),ele diz ••SIM" a este mundo, nem melhor nem pior queum outro - único.

Ao mesmo tempo, a metafísica do eterno retomoinspira a conduta do super-homem, a conduta ativa porexcelência. O super-homem, que diz "sim" a todo oreal, não é aquele que o assume, que o aceita tal qual é,que carrega o peso do real; é aquele que age, impõe suaforça ativa, domina e transforma o real. Ele realiza essaliberdade que é ação, força coagente, e não reação, forçacoagida. E a doutrina do eterno retomo dá sua plenadimensão a essa atividade: o super-homem é aquele quetem realmente consciência de que o mais ínftmo de seuscomportamentos deverá repetir-se eternamente, que amenor de suas decisões compromete uma eternidade.Este é um excelente critério da seleção mais severa, darigorosa eliminação de todas as veleidades mesquinhas,de todos esses atos furtivos, que nos apressamos aesquecer. O super-homem é aquele que só faz o quemerece ser repetido uma infmidade de vezes, e duraruma eternidade; o super-homem é aquele que "antece-de com palavras de ouro os seus atos" (Prólogo, § 4),e ao fazer isso, compromete-se pela eternidade.

Com essa alusão ao eterno retomo acaba o Prólogo.Os conceitos-chaves estão introduzidos, todos os temasanunciados.

A abertura está terminada; a ópera pode começar.

Apresentação sistemática dosprincipais conceitos do Prólogo

Temos, pois, dois pares de noções fundamentais(l):- Por um lado, todo fenômeno, qualquer que seja, éconstituído de uma relação hierárquica, mais ou menoscomplexa, de forças. Entre essas forças, algumas sãoATIVAS, outras REATIVAS.

COMPREENDER um fenômeno será, pois, primeira-mente, discernir quais são as forças ativas e quais asforças reativas; em seguida, e principalmente, distin-guir que forças, ativas ou reativas, predominam sobreas outras.

- Por outro lado, em toda relação de forças hierár-quicas, isto é, em tudo, exprime-se uma vontade depotência que pode ser, seja VONTADE DE NEGAÇÃO, dedestruição, de depreciação, seja VONTADE DE AFIRMA-çÃO, de construção, de apreciação.

Para JULGAR O VALOR de um fenômeno, será ne-cessário compreender como se explica a hierarquiaque nele se encontra, isto é, compreender por que

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razões nele dominam, de acordo com o caso, as forçasativas ou as forças reativas. Para fazer isso, seránecessário compreender a sua genealogia, isto é,distinguir o tipo de vontade de potência, afirmativaou negativa, pelo qual esse fenômeno foi gerado,motivado.

Temos assim, teoricamente, quatro combinaçõespossíveis (cf. quadro a seguir).

ral diferente e os conceitos-chaves como "Morte deDeus" ou "Niilismo" mudarão de sentido.

O quadro da página seguinte, que situa todas essasnoções, pode constituir um verdadeiro resumo de todo oPrólogo.

Tipo de vontadeinspiradora

Hierarquia

Vigente

Reação > Ação

Ação > Reação

Vontade Vontadenegativa afirmativa

1 3

2 4

Na realidade, lendo-se apenas o Prólogo, as coisas secomplicam um pouco por dois motivos:

Primeiramente, no Prólogo, Nietzsche apresentaduas variantes da combinação I, variantes que designa-remos respectivamente por IA e IB.

Por outro lado, o Prólogo não apresenta a combi-nação 3, tratada na seqüência da obra, ao descrever aatitude do burro: "dizer sempre 'I.A.'(2) - aprendemisto somente o burro e quem tem o seu espírito!"(Assim falou Zaratustra, segunda parte "Do espíritode gravidade")(3).

Nas quatro combinações que nos interessam direta-mente (IA, lB, 2 e 4) encontraremos a cada vez um tipodiferente de atores, uma metafísica diferente, uma mo-

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- TRANSMUTAÇAo(§ 1), isto é, Morte de Deus (§ 2),,..;o

Destruição dos antigos valores (§ 3) + Criação de valo-:t•o ê res novos ou NIILISMO*4criador (§ 4 e 9);~ ; B ~ .&>

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II Cada um desses quatro temas vai, por sua vez, ser o'" ,i

objeto principal de uma das quatro partes da obra; e os~ Ze ..•... -8 i :!1l ~ij ~ "" ) 1 119& :=~ Z ~

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o super-homem

A transmutação donillismo *' aonillismo*4

A vontade de potência

O eterno retomoO niilismo *2,3

§3§ 1,2,3,4,8,9

Prólogo

Parte I

passar ã criação de valores novos, com a originalidadeinocente da criança(l) (cap. 1,"Das três metamorfoses").

Nessa passagem, há como que uma imagem d&vida(educação passiva, crise da adolescência, iniciativado jovem adulto), como que uma imagem da vida deNietzsche(2). Há principalmente um projeto autenti-camente filosófico, que se inscreve - uma vez só nãofaz mal... - no prolongamento de toda uma tradição (emSócrates, a ironia destruidora precedia a maiêuticaconstruidora; o sistema de Descartes começa pela dúvi-da ...); um projeto que se inscreve, mais diretamenteainda, contra uma tradição filosófica bem precisa: é,evidentemente, a Hegel, à Fenomenologia do espírito,que vê no Espírito Absoluto o herdeiro de todas asetapas de seu processo de constituição, que se opõem as"três metamorfoses do ESP/RlTO". Novo Evangelho eAnti-Evangelho, o Zaratustra se anuncia também comouma Nova e Anti-Fenomenologia do Espírito: o contrá-rio de uma recapitulação, uma nova partida.

Há, enfim, uma introdução à primeira parte do Zara-tustra, cujos discursos são ora os do leão destruidor oraos da criança criadora. '

quatro outros serão, por sua vez, em cada parte, retoma-dos, ampliados, repensados, celebrados, em sua relaçãocom o tema central dessa parte.

Podemos, assim, traçar o seguinte quadro para esque-matizar a estrutura do conjunto do Zaratustra em com-paração com a estrutura do Prólogo:

Conjunto doZaratustra

§4§ 10

§S,6

Parte 11

Parte III

Parte IV

2* A transmutação (Os discursos deZaratustra, primeira parte)

a) Um vasto programa: tudo destruir etudo reconstruir b) Os discursos do "leão":

o que se deve destruirZaratustra começa com uma alegoria, que ilustra as trêsetapas da transmutação. Ele nos ensina como, partindo-seda obediência passiva do camelo, que sempre aceita ascargas que lhe são impostas, se deve derrubar todo o fardodos valores, com a selvagem brutalidade do leão, e depois

A diversidade dos costumes, as variações da consciên-cia moral provam que os valores morais são criaçõeshumanas; provam, pois, que somos responsáveis por

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eles. É essa responsabilidade que nos impõe o dever decriar novos valores; também é ela que legitima o fato deque se julguem os homens - tanto os indivíduos quantoas civilizações - pelos valores que criaram, pela moraique inventaram (cap. 15, "Dos mil e umfitos'j.

Éa partir daí que Zaratustra, o "leão", vai denunciaro dualismo, simultaneamente fundamento e resultadode uma moral medrosa (cap. 3, "Dos transmundanos"),e vai voltar-se contra a cultura medíocre que simulta-neamente nutre essa moral e dela se nutre (cap. 7, "Doler e escrever"), e contra os representantes "estabele-cidos" dessa moral: o Estado (cap. lI, "Do novo ído-lo") e os "notáveis" (cap. 12, "Das moscas da/eira").

Essa moral é pusilânime, doentia; e não corajosa,empreendedora, guerreira; seus criadores não têm outraaspiração senão uma sonolenta e complacente consciên-cia tranqüila (cap. 2, "Das cátedras da virtude", e 14,"Do amigo"). O essencial da moral não está, para eles,nos atos efetivos, mas nos sentimentos que seguem oato, como os sentimentos de culpabilidade: remorso - earrependimento, ao qual a moral cristã dá tanta impor-tãncia -, ou nos sentimentos que precedem o ato - comoa intenção, na qual Kant vê todo o valor moral (cap. 6,"Do pálido criminoso"). Para eles, a virtude da justiça- uma idéia fundamental entre os filósofos do séculoXVllI e os pensadores sociais do século XIX - é apenasfraqueza apiedada e não respeito exigente ao outro (cap.19, "Da mordida da víbora"). O amor ao próximo - avirtude cristã da caridade - é apenas tolerância da fra-queza do outro, maneira fácil de ficar com a consciênciatranqüila (cap. 16, "Do amor ao próximo").

Essa moral é desencarnada e Zaratustra denuncia apudicícia hipócrita, que, sob a apaiência de pureza,esconde um medo do corpo. Assim, ele se volta contraaqueles que preferem a seu corpo um suposto "eu"mais profundo (cap. 4, "Dos desprezadoresdo corpo")e pregam até a superioridade da morte sobre a vida (cap.9, "Dos pregadores da morte"); morre-se cedo demaisse não se realizou sua obra de criação, e tarde demais sesó se pensou em manter timidamente uma vida estéril(cap. 21, "Da morre voluntária"). Quanto à visão doamur carnal, ela é tão desprezível entre aqueles que oevitam quanto entre aqueles que chafurdam na devassi-dão (cap. 13, "Da castidade"): a mulher é para elesuma tentação de fraqueza, e não a mãe do super-homem(cap. 18, "Das mulheres, velhas e jovens"); para eleso casamento é uma deplorável instituição confortável,e não uma etapa na grande aventura que deve engendraro super-homem (cap. 20, "Do casamento e dos fi-lhos"). Ao pretenso "bem" da moral, que quer negaros instintos, Nietzsche opõe o "nobre", que não mataos instintos mas os domestica, como se domestica umanimal, sem temê-lo e sem matá-lo, mas dominando-oe utilizando-o (cap. 8, "Da árvore no monte").

c) Os discursos da "criança":o que se deve construir

Zaratustra celebra de novo o criador do super-homem(cap. 17, "Do caminho do criador"); celebra a coragemguerreira, imagem da luta pelo domínio de si (cap. 10,

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3. A vontade de potência e o tempo(Os discursos de Zaratustra, segunda parte)

real: a vontade de potência. Compreender uma coisaé distinguir nela uma vontade de potência; e essacoisa tem ou não valor, segundo a vontade de potên-cia que ela exprime.

Mas deve ficar claro que não se trata de antropomor-fismo: a vontade de potência não é nem uma das cate-gorias lógicas dignas do "grande desprezo" (Prólogo §3); nem um processo, ao mesmo tempo informante edeformante, como o trabalho do sujeito transcendentede Kant. Essa vontade de potência não é subjetividade,nem individual nem transcendental, e Nietzsche não ainventa; ele a encontra no ser.

Trata-se de compreender que o real, o ser, Évontadede potência, não no sentido de que todas as coisasquerem a potência - longe disso - mas no sentido de quetodas as coisas são potência que quer; que quer negarou afirmar, abrigar-se ou desenvolver-se, ultrapassar-seou negligenciar-se (cap. 12, "Do superar a si mesmo").

"Da guerra e dos guerreiros"); afirma a existência deuma virtude única, que não se opõe às paixões, mas, aocontrário, com elas se enriquece (cap. 5, "Das alegriase das paixões"); e a primeira parte acaba com um hinoà generosidade transbordante da verdadeira virtude, dapotência que se afirma, se amplia e transborda (cap. 22,"Da virtude dadivosa").

Depois de anos de solidão, Zaratustra, de novo seme-lhante à taça que transborda, de novo animado pela"virtude dadivosa" (primeira parte, capo 22), retoma àsua pregação; a sabedoria não pode ser egoísta nem osábio ficar isolado (cap. 1, "O menino com o espelho").

a) A vontade de potência, chave deinterpretação e avaliação

Quanto ao fundo, a mensagem é sempre a mesma, eZaratustra começa recapitulando-a: a morte de Deusnos impõe o dever da criação do super-homem (cap. 2,"Nas ilhas bem-aventuradas"). De novo, e semprecom o mesmo vigor, retoma a polêmica; mas dessa vez,vai, além disso, mostrar claramente, explicar sua chavede leitura, seu princípio de interpretação e avaliação do

Compreender e avaliar uma coisa é, pois, compreendere avaliar o que essa coisa quer. É à luz desse princípioque se pode entender as novas polêmicas empreendidaspor Zaratustra: em toda a parte, em tudo o que critica,ele percebe um certo tipo de querer destruidor e negati-vo, e, em toda a sua crítica, deixa entrever, mais oumenos, o que poderiam ser as coisas se uma vontadeconstrutiva e afirmativa as animasse.

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É na religião, na crença em um mundo do sagrado,que Nietzsche assinala em primeiro lugar a obra dessavontade negativa: essa religião animada pela vontadeniilista de vingança, acabrunhada pelo peso dos valoresdivinos, procura acabrunhar os outros (cap. 4, "Dossacerdotes"). Assim, Zaratustra declara guerra àquelesque acabrunham com sua caridade (o sentimento cris-tão), com sua piedade desdenhosa, o homem, o pobrehomem, já prostrado sob a vergonha e o peso de suaculpabilidade (cap. 3, "Dos compassivos").

O segundo domínio em que triunfa a vontade nega-tiva é o da ética e da política, e, de novo, Zaratustra atacaos que procuram consolar-se de suas fraquezas, qualifi-cando-as de virtudes (a pusilanimidade se toma sabedo-ria, a resignação coragem, a fadiga temperança etc.) evingam-se impondo-as aos outros, em nome de umapseudojustiça, que só serve para rebaixar os mais fortes(cap. 5, "Dos virtuosos"). É a mesma vontade de vin-gança que ele percebe em todos os pregadores da sobrie-dade, da moderação, em todos os que amarguram a vida(cap. 6, "Da canalha"), ou nos pregadores da igualda-de que, como aranhas que paralisam os que elas pren-dem em suas teias, vingam-se de sua mediocridade,tentando fazer cair nela aqueles que os ultrapassam(cap. 7, "Das tarântulas").

Enfim, é no conhecimento que Nietzsche assinalauma vontade negativa; e Zaratustra denuncia os sábios,os pensadores, cientistas e filósofos, que, mesmo tendofeito profissão de rigor racionalista, e até de ateísmo,objetivamente apenas mantiveram, sob outra forma,essa cultura que nos acabrunha com o peso dos valores

transcendentais (cap. 8, ""Dos famosos sábios"). Senosso saber se gaba tanto de ser desinteressado, é por-que é apenas curiosidade doentia de impotentes (cap.15, "Do imaculado conhecimento"). Quanto àqueles-impostores que caem no próprio laço - que se vanglo-riam de intuições privilegiadas, de experiências profun-das, quase místicas (cap. 17, "Dos poetas"), não sãomelhores do que os repetidores de idéias preconcebidas(cap. 16, "Dos douras").

Mas, criticando esses pensadores sérios, fechados,distantes, de um saber severo, e, em última análiseniilista, Zaratustra nos faz adivinhar o que poderia se;o saber entusiasta de uma criança que descobriria ino-centemente o mundo (cap. 13, "Dos seres sublimes").

Em suma, é toda a nnssa cultura que é atacada. Nesseconjunto, em oposição a Hegel que nele via um todocoerente, Nietzsche vê apenas um patchwork sem outraconsistência, sem outra coerência, exceto aquelas recebi-das de uma comum inspiração niilista (cap. 14, "Do paísda cultura"). Diante dessa cultura, dessa doença do uni-verso propagada pelo homem, seu Estado e sua religião,Zaratustra proclama que avida, a terra, o ser não são males(cap. 18, "Dos grandes acontecimentos ").

c) Como Zaratustra resiste a umadupla tentação

Como intermezzo, no meio dessa segunda parte, Nietzs-che nos oferece três magníficos cantos de Zaratustra.

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o primeiro canto (cap. 9, "O can10noturno") é osurpreendente canto de amor do pensador, que se deses-pera por não mais poder amar ... A lucidez é cruel;existe, pois, alguma crueldade em Zaratustra, o lúcidodescobridor das vontades profundas, o clarividente cujalucidez o obrigou a uma total mudança de ponto devista. Essa crueldade lhe pesa, e ele confessa a tentaçãode ficar na penumbra, tão mais acolhedora e mais calo-rosa que a fria lucidez. Nietzsche não tem nenhumprazer em seu trabalho de denunciador do niilismo.

Mas Zaratustra - e Nietzsche - sabem que uina outrafelicidade existe, uma felicidade verdadeira, que a luci-dez não extingue. É a felicidade da criança, do criadorde valores novos, a felicidade da dança, isto é, doabandono à vida em sua espontaneidade, em sua harmo-nia. É essa felicidade que ele vai agora celebrar (cap.10, "O canto de dança").

Zaratustra experimenta então uma segunda tentação, ado desesperodiante do tempo que passa e dajuventude queacaba, e contempla, entristecido,a suajuventude morta.

Mas sua vontade triunfa dessa dor; e nesse ponto hácomo que uma primeira alusão ao tema do eterno retor-no, que será. o objeto da terceira parte: a vontade depotência pode prevalecer contra a tempor&lidade (cap.11, "O can10do túmulo").

Deus e da supressão de toda potência imutável, paraque nasça o super-homem, introduziu ele efetivamen-te um novo argumento: a liberdade do super-homemsó pode ser real se for exercida n,o tempo, no devir,construindo um futuro a partir de um passado. Elaseria, pois, ilusória, e o super-homem criador seriaimpossível, se o tempo fosse apenas uma ilusão aosolhos da imutabilidade divina, um reflexo confuso daatemporalidade das Idéias(3) (cap. 2, "Nas ilhasbem-aventuradas").

Entretanto, permanece ainda uma dificuldade consi-derável, pois, se, por um lado, a liberdade implicanecessariamente o tempo, por outro, a liberdade pareceimpossível nesse tempo real: não se pode ser livre nointerior do curso do tempo, com um futuro tinito e umpassado morto. A principal fonte do espírito de vingan-ça, tão fundamental em nossa cultura, está, sem dúvida,nesse ponto: é de sua condição temporal, e da impossi-bilidade de evitá-Ia, que o homem se vinga (cap. 20,"Da redenção").

Zaratustra adivinha a solução: o maior aconteci-mento não é a morte de Deus, excessivamente visível,ruidosa, para ser fundamental. Suprimir o atempora1não basta (cap. 18, "Dos grandes acontecimentos"),o pensamento do mais fundamental surge para ele nosilêncio, onde lhe aparece a essência do tempo comoeterno retomo.

Mas Zaratustra ainda não está pronto para anunciar asua mensagem mais importante, e, mais uma vez, voltapara a solidão. O leão ainda não se transformou comple-tamente na criança (cap. 22, "A horamaissilenciosa").

Esse tema do tempo, Zaratustra já o tinha evocadoanteriormente. Insistindo na necessidade da morte de

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samento mais sublime, pensamento para o super-ho-mem, pensamento solitário, durante tanto tempo, eque o próprio Zaratustra hesita em formular (cap. 1,"O viandante").

A doutrina do eterno retomo é primeiramentesugerida de modo figurado, muito velado e sibilino.Zaratustra nos conta que viu um pastor sufocadopor uma serpente (animal que mata: o tempo. Mastambém, o animal que se enrola ...). O pastor livrou-se do animal, que se introduzira na sua boca, cor-tando-lhe o pescoço com os dentes. Esse tema élogo relacionado com o do super-homem: o riso dopastor, que acaba de triunfar da serpente, do tempo,da morte, é sobre-humano ... (cap. 2, "Da visão edo enigma").

Zaratustra ainda hesitará durante muito tempo, an-tes de formular o seu pensamento mais sublime. Temenão ser compreendido (cap. 9, "O regresso"). Já nãoo abandonaram alguns de seus companheiros, antesmesmo de chegar a esse ponto? (cap. 8, "Dos rene-gados"). Mas é também porque ele próprio aindatem motivos para duvidar, como não tardaremos adescobrir. Entretanto, diz que está pronto para su-portar todas as infelicidades que seu pensamentomais sublime vai acarretar; e ele mesmo se surpreen-de de não sentir nenhum temor. Na noite da Quinta-Feira Santa, no Getsêmani, Jesus, pronto para osacrifício, conhece a angústia; Zaratustra, pronto paratodas as angústias, conhece apenas uma felicidadeserena (cap. 3 e 6, "Da bem-aventurança a contra-gosto", "No monte das oliveiras").

A escolha é simples: tudo ou nada. E, ao mesmo tempo,Zaratustra proclama de novo o grande desastre, cujaiminência lhe é mostrada por um pesadelo. É a desgraçado último homem, que, no extremo do niilismo, não crêmais em nada e não quer mais nada (cap. 19, "Oadivinho").

Mas a situação ainda não é desesperadora e Zaratus-tra ainda espera poder tomar a precaução necessária deensinar ao homem a elevar-se até o super-homem (cap.21, "Da prudência humana").

4. O eterno retorno(Os discursos de Zaratustra, terceira parte)

Zaratustra está cada vez mais só. Uma elite de compa-nheiros já substituiu a multidão do Prólogo; doravante,ele se limitará a conversar com algumas pessoas queencontra, e muitas vezes irá se contentar com a medita-ção solitária. Ele se entristece, pois esperava, a seumodo, salvar todos os homens, conduzir uma multidãoentusiasta para o caminho do super-homem. Mas, aomesmo tempo, ironiza a ingenuidade dessa esperançaantiga; é porque abordamos seu pensamento mais difí-cil, e, num mundo em que se preparam os últimoshomens, ninguém ainda é capaz de apreender seu pen-

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Aqui, ainda, faz-se a ligação, progressivamente, coma idéia de eterno retomo. Zaratustra sugere que é inútilrecorrer, como Platão, à imutabilidade das Idéias, paratranqüilizar-se contra o mobilismo de Heráclito (cap.12, "Das velhas e novas tábuas" § 8).

Para preparar-nos a ouvir o anúncio do eterno retornoNietzsche retoma os temas que já conhecemos e mostr~progressivamente, por alusões discretas e sucessivas, asnovas dimensões que Ihes dá a doutrina do eterno retor .no. Assim vemos, desenvolvidos sob esse novo aspecto,o tema moral da transmutação e o tema metafísico damorte de Deus.

Zaratustra retoma a destruição dos antigos valores(cap.5 e 12, "Da virtude amesquinhadora", "Dasvelhas e novas tábuas"); e - Nietzsche insiste ainda- nisso, nenhum sentimento negativo o anima, masapenas a sua vontade de criar (cap. 7, "Do passaralém"). Ao mesmo tempo - segundo aspecto datransmutação - Zaratustra celebra os novos valorescriados (cap. 10 e 12, "Dos três males", "Das velhase novas tábuas' ').

Nesse ponto, progressivamente, e com muita dis-crição, a noção de eterno retomo é introduzida erelacionada com um outro tema: a vontade de potên-cia do super-homem, que foi o objeto da segundaparte do Zaratustra. Essa vontade criadora, ativa, afir-mativa, é agora apresentada como poder de transfor-mar "todo o 'foi assim' em 'assim eu o quis! Assimhei de querê-Ia!' "

Zaratustra retoma simultaneamente a morte de Deus.Canta a alegria de mover-se sob um céu vazio (cap. 4,, 'Antes que o sol desponte' '), alegria que opõe ao prazermalsão do "esp{rito de gravidade" (cap. 11), prostradosob o peso dos valores.

Enfim, com um grito de entusiasmo, o eterno retornoé claramente anunciado. Zaratustra diz-se "o asse r-tor do drculo" (cap. 13, "O convalescente").

É somente nesse ponto que se compreendem melhoras hesitações de Zaratustra, que o impediram de ser maisexplícito até agora. Mal faz esse anúncio, ele fica doentee quase é sufocado, como o pastor da visão (cap. 2, "Davisão e do enigma"). O que o entristecia, o impedia defalar e, pela última vez, o faz doente, é o retorno domedíocre, do mesquinho, do reativo, do negativo.Afirmar o eterno retomo de todas as coisas, parecia-lhe, é afirmar que o mais vil é eterno. Zaratustra eracomo o jovem Sócrates do Parmênides, que não ou-sava ir até o fim de sua tese e hesitava em afirmar quepudesse haver Idéias das coisas vis, como o pêlo, alama ou a sujeira(4).

Mas Zaratustra esquece sua tristeza. Sem dúvida,deve-se concluir, como Gilles Deleuze, pelo caráterseletivo do eterno retorno, caráter seletivo em virtudedo qual o vil não retomaria: "A lição do eterno retornoé que não há retorno do negativo. O eterno retomo

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significa que o ser é seleção. Só retoma aquilo queafirma, ou que é afirmado, (...) a reprodução do devir étambém a produção de um devir ativo"(5). Mas Zara-tustra não o diz claramente; sabemos apenas que ele serecusa a toda queixa, a toda tristeza, a toda atitudereativa ou negativa, que se recusa a toda acusaçãocontra o ser, e que sua consolação é ter, de novo, quecantar (cap. 13, "0 convalescente").

É, pois, esse canto que Zaratustra entoa: canta amaravilhosa liberdade, a imensa possibilidade de açãoque possui aquele que conhece o eterno retorno (cap.14, "Do grande anseio"); canta a ação harmoniosa,livre, espontânea, feliz, criadora, do super-homem(cap. 15, "O outro canto de dança").

Depois (cap. 16, "Os sete selos"), sela a terceiraparte com sete selos(6), cantando o amor da eternida-de comparado ao amor por uma mulher. Pela últimavez, reúne em torno da idéia de eterno retorno todosos temas da obra. Diz a densidade do instante eterno,no qual a vontade de potência se exerce (§ 1), a mortede Deus (§ 2), a atividade do criador (§ 3), a afirma-ção do ser em toda a sua multiplicidade (§ 4), o campode ação infinito dado ao super-homem (§ 6). A tudoisso, ele diz "SIM" (§ 7).

Esse encerramento solene levaria a supor que o con-junto do Zaratustra poderia acabar ali, e que a quartaparte não estava planejada no momento em que Nietzs-che terminava a terceira. Diversos indícios confirmamessa conclusão: assim se explicaria por que, no fim docapítulo 13, os animais de Zaratustra afirmam: "termi-na o declínio de Zaratustra", e por que, em uma carta

de 1Q de fevereiro de 1884, Nietzsche, que acabava definalizar a terceira parte, escrevia: "Cheguei ao porto!Há quinze dias, meu Zaratustra está acabado, inteira-mente acabado." (7)

Com o pensamento do eterno retorno, afirmativo porexcelência - e com o qual acabava o Prólogo -, sobre oqual se fundamentam todos os outros temas principais,a obra, sete vezes selada, pareceria encerrada. Restaentão compreender o papel da quarta parte.

5. O homem superior e o super-homem(Os discursos de Zaratustra, quarta parte)

Depois de muitos anos passados na solidão da monta-nha, Zaratustra espera que soe a hora de sua novapregação. Transbordante de generosidade, está pronto aoferecer aos homens, para atraí-Ias, o mel de seus dis-cursos. Nietzsche espera a hora de uma quarta parte doZaratustra (cap. 1, "O sacrifício do mel").

Vem visitar Zaratustra o adivinho que já conhece-mos (cf. primeira parte, capo 19, "Da mordida davíbora' '), o profeta do niilismo*2 futuro, o anunciadordo último homem (cap. 2, "O grito de socorro").Esse último homem, o homem mais feio do mundo, oque matou Deus por rancor, por mesquinharia, para

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livrar-sedeum senhor demasiado exigente (cf. Prólogo,§ 5), Z3ratustra não tardará a encontrá-Io (cap. 7, "Omaisfeio dos homens").

Mas o grito de desespero que faz Zaratustra sair de suacaverna e o incita a voltar para os homens é - Niet:zseheexplica então o sentido da quarta parte do Zaratustra - ogrito dos homens superiores, desiludidos, fatigados, des-mobilizados pela morte de Deus. E Zaratustra-Nietzschevai socorrê-los, tomado de piedade. Antes do último ho-mem (o do nosso século XX?), encontrará diferentes figu-ras do homem superior, do homem dos fins do século XIX,do contemporâneo de Niet:zsehe, que, se não é o mais feiodos homens, está ainda muito longe do super-homem.Assim, se Nietzsche retoma a caneta, é porque, após ter-sedirigido ao homem, à procura dos criadores, percebe quesó atraiu os homens superiores. Uma vez anunciada suasuprema mensagem, uma vez anunciado o eterno retomo,com o sentimento de exaltação que transparece em toda aterceira parte, Nietzsche desce de novo à terra. Pode entãomediar a distância que separa os seus contemporâneos doscriadores que ele chama e dos super-homens anunciadospelo Prólogo. A hora próxima é em verdade a do últimohomem, e a hora presente a do homem superior.

Os dois reis, "o rei da direita" e "o rei da esquer-da", caminham juntos. Nietzsche se situa bem alémdessas oposições políticas, e, de seu ponto de vistamais profundo, constata que, afinal, os valores de-fendidos são, de parte a parte, os mesmos: em umúnico e mesmo burro os dois reis carregam os mes-mos ideais. Ambos estão cansados do poder, dos"bons costumes" da vida moderna (cap. 3, "Coló-quio com os reis").

O sábio, espírito positivo, está fechado em seus rigo-rosos escrúpulos intelectuais, numa especialização ridi-culamente estreita (cap. 4, "A sanguessuga").

O mágico, um artista, perdeu toda convicção, todaautenticidade, e, se continua a atuar, é mecanicamente(cap. 5, "O feiticeiro"). Aqui, Nietzsche pensa prova-velmente em Wagner.

Quanto ao último papa, tem saudades do Deusmorto, e continua a abençoar, a agir também meca-nicamente, como se Deus vivesse ainda (cap. 6,"Sem ofício").

Assim, o poder político, a ciência, a arte, a reli-gião, isto é, todos os aspectos da cultura humana, daqual o homem em geral, e o homem do século XIXem particular, se mostram tão orgulhosos, se toma-ram sem interesse, sem consistência, sem alma, semrealidade, sem mais nenhum valor aos olhos dos ho-mens, depois da morte de Deus. E entretanto elescontinuam a praticá-los. Deus não está mais ali, maso animal que suporta, o burro, que substituiu nessepapel o camelo (cf. primeira parte, capo I, "Das trêsmetamorfoses"), continua ali.

Zaratustra vai assim encontrar sucessivamente dois reise seu burro, um sábio, um mágico, o último papa, ummendigo voluntário e, enfim, sua própria sombra.

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Mas os homens superiores não o compreendem, e,logo que Zaratustra sai, propõem, cada um por sua vez,outros remédios para o seu desespero: um - o mágico -confessa sua saudade das consolações que sabia dar oDeus morto (cap. 14, "O canto da melancolia"); outro- o que tem escrúpulos intelectuais - elogia a ciência,suas certezas, suas soluções claras, que dissipam, comoantes já diziam Epicuro e Lucrécio, as angústias huma-nas (cap. 15, "Da ciência"); um terceiro - o maispróximo de Zaratustra, sua sombra - canta os prazeresdos sentidos (cap. 16, "Entre as filhas do deserto ").Zaratustra, que os ouve rir, alegra-se e pensa que estãono caminho da cura; certamente seu riso não é aqueleque ele quer ensinar-lhes, esse riso que Zaratustra sóouviu uma vez, dQ pastor que acabava de decapitar aserpente-tempo que o sufocava, esse riso "que nãoera um riso de homem" (cf. terceira parte, "Da visãoe do enigma "). Entretanto, o riso dos homens supe-riores lhe parece constituir um progresso, em compa-ração com seus gritos de desespero precedentes (cap.17, § 1, "O despertar").

Mas Zaratustra logo compreende seu erro; na verda-de, incapazes de viver sem Deus, os homens superioresinventaram um novo culto, o do asno, que estão adoran-do(9). Adoram o animal que suporta, o animal que diz"I.A." (sim) (cap. 17, § 2, "O despertar"). Zaratustrainterrompe essa cerimônia; o ' 'sim" que ele ensina nãoé o do burro que assume, é o do super-homem que cria.Pouco a pouco, reanimados por Zaratustra, os homenssuperiores retomam uma verdadeira coragem (cap.18, "A festa do burro").

Após a morte de Deus, os homens superiores procuram,em vão, na terra, a felicidade, que sabem não mais poderachar em um outro mundo. É o que nos repete, depoisdos reis, dos sábios, dos artistas e dos padres, "o men-digo voluntário" (cap. 8), que encontrou os homensprostrados pelo ressentimento, remoendo o passado,incapazes de digerir, ruminando como as vacas.

Sem objetivo, sem razões de agir, num mundo absur-do, o homem não é feliz (cap. 9, "A sombra"). E, nesseponto a sombra de Zaratustra condena antecipadamenteum pretenso otimismo corajoso, como o de Albert Ca-mus. Não se pode "imaginar Sísifo feliz"(8); sua feli-cidade é apenas a sombra da felicidade.

Mas Zaratustra conhece a felicidade. Ao meio-dia -e sempre é meio-dia, se o devir é cíclico - sua sombradesaparece; no coração do tempo, ele conhece a felici-dade, felicidade deste mundo, felicidade da terra sobrea qual ele se deita, felicidade do objetivo atingido, daobra executada (cap. 10, "Ao meio-dia"). É essa felici-dade que Zaratustra tenta passar aos homens superiores,reunidos em sua caverna; ele os convida a todos à suamesa, a participar de uma nova Ceia, festa dos frutos daterra, do vinho, da carne (cap. 11, "A saudação", e capo12, "A ceia"); e, durante toda a refeição, ele vai outravez, retomando diretamente o Prólogo, cantar o super-homem, o que vai além, o corajoso, o lúcido. Zaratustranão está desesperado. O homem falhou, o homem supe-rior realizado está bem longe do super-homem, mastudo ainda é possível (cap. 13, "Do homem superior").

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d) Cânticos de alegria - O super-homem estápróximo.

Então, Zaratustra arrebata todos os homens superioresnum magnífico canto de júbilo, canto da meia-noite,início de um novo dia, de um novo ano, de uma novaeternidade - e sempre é meia-noite, se o devir é cíclico.Canta o amor da terra, a eternidade do instante, a eter-nidade oferecida ao homem, a alegria imensa que justi-fica tudo, até as piores dores (cap. 19, "O canto ébrio").

De manhã, Zaratustra sai sozinho, diante do :-01 nas-cente. A um duplo sinal, compreende, entusiasmado,que chegou enfim a hora do super-homem; a segundaetapa da metamorfose está se realizando. De um lado,primeiro sinal, o leão destruidor, que substituiu o came-lo, praticamente terminou a sua obra destruidora, e estáali, fiel, deitado aos pés de Zaratustra; só lhe resta rugircontra os homens superiores ... Do outro lado, segundosinal, a criança, que deve substituir o leão, nasceu: umamultidão de pombas anunciam esses novos deuses, co-mo uma pomba designava, no momento de seu batismo,Jesus - filho bem-amado de Deus(10) (cap. 20, "O si-nal"). O SUPER-HOMEM ANUNCIADO PELO PRÓLOGO ESTÁCHEGANDO.

Léxico do Prólogo

AÇÃO E REAÇÃO - Esta é como que a transposição,para os planos psicológico, moral e ontológico, dadistinção mecânica entre trabalho motor e trabalhoresistente: toda realidade é POT~NCIA *, relação deforças; em toda realidade existem FORÇAS ATIVAS,que encontram em si mesmas a energia para o seumovimento, e procuram aplicar-se, desenvolver-se; eFORÇAS REATIV AS, que se opõem ao desenvolvimentodas precedentes.

De modo mais geral, o ATIVO é o livre, o criativo,o vigoroso; o REATIVO é, ao contrário, o coagido, odoentio ...

AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO - O "SIM" e o "NÃO" sãoos pólos das novas tábuas de valores.

A afirmação do valor da vida, o "SIM" ao ser sobtodos os seus aspectos, é, para Nietzsche, um axiomafundamental. Em contrapartida, toda a cultura judai-co-grega é basicamente negadora: seu dualismo in-venta um outro mundo para negar este mundo, suareligião inventa um Deus, que o homem, mau, mata

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(MORTE DE DEUS'I). A TRANSMUTAÇÃO'consistirá emsubstituir o "NÃO" pelo "·SIM".

Nota: mas o afirmativo só toma seu valor própriose suscitar uma dominação das forças ativas. O afir-mativo reativo, o "burro", que "assume" o real nãoé o super-homem.

ÁGUIA E SERPENTE - O animal que voa representatudo aquilo que a metafísica tradicional, racionalista, e,por defmição, dualista, situa no outro mundo: Deus, oBem e as Idéias. O animal que rasteja representa oempirismo, o "sentido da terra", e, mais geralmente,tudo aquilo que a mesma metafísica situa aqui na terra:o diabo e tudo o que é desprezível.

Ambos são familiares de Zaratustra, que recusa essasoposições, e são eles que anunciam o ETERNORETOR-NO', graças ao qual a metafísica nietzschiana conseguiráconciliá -los.

Mas a serpente, cuja mordida mata, é também otempo (terceira parte, "Da visão e do enigma ").

CRIADOR - Companheiro que Zaratustra'2 procura,criador de si mesmo, e de valores novos, é o ancestraldo SUPER-HOMEM',o homem do NIILISMO'4afirmativo,que destrói criando.

ÚLTIMO HOMEM - O mais desprezível dos homens,que não possui nem mais os critérios necessários paradesprezar-se a si mesmo. Homem do NIILISMO'2, re-conheceu a ausência total de fundamento dos antigosvalores; ele sabe, ao contrário do EREMITA' (cf. NII-LISMO'I), que Deus está morto (MORTE DE DEUS'2).Mas, contente ao ver desaparecer toda coação e toda

eXlgencia, não tenta, como o CRIAIX>R', criar novosvalores, nem mesmo, como o HOMEMSUPERIOR', agirpor si próprio.

ADIVINHO - É o profeta que anuncia o ÚLTIMOHO-MEM', é o exato inverso de ZARATUSTRA'2, profeta doSUPER-HOMEM'.

DlONISO - Baco romano, deus do vinho, da dança edo delírio místico; afirma alegremente a vida, por opo-sição ao Deus cristão, que morre na cruz para expiar aculpabilidade humana para com ele, e, assim, só fazaumentar essa culpabilidade e,a consciência intranqüilaque dela resulta.

EREMITA - Tipo do homem acabrunhado pelo pesoda metafísica e da moral tradicionais. Não está informa-do da MORTE DE DEUS'2; assim, seu amor a Deus odesvia do amor aos homens, e pratica uma ridículamoral rotineira.

FUNÁMBULO - Primeiro companheiro de Zaratus-tra'2, não ainda o CRIADOR" mas uma figura do HOMEMSUPERIOR'.

Símbolo da revolta das forças ativas contra a domi-nação das forças reativas, segue o caminho do super-ho-mem. Mas, dominado pelo NIILISMo'3, quer ignorar aMORTEDE DEUS'4; assim, sua tentativa é destinada aofracasso, e sua queda mortal.

HOMEM - "Humano, demasiado humano", compa-rado ao SUPER-HOMEM*,é o sujeito, submetido aosantigos valores da cultura tradicional, o NIILISMO'\,cujosímbolo é o camelo e cujo ideal é o EREMITA'.

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HOMEM SUPERIOR - É O NIILISTA*3. Está informadoda MORTE DE DEUS*\ mas não consegue convencer-seintimamente disso, e continua a fazer como se Deusexistisse. Substitui o fundamento divino dos valorespor um fundamento humano, mas a transmutação nãose faz e reencontram-se os mesmos valores.

POTtNCIA1. Realidade mais profunda dos seres (seres mate-

riais, seres vivos, fatos históricos, comportamentoshumanos, pensamentos etc.), que devem ser conside-rados como conjuntos de forças tendendo para certosefeitos.

2. Poder, autoridade, soberania, dominação.

ETERNO RETORNO - "Teoria estóica (inspirada pro-vavelmente em Heráclito, que, por sua vez, se inspirounas religiões asiáticas), segundo a qual após um períodode vários milhares de anos (o Grande Ano), todas ascoisas recomeçam, rigorosamente iguais ao que elasforam (...) Essa doutrina foi renovada (...) principalmen-te por Nietzsche"(l).

Este lhe dá um duplo sentido: metafísico (o devir É,pois é eterno), e moral (sou responsável pela eternidade,pois sou responsável por um segundo).

SUPER-HOMEM - Homem de uma nova cultura,cujo ancestral é o CRIADOR* e cujo profeta é ZARATUS-TRA*2.

É, pois, o homem de uma nova moral, animada poruma VONTADE DE POTtNCIA*2 criadora, afirmativa. É,ao mesmo tempo, o homem de sua nova metafísica, ado ETERNO RETORNO:

MORTE DE DEUS1. Para o HOMEM* (NlILISMO*l), a morte de Jesus

Cristo expiando na cruz os pecados dos homens.2. O "FATO" do desaparecimento de Deus em nossa

cultura.3. Para o ÚLTIMO HOMEM* (NIILISMO*2), supressão de

um senhor demasiado exigente.4. Para o HOMEM SUPERIOR* (NlILISMO*3), um desapa-

recimento que ele se recusa a levar em conta.5. Para o CRIADOR* (NIIUSMO*4), uma etapa na criação

do super-homem, etapa destruidora, necessária, com aqual ele se alegra, e cuja realização acelera, mas apenasuma etapa, à qual sucede uma etapa de construção.

NIILISMO - Do latim "NIHIL"; Nada, Zero.1. Desvalorização do mundo em nome de um além-

mundo.2. Depreciação do além-mundo e deste mundo.3. Tentativa para agir, sem acreditar em uma justifi-

cação última da ação em um outro mundo, substituindoo fundamento divino dos valores por um fundamentohumano, mas sem nada mudar nesses valores.

4. Vontade de declínio, de revolta, de destruição dasantigas tábuas, inerente à vontade de construção denovas tábuas.

TRANSMUTAÇÃO - Mudança da natureza essencialde uma substância. (Tentada pelos alquimistas, na espe-rança de fabricar ouro a partir de substâncias mais vis.)

Para Nietzsche, mudança do mundo dos valores -destruição dos antigos e criação dos novos - que resultada mudança da VONTADE DE POTf:NCIA*! valorizadora,

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criadora desses valores: a vontade afIrmativa toma olugar da vontade negativa.

VONTADE DE POTtNcIA

1. Orientação, intenção profunda de um sair, de umaPOrtNCIA *I; o que esse ser ou essa potência quer.

2. Superação de si mesmo, vontade de transcender,vontade da POT~NCIA*l que quer mais POT~NCIA*2.

ZARATUSTRA

1. Ou Zoroastro (660 a 580 a.C.), a quem se atribuia composição do Zend-Avesta, livro sagrado do maz-deísmo, cujo dogma essencial é o dualismo de doisdeuses em luta: o da luz e o das trevas.

2. Personagem de Nietzsche, que traz uma men-sagem não-dualista, inversa, pois, da mensagem deZARATUSTRA *'.

Leituras complementares

Há duas edições em português disponíveis ao públicobrasileiro:*

Assim falou Zaratustra, trad. Mário da Silva, Rio,Civilização Brasileira, 1977, 2i ed. 1982; 6i ed., Ber-trand Brasil, 1989.

Assim falava Zaratustra, trad. José Mendes de Sou-za, prefácio Geir Campos, Rio, Tecnoprint, 1969, Clás-sicos de Bolso.

Em língua francesa, vale ressaltar a tradução de M.de Gandillac (Nouvelle édition des Oeuvres philosophi-ques completes de Nietzsche, 1. VI, NRF-Gallimard,1971; reeditada pelo mesmo editor, col. "Polio", 1985)que é uma tentativa de reconstituir, através do uso dediversas fIguras de retórica, de termos arcaicos etc., um

* Ver também no livro de Roger Hollinrake. Nier:..sche, Wagner e afilosofia do pessimismo, a "Introdução: Assim falou Zaratustra". que-contém citações bilingües (trad. Álvaro Cabra I, Rio, Jorge Zahar Editor,1986).

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estilo poético comparável, mutatis mutandis;.ao do tex-to original. É acompanhada, como todos os textos dessaedição, que se tomou indispensável, de numerosas notase variantes muito esclarecedoras.

Assinalamos, ainda, a bela adaptação cênica realiza-da por Jean-Louis Barrault (col. "Le Manteau d' Arle-quin", NRF-Gallimard, 1975).

A origem da tragédia, proveniente do espírito damúsica, trad. e pref. Erwin Theodor, S.Paulo, Cu-pulo, 1951.

Genealogia da Moral, trad. A.A. Rocha, Rio, Tec-noprint, 1967, 1986; trad. Paulo Cezar Souza, S.Paulo,Brasiliense, 1987.

O crepúsculo dos ídolos, trad. Edson Bini e MárcioPugliesi, S. Paulo, Hemus, 1976; introd. Geir Campos,Rio, Tecnoprint, 1986.

O viandante e sua sombra [Humano, demasiadohumano], trad. Heraldo Barbuy, S.Paulo, Ed. e Publica-ções Brasil, 1944; trad. e pref. Heraldo Barbuy, Rio,Tecnoprint, 1986.

Vontade de potência, trad. M. Ferreira Santos, Rio,Tecnoprint, 1966, 211 ed. d. 1986.

Além do bem e do mal, trad. Mário Pugliesi, S.Pau-10, Hemus, 1977; introd, Geir Campos, Rio, Tecno-print, 1986.

O Anticristo, trad. David Jardim Jr., introd. GeirCampos, Rio, Tecnoprint, 1985.

Ecce Homo, trad. e introd. Paulo Cezar Souza, 211 ed.,S.Paulo, M. Limonad, 1986.

Em língua espanhola: Obras Completas, Aguilar,Buenos Aires, 1950.

A obra de Nietzsche, principalmente se nela se incluemos Fragmentos póstumos e a Correspondência, cujaimportância é capital, é quantitativamente considerável.Tudo deve ser lido, e, repetimos, quem leu e compreen-deu essa obra central que é o Zaratustra está preparadopara entrar nessa imensa área.

Para nos limitarmos ao nosso objetivo preciso, indi-camos apenas que a leitura do Zaratustra será utilmentecomplementada e esclareci da pela dos Fragmentos pós-tumos, redigidos durante o mesmo período, que se es-tende pelos anos de 1883, 1884e 1885(emedição francesaencontram-se na Nouvelle édition des Oeuvres philoso-phiques completes de Niet'ZSche,tomos IX, X e XI).

Recomendamos também as páginas magníficas queEcce Homo consagra ao Zaratustra.

A gaia ciência, trad. Mário Pugliesi, S. Paulo, He-mus, 1976; introdução de Geir Campos, Rio, Tecno-print, 1986.

Na imensa bibliografia nietzschiana, limitamo-nos aum pequeno número de obras, entre aquelas que nosparecem contribuir, numa perspectiva mais geral que

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o presente estudo, para um conhecimento abrangen~-esobre Nietzsche, que O leitor do Zaratustra podenadesejar.

a) Biografias. A obra de D. Halevy, Nietzsche (col."Pluriel", Bernard Grasset, 1~44; Librairie GénéraleFrançaise, 1977 para o Prefácio e as notas), é um estudoantigo. Já em 1909, Daniel Halevy publicou uma pri-meira versão de La vie de Nietzsche, da qual se originouo texto de 1944, mas o considerável e notável trabalhode anotação e atualização executado por G. A. Golds-chmidt na edição recente confere plena atualidade a esseestudo que muito a merecia, principalmente devido àatitude de simpatia calorosa (mas lúcida) é comunicati-va, manifestada pelo biógrafo em relação ao seu perso-nagem e sua obra.

Mais recente, a obra monumental de C. P. Janz,Nietz.sche, biographie (3 tomos, NRF-Gallimard,1984), é um estudo minucioso, praticamente exaustivo.O autor utilizou uma informação particularmente ex-tensa e segura, pois trabalhou em estreita colaboraçãocom os encarregados da Edição das Obras Completasde Nietzsche em francês, e teve acesso à correspon-dência, que, aliás, ajudou a estabelecer. Pôde ele,assim, realizar um estudo notável, abrangendo nãoapenas a personalidade e a vida íntima de Nietzsche,mas também suas relações com toda a vida culturalde seu século.

Assinalamos enftm o excelente estudo do Dr. E. F.Podach: L'effondrement de Nietzsche (col. " Idées",NRF-Gallimard, 1978), que aborda os últimos anos,anos de doença, da vida de Nietzsche.

b) Estudos de conjunto da filosofia nietzschiana.Três obras nos parecem, ftlosóftca e pedagogicamente,essenciais:

E. Fink, La philosophie de NietV"~he (Minuit, 1965).Trata-se de um estudo que, sendo puramente ftlosóftcoe recusando-se a qualquer abordagem biográftca, é, noentanto, cronológico. Examina assim, sucessivamente,as grandes obras de Nietzsche, restituindo o movi-mento de conjunto - isto é, a unidade e a evolução -do pensamento de Nietzsche.

Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie (PUF,1962), uma obra fundamental. Com uma abordagemnem biográfica, nem mesmo cronológica, mas siste-mática, estudo mais diretamente consagrado à Genea-logia da moral - considerado como "o livro maissistemático de Nietzsche ( ...) não se apresenta nemcomo um conjunto de aforismos, nem como um poe-ma, mas como uma chave para a interpretação dosaforismos e para a avaliação do poema" - o autordistingue claramente todos os conceitos fundamen-tais do pensamento nietzschiano, tanto em suas liga-ções recíprocas e com o conjunto, quanto em suaoriginalidade radical e seu valor polêmico em relaçãoà tradição filosófica e principalmente ao pensamentode Hegel. Deve-se, também, a G. Deleuze um peque- .no estudo, que se apresenta como uma introdução aalguns textos, no qual os conceitos distinguidos emNietzsche et la philosophie são apresentados nova-mente, mas de maneira bem mais rápida e menostécnica, e por isso mais acessível (Nietzsche, col."SUP Philosophes", PUF, 1965).

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A obra de J. Granier, Le probleme de Ia vérité dansIa philosophie de Nietzsche (col. "L'Ordre Philosophi-que", Seuil, 1966), é um grande estudo abrangente,também sistemático, da filosofia nietzschiana. De modobastante convincente e com uma análise extremamenterica, o autor situa o problema da verdade no centro dessafilosofia, mostrando como se pode ligar a este todos osoutros temas, que encontram sua explicação nessa rela-ção. J. Granier também efetuou um estudo sucinto dafilosofia de Nietzsche (Nietzsche, col. "Que sais-je?",PUF, segunda edição corrigida 1985).

c) Nietzsche e o pensamento contemporâneo. Reco-mendamos duas obras fundamentais, que valem tantopela profundidade e originalidade de sua leitura deNietzsche, quanto pela avaliação que. oferecem da con-siderável influência exercida por Nietzsche sobre a fi-losofia contemporânea:

K. Jaspers, que ocupou, depois de Nietzsche, umacátedra na Universidade de Basiléia, consagra váriostrabalhos a seu predecessor, principalmente Nietzsche eo cristianismo (ed. francesa: Minuit, 1949), antes derealizar um vasto e penetrante estudo, sistemático noessencial, mas que não negligencia totalmente o ele-mento biográfico: Nietzsche. Introdução à sua filosofia(ed. francesa: NRF-Gallimard, 1950, com uma carta-prefácio de J. Wahl). Jaspers faz de Nietzsche o precur-sor do existencialismo juntamente com Kierkegaard,por marcar, como este, a ruptura decisiva de uma filo-sofia que pretendia tudo racionalizar (Hegel), rupturacujo herdeiro será o existencialismo. Assim, Nietzscheseria, em primeiro lugar, uma testemunhada existência

do indivíduo humano que, perigosamente, empenha seudestino pessoal, sua existência imprevisível, livre, noslimites do saber, que o existencialismo situará no centrode suas preocupações.

Além das constantes alusões em quase todas as suasobras, M. Heidegger consagra a Nietzsche numerososescritos: (cf. particularmente a palavra de Nietzsche"Deus está morto" em Caminhos (ed. francesa: NRF-Gallimard, 1962), cf. também "Quem é o Zaratustra deNietzsche?" em Ensaios e conferências (ed. francesa,NRF-Gallimard, 1958). O essencial dessa reflexão so-bre Nietzsche é retomado em Nietzsche (ed. francesa: 2tomos, "Bibliotheque des Idées", NRF-Gallimard,1971), cujo núcleo é constituído pelos cursos ministra-dos de 1936 a 1940. Heidegger apresenta Nietzschecomo o filósofo que, concebendo o ser como vontadede potência, isto é, em sua opinião, como vontade devontade, como vontade de nada que não seja essa mes-ma vontade, destrói a metafísica e, ao mesmo tempo,revela o que ela sempre foi: um pensamento que - aindana opinião de Heidegger - esquece a questão do ser, queele levanta, e limita-se à consideração do ente, umprocedimento niilista, pois, que Nietzsche destrói, sen-do Nietzsche deliberada mente niilista, ao negar qual-quer ser por trás dos entes.

Tem-se uma excelente idéia da diversidade e dariqueza da reflexão sobre Nietzsche, e da meditaçãocom Nietzsche, entre os filósofos de hoje, lendo as atasdo VII Colóquio Internacional de Royaumont, que serealizou em 1964 (Nietzsche, "Cahiers de Royau-mont", Philosophie VI, Minuit, 1979).

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Quanto a esse mesmo aspecto, assinalamos tambémos dois volumes respectivamente intitulados Intensitése Passions, que reúnem as comunicações, mesas-redon-das e intervenções no colóquio organizado pelo CentroCultural Internacional de Cerisy-la-Salle, em julho de1972, sobre o tema "Nietl.'iche hoje?",(col. "10/18",UGE,1973).

EnfIm, numa perspectiva mais literária que propria-mente fllosófIca, o estudo de P. Boudot, Nietz.sche eti'au-deià de ia libené (col. "Présence et Pensée",Aubier-Montaigne, 1970), constitui uma espécie de in-ventário dos vestígios deixados pela leitura de Nietzs-che na obra de alguns dos mais célebres escritoresfranceses dos anos 1930 a 1960 (Valéry, Gide, Malraux,Camus, Saint-Exupéry etc.). oautor, que levanta tantoas influências quanto as simples opiniões sobre Nietzs-che, mostra até que ponto a inesperada dimensão dapresença de Nietl.'iche, ao menos implícita, foi determi-nante na história recente de literatura francesa.

capítulo I

Cf. p. 57 e o § 1 c de nosso Capon.Aliás, se poderia até, a partir daí, ter uma vasta visãoglobal do conjunto da filosofia de Nietzsche. Cf. a obrade .J.Gr~ier, Le probleme de Ia Vérité dans Iaphiloso-ph lede Nlet~che, col. "L 'Ordre philosophique", Seuil,1966, que situa essa reflexão sobre a verdade no centrodo pensamento nietzschiano.Princípios da filosofia do direito, NRF-Gallimard,1~~ ..Reprod~zido e comentado na Enciclopédia dasclenclasfilosóficas em compêndio, Introdução, § 6, tra-dução de Lívio Xavier, RJ, Athena, 1936.Notice ~crit e~ 1927p~ur Iapublication de ses quatrelettres a Henrz Aibert, CItadopor E. Gaede, Nietzsche etValéry..., NRF-Gallimard, 1962.Sobre essa importante questão da poética de Nietzscherecomenda-se a luminosa análise de G. Bachelard'"Nietzsche et le psychisme ascensionnel", in L'air e;les songes, Librairie José Corti, 1943, pp. 146s.Mateus m, 13 s.; Marcos I, 9 s.; Lucas m, 21 s.República, VI, 508 b s.1bid., vrr, 514s.lbid., VI, 509 d s.

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(10) Credo: "Luz nascida da luz."(11) João, I, 9: "0 Verbo era a verdadeira luz, que ilumina

todo homem. Ele veio ao mundo."(12) Credo: "Ele se fez homem."(13) Isaías LX, 3.(14) Lucrécio, Da Natureza, liv. 11, versos 1090 a 1094.(15) Heródoto, História, liv. VII, Polímnia, Conselhos de

Mardônios e de Artabano, 5-11.(16) Horácio, Odes, 11,X.(17) Mateus, V, 3 s.(18) Lucas, 11, 49.(19) Mais precisamente, veremos que a criança é a terceira -

e a última - das metamorfoses que o homem deveconhecer (cf. Assim falou Zaratustra, primeira parte,"Das três metamorfoses").

(20) Sobre esse alcance exato da crítica nietzschiana, cf.nosso Capo 11, § I e "As noções de genealogia e devontade de potência".

(21) Matheus xxm, 37 s.: ("Amarás o Senhor teu Deus ...)Eis o maior e o primeiro mandamento. O segundo lhe ésemelhante: amarás teu próximo como a ti mesmo. Nes-ses dois mandamentos se resumem a lei e os profetas."

(1) Se o super-homem não pertence a uma nova raça, que seriasuperior, é principalmente porque, de um modo mais geral,A NoçÃO DE RAÇA E QUALQUER ESPÉCIE DE RACISMO SÃOABSOUIT AMENTE ESTRANHOS A NIETZSCHE. O "judeu",que ele critica em outro trecho, é o homem religioso,impregnado de pensamento blblico. Evidentemente, não hánessa imagem, às vezes manipulada grosseiramente, ne-nhum racismo.

(2) Pascal, Pensamentos, seleção e tradução de AlcãntaraSilveira, S. Paulo, Cultrix, 1967. (n's 328 e 329 da ed.francesa, Gallimard, 1969, pg. 1170).

Platão, Alcib{ades, 133 c.Gênese I, 26.Cf. Platão, Fédon, 82 c até 84 b; cf. Epístola aos Roma-nos, Vil, 14 a 25.André Gide, Lettres à Angele, NRF-Gallimard, Oeuvrescompletes, t. m, 1933.La philosophie de Nietzsche, Paris, Minuit, 1965,p. 166.Cf. Gilles Deleuze, Nietzsche et Ia philosophie, PUF,1967, 2! ed.Uma crítica da moral tradicional, ainda mais sistemáti-ca, será retomada e largamente desenvolvida no § 8 doPrólogo. Cf. em nosso Capo m, o § 3, pp. 98Aliás, é importante não confundir essa crítica da moraldo homem com a que será feita da moral do últimohomem. Cf. Prólogo, § 5, e no Capo 11, § 3, pp. 85"Mas o próprio caráter imediato do pensamento que sereflete em si mesmo é a universalidade, seu ser junto a siem geral; o pensamento fica então satisfeito ...", Hegel,Enciclopédia das ciênciasfilosóficas em compêndio, § 12..Sobre essa questão, cf. em nosso Capo I o § 2 a, e ascitações de Heródoto e Horácio que lá fizemos, pp. 40Como diz Jeová, depois do crime de Caim: "Que fizes-te? Escuta o sangue de teu irmão, que clama da terra atéa mim!" (Gênese IV, 10).Ou como Hegeldetecta uma "astúciadarazão".Cf.A razãona história, capo 11. Mas veremos que, nesse ponto, comoem muitos outros, a diferença entre Nietzsche e Hegel éfundamental (cf., em nosso Capo m, o § 5 b pp. 111-112)Eugen Fink, La philosophie de Nietzsche.Nesse novo estudo, Nietzsche segue portanto, como sepode notar, um procedimento inverso do que foi seguidoaté agora: ele vai, não mais da análise de uma cultura àvontade de potência que a inspira, mas, das causas àsconseqüências, de um certo tipo de vontade de potência,que define e descreve primeiramente, à cultura quepoderia dela resultar. Isso porque, como essa cultura não

(14)(15)

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existe, ele não pode, evidentemente, analisá-Ia, massomente deduzi-Ia, prevê-Ia ou ao menos sonhá-Ia.

(16) G. Deleuze, Nietzsche et Ia philosophie, "Contre Iadialectique" .

(17) Thomas Mano, Estudos sobre Goethe, Nietzsche, José eseus imrâos (Ed. em língua francesa: Lausanne, Mer-mod, 1949, p. 114).

(18) lbid. pp. 111-112.(19) Lucas XVII, 33: "Aquele que procurar salvar sua vida,

perdê-Ia-á, e aquele que a perder a conservará."(20) Ética a Nicômaco, lI, 6, 1.106.(21) lbid., lI, 5 b 19, 1.106 a 12, 1.106 b 36.(22) Cf. Kant, Fundamentação da metafisica dos costumes,

trad. Antonio Pinto de Carvalho, S. Paulo, Cia. Ed.Nacional, 1964.

(23) Platão, Górgias, 482 c-527 e.(24) André Gide, ••Dostoievsky" in Oeuvres Completes, t.

XI, NRF-Gallimard, 1936, pp. 288-289.(25) Epístola aos Hebreus, XII, 6.(26) Kant, Crítica da razão pura, trad. Valério Rohden e Udo

Baldur Mussburger, 3! ed., Os Pensadores, S.Paulo,Nova Cultural, 1988 (ed. francesa, PUF, 1963, pg. 17.)

(27) Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas em com-pêndio, § 12.

(28) O segundo risco que espreita o "homem superior" seráobjeto do Prólogo, § 6.

(29) Mateus, XIII,13: "É por isso que eu Ihes falo em pará-bolas; porque eles vêem sem ver e ouvem sem ouvir nemcompreender." Cf. também Marcos IV, 30-32 e LucasVIII,IO.

(30) Fedro, 245 a s.; República, 427 s. e 611 b.(31) É o mesmo processo que servirá para descrever a moral

do homem, cf. Prólogo, § 8.(32) Se há, para Nietzsche e Pascal, esta idéia comum de que

a miséria humana consiste em desviar-se (di-vertere) doessencial, é evidente que o essencial, para Pascal, éjustamente esse outro mundo, do qual Nietzsche quer

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desviar-nos. É porque o cristianismo lhe "perverteu arazão" (O Anticristo, § 5, t. VIII, vol. 1).João X, 16: ••... e haverá um só rebanho e um só pastor".Sabedoria VIII, 7Mateus XXIII, 37 s. Cf. acima, nQ (21), p.Talv~z. o Platão do Fedro ou da República, ao qualconvIrIa, certamente, opor quanto a essa questão o Pla-tão do Banquete.Descartes, As paixões da alma, art. 153."Qual é, entre todos os bens realizáveis, o Bem Supre-mo? Quanto ao seu nome, em todo o caso a maioria doshomens praticamente concorda: é a felicidade, nas pa-la,,:,as da multidão, assim como nas das pessoas cultas."Anstóteles, Ética a Nicômaco I 2 1095 a 15Mateus, V, 2 s. ' " ,.

(37)(38)

(1) Jean-Paul. Sartre, op. cit., Nagel, 1970, pp. 35-36. Numplano maIS profundo, conviria analisar as semelhançasentre o homem livre de Sartre, criador de si mesmo desua essência, de seu valor e do valor do homem em g:rale seu ancestral direto, o super-homem. '

(2) Mateus XIII, 13, cf. acima, nQ (2), p.(3) Epístola aos romanos XI, 33: "Oh, abismo da riqueza

da sabedoria e da ciência de Deus! Como seus decreto~são insondáveis e suas vias incompreensíveis!"

(4) Mateus V, 19: "Eu vos farei pescadores de homens'"cf. também Marcos I, 17 e Lucas V, 20. '

(5) Na crítica da moral do último homem (Prólogo, § 5), oestudo ?as quat~o virtudes cardinais era seguido pelo estu-do da virtude cnstã do amor ao próximo. Aqui, o estudo dam?ral do hom~m não trata disso. Pois essa crítica já estáfella: o eremita do Prólogo, § 2, que confessava: "Agora,amo a Deus; e não aos homens" é irmão do eremita doPrólogo, § 8, e, como ele, símbolo do homem.

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( 6) É a seus companheiros que Zaratustra vai doravantedirigir-se em toda a obra; o número deles diminuiráprogressivamente e alguns discursos se tomarão quasemonólogos.

( 7) Mateus xvm, 12 s. e Lucas XV, 4 s.( 8) Mateus IX, 37: "Então, ele disse a seus discípulos: 'A

messe é grande, mas os operários são poucos·."( 9) Marcos vm, 34.(10) ~xodo XXXI, 18: "Jeová lhes entregou duas tábuas do

Testemunho, tábuas de pedra, escritas pela mão deDeus."

(11) Lucas XIV, 35; Mateus XI, 15: "Que aquele que temouvidos para ouvir, ouça." Cf. a fórmula várias vezesrepetida no Apocalipse: "Aquele que tem ouvidospara ouvir, ouça o que diz o Espírito.,.", Apocalipse,lI, 7 etc.

(12) Apocalipse m,16.(13) Evidentemente, parentesco não significa conformidade

de pensamento, e G. Deleuze tem toda razão de observaralgumas "reticências" no julgamento de Nietzsche sobreReráclito (cf. Nietv>cheet taphilosophie, p. 28 nQ 1).

(14) Crátilo, 385 e; Teeteto, 160 d.(15) Crátilo, 440, a b, 459 c; Fédon, 78 b, 79 a.(16) Metafisica A, 6, 987 b 5.(17) Metafisica Z, 6,1031 a 5 s.(18) M. Reidegger, Nietzsche (Ed. francesa, t. I, p. 225,

NRF-Gallimard,1971).(19) Regel, A razão na história, capo lI.

( 1) Sobre essas noções, cf. as análises de G. Deleuze, inNietzsche et ta philosophie.

( 2) "Sim", em alemão.( 3) Sobre esse ponto, ainda, cf. as análises de G. Deleuze,

Nietzsche et ta philosophie, p. 104.

Marcos X, 15: "Aquele que não receber o Reino deDeus como uma criança, nele não entrará."G. Deleuze, Nietzsche, PUF, 1968.Sobre essa interpretação, cf. E. Fink, La philosophie deNietzsche, p. 94.Platão,op. cit., 130 cde.Nietzsche et ta philosophie, p. 217.Cf. Apocalipse V s., episódio do livro selado.Citado por C. P. Janz, Nietzsche, biographie, NRF-Ga-llimard, 1984, t. lI, p. 487.Cf. O mito de Sísifo, em que Albert Camus tenta definira felicidade do homem, condenado - como o heróiantigo, que, sem cessar, devia transportar um rochedoaté o alto de uma montanha, de onde ele caía imediata-mente - a uma existência absurda.Isso é uma alusão direta às festas do asno, que ocorriamna Idade Média e nas quais, transgressão periódica dosagrado, parodiava-se a liturgia, prestando culto a umasno. Cf. principalmente M. Lever, Le sceptre et Iamarotte, col. "Pluriel", Fayard, 1985, p. 13 s.Mateus m, 16, 17; Lucas m, 22.

Vocabulaire technique et critique de taphilosophie, org.por A. Lalande, PUF, 1962, artigo "Eterno Retomo",pp. 929-930.

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