o teatro epico - anatol rosenfeld_unificado

Upload: lucia-santos

Post on 07-Jul-2015

1.630 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

,< ~~

1. G:eNEROSE TRAOS ESTILfSTICOSa} Observaes gerais

A CLASSIFICAO de obras literrias segundo gneros tem a sua raiz na Repblica de Plato. No 3.0 livro. Scrates . explica que h trs tipos de obras poticas: "O primeiro inteiramente imitao." O poeta corno que desaparece, deixando falar, em vez dde. personagens. "Isso ocorre na tragdia e na omdia." O segundo tipo " um simples relato do poeta; isso encontramos principah.nente nos ditirambos." PIato parece referir-se, neste trecho. aproximadamente ao que hoje se chamaria de gnero lrico, embora a coincidncia no seja exata. "O terceiro tipo, enfim, une ambas as coisas; tu o encontras nas epopias. . ." Neste tipo de poemas manifesta-se seja o prprio poeta (nas descries e na apresentao dos personagens), seja um ou outro personagem, quando o poeta procura suscitar a impresso de que no ele 15

quem fala e sim o prprio personagem; isto , nos dilogos que Interrompem a narrativa. A definio aristotlica, no 3. captulo da Arte Potica,coincideat certo ponto com a do seu mestre. H, segundo Aristteles, vrias maneiras literrias de imitar a natureza: "Com efeito, possvel imitar os mesmos objetos nas mesmas situaes, numa simples narrativa, ou pela introduo de um terceiro, como faz Homem, ou insilluando a prpria pessoa sem que intervenha outro personagem, ou ainda, apresentando a imitao com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem eles pr6prios." Essencialmente, Arist6teles parece referir-se, neste trecho, apenas aos gneros pico (isto , narrativo) e dramtico. No entanto, diferencia duas maneiras de narrar, uma em que h introduo de um terceiro (em que os prprios personagens se manifestam) e outro em que se insinua a pr6pria pessoa (do autor), sem que intervenha outro personagem. Esta ltima maneira parece aproximar-se elo que hoje chamaramos de poesia lrica, suposto que Aristteles se refira no caso, como PIato, aos ditirambos, cantos dionisincos festivos em que se exprimiam ora alegria transbordante, ora histeza profunda. Quanto forma dramtica, definida como aquela em que a imitao ocorre com a ajuda de personagens que, eles mesmos, agem ou executam aes. Isto , a imitao executada "por personagens em ao diante de ns" (3. captulo). Por mais que a teoria dos trs gneros, categorias ou arquiformas literrias, tenha sido combatida, ela se mantm, em essncia, inabalada. Evidentemente ela , at certo ponto, artificial como toda a conceituao cientfica. Estabelece um esquema a que a realidade literria multiforme, na sua grande variedade hist6rica, nem sempre cOl'responde. Tampouco deve ela ser entendida como um sistema de normas a que os autores teriam de ajustar a sua atividade a fim de produzirem obras lricas puras, obras picas puras ou obras dram. ticas puras. A pureza em matria de literatura no necessariamente um valor positivo. Ademais, no existe pureza de gneros em sentido absoluto. Ainda assim o uso da classificao de obras literrias por gneros parece ser indispensvel, simplesmente pela necessidade (le toda cincia de introduzir certa ordem na multipliciclaJe dos fenmenos. H, no entanto, 16

razes mais profundas para a adoo do sistema de gneros. A maneira pela qual comunicado o mundo. imaginrio pressupe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gneros manifestam-se, sem dvida, tipos diversos de imaginao e de atitudes em face do mundo.b) Significado substantivo dos gneros

A teoria dos gneros complicada pelo fato de os termos "lrico", "pico" e "dramtico" serem empregados em duas acepes diversas. A primeira acepo - maisde perto associada estrutura dos gneros

narrador apresentarpersonagensenvolvidosem situaes e eventos. Pertencer Dramtica toda obra dialogada em que atuarem os pr6priospersonagenssem serem, em geral; apresentadospor um narrador. No surgem dificuldadesacentuadas em tal classificao. Notamos que se trata de um poema lrico (Lrica) quando uma voz central sente um estado de alma e o traduz por meio de um discurso maisou menosrhnico. Espcies deste genero seriam, por exemplo, o canto, a ode, o hino, a elegia. Se nos contada uma estria (em versos ou prosa), sabemos que se trata de pica, do gnero narrativo. Espcies deste gnero seriam, por exemplo, a epopia, o romance, a novela, o conto. E se o texto se constituir principalmente de dilogos e se destinar a ser levado cena por pessoas disfaradas que atuam por meio de gestos e discursos no palco, saberemos que estamos diante de uma obra 17

-

ser chamada de "substantiva". Para distinguir esta acepo da outra, til forar um pouco a lngua e estabelecer que o gnero lrico coincide com o substantivo "A Lrica", o pico com o substantivo "A :B:pica"e o dramtico com o substantivo "A Dramtica". No h grandes problemas, na maioria dos casos, em atribuir as obras literrias individuais a um destes gneros. Pertencer Lrica todo poema de extenso menor, na medida em que nele no se cristalizarem personagens ntidos e em que, ao contrrio, uma voz quase sempre um "Eu" nele exprimir seu central pr6prio estado de alma. Far parte da :B:picatoda obra poema ou no de extenso maior, em que um

-

poderia

-

-

-

drl\lIlt\lica (pertencente ;\ Dramtica). Neste gnero se integrariam, como espcies, por exemplo, a tragdia, a comdia, a farsa, a tragicomdia, etc. Evidentemente, surgem dvidas cante de certos poemas, tais como as bafadas muitas vezes dialogadas e de cunho narrativo; ou de certos contos inteiramente dialogados ou de determinadas obras dramticas em que um nico personagem se manifesta at;ravs de um monlogo extenso. Tais excees, contudo, apenas conFirmamque todas as classificaes so, em certa medida, artificiais. No diminuem, porm, a necessidade de estabelec-Ias para organizar, em Jinhas gerais, a multiplicidade dos fenmenos literrios e comparar obras dentro de um contexto de tradio e renovao. ~ difcil comparar Macbeth com um soneto de Petrarca ou um romance de Machado de Assis. E: mais razovel comparar aquele drama com uma pea de Ibsen ou Racine.

-

narrativos ligeiros e dificilmente se encontrar uma pea. em que no haja alguns momentos picos e lricos. Nesta segunda acepo, os termos adquirem grande amplitude, podendo ser aplicados mesmo a situaes extraliterrias. Pode-se falar de uma noite lrica, de um banquete pico ou de um jogo de futebol dramtico.

Neste sentido amplo esses tennos da teoria literriapodem tomar-se nomes para possibilidades fundamentais da existncia humana; nomes que caracterizam atitudes marcantes em face do mundo e da vida. H uma maneira dramtica de ver o mundo, de conceb-Io como dividido por antagonismos irreconciliveis; h um modo pico de contempl-Io serenamente na sua vastido imensa e mltipla; pode-se viv-Io liricamente, integrado no ritmo universal e na atmosfera impalpvel das estaes. Visto que no gnero geralmente se revela pelo menos certa tendncia e preponderncia estilstica essencial (na Dramtica pejo dramtico, na ~pica pelo pico e na Lrica pelo lrico), verifica-se que a classificao dos trs gneros implica um significado maior do que geralmente se tende a admitir.

c) Significado adjetivo dosgneros A segunda acepo dos termos lrico, pico, dram-

tico, de cunho adjetivo,refere-se a traosestil.sticosdeque uma obra pode ser imbuda em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gnero (no sentido substantivo). Assim, certas peas de Garcia Lorca, pertencentes, como peas, Dramtica, tm cunho acentuadamente lrico (trao estilstico). Poderamos falar, no caso, de um drama (substantivo) lrico (adjetivo). Um epigrama, embora pertena Lrica, raramente "lrico" (trao estilstico), tendo geralmente certo cunho "dramtico" ou "pico" (trao estlstico). H numerosas narrativas, como tais classificadas na E:pica, que apresentam forte carter lrico (particulannente da fase romntica) e outras de forte carter dramtico (por exemplo as novelas de Kleist). Costuma haver, sem dvida, aproximao entre gnero e trao estilstico: o drama tender, em geral, ao dramtico, o poema lrico ao lrico e a };;pica (epopia, novela, romance) ao pico. No fundo, porm, toda obra literria de certo gnero conter, alm dos traos estilsticos mais adequados ao gnero em questo, tambm traos estilsticos mais tpicos dos outros gneros. No h poema lrico que no apresente ao menos traos 18

19

2. OSG~NEROS ~PICOE L(RICOE SEUSTRAOS ESTILfSTICOS FUNDAMENTAiS

1) Observaes gerais

DESCREVENDO-SE gneros e atribuindo-se-Ihes os. os trs traos esti1sticosessenciais, isto , Dramtica os traos dramticos, ~pica os traos picos e Lrica os traos lricos, chegar-se- constituio de tipos ideais, puros, ::omo tais inexistentes, visto neste caso no se tomarem em cunta as variaes empricas e a influncia de tendncias histricas nas obras individuais que nunca so inteiramente "puras", Esses tipos ideais de modo nenhum representam critrios de valor, A pureza dramtica de uma pea teatral no determina seu valor, quer como obra literria, quer como obra destinada cena. Na dramaturgia de Shakespeare, um dos maiores autores dramticos de todos os tempos, so acentuados os traos picos e lricos. Ainda assim se trata de grandes obras 21

teatrais. Uma pea, como tal pertencente Dramtica, pode ter traos picos to salientes que a sua prpria estrutura do drama atingida, a ponto de a Dramtica quase se confundir com a 1tpica. Mas, ainda assim, tal pea pode ter grande eficcia teatral. Exemplos disso so o teatro medieval, oriental, o teatro de Claudel, Wilder ou Brecht. Trata-se de exemplos extremos que em seguida sero abordados, da mesma forma como exemplos de menor realce nos quais o' cunho pico apenas se associa Dramtica, sem atingi-Ia a fundo. 1t evidente que na constituio mais ou menos pica ou mais ou menos pura da Dramtica influem peetlliaridades do autor e da sua viso do mundo, a sua filiao a correntes histricas, tais como o classicisrnoou romano tismo, bem como a temtica e o estilo geral da poca ou do pas.

b) O gnero

/(rico e seus traos

estilz'sticos fundamentais

tipo do poema. Qualquer configurao mais ntida de. personagens j implicaria certo trao descritivo e narrativo e no con-esponderia pureza ideal do gnero e dos seus traos; pureza absoluta que nenhum poema real talvez jamais atinja; Quanto mais os traos lricos se salientarem, tanto menos se constituir um mundo objetivo, independente das intensas emoes da subjetividade que se exprime. Prevalecer a fuso da alma que canta com .0 mundo, no havendo distncia entre sujeito e objeto. Ao contrrio, o mundo, a natureza, os deuses, so apenas evocados e nomeados para, com maior fora, exprimir a tristeza, a solido ou a alegria da alma que canta. A chuva no ser um acontecimento objetivo que umedea personagens envolvidos em situaqes e aes, mas uma metfora para exprimir o estado melanclico da alma que se manifesta; a bem-amada,' recordada pelo Eu lrico, no se constituir em personagem ntida de quem se narrem aes e enredos; ser apenas nomeada para que se manifeste a saudade, a alegria ou a dor da voz central.Apavorado acordo, em trova. O luar :s: como o espectro do meu sonho em mim E sem destino, e louco, sou o mar Pattico, sonmbulo e sem fim. (V1NICrusDE MORAIS, ivro de SOlleto.s) L

o gnero lrico foi mais acima definido como sendo o mais subjetivo: no poema lrico uma voz central exprime um estado de alma e o traduz por meio de oraes. Trata-se essencialmente da expresso de emoes e disposies psquicas, muitas vezes tambm de concepes, reflexes e vises enquanto intensamente vividas e experimentadas. A Lrica tende a ser a plasmao imediata das vivncias intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se interponham eventos distendidos no tempo (como na 1tpica e na Dramtica). A manifestao verbal "imediata" de uma emoo ou de um sentimento o ponto de partida da Lrica. Da segue, quase necessariamente, a relativa brevidade do poema lrio. A isso se liga, como trao estiHstico importante, a extrema intensidade expressiva que no poderia ser mantida atravs de uma organizao literria muito ampla. Sendo apenas expresso de um estado emocional e no a narrao de um acontecimento, o poema lrico puro no chega a configurar nitidamente o personagem central (o Eu lrico que se exprime), nem outros personagens, embora naturalmente possam ser evocados ou recordados deuses ou seres humanos, de acordo com o 22

A treva, o luar, o mar se fundem por inteiro com o Eu lrico, no se constituem em um mundo earte. no se emanciparam da conscincia que se manifesta. O universo se torna expresso de um estado interior. intensidade expressiva, concentrao e ao ~-' ter "imediato" do poema lrico, associa-se, como trao estilstico importante, o uso do ritmo e da. musicalidade das palavras e dos versos. De tal modo se reala o valor da aura conotativa do verbo que este muitas vezes chega a ter uma funo mais sonora que lgico-denotativa. A isso se liga a preponderncia da voz do presente que indica a ausncia de distncia, geralmente associada ao pretrito. Este carter do imediato, que se manifesta na voz do presente, no , porm, o de uma atualidade que se processa e distende atravs do tempo (como 'na Dramtica) mas de um momento "eterno". liApavorado isso pode ser uma recordao de acordo, em treva"

-

23 - - --

algoj mas este algo permanece, nlio passado. O Eu n!lo diz "apavorado acordei"; Isso daria 1 recordao um cunho narrativo: h certo tempo acordei e aconteceu-me isto e aquIlo. Mas o "eu acordo" e o pavor associado silo Itrrancados da sucesso temporal, permanecendo A margem c acima do fluir do tempo, como um Diomento inllter,\'el,como presena IntemporaJ. "O elefanta li'" animal enorme" esta orao refere-se 1 espcie, um cllllliciado que no toma em conta os variaes dos elefantes individuais, existentes, temporais. "O elefante era enorme" esta orao individualiza o animal, situando-o no tempo e, por isso, tambm no espao. Trata-se de uma orao narrativa.

-

-

que aoonteceram a outrem, falar com certa serenidade e d_~~.TI''yer' objetivamente as circunstndas objetivas. a vozeaA est6da ]rssfut. Era f aconteceu retd~o :- e aconteceu a outre~: ~--P!.Qnomt!~~..:~re"- Joo; Maria) e em geral no eu. Isso cria certa distdncla el,tre o narrador e o mundo narrado. Mesmo _ quando o narrador usa o pronome "eu" para nar:ar uma estria que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apresenta-se l afastado dos eventos contados, merc do pre~rlto. 'Isso lhe permite tomar uma atitude distanciada e obJetiva, contrria do poeta Ifrico. A funo mais comunicativa que expressiva da linguagem pica d ao narrador maior flego para desenvolver, oom calma e lucidez, um mundo mais amplo.

f

-

Aristteles_ s~lIentQu c} O ginero Ip,ico e stUs traos tsti'''sticos fundamentais

este tr~9 esti!lsUc.>._ao _dizer:__~~IJ-

~ llie__p~~ que Ih~ -~nt~ um caso. Como nao exprime o prprio estado de-alma, Dias-narra est6rias24

O gnero pico mais objetivo que o Ifrico. O mundo objetivo (naturalmente Imaginrio), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em certas situaes), emancipa-seem larga medida da subJetivi. dade do narrador. _ ~s!e_g!:raJmente no exprime_~_. pr6prios estados de alma, mas naiTa os ae outros seres. P:irticij)a;-cntd~-em -inaior ou'menrgrau, -das seu! destinos e est sempre presente atravs do ato de narrar. Mesmo quando os prprios personagens comeam a dia. logar em voz direta ainda o narrador que lhes d a palavra, Ihes descreve as realJes e indica