o que faz voce ser budista - dzongsar jamyang khyentse

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  • 8/10/2019 O Que Faz Voce Ser Budista - Dzongsar Jamyang Khyentse

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    Primeira Orelha

    Ao escrever este livro, o meu objetivo no foi persuadir as pessoas aseguir Buda Sakiamuni, a se tornarem budistas e a praticarem o darma.Deliberadamente, no menciono nenhuma tcnica de meditao, prtica oumantra. A minha principal inteno destacar os elementos singulares do

    budismo que o distinguem das dem ais vises. O que foi que aquele prncipeindiano disse que conquistou tanto respeito e admirao, mesmo entre cientistasmodernos cticos como Albert Einstein? O que disse ele que motivou milhares de

    peregrinos a fazer prostraes por todo o trajeto do Tibete at Bodh Gaya? O quediferencia o budismo das religies do mundo?

    O budismo no limitado por aspectos culturais. Os seus benefcios nose restringem a uma sociedade em particular, nem tm lugar nos governos e na

    poltica . Sidarta no estava interessado em tratados acadm icos nem em teoriasque pudessem ser provadas cientificamente. Se o mundo era plano ou redondo,

    isso no lhe dizia respeito. Ele tinha um tipo diferente de objetivo prtico. Queriachegar ao fundo do sofrimento. Espero conseguir ilustrar que os seusensinamentos no formam um filosofia intelectual grandiosa, para ser lida edepois deixada na estante; antes, constituem um viso lgica e funcional, que

    pode ser praticada por todas as pessoas, sem exceo. Tendo isso em vista,procurei usar exem plos tirados de diferentes dacetas de diversos grupos sociais -desde a paixo romntica a t o surgimento da civilizao tal qual a conhecemos.Embora esses exemplos sejam diversos daqueles que Sidarta usou, a mensagemveiculada por ele continua relevante nos dias de hoje.

    Sidarta tambm disse que as suas palavras no deveriam ser aceitas semanlise. Sendo assim, com certeza algum to comum quanto eu tambm precisa

    passar pelo crivo do leitor. Voc fica, ento, convidado a analisar tudo o que viera encontrar nestas pginas.

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    Segunda Orelha

    DZONGSAR JAMYANG KHYENTSE nasceu no Buto, em 1961. aluno de Khenpo Appey Rinpoche e diretor dos renomados Mosteiro Dzongsar eFaculdade Dzongsar, que cuidam do sustento e educao de cerca de 1.600monges, em seis institutos na sia.

    Ele tambm dirige a organizao Siddharthas Intent, formada por seiscentros de ensino e prtica espalhados pelo mundo, bem como duas entidadessem fins lucrativos, a Fundao Khyentse e Lotus Outreach. Escreveu o roteiro edirigiu os filmesA Copae Travellers and Magicians.

    Foto da Capa: Alison Wright/Corbis/LatinStock

    Capa: Suzana Riedel Dereti

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    Contracapa

    O QUE FAZ VOC SER BUDISTA?

    Talvez voc no tenha nascido num pas budista ou numa famlia budista, poderser que no use vestes religiosas nem raspe a cabea, pode ser que coma carne eque seus dolos sejam o Eminem e a Paris Hilton. Isso no significa que voc no

    possa ser budista.

    Ento, voc pensa que budista? Pense melhor. Neste livro inovador, DzongsarJamyang Khyentse, um mestre do budismo tibetano, lana um desafio ao mundo

    budista, questionando esteretipos, fantasias e falsos conceitos encontradosnormalmente. Com fora e originalidade incomuns, ele expressa a essncia do

    budismo.

    Mestre provocante, cineasta, artista e escritor aclamado, Khyentse um dos

    lamas tibetanos mais criativos que ensinam o budismo na atualidade. Neste livro,ele nos convida a examinar nossas pressuposies e crenas mais bsicas, e nosinspira a explorar o verdadeiro caminho budista.

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    TtuloDzongsar Jamyang Khyentse

    O QueFaz Voc

    Ser Budista?

    Traduo:MANOEL VIDAL

    Ttulo original: What Makes You Not a Buddhist.

    Copyright 2007 Dzongsar Jamyand Khyentse.

    Reviso de Flvia Pellanda.

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    DedicatriaPara o filho de Sudodana, o prncipe da ndia,

    Sem o qual eu ainda no saberia que sou um ser errante.

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    pudssemos prometer que essas prticas trariam resultados tangveis imediatos,penso que haveria mais budistas no mundo. No entanto, quando me recuperodessas fantasias (o que raramente fao), uma mente mais sbria me adverte deque um mundo cheio de pessoas autodenominadas budistas no seria,necessariamente, um mundo melhor.

    Muitos crem, erroneamente, que Buda o deus do budismo; mesmopessoas em pases normalmente identificados como budistas, com o a Coria, oJapo e o Buto, tm essa atitude testa em relao a Buda e ao budismo. Esse omotivo pelo qual, ao longo deste livro, os nomes Sidarta e Buda so usados comosinnimos, para lembrar que Buda era apenas um homem, e que esse homem setornou Buda.

    compreensvel que algumas pessoas possam pensar que os budistassejam seguidores desse homem externo chamado Buda. O prprio Buda, porm,salientou que no deveramos venerar a pessoa, mas, sim, a sabedoria que ela

    ensina. Tambm existe a pressuposio de que a reencarnao e o carmaconstituem os elementos mais essenciais do credo budista. H muitos outrosequvocos grosseiros. Por exemplo, o budismo tibetano por vezes designadolamasmo e em alguns casos o zen no sequer considerado budismo.Algumas pessoas ligeiramente mais informadas, mas tambm equivocadas,

    podem fazer uso de palavras como vacuidade e nirvana, sem compreender o seusignificado.

    Quando surge uma conversa como a que tive com meu companheiro de

    viagem, uma pessoa que no seja budista pode perguntar casualmente: O quefaz de algum um budista? Essa a pergunta mais difcil de responder. Se apessoa tem um interesse genuno, a resposta completa no serviria de assuntopara uma conversa ligeira mesa, e generalizaes podem levar a mal-entendidos. Suponhamos que voc d a resposta verdadeira, a resposta queaponta para a base fundamental dessa tradio de 2.500 anos.

    A pessoa budista se aceitar as quatro verdades a seguir:

    Todas as coisas compostas so impermanentes.

    Todas as emoes so dor.

    Todas as coisas so desprovidas de existncia intrnseca.

    O nirvana est alm dos conceitos.

    Essas quatro afirmaes, ditas pelo prprio Buda, so conhecidas comoos quatro selos. De modo geral,se lo significa uma marca que confirma a

    autenticidade. Por uma questo de simplicidade e fluncia, vou aqui me referir a

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    essas afirmaes tanto como selos quanto como verdades - sem as confundircom as quatro nobres verdades do budismo, que tratam unicamente dos aspectosdo sofrimento. Embora se acredite que os quatro selos abarquem a totalidade do

    budismo, a impresso que se tem que as pessoas no querem ouvir falar sobreeles. Quando desacompanhados de mais explicaes, eles servem apenas paraarrefecer os nimos e, em muitos casos, no despertam maior interesse. Aconversa se desvia do assunto e as coisas param por a.

    A mensagem dos quatro selos deve ser entendida literalmente - no emsentido metafrico ou mstico - e ser levada a srio. Os selos, porm, no sodogmas ou mandamentos. Com um pouco de contemplao, vemos que elesnada tm de moralismo ou ritualismo. No se fala em boa ou m conduta. Elesso verdades leigas fundadas na sabedoria, e a sabedoria o que mais interessa aum budista. A moral e a tica ficam em segundo plano. No por dar umastragadas ou pular a cerca de vez em quando que algum fica impedido de ser

    budista. O que no vale dizer que dada carta branca perversidade e

    imoralidade.

    Falando de modo geral, a sabedoria provm de uma mente que possui oque os budistas chamam de viso correta. No entanto, a pessoa nem sequer

    precisa se considerar budista para ter a viso correta. Em ltima anlise, essaviso que determina a nossa motivao e ao. a viso que nos guia nocaminho do budismo. Se adotamos comportam entos saudveis em acrscimo aosquatro selos, isso faz de ns budistas ainda melhores. Ento, o que no faz de vocum budista?

    Se voc no consegue aceitar que todas as coisas compostas oufabricadas so impermanentes, se acredita que h alguma substncia ouconceito essencial que seja permanente, ento voc no um budista.

    Se voc no consegue aceitar que todas as emoes so dor, se acreditaque, na verdade, algumas emoes so puramente prazerosas, entovoc no um budista.

    Se voc no consegue aceitar que todos os fenmenos so ilusrios evazios, se acredita que certas coisas, de fato, tm existncia intrnseca,ento voc no um budista.

    E, se voc pensa que a iluminao existe dentro das dimenses do tempo,espao e poder, ento voc no um budista.

    Sendo assim, o que faz de voc um budista? Talvez voc no tenhanascido num pas budista ou numa famlia budista, pode ser que no use vestesreligiosas nem raspe a cabea, pode ser que coma carne e que os seus dolos

    sejam o Eminem e a Paris Hilton. Isso no significa que voc no possa serbudista. Para ser budista, voc precisa aceitar que todos os fenmenos compostos

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    so impermanentes, que todas as emoes so dor, que todas as coisas sodesprovidas de existncia intrnseca e que a iluminao est alm dos conceitos.

    No necessrio lembrar essas quatro verdades o tempo todo,incessantemente. Mas elas precisam residir na sua mente. Voc no anda por ase lembrando sem parar do seu nome; porm, quando algum pergunta o seunome, voc se lembra dele no mesmo instante. No h dvida. Uma pessoa queaceite esses quatro selos, ainda que independentemente dos ensinamentos deBuda, ainda que jamais tenha ouvido o nome Buda Sakiamuni, pode serconsiderada uma pessoa que segue o mesmo caminho que ele.

    Quando tentei explicar tudo isso ao homem ao meu lado no avio,comecei a ouvir um leve ressonar e me dei conta de que ele dormia

    profundam ente. Parece que a nossa conversa no afastou o seu tdio.

    Eu gosto muito de fazer generalizaes e, ao longo deste livro, voc se

    deparar com um mar delas. Mas justifico isso a mim mesmo dizendo que, aforaas generalizaes, ns, seres humanos, dispomos de parcos meios decomunicao. Essa afirmao j , ela prpria, uma generalizao.

    Ao escrever este livro, o meu objetivo no foi persuadir as pessoas aseguir Buda Sakiamuni, a se tornarem budistas e a praticarem o darma.Deliberadamente, no menciono nenhuma tcnica de meditao, prtica oumantra. A minha principal inteno destacar os elementos singulares do

    budismo que o distinguem das dem ais vises. O que foi que aquele prncipe

    indiano disse que conquistou tanto respeito e admirao, mesmo entre cientistasmodernos cticos como Albert Einstein? O que disse ele que motivou milhares deperegrinos a fazer prostraes por todo o trajeto do Tibete at Bodh Gaya? O quediferencia o budismo das religies do mundo? Acredito que tudo se resume aosquatro selos, e procurei apresentar esses conceitos difceis na linguagem maissimples a mim disponvel.

    A prioridade de Sidarta foi descer at a raiz do problema. O budismo no limitado por aspectos culturais. Os seus benefcios no se restringem a umasociedade em particular, nem tm lugar nos governos e na poltica. Sidarta noestava interessado em tratados acadmicos nem em teorias que pudessem ser

    provadas cientificamente. Se o mundo era plano ou redondo, isso no lhe diziarespeito. Ele tinha um tipo diferente de objetivo prtico. Queria chegar ao fundodo sofrimento. Espero conseguir ilustrar que os seus ensinamentos no formamuma filosofia intelectual grandiosa, para ser lida e depois deixada na estante;antes, constituem uma viso lgica e funcional, que pode ser praticada por todasas pessoas, sem exceo. Tendo isso em vista, procurei usar exemplos tirados dediferentes facetas de diferentes grupos sociais - desde a paixo romntica at osurgimento da civilizao tal qual a conhecemos. Embora esses exemplos sej am

    diversos daqueles que Sidarta usou, a mensagem veiculada por ele continuarelevante nos dias de hoje.

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    Sidarta tambm disse que as suas palavras no deveriam ser feitas semanlise. Sendo assim, com certeza algum to comum quanto eu tambm precisa

    passar pelo crivo do leitor. Voc fica, ento, convidado a analisar tudo o que viera encontrar nestas pginas.

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    Fabricao e impermanncia

    Buda no era um ser celestial: era um simples humano; mas no tosimples, pois era um prncipe. Seu nome era Sidarta Gautama, e ele desfrutavade uma vida privilegiada: um palcio belssimo em Kapilavastu, esposa e filhoamorosos, pais carinhosos, sditos fiis, jardins magnficos adornados com

    paves e um grande nmero de formosas cortess. Seu pai, Sudodana, zelavapara que todas as necessidades de Sidarta fossem atendidas e todos os seusdesejos satisfeitos dentro dos muros do palcio. Isso porque, quando Sidarta eraainda beb, um astrlogo havia previsto que, ao crescer, o prncipe talvez optasse

    pela vida de um eremita, e Sudodana estava determ inado a fazer com queSidarta o sucedesse como rei. A vida no palcio era luxuosa, segura e bemtranqila. Sidarta nunca brigava com sua famlia; na verdade, cuidava dela commuito amor. Ele tinha um relacionamento fcil com todas as pessoas, afora certatenso ocasional com um de seus primos.

    medida que Sidarta foi crescendo, brotou nele a curiosidade deconhecer seu pas e o mundo que estava alm. Curvando-se aos apelos do filho, orei deu permisso para que o prncipe se aventurasse fora dos muros do palcio,mas deu instrues precisas ao condutor da carruagem, Channa, para que elefosse exposto apenas a coisas belas e saudveis durante o passeio. De fato,Sidarta apreciou muito as montanhas, os rios e toda a abundncia de recursosnaturais de sua terra. Quando voltavam para casa, porm, os dois se depararamcom um campons que gemia beira da estrada, tomado pela dor de umadoena que o dilacerava. Sidarta havia passado toda a vida cercado por guarda-

    costas robustos e damas da corte cheias de sade; o som dos gemidos e a viso deum corpo consumido pela doena o chocaram. Presenciar a vulnerabilidade docorpo humano lhe causou uma profunda impresso, e ele retornou ao palciocom o corao pesado.

    Com o passar do tem po, o prncipe aparentemente voltou ao normal, masele ansiava por uma nova jornada. De novo, Sudodana concordou comrelutncia. Dessa vez, Sidarta viu uma velha enrugada e desdentada que seguiacom o passo vacilante e, imediatamente, ordenou que Channa parasse.

    Ele perguntou a seu condutor: Por que esta pessoa caminha assim?

    Ela velha, m eu senhor, disse Channa.

    O que velha?', perguntou Sidarta.

    Os elementos do corpo dela foram desgastados pelo uso e pelo tempo,disse Channa. Abatido por aquele espetculo, Sidarta deixou que Channa olevasse para casa.

    Agora, a curiosidade de Sidarta no encontrava descanso - o que mais

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    havia l fora? Ele e Channa, ento, puseram-se a caminho, em uma terceiraornada. Novamente, ele apreciou a beleza da regio, os montes e riachos. Mas,

    quando estavam voltando para casa, encontraram quatro pessoas quecarregavam um corpo inerte deitado sobre um palanquim, Em toda sua vida,Sidarta nunca havia visto nada parecido. Channa explicou que aquele corpodefinhado, na verdade, estava morto.

    Sidarta perguntou: ' 'A morte tambm acontece s outras pessoas.

    Channa respondeu: Sim, meu senhor, acontece a todas elas.

    ''Acontecer a meu pai? Mesmo a meu filho?

    Sim, a todos. Seja a pessoa rica ou pobre, de casta nobre ou inferior,ningum consegue escapar da morte. esse o destino de todos que nascem nestemundo.

    Ao ouvir pela primeira vez a histria de como nasceu a compreenso deSidarta, podemos ficar impressionados com a sua falta de sofisticao. Pareceestranho ouvir um prncipe - educado para liderar todo um reino - fazendo

    perguntas to simplrias.Ns,porm, que somos ingnuos. Nesta era dainformao, vivemos cercados por imagens de runa e morte - decapitaes,touradas, assassinatos sangrentos. Longe de nos recordar do nosso prprio destino,essas imagens so usadas para entretenimento e lucro. A morte passou a ser um

    bem de consumo. A maioria de ns no contempla a natureza da morte em um

    nvel mais profundo. No nos damos conta de que o nosso corpo e o meioambiente so compostos por elementos instveis que podem se desintegrar mnima provocao. claro que sabemos que um dia vamos morrer. Noentanto, a menos que haja o diagnstico de uma doena terminal, a maioria dens imagina que por enquanto est salvo. Nas raras ocasies em que pensamossobre a morte, nos perguntamos: Quanto ser que vou herdar? ou Onde voogar as minhas cinzas?Nesse sentido, somos pouco sofisticados.

    Aps a terceira jornada, Sidarta ficou verdadeiramente desanimado

    diante de sua impotncia em proteger os sditos, seus pais e, sobretudo, suaamada esposa Yashodara e o filho Rahula, diante da inevitabilidade da morte. Eletinha recursos para impedir aflies como pobreza, fome e falta de abrigo, masno podia defend-los da velhice e da morte. Quando esses pensamentos

    passaram a consumi-lo, Sidarta tentou discutir a mortalidade com seu pai. O rei,compreensivelmente, ficou perplexo ao ver o prncipe to enredado no queconsiderava ser um dilema terico. Sudodana tambm passou a se preocuparcada vez mais com a possibilidade de seu filho vir a cumprir a profecia e optar

    pelo cam inho do ascetismo, em vez suced-lo como legtimo herdeiro do trono.

    aquele tempo, no era incomum que hindus abastados e privilegiados setornassem ascetas. Sudodana, externamente, procurou deixar de lado a fixao

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    de Sidarta, mas ele no havia se esquecido da profecia.

    No se tratava, porm, de uma reflexo melanclica passageira. Sidartaestava obcecado. Para evitar que o prncipe mergulhasse ainda mais em suadepresso, Sudodana ordenou que ele no voltasse a sair do palcio e, emsegredo, deu instrues aos criados reais para que vigiassem o filho de perto.Enquanto isso, como qualquer pai preocupado, ele fez tudo o que estava a seualcance para consertar a situao, procurando ocultar das vistas do prncipequalquer outro indcio de morte e deteriorao.

    Chocalhos e outras distraes

    De muitas maneiras, somos todos como Sudodana. Na vida cotidiana,temos o impulso de resguardar, a ns mesmos e aos outros, da verdade.Tornamo-nos insensveis aos sinais bvios de decomposio. Procuramos nosanimar no esquentando a cabea ou nos dizendo palavras de reforo positivo.

    Comemoramos nosso aniversrio soprando velas, ignorando o fato de que asvelas apagadas poderiam, igualmente, ser vistas como lembrete de que estamosum ano mais perto da morte. Celebramos o Ano Novo com fogos de artifcio echampanhe, desviando a ateno do fato de que o ano velho jamais voltar e oano novo chega repleto de incertezas - qualquer coisa pode acontecer.

    Quando essa coisa desagradvel, deliberadamente deixamos de lhedar ateno, como uma me que distrai o filho com chocalhos e brinquedos. Seestamos deprimidos, presenteamo-nos com coisas que nos agradem, ou ento

    vamos s compras ou ao cinema. Construmos fantasias e voltamos os olhos paraas conquistas de uma vida: uma casa na praia, uma placa ou trofu,aposentadoria antecipada, belos carros, bons amigos, uma famlia feliz, fama,ingressar noLivro dos Recordes. Quando vamos ficando mais velhos, desejamosum companheiro dedicado com o qual possamos fazer um cruzeiro ou criaroodles de raa. As revistas e a televiso apresentam e reforam esses modelos

    de felicidade e sucesso, sempre inventando novas iluses para nos aprisionar.Esses conceitos de sucesso so os nossos chocalhos de gente grande. Quase nadado que fazemos ao longo de um dia - nem em pensamento nem em ao - indica

    que estamos conscientes do quanto a vida frgil. Perdemos tempo em coisascomo esperar na fila para ver um filme ruim ou correr para casa para assistiru m reality show na TV. Enquanto ficamos sentados, assistindo comerciais,esperando... nosso tempo nesta vida se esvai.

    Um raro vislumbre da velhice e da morte foi suficiente para despertarem Sidarta o anseio de ser exposto a toda a verdade. Aps a terceira jornada, eletentou por diversas vezes deixar o palcio sozinho, mas sempre em vo. Ento,numa noite memorvel, depois das festas e folguedos de costume, um encantomisterioso caiu sobre o palcio, tomando conta de todos, menos de Sidarta. Ele

    peram bulou pelos sales e descobriu que todos, do Rei Sudodana ao m ais humilde

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    criado, dormiam profundamente. Os budistas acreditam que esse sono coletivofoi fruto do mrito coletivo dos seres humanos, j que foi o evento propulsor quelevou criao de um ser grandioso.

    Sem necessidade de agradar aos nobres, as cortess roncavam com aboca aberta e as pernas escarrapachadas, seus dedos enfeitados largados nospratos de curry. Como flores esmagadas, elas haviam perdido a beleza. Sidartano se apressou em pr aquilo em ordem, como talvez o fizssemos; aquela visoapenas fortaleceu sua determinao. A beleza perdida era apenas mais uma

    prova da impermanncia. Enquanto todos dormiam entorpecidos, o prncipefinalmente conseguiu partir sem ser observado. Depois de voltar um ltimo olhar

    para Yashodara e Rahula, ele mergulhou na noite.

    De muitas maneiras, somos semelhantes a Sidarta. Podemos no serprncipes nem ter paves, mas temos as nossas carreiras, gatos de estimao einmeras responsabilidades. Possumos nossos palcios particulares: uma

    quitinete em uma favela, um apartamento de dois nveis em um bairroarborizado, ou uma cobertura em Paris - e tambm as nossas Yashodaras eRahulas. E as coisas saem do trilho o tempo todo. Os eletrodomsticos quebram,os vizinhos discutem, o telhado vaza. As pessoas que amamos morrem ou, quemsabe, so apenas a estampa da morte antes de acordar pela manh, o maxilarfrouxo como as cortess de Sidarta. Talvez cheirem a cigarro ou ao molho dealho da noite anterior. Eles nos azucrinam e mastigam com a boca aberta. Noentanto, ficamos presos ali, por nossa prpria vontade; no tentamos escapar. Ou,se ficamos fartos e pensamos,Agora chega!, possvel que deixemos um

    relacionamento apenas para comear tudo de novo com outra pessoa. Nunca noscansamos desse ciclo, porque acreditamos e esperamos que a nossa cara-metadeou um Shangrila perfeito estejam em algum lugar, nos aguardando. Quando nosdeparamos com as irritaes do dia-a-dia, nosso reflexo pensar que podemosconsertar as coisas: tudo pode ser arrumado, dentes podem ser escovados,

    podem os nos sentir inteiros.

    Pode ser, tambm, que a gente imagine que algum dia v alcanar amaturidade perfeita aprendendo com as lies da vida. Esperamos nos

    transformar em velhos sbios, como Yoda, em nos dar conta de que amaturidade apenas um outro aspecto do perecimento. Inconscientemente,somos cativados pela expectativa de chegar a um estgio em que nunca maisser necessrio consertar nada. Um dia chegaremos no felizes para sempre.Estamos convencidos da noo de desfecho. como se tudo o quevivenciamos at agora, nossa vida inteira at este momento, fosse um ensaiogeral. Acreditamos que a nossa grande performance ainda est por vir, de modoque no vivemos o dia de hoje. Para a maioria das pessoas, esse infindvelgerenciamento, arrumao e melhoramento a definio de viver. Narealidade, estamos esperando que a vida comece. Quando cutucados, a maioriade ns admite que est trabalhando para chegar em um momento futuro de

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    perfeio: aposentadoria em um chal em Kennebunkport ou em uma cabana naCosta Rica. Ou, talvez, sonhemos em passar nossos ltimos anos no bosqueidealizado de uma gravura chinesa, meditando placidamente em uma casa dech com vista para uma cachoeira e um lago com carpas coloridas.

    Temos, tam bm, a tendncia de pensar que aps a nossa m orte o mundocontinuar a existir. O mesmo Sol h de brilhar e os mesmos planetasdescrevero sua rbita, assim como o fizeram, imaginamos, desde o princpiodos tempos. Nossos filhos herdaro a Terra. Tudo isso demonstra a nossa imensaignorncia a respeito das persistentes mutaes deste mundo e de todos osfenmenos. Os filhos nem sempre sobrevivem aos pais e, enquanto esto vivos,no se enquadram necessariamente em nosso ideal. O seu filhinho meigo e bem-comportado, depois de grande, pode virar um bandido que cheira cocana e traz

    para casa amantes de todos os tipos. Pais rigidamente heterossexuais produzemalguns dos homossexuais mais afetados do planeta, do mesmo modo que hippiesdesencucados, s vezes, acabam com filhos neoconservadores. Ainda assim,

    continuamos a nos apegar ao arqutipo da famlia e ao sonho de ver o nossosangue, feies, sobrenome e tradies perpetuados em nossa prole.

    Buscar a verdade pode parecer uma coisa ruim

    importante entender que o prncipe no estava abandonando asresponsabilidades familiares, nem fugindo do servio militar para seguir umsonho romntico ou para se juntar a uma comunidade de praticantes deagricultura orgnica. Ele estava saindo de casa com a determinao de um

    marido que sacrifica seu conforto a fim de adquirir provises necessrias evaliosas para seus familiares, ainda que eles no vissem as coisas do mesmomodo. Podemos apenas imaginar a dor e a decepo de Sudodana na manhseguinte. a m esma decepo experimentada por um pai ou uma me, hoje, aodescobrir que o filho fugiu para Katmandu ou Ibiza para perseguir uma visoutpica, como os hippies da dcada de 1960 (muitos dos quais vindos de laresconfortveis e prsperos). Em vez de usar calas boca-de-sino,piercing, cabeloroxo ou tatuagens, Sidarta se rebelou tirando suas vestes principescas.Descartando essas peas que o identificavam como um aristocrata bem-

    educado, ele se cobriu apenas com um pedao de pano e se tornou um pedintesem rumo.

    Nossa sociedade, to acostumada a julgar as pessoas pelo que elas tm, eno pelo que elas so, esperaria que Sidarta ficasse no palcio, usufrusse umavida privilegiada e levasseadiante o nome da famlia. O modelo de sucesso donosso mundo Bill Gates. Raramente pensamos em termos do sucesso deGandhi. Em certas sociedades asiticas, assim como tambm no Ocidente, os

    pais pressionam os filhos para obter xitos acadmicos em um grau muito alm

    do que pode ser considerado saudvel. Esses filhos precisam de boas notas paraserem aceitos em escolas de primeira linha, e precisam de diplomas dessas

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    escolas para conseguir um alto cargo em um banco. E tudo isso s para que afamlia possa perpetuar sua dinastia pela eternidade.

    Imagine que de uma hora para outra, ao tomar conscincia da morte eda velhice, seu filho abandone uma carreira brilhante e lucrativa. Ele no vmais sentido em trabalhar catorze horas por dia, bajular o patro, devorarconcorrentes, destruir o meio ambiente, contribuir para o trabalho infantil e viversob constante tenso apenas para ter umas poucas sem anas de frias por ano. Elecomunica que pretende vender as aes que possui, doar tudo a um orfanato eseguir uma vida errante. O que voc faria? Iria lhe desejar boa sorte e gabar-se,diante dos amigos, de como seu filho finalmente criou juzo? Ou voc o acusariade estar sendo completamente irresponsvel e o mandaria para um psiquiatra?

    A mera averso pela morte e pela velhice no foi razo suficiente paraque o prncipe desse as costas vida palaciana e rumasse para o desconhecido.Sidarta foi impelido a um gesto to drstico porque no conseguia racionalizar o

    fato de ser esse o destino de todos os seres que j haviam existido e de todos osque viriam a existir. Se tudo que nasce tem de se deteriorar e morrer, ento todosos paves no jardim, as j ias, os dossis, o incenso e a msica, a bandeja de ourosobre a qual repousavam seus chinelos, os vinhos importados, a ligao comYashodara e Rahula, com sua famlia e seu pas - nada daquilo tinha sentido.Qual era o propsito daquilo tudo? Por que uma pessoa em seu perfeito juzohaveria de derramar sangue e lgrimas por algo que, ela sabe, ir se evaporar outer que ser abandonado um dia? Como poderia ele continuar a viver a felicidadeartificial do seu palcio?

    Podemos nos perguntar para onde Sidarta poderia ir. Dentro ou fora dopalcio, no havia lugar algum onde encontrar refugio diante da morte. Nemtoda a sua fortuna real conseguiria lhe comprar uma prorrogao. Ser que eleestava em busca da imortalidade? Sabemos que isso seria ftil. Entretemo-noscom mitos fantsticos sobre deuses gregos imortais e com histrias sobre o SantoGraal, o elixir da imortalidade e Ponce de Len liderando os conquistadores emsua busca infrutfera pela fonte da juventude. Rimos do lendrio imperadorchins Qin Shi Huang, que despachou uma delegao de meninos e meninasvirgens para terras longnquas, procura de poes que conferissem longa vida.Poderamos imaginar que Sidarta estivesse em busca das mesmas coisas. bemverdade que ele deixou o palcio com certa ingenuidade - ele no iria conseguirfazer com que a mulher e o filho vivessem para sempre, mas sua busca no eraftil.

    O que Buda descobriu

    Sem um nico instrumento cientfico, o prncipe Sidarta sentou-se sobre ocho coberto de capim kusha, debaixo de uma rvoreficus religiosapara

    investigar a natureza humana. Aps um longo perodo de contemplao, elechegou compreenso de que todas as formas, inclusive nossa carne e ossos,

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    assim como todas as nossas emoes e todas as nossas percepes, socompostas: so o produto da juno de duas ou mais coisas. Quando dois ou maiscomponentes se juntam, surge um novo fenmeno: pregos e madeira setransformam numa mesa; gua e folhas se transformam em ch; medo, devooe um salvador se transformam em Deus. O produto final no tem existnciaindependente de suas partes. Acreditar que ele realmente exista de formaindependente o maior dos enganos. Nesse meio tem po, as partes passaram poruma mudana. Simplesmente por estarem reunidas, sua natureza se alterou e,untas, transformaram-se em uma outra coisa - elas passaram a ser

    compostas.

    Sidarta compreendeu que isso se aplica no s experincia humana,mas a toda a matria, ao mundo inteiro, ao universo, pois todas as coisas sointerdependentes, todas esto suje itas a mudanas. Em toda a criao, no h umnico componente que exista em um estado puro, permanente, autnomo. Nem olivro que voc est segurando, nem os tomos, nem mesmo os deuses. Tudo o

    que existe na esfera da nossa mente, mesmo que apenas em imaginao - como,por exem plo, um homem com quatro braos -, depende da existncia de algumaoutra coisa. Assim, Sidarta descobriu que a impermanncia no significa morte,como geralmente pensamos; significa mudana. Tudo o que muda em relao auma outra coisa, ainda que seja a menor das alteraes, est sujeito lei daimpermanncia.

    Por essa compreenso, Sidarta, finalmente, encontrou um meio decontornar o sofrimento da mortalidade. Ele aceitou que a mudana inevitvel e

    que a morte apenas um componente desse ciclo. Alm disso, deu-se conta deque no existia um ser todo-poderoso capaz de reverter o caminho que leva morte; assim, tambm no havia nenhuma esperana que pudesse aprision-lo.Onde no h esperana cega tampouco h decepo. Se a pessoa sabe que tudo impermanente, no precisa se agarrar a nada; com essa atitude, ela no pensaem termos daquilo que tem e do que lhe falta e, portanto, vive plenamente.

    O fato de Sidarta ter acordado da iluso da permanncia justifica que ochamemos de Buda, Aquele que Despertou. O que ele descobriu e ensinou -vemos agora, 2.500 anos depois - representa um tesouro inestimvel que teminspirado milhes de pessoas, educadas e analfabetas, ricas e pobres, do ReiAshoka a Allan Ginsberg, de Kublai Khan a Gandhi, de S.S. o Dalai Lama aosBeastie Boys. Por outro lado, se Sidarta estivesse conosco nos dias de hoje,ficaria mais do que um pouco decepcionado, pois, em sua maior parte, suasdescobertas permanecem sem serventia. O que no quer dizer que a tecnologiamoderna seja to fenomenal que as descobertas de Sidarta tenham sidorefutadas: ningum se tornou imortal. Todos tm de morrer em algum momento;estima-se que 250.000 seres humanos o faam todos os dias. Pessoas prximas ans j morreram e vo morrer. No entanto, ainda ficamos chocados e tristes

    quando algum que nos caro falece, continuamos procura da fonte dauventude ou de uma frmula secreta para a longa vida. Idas a lojas de produtos

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    orgnicos, frascos de cremes anti-rugas, como DMAE e retinol, aulas depoweroga, ginseng coreano, cirurgia plstica, injees de colgeno e loes hidrantes,

    so claros indcios de que secretamente compartilhamos com o Imperador Qin odesejo pela imortalidade.

    O Prncipe Sidarta no queria nem precisava mais do elixir da

    imortalidade. Ao compreender que todas as coisas so compostas, que adesconstruo vai at o infinito e que nenhum dos componentes, em toda acriao, existe em um estado puro, permanente e autnomo, ele encontrou alibertao.

    Uma coisa formada por agregao (ou seja, todas as coisas) e suanatureza impermanente so intimamente ligadas, como a gua e o gelo. Quandocolocamos uma pedra de gelo num copo, as duas coisas vm juntas. Do mesmomodo, quando Sidarta olhava para algum andando aqui ou ali, mesmo a maissaudvel das pessoas, ele via aquela pessoa como viva e, ao mesmo tempo,desintegrando-se. Talvez lhe parea que esse um jeito pouco divertido de vivera vida, mas pode ser uma experincia incrvel enxergar os dois lados - e muitogratificante, tambm. No como viver numa montanha-russa de esperanas edesiluses, subindo e descendo todo o tem po. Quando enxergamos as coisas dessamaneira, elas comeam a se dissolver nossa volta. Nossa percepo dosfenmenos se transforma e, de certo modo, se aclara. to fcil ver como as

    pessoas ficam presas na montanha-russa e, natura lmente, temos compaixo porelas. Um dos motivos pelos quais sentirmos compaixo o fato de aimpermanncia ser to bvia e, ainda assim, as pessoas no a enxergarem.

    O imprio do por enquanto

    Por natureza, o ato de agregar enfeixado pelo tempo: h um comeo,um meio e um fim. Este livro no existia antes; parece existir agora; e, um dia,vai se desintegrar. Do mesmo modo, a pessoa que existia ontem - ou seja, o seueu - diferente da pessoa que existe hoje. O seu mau humor se transformouem bom humor; talvez voc tenha aprendido algo novo; voc tem novaslembranas; o machucado no seu joelho sarou um pouco. Nossa existncia

    aparentemente contnua uma srie de comeos e fins amarrados pelo tempo.Mesmo o ato da criao depende do tempo: o tempo antes do existir, o tempo dovir-a-ser e o fim do ato da criao.

    Aqueles que acreditam em um Deus todo-poderoso geralmente noanalisam o seu prprio conceito de tempo, porque pressupem que Deusindependa do tempo. Para darmos crdito a um criador todo-poderoso,onipotente, precisamos incluir na equao o fator tempo. Se este mundo sempreexistiu, que necessidade haveria da criao? Assim, foroso que ele no tenhaexistido por um perodo de tempo antes da criao e, portanto, uma seqnciatemporal se faz necessria. Dado que o criador - digamos, Deus -

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    necessariamente obedece s leis do tempo, ele tambm tem de ficar sujeito amudana, ainda que a nica mudana que sofra seja a criao deste mundo. Eno h problema nisso. Um Deus onipresente e permanente no poderia mudar;ento, melhor ter um Deus impermanente que possa responder a preces emodificar as condies meteorolgicas. Contudo, desde que as aes de Deusconstituam uma reunio de comeos e fins, ele ser impermanente; em outras

    palavras, sujeito a incertezas e no confivel.

    Se no h papel, no h livro. Se no h gua, no h gelo. Se no hcomeo, no h fim. A existncia de um depende fundamentalmente daexistncia do outro; portanto, no podemos falar em independncia verdadeira.Por causa da interdependncia, se um componente - a perna de uma mesa, porexemplo - sofre uma alterao, ainda que pequena, a integridade do todo comprometida, desestabilizada. Embora acreditemos poder controlar asmudanas, na maior parte do tempo isso no possvel em virtude das inmerasinfluncias ocultas que nos passam despercebidas. E, graas interdependncia,

    a desintegrao de todas as coisas, em seu estado atual ou original, inevitvel.Toda m udana contm em si um elemento de morte. O dia de hoje a m orte dodia de ontem.

    A maioria das pessoas aceita que tudo o que nasce algum dia morrer;no entanto, nossas definies de tudo e morte podem variar. Para Sidarta,nascimento abarca toda a criao - no s as flores, os cogumelos e sereshumanos, mas tudo o que nasce ou se agrega, de qualquer forma. E morte abarcatodo tipo de desintegrao ou separao de componentes. Sidarta no dispunha de

    verbas para pesquisa nem de assistentes: tinha apenas o p escaldante da ndia e,por testemunha, uns poucos bfalos que passavam . Com esses instrum entos, elecompreendeu a verdade da impermanncia em um nvel profundo. Suacompreenso no foi algo espetacular, como a descoberta de uma nova estrela;ela no tinha a inteno de propor um julgamento moral nem instituir umareligio ou movimento social; tampouco, trazia uma profecia. A impermanncia um fato simples e mundano; altamente improvvel que, um dia desses, umobjeto composto nocivo passe a ser permanente.

    Ainda menos provvel seria nossa capacidade de provar algo assim.Entretanto, nossa atitude, hoje, deificar Buda ou, ento, tentar suplant-lo comnossa avanada tecnologia.

    E continuamos a ignorar

    Dois mil, quinhentos e trinta e oito anos depois de Sidarta ter atravessadoas portas do seu palcio - em uma poca do ano em que milhes e milhes de

    pessoas esto ocupadas com comemoraes, diverses e a expectativa de umnovo comeo, numa poca em que alguns se lembram de Deus e outros seaproveitam de lojas em liquidao - um tsunami catastrfico abalou o mundo. O

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    horror do acontecimento deixou sem flego at mesmo a mais fria das pessoas. medida que as cenas iam se desenrolando na televiso, a vontade de alguns eraque Orson Welles interrompesse a transmisso para anunciar que aquilo tudo erauma inveno, ou que o Homem Aranha aparecesse para salvar todos.

    Sem dvida, o corao do prncipe Sidarta ficaria partido ao ver asvtimas do tsunami atiradas sobre a areia da praia. Seu corao, porm, ficariaainda mais partido pelo fato de termos sido pegos de surpresa, prova da nossaconstante recusa em enxergar a impermanncia. Este planeta feito de magmavoltil. Todas as massas de terra - a Austrlia, Taiwan, as Amricas - so como oorvalho prestes a cair de uma folha. No entanto, arranha-cus e tneis continuama ser construdos sem parar. Nosso insacivel desmatamento - por conta de

    pauzinhos para comer descartveis e da enxurrada de publicidade via correio -apenas convida a impermanncia a agir mais rpido. No deveramos nossurpreender ao constatar os sinais do fim de fenmeno algum, mas custamos anos convencer.

    No entanto, mesmo depois de um lembrete arrasador como esse tsunami,a morte e a devastao logo sero camufladas e esquecidas. Resorts de luxosero construdos no exato local em que as famlias foram identificar os corposde seus entes queridos. As pessoas do mundo continuaro empenhadas em juntare m ontar a realidade, na esperana de conseguir felicidade duradoura. A vontadede ser feliz para sempre nada mais do que o desejo de permannciadisfarado. Fabricar conceitos como amor eterno, felicidade para sempre esalvao, gera mais evidncias da impermanncia. Nossa inteno e o

    resultado obtido so desencontrados. Pretendemos estabelecer o nosso mundo e anossa pessoa, mas esquecemos que a corroso comea assim que a criaocomea. A nossa meta no a desintegrao, mas o que fazemos conduzdiretamente desintegrao.

    No mnimo, Buda nos aconselhou, precisamos tentar manter presente oconceito de impermanncia, em vez de ocult-lo deliberadamente. Se

    permanecem os conscientes de que os fenmenos so com postos, ganhamosconscincia da interdependncia. Ao reconhecer a interdependncia,

    reconhecemos a impermanncia. E, quando lembramos que as coisas soimpermanentes, h menor probabilidade de sermos escravizados por suposies,crenas rgidas (tanto religiosas quanto leigas), escalas de valores ou f cega.Essa conscincia impede que sejamos enredados por todo tipo de drama pessoale poltico e por problemas de relacionamento. Comeamos a perceber que ascoisas no esto inteiramente sob controle nem nunca estaro, de modo que noh a expectativa de que venham a sair de acordo com as nossas esperanas etemores. No h ningum em quem pr a culpa quando as coisas saem erradas,

    porque so inmeras as causas e condies que poderiam ser as culpadas.

    Podemos dirigir essa conscincia para os confins da nossa imaginao e de voltaat as partculas subatmicas. Nem nos tomos se pode confiar.

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    Instabilidade

    Este planeta Terra no qual voc se encontra neste exato momento, lendoeste livro, um dia vai se transformar num lugar sem vida como Marte - se antesdisso no for destroado por um meteorito. Ou, talvez, um supervulco obscureaa luz do Sol, extinguindo toda forma de vida sobre a Terra. Muitas das estrelasque contemplamos romanticamente no cu noturno j se foram h muito tempo;o que apreciamos so os raios de estrelas que se extinguiram um milho de anos-luz atrs. Na superfcie desta nossa frgil Terra, os continentes ainda esto sedeslocando. H 300 milhes de anos, os continentes americanos que conhecemoshoje formavam um nico supercontinente, chamado pelos gelogos de Pangia.

    No precisamos, porm, esperar 300 milhes de anos para presenciarmudanas. Mesmo durante uma curta vida humana assistimos odesaparecimento do conceito grandiloqente de imprio, como uma poa d'guaque se evapora na areia quente. Por exemplo, a ndia tinha uma imperatriz que

    morava na Inglaterra e cuja bandeira tremulava em pases pelo mundo afora.Hoje, porm, o Sol efetivamente se pe sobre a bandeira da Inglaterra. As assimchamadas nacionalidades e etnias com as quais nos identificamos tanto esto emconstante mudana. Por exemplo, guerreiros como os maoris e os navajos, queno passado dominaram seus territrios por centenas de anos, hoje vivem comominorias confinadas a reservas superpovoadas, ao passo que os imigrantes quechegaram da Europa nos ltimos 250 anos constituem maiorias dominantes. Oschineses Han costumavam se referir ao povo manchu como eles, mas, desdeque a China decidiu ser uma repblica formada por diversos grupos tnicos, os

    manchus agora so ns. No obstante, essas constantes transformaes no nosimpedem de sacrificar vidas para criar potncias, fronteiras e sociedades.Quanto sangue foi derramado em nome de sistemas polticos ao longo dossculos? Cada sistema composto e moldado a partir de inmeros fatoresinstveis: economia, safras, ambio pessoal, a condio cardiovascular de umlder, luxria, amor e sorte. Lderes lendrios tambm so instveis: alguns

    perdem a popularidade porque fumam mas no tragam ; outros chegam ao poderpor causa de picotes malfeitos em cdulas eleitorais. As com plexidades daimpermanncia e a instabilidade de todos os fenmenos compostos s fazemcrescer no campo das relaes internacionais, porque as definies de aliado einimigo esto em constante mudana. Houve um tempo em que os EstadosUnidos criticavam, violenta e cegamente, um inimigo chamado comunismo.Mesmo Che Guevara, um grande heri social, era condenado como terrorista,

    porque pertencia a um certo partido e usava uma estrela vermelha na boina.Pode bem ser que ele sequer fosse o comunista perfeito que retratvamos.Poucas dcadas depois, a Casa Branca est agora a cortejar a China, o maior

    pas comunista do globo, concedendo-lhe ostatus de Nao Mais Favorecida efazendo vista grossa para as mesmssimas coisas que antes faziam soar o grito deguerra americano.

    Deve ter sido por causa da natureza voltil das amizades e inimizades

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    que, quando Channa implorou para servir o prncipe em sua busca pela verdade,Sidarta recusou. Mesmo seu mais prximo confidente e amigo estava sujeito amudana. Com freqncia, sentimos o ir-e-vir das alianas em nossosrelacionamentos pessoais. O melhor amigo, com quem voc compartilha ossegredos mais ntimos, pode se tornar seu pior inimigo, j que ele tem o poder devoltar essa intimidade contra voc. O presidente Bush, Osama Bin Laden eSaddam Hussein foram protagonistas de uma conturbada ruptura pblica. O triodesfrutou por muito tempo de um relacionamento agradvel, mas, agora, passoua representar o prottipo dos arquiinimigos. Valendo-se de um ntimoconhecimento recproco, eles embarcaram numa cruzada sanguinolenta parafazer valer suas diferentes verses de moral, ao preo de milhares e milharesde vidas.

    Visto que temos orgulho de nossos princpios e, com freqncia, osimpomos aos outros, o conceito de moralidade ainda guarda um resqucio devalor. No entanto, a definio de moralidade vem se modificando ao longo de

    toda a histria, oscilando segundo o clima cultural de cada poca. As flutuaesdo barmetro americano sobre o que politicamente correto ou incorretodeixam qualquer um de queixo cado. Sejam quais forem as palavras que vocusar para se referir s diferentes etnias e grupos culturais, algum acaba por seofender. As regras continuam mudando. Um dia, convidamos um amigo paraantar e, como ele um vegetariano fantico, temos que ajustar o cardpio ao

    gosto dele. J da prxima vez que ele aparece, pergunta onde est a carne, poisagora um seguidor ferrenho do regime das protenas. Ou algum que prega aabstinncia antes do casamento pode, de repente, se tornar bastante promscuo,

    depois de experimentar o ato uma vez.

    A arte asitica antiga retrata mulheres caminhando com o torso exposto;mesmo em tempos mais recentes, algumas sociedades asiticas viam comoaceitvel as mulheres se apresentarem com o busto descoberto. Ento, a junodos fenmenos da televiso e dos valores ocidentais introduziu uma nova tica.De repente, passou a ser moralmente incorreto no usar suti; uma mulher queno cubra os seios considerada vulgar e pode mesmo ser presa. Pases outroralibertrios agora se empenham em adotar essa ou aquela nova tica,

    prescrevendo sutis e que o corpo sej a encoberto tanto quanto possvel, mesmodurante a trrida estao das chuvas. Os seios no so intrinsecamente maus; osseios no mudaram, mas a moral mudou. A mudana transformou os seios emalgo pecaminoso, levando a Comisso Federal de Comunicaes dos EstadosUnidos a multar a rede de televiso CBS em 550 mil dlares pela exposio deapenas um dos mamilos de Janet Jackson por trs segundos.

    Causas e condies: o ovo cozinha e no h nada que se possa fazer

    Quando Sidarta falou de todas as coisas compostas, ele no estava se

    referindo somente a fenmenos perceptveis bvios, como o DNA, seu cachorro,a Torre Eiffel, o vulo e o esperm atozide. A mente, o tempo, a m em ria e Deus

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    tambm so compostos. Cada elemento composto, por sua vez, depende dediversas camadas de composio. De igual modo, quando ele ensinou aimpermanncia, foi alm do entendimento convencional de fim, como, porexemplo, a noo de que a morte acontece uma vez e a tudo acaba. A morte um processo contnuo a partir do momento do nascimento, a partir do momentoda criao. Cada mudana uma forma de morte e, portanto, cada nascimentocontm a morte de alguma outra coisa. Considere o cozimento de um ovo degalinha. Sem constante mudana, no seria possvel cozinhar o ovo. O resultado,ou sej a, o ovo cozido, requer algumas causas e condies bsicas. Obviam ente,

    preciso um ovo, um a panela com gua e algum elemento de calor. H tambmumas outras antas causas e condies no to essenciais, como uma cozinha, luz,um contador de tempo, uma mo para colocar o ovo na panela. Uma outracondio importante a ausncia de interrupo, como falta de energia ou oaparecimento de uma cabra que derrube a panela. Alm disso, cada condio - agalinha, por exemplo - requer um outro conjunto de causas e condies. Eladepende de uma outra galinha ter botado um ovo para que ela pudesse nascer, de

    um lugar seguro para que isso acontecesse e de alimento para ajud-la a crescer.A rao precisa ser cultivada em algum lugar e precisa ser ingerida pela galinha.Podemos continuar desmem brando os requisitos indispensveis e dispensveis ato nvel subatmico, em meio a uma crescente profuso de formas, funes ertulos.

    Quando as inmeras causas e condies esto todas reunidas e no hnenhum obstculo ou interrupo, o resultado inevitvel. Muitos tomam issoerroneamente por destino ou sorte, mas, pelo menos no princpio, ainda temos o

    poder de intervir nas condies. A partir de um certo ponto, porm, mesmo serezarmos para que o ovo no cozinhe, ele vai cozinhar.

    Assim como o ovo, todos os fenmenos so o produto de inmeroscomponentes e, por conseguinte, esto sujeitos a alteraes. Quase todos essesmltiplos componentes fogem do nosso controle e por isso desafiam nossasexpectativas. O candidato menos promissor presidncia pode vir a ganhar aseleies e conduzir o pas prosperidade e bem-estar. O candidato para quemvoc trabalhou pode vir a ganhar e levar o pas ao caos econmico e social,

    transformando sua vida num inferno. Talvez voc pense que uma poltica liberalde esquerda sej a sinnimo de poltica esclarecida, mas ela, na verdade, pode darcausa a fascismo eskinheads,por sua complacncia, ou, mesmo, por pregar atolerncia para com os intolerantes. Ou por proteger os direitos humanosdaqueles cujo nico objetivo destruir os direitos humanos das outras pessoas. Amesma imprevisibilidade se aplica a todas as formas, sentimentos, percepes,tradies, amor, confiana, desconfiana e ceticismo - mesmo relao entremestres espirituais e seus discpulos, entre os homens e seus deuses.

    Todos esses fenmenos so impermanentes. Tome o ceticismo, porexemplo. Houve, certa vez, um canadense que era a encarnao do homem

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    ctico. Ele gostava de freqentar ensinamentos budistas para polemizar com osprofessores. Na verdade, ele era versado em filosofia budista, de modo que seusargumentos eram slidos. Ele adorava citar o ensinamento budista segundo o qualas palavras de Buda devem ser analisadas, e no tomadas por certas. Passaram-se alguns anos, e l est ele como o seguidor devoto de algum que recebeespritos. O ctico rematado senta-se frente de seu guru cantante, com lgrimasorrando dos olhos, fiel a uma entidade que no tem um pingo de lgica para

    oferecer. A f ou devoo tem uma conotao genrica de ser firme, mas,como o ceticismo e como todos os fenmenos compostos, impermanente.

    Quer voc se orgulhe de sua religio, quer de no pertencer a nenhumareligio, a f tem um papel importante na sua existncia. Mesmo o noacreditar depende da f - f cega e total em sua lgica ou motivos pessoais,com base em seus sentimentos em constante mudana. Assim, no desurpreender que aquilo que antes parecia to convincente no consiga mais nos

    persuadir. A natureza ilgica da f no nem um pouco sutil: na verdade, a f

    um dos fenmenos mais compostos e interdependentes que existem. Ela pode serdesencadeada pelo olhar certo, na hora certa, no lugar certo. Sua f podedepender de uma compatibilidade superficial. Suponhamos que voc seja ummisgino e encontre uma pessoa que esteja pregando repulsa s mulheres. Elavai lhe parecer poderosa; voc concordar com ela e ter alguma f naquela

    pessoa. Algo to inconseqente quanto uma preferncia com um por alici capazde incrementar sua devoo. Ou, talvez, uma pessoa ou instituio tenha acapacidade de diminuir o seu medo do desconhecido. Outros fatores como afamlia, pas ou sociedade em que voc nasceu integram a composio dos

    elementos que, juntos, chamamos de f.

    Os cidados de muitos pases em que os governantes so budistas, comoo Buto, a Coria, o Japo e a Tailndia, tm um comprometimento cego com adoutrina budista. Por outro lado, muitos jovens nesses pases se desiludem com o

    budismo, por falta de inform ao ou por haver muitas distraes que impedemque os fenmenos da f se aglutinem, e eles acabam seguindo uma outra f, ouseguindo sua prpria razo.

    A impermanncia trabalha a nosso favorH muitos benefcios em compreender a noo de composio, de como

    a criao de um simples ovo cozido envolve um nmero enorme de fenmenos.Quando aprendemos a enxergar as partes que se renem para compor todas ascoisas e situaes, aprendemos a cultivar perdo, compreenso, destemor eabertura mental. Por exemplo, algumas pessoas ainda identificam MarChapman como o nico culpado pelo assassinato de John Lennon. Talvez, senossa venerao pelas celebridades no fosse to grande, Mark Chapman notivesse criado a fantasia de tirar a vida de John Lennon. Vinte anos depois do fato,

    Chapman admitiu que, quando atirou em John Lennon, ele no o via como umser humano real.

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    Aplicar a compreenso que Sidarta teve da impermanncia aosrelacionamentos nos leva a um prazer descrito nas pungentes palavras de Julietaa Romeu: ' 'A despedida dor to doce... Os momentos de despedida so, muitasvezes, os mais profundos de um relacionamento. Todo relacionamento, um dia,acaba, mesmo que seja por causa da morte. Ao pensar nisso, cresce nossaapreciao pelas causas e condies que proporcionam cada conexo. Isso especialmente intenso se um dos parceiros tem uma doena terminal. No hnenhuma iluso de para sempre, o que supreendentemente libertador. Nossocuidado e carinho se tornam incondicionais, e nossa alegria fica firmemente

    plantada no presente. Oferecer amor e apoio demanda menos esforo e d maissatisfao quando os dias do nosso parceiro esto contados.

    Esquecemos, porm, que nossos dias estose mpre contados. Mesmoquando temos a compreenso intelectual de que tudo o que nasce tem de morrere de que todas as coisas compostas vo se desintegrar mais cedo ou mais tarde,no nvel emocional estamos constantemente voltando a operar baseados na

    crena da permanncia, esquecendo-nos por completo da interdependncia. Essehbito pode dar margem a todo tipo de estados negativos, como parania, solido,culpa. Podemos nos sentir usados, ameaados, maltratados, ignorados - como seeste mundo fosse injusto apenas conosco.

    A beleza est nos olhos de quem a v

    Quando Sidarta deixou Kapilavastu, no estava s. Naquelas horas queprecediam o alvorecer, enquanto sua fam lia e criados dormiam, ele se dirigiu ao

    estbulo, onde dormia Channa, o condutor de sua carruagem e mais fiel amigo.Channa ficou atnito ao ver o prncipe desacompanhado, mas, obedecendo asinstrues do amo, selou Kathanka, o cavalo favorito de Sidarta. Elesatravessaram os portes da cidade sem ser detectados. Quando estavam a umadistncia segura, Sidarta desmontou e ps-se a tirar suas braadeiras,tornozeleiras e trajes reais. Ele os deu a Channa, ordenando-lhe que retornasse cidade, levando Kathanka consigo. Channa implorou para acompanhar Sidarta,mas o prncipe estava resoluto. Channa devia retornar e continuar a servir afamlia real.

    Sidarta pediu que Channa transmitisse um recado sua famlia. Ningumdeveria se preocupar com ele, porque estava embarcando numa jornada muitoimportante. Ele j havia dado a Channa todos os seus ornamentos exceto um, seu

    belo e longo cabelo, o ltimo smbolo de seu esplendor, casta e realeza. Elemesmo o cortou e, entregando-o a Channa, partiu sozinho. Sidarta estava selanando em sua explorao da impermanncia. J lhe parecia tolo colocar tantaenergia na beleza e vaidade. Ele no se opunha beleza e aos cuidados pessoais,apenas crena em sua permanncia fundamental.

    Diz-se com freqncia que a beleza est nos olhos de quem a v. Essaafirmao mais profunda do que possa, a princpio, parecer. O conceito de

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    beleza volvel; as causas e condies das tendncias que ditam a moda m udamcontinuamente, assim como muda continuamente a platia dessas tendncias.At meados do sculo XX, as moas na China tinham os ps atados para que nocrescessem mais do que oito ou dez centmetros. O resultado dessa tortura eraconsiderado belo; os homens chegavam a encontrar prazer ertico no mau cheirodas ataduras que envolviam aqueles ps. Hoje em dia, as moas na China estose submetendo a outras formas de sofrimento, alongando suas canelas para ficar

    parecidas com as mulheres que aparecem na Vogue. Moas na ndia sujeitam-sea regimes de fome para reduzir suas figuras voluptuosas - to cheias e atraentesnas pinturas de Ajanta - s linhas angulosas de uma modelo parisiense. Asestrelas do cinema mudo no Ocidente eram celebradas por terem lbios menoresdo que seus olhos, mas hoje a moda pede bocas grandes e lbios para l decarnudos. Talvez a prxima celebridade carismtica tenha lbios como os de umlagarto e olhos como os de um papagaio. Ento, todas as mulheres com lbiosestufados tero que pagar para fazer reduo labial.

    Impermanncia uma boa notcia

    Buda no era um pessimista nem uma ave de mau agouro; ele erarealista, ao passo que nossa tendncia sermos escapistas. Quando afirmou quetodas as coisas compostas so impermanentes, ele no teve a inteno de trazeruma m notcia; um simples fato cientfico. Dependendo da perspectiva e dacompreenso que se tenha desse fato, ele pode vir a ser uma via de acesso inspirao, esperana, glria e sucesso. Por exemplo, na medida em que oaquecimento global e a pobreza so frutos de condies capitalistas insaciveis,

    esses infortnios podem ser revertidos, graas natureza impermanente dosfenmenos compostos. Em vez de depender de poderes sobrenaturais, como avontade de Deus, basta uma simples compreenso da natureza dos fenmenoscompostos para reverter essas tendncias negativas. Quando compreendemos osfenmenos, podemos manipul-los e, assim, afetar suas causas e condies. surpreendente o quanto um pequeno passo; como, por exemplo, apenas dizer noa sacos plsticos, pode fazer para adiar o aquecimento global.

    O reconhecimento da instabilidade das causas e condies nos leva a

    compreender que temos o poder de transformar os obstculos e tornar possvel oimpossvel. Isso vale para todos os setores da vida. Se voc no possui umaFerrari, pode muito bem criar condies para vir a ter uma. Enquanto existiremFerraris, h uma chance de voc ser dono de uma delas. Do mesmo modo, sevoc quiser viver por mais tempo, pode optar por deixar de fumar e se exercitarmais. Existe esperana razovel. A falta de esperaa - assim como o seu oposto,a esperana cega - resultado da crena na permanncia.

    Podemos mudar no s o mundo fsico, mas tambm nosso mundoemocional, por exemplo, transformando a agitao em paz de esprito, ao abrir

    mo da ambio, ou transformando a baixa auto-estima em confiana, ao agircom bondade e benemerncia. Se nos condicionarmos a ver o ponto de vista do

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    outro, conseguiremos cultivar a paz em nossos lares, com os nossos vizinhos ecom outros pases.

    Todos esses so exemplos de como podemos afetar os fenmenoscompostos em um nvel mundano. Sidarta tambm constatou que mesmo osnveis mais temidos de inferno e danao so impermanentes, visto que tambmso compostos. O inferno no existe como um estado permanente, em algumlugar embaixo da terra, onde os seres so condenados tortura eterna. Ele mais

    parecido com um pesadelo. Um sonho em que voc pisoteado por um elefanteacontece por uma srie de condies - em primeiro lugar, o sono; e, talvez,

    porque voc tenha um histrico negativo com elefantes. No importa a duraodo pesadelo; durante aquele perodo, voc vive no inferno. Depois, devido scausas e condies de um despertador, ou simplesmente porque seu sono chegouao fim, voc acorda. O sonho um inferno transitrio, semelhante ao nossoconceito do inferno verdadeiro.

    Igualmente, se algum tem dio de uma outra pessoa e se envolve ematos de agresso ou vingana, isso em si uma experincia de inferno. dio,manipulao poltica e vingana criam o inferno nesta Terra, por exemplo,quando um menino - mais baixo, mais magro e mais leve do que o rifle AK-47que carrega - no tem oportunidade, sequer por um dia, de brincar e comemorarseu aniversrio, porque est muito ocupado em ser soldado. Isso nada mais doque o inferno. Temos esses tipos de infernos devido a causas e condies e,

    portanto, podem os tambm sair desses infernos, fazendo uso do amor e dacompaixo como antdotos para a raiva e para o dio, como Buda prescreveu.

    O conceito de impermanncia no prenuncia o Apocalipse ouArmagedon, tampouco uma punio para os nossos pecados. No intrinsecamente negativo nem positivo; simplesmente, faz parte do processo decomposio das coisas. De modo geral, apreciamos apenas metade do ciclo daimpermanncia. Podemos aceitar o nascimento, mas no a morte; aceitar oganho, mas no a perda; o final dos exames, mas no o incio. A verdadeiraliberao vem da apreciao do ciclo como um todo, sem querer agarraraquelas coisas que consideramos agradveis. Ao recordar a mutabilidade e a

    impermanncia das causas e condies, quer positivas quer negativas, podemosus-las a nosso favor. A riqueza, a sade, a paz e a fama so to inconstantesquanto seus opostos. Com certeza, Sidarta no estava querendo favorecer o cuou as experincias celestiais, pois tam bm so impermanentes.

    Poderamos nos perguntar por que Sidarta disse que todas as coisascompostas so impermanentes. Por que no dizer apenas que todas as coisasso impermanentes? Seria correto dizer que todas as coisas so impermanentes,sem o qualificativo compostas. Entretanto, devemos usar todas as oportunidades

    para nos lembrar da primeira parte, da composio, para que possamos sustentara lgica que est por trs da afirmao. Composio um conceito muito

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    simples, mas tem tantas camadas que, para compreend-lo num nvel maisprofundo, precisamos dessa lembrana constante.

    Nada do que existe ou funciona no mundo - nenhum a criao daimaginao ou do plano fsico, nada daquilo que passa pela nossa mente, nemmesmo a prpria mente - ficar como est para sempre. As coisas podem durar

    pelo tempo que durar a nossa experincia desta existncia, ou mesmo at aprxima gerao; pode ser, tambm , que elas se dissolvam antes do esperado.De um jeito ou de outro, porm, a mudana inevitvel. No h nenhum grau de

    probabilidade ou de acaso presente. Se perder a esperana, lembre-se disso evoc no ter mais motivo para se sentir assim, porque seja l o que estiver

    provocando o seu desespero tambm vai mudar. Tudo ter de mudar. No inconcebvel que a Austrlia venha a ser parte da China, ou a Holanda parte daTurquia. No inconcebvel que voc venha a provocar a m orte de um outro serhumano, ou que venha a ficar preso a uma cadeira de rodas. Pode ser que vocse torne milionrio ou o salvador de toda a humanidade; o ganhador do Prmio

    obel da Paz ou um ser iluminado.

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    Emoo e Sofrimento

    Ao longo de muitos anos de contemplao e penitncia, Sidartapermaneceu firm e em sua determ inao de encontrar a causa fundamental dosofrimento e aliviar o seu sofrimento e o dos outros. Ele se dirigiu a Magada, naIndia central, para continuar suas prticas de meditao. No caminho, encontrouum vendedor de capim chamado Sotthiya, que lhe ofereceu um fardo de capimkusha. Sidarta viu naquele gesto um sinal auspicioso, pois na cultura da ndiaantiga, o capim kusha era considerado uma substncia de purificao. Em vez deseguir viagem, decidiu ficar ali mesmo para meditar. Encontrou um lugar parasentar sob a fronde de umaficus religiosa e cobriu as pedras do cho com ocapim kusha. Silenciosamente, fez um juramento:Este corpo pode apodrecer, euosso virar p, mas, at que encontre a resposta, no vou me levantar.

    Sentado em contemplao debaixo daquela rvore, Sidarta no passou

    despercebido. Mara, o rei dos demnios, ouviu o juramento de Sidarta e sentiu afora de sua deciso. Mara comeou a perder o sono, pois sabia que Sidarta tinhao potencial para lanar ao caos todo o seu domnio. Sendo um guerreiro e bomestrategista, Mara enviou cinco de suas filhas mais formosas para distrair eseduzir o prncipe. Ao. partir, as moas (chamadas apsaras ou ninfas) estavam

    plenamente convencidas de seu poder de seduo, mas, quando foram seaproximando de Sidarta em meditao, a beleza das filhas de Mara comeou adesaparecer. Elas se transformaram em velhas encarquilhadas, com verrugas norosto e pele malcheirosa. Sidarta no se moveu. As apsaras voltaramdesconsoladas ao encontro do pai, que ficou furioso. Como algum ousavarecusar suas filhas! Irado, Mara convocou seu squito, um enorme exrcitomunido de todos os tipos de armas imaginveis.

    O exrcito de Mara atacou com fora total. Para seu espanto, porm,todas as flechas, lanas, pedras e catapultas lanadas contra Sidarta setransformavam em um chuva de floresassim que se acercavam do alvo. Depoisde muitas e longas horas de batalha infrutfera, Mara e seu exrcito estavamesgotados e derrotados. Por fim, Mara foi at Sidarta e, com toda a diplomacia,tentou convenc-lo a desistir de sua busca. Sidarta disse que no podia desistir

    depois de haver tentado por tantas vidas. Mara perguntou: Como podemos tercerteza de que voc vem lutando h tanto tempo? Sidarta respondeu: Noreciso de confirmao; a terra minha testemunha. Com isso, tocou o cho, a

    terra tremeu, e Mara desapareceu no ter. Assim, Sidarta encontrou libertao ese tornou um Buda. Ele havia encontrado o caminho que corta o sofrimento pelaraiz, no apenas para si, mas para todas as pessoas. O lugar de sua ltima batalhacontra Mara chama-se hoje Bodh Gaya, e a rvore sob a qual ele se sentouchama-se rvore bodhi.

    Essa a histria que as mes budistas contam para os filhos h muitas

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    geraes.

    A definio de felicidade pessoal

    No seria apropriado perguntar a um budista: Qual o sentido davida?, porque a pergunta sugere que em algum lugar l fora, talvez em umacaverna ou no topo de uma montanha, exista um sentido ltimo. A perguntasugere que poderamos decodificar o segredo da vida estudando com uma pessoasantificada, lendo livros ou aperfeioando prticas esotricas. Se a questo toma

    por base a premissa de que, h muitas eras, algum ou algum deus comps odiagrama do sentido da vida, a pergunta testa. Os budistas no crem em umcriador todo-poderoso e no tm o conceito de que o sentido da vida foi, ou

    precisa ser, decidido ou definido.

    Uma pergunta mais apropriada para ser feita a um budista simplesmente: O que a vida? Partindo da compreenso da impermanncia, a

    resposta deveria ser bvia: ''A vida um enorme conjunto de fenmenoscompostos e, assim sendo, a vida impermanente. um constante mudar, umajuntamento de experincias transitrias. E embora as formas viventes existamem grande variedade, um trao comum a todos ns o fato de que nenhum ser vivo deseja sofrer. Todos querem ser felizes - dos

    presidentes e milionrios at as laboriosas formigas, abelhas, cam ares eborboletas.

    Por certo, a definio de sofrimento e felicidade difere muito entre

    os seres vivos, at mesmo dentro do reino humano, que relativamente pequeno.O que alguns definem como sofrimento a definio de felicidade paraoutros, e vice-versa. Para alguns seres humanos ser feliz significa apenasconseguir sobreviver; para outros, significa possuir setecentos pares de sapatos.H aqueles que ficam felizes por ter a imagem de David Beckham tatuada emseu bceps. s vezes, o preo a vida de um outro ser, por exemplo, quando afelicidade de uma pessoa depende de ela conseguir uma barbatana de tubaro,uma coxa de galinha ou o pnis de um tigre. Alguns consideram ertico o leveroar de uma pena, ao passo que outros preferem a sensao de um ralador de

    queijo, chicotes e correntes. O rei Eduardo VIII preferiu se casar com umaamericana divorciada a ostentar a coroa do poderoso Imprio Britnico.

    Mesmo para uma mesma pessoa, a definio de felicidade esofrimento oscila. Um momento de f lerte descomprometido pode subitamentese modificar quando a pessoa passa a querer um relacionamento mais srio; aesperana se transforma em medo. Para a criana que brinca na praia, construircastelos de areia significa felicidade. Na adolescncia, felicidade olhar asgarotas de biquni e os surfistas com o peito descoberto. Na meia-idade,felicidade ter dinheiro e sucesso profissional. E, quando se chega na casa dos

    oitenta, felicidade colecionar saleiros de porcelana. Para muitos, atender aessas infinitas e sempre cambiantes definies constitui o sentido da vida.

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    externos para alcanar a felicidade e superar o sofrimento, poucas vezes nosdando conta de que freqentemente esses mtodos trazem o oposto do resultado

    pretendido. Nossa dificuldade de adaptao cria um novo rol de aflies, porqueno s continuamos a sofrer, como tambm nos sentimos alienados de nossa

    prpria vida, incapazes de nos enquadrar no sistema.

    Algumas dessas definies culturais de felicidade funcionam at certoponto. De modo geral, ter um pouco de dinheiro no banco, um abrigoconfortvel, comida suficiente, calados decentes e outros confortos bsicos nosdeixam felizes.

    Entretanto, ossadhus na ndia e os eremitas errantes no Tibete sentem-sefelizes porque no precisam de chaveiro - no temem que seus bens sejamroubados porque nada possuem quetenha de ficar trancado chave.

    As definies de felicidade institucionalizadas

    Muito antes de chegar quele famoso lugar em Bodh Gaya, Sidarta haviase sentado debaixo de uma outra rvore por seis anos. Ele tinha emagrecido aoextremo, ingerindo uns poucos gros de arroz e umas poucas gotas de gua pordia. No tomava banho nem cortava as unhas e, desse modo, se tornou umexem plo para os demais companheiros que praticavam a busca espiritual. Sidartaera to disciplinado que os filhos dos vaqueiros faziam ccegas em suas orelhascom talos de capim e tocavam corneta na cara dele sem conseguir mov-lo. Umdia, porm, depois de anos e anos de enorme privao, ele compreendeu: Isto

    no est certo. Este um caminho extremo; s mais uma armadilha, como ascortess, os jardins com seus paves, e as colheres cravejadas de pedrasreeiosas. Sidarta resolveu sair daquele estado de penitncia e foi se banhar num

    rio prximo, chamado Nairanjana (hoje conhecido como Phalgu). Para espantoabsoluto de seus companheiros, ele aceitou um pouco de leite fresco oferecido

    por uma jovem pastora, cham ada Sujata. Diz-se que os companheiros oabandonaram, imaginando que Sidarta era uma influncia moral negativa, cujacompanhia obstruiria a prtica dos demais.

    Podemos entender por que aqueles ascetas se afastaram quando Sidartaquebrou os votos. Os homens sempre procuraram a felicidade, no s por meiode ganhos materiais, mas tambm por vias espirituais. Muito da histria domundo gira em tono da religio. As religies unem as pessoas com seuscaminhos iluminados e cdigos de conduta - o amor ao prximo, a prtica dagenerosidade, a tica da reciprocidade, a meditao, o jejum e o oferecimentode sacrifcios. Todavia, esses princpios aparentemente teis podem setransformar em dogmas extremados e puritanos, provocando sentimentosdesnecessrios de culpa e baixa auto-estima. No incomum vermos fiis que

    em sua arrogncia e total intolerncia menosprezam outras religies, utilizandosuas prprias crenas para justificar o genocdio cultural ou mesmo fsico.

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    Exemplos desse tipo de devoo destrutiva so numerosos e esto por toda parte.

    Os seres humanos valem-se no apenas das religies organizadas, mastambm da sabedoria convencional - ou mesmo desloganspolticos -, paraalcanar a felicidade e aliviar o sofrimento. Theodore Roosevelt disse: Se eu

    precisar escolher entre a retido e a paz, fico com a retido. Mas a retido de

    quem? Devemos seguir a interpretao de quem? O extremismo simplesmenteuma questo de escolher uma form a de retido e excluir todas as demais.

    Tomando um outro exemplo, fcil ver o que h de atraente nasabedoria de Confcio, como o respeito e a obedincia aos mais velhos e ocostume de no expor as faltas e desonras da famlia e da nao. Sua sabedoria muito pragmtica e pode ser til para quem quer funcionar no mundo. Essasnormas podem ser sbias, mas em muitos casos acarretaram conseqnciasextremamente negativas, como a censura e a represso de pontos de vistacontrrios. Por exemplo, a obsesso por manter as aparncias e obedecer aos

    mais velho resultou em sculos de enganos e mentiras - diante dos vizinhos e denaes inteiras.

    Dado esse histrico, no de surpreender a hipocrisia arraigada queexiste em muitos pases asiticos, como a China e Cingapura. Os lderes demuitos pases condenam o feudalismo e a monarquia e se gabam de ter adotadoa democracia ou o comunismo. No entanto, esses mesmos lderes, venerados porseus seguidores e cujos deslizes so mantidos em segredo, mantm-se no poderat o ltimo suspiro ou at que um herdeiro escolhido a dedo assuma o poder.

    Pouco mudou em relao ao antigo sistema feudal. A lei e a justia destinam-sea preservar a paz e a criar harmonia social; em muitos casos, porm, o sistemaudicirio penal funciona em favor dos desonestos e dos ricos, enquanto os pobres

    e os inocentes padecem sob leis injustas.

    Ns, seres humanos, nos ocupamos com a busca da felicidade e acessao do sofrimento mais do que com qualquer outra atividade, profisso oulazer, empregando inmeros mtodos e objetos. para isso que temoselevadores, laptops,pilhas recarregveis, lava-louas, torradeiras regulveis,

    cortadores pilha para os pelos do nariz, privadas com assento aquecido,novocana, telefones celulares, Viagra, carpetes e forraes... Mas,inevitavelmente, tais confortos trazem uma dose correspondente de dores decabea.

    As naes buscam a felicidade e a cessao do sofrimento em grandeescala, lutando por territrio, petrleo, espao, mercados financeiros e poder.Travam guerras preventivas para afastar a expectativa de sofrimento. Cada umde ns faz a mesma coisa ao utilizar a medicina preventiva, tomar vitaminas evacinas, fazer exames de sangue e tomografia computadorizada do corpo todo.Estamos procurando sinais de sofrimento iminente. E, uma vez encontrado o

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    sofrimento, imediatamente tentamos encontrar a cura. Ano aps ano, novastcnicas, remdios e livros de auto-ajuda procuram fornecer soluesduradouras para o sofrimento, de preferncia atacando o problema pela raiz.

    Sidarta tambm estava tentando eliminar o sofrimento pela raiz, mas noestava idealizando solues tais como iniciar uma revoluo poltica, migrar paraoutro planeta ou criar uma nova ordem econmica mundial. Ele no estavasequer pensando em criar uma religio ou um cdigo de conduta que

    propiciassem paz e harmonia. Sidarta explorou o sofrimento com a mente abertae, por meio de incansvel contemplao, descobriu que, no fundo, so as nossasemoes que provocam o sofrimento. Na realidade, elasso sofrimento. De umeito ou de outro, direta ou indiretamente, todas as emoes nascem do egosmo,

    no sentido de que implicam em apego ao eu. Alm disso, ele descobriu que, pormais reais que paream, as emoes no constituem uma parte intrnseca donosso ser. Elas no so inatas, nem tampouco alguma espcie de maldio ouimplante imposto por algum ou por algum deus. As emoes surgem quando

    determinadas causas e condies se renem, como, por exemplo, quando vocse precipita em pensar que algum est a critic-lo, ignor-lo ou priv-lo dealgum ganho. Ento, as emoes correspondentes vm tona. No momento emque aceitamos essas emoes, no momento em que entramos no jogo delas,

    perdem os a sanidade e a capacidade de percepo. Ficamos como que ligados auma tomada de 220 volts. Assim, Sidarta encontrou a soluo: conscinciadesperta. Se voc realmente deseja eliminar o sofrimento, precisa acordar aconscincia e prestar ateno s suas emoes, aprendendo a no ser envolvido

    pela tenso elevada e agitao que elas criam.

    Se voc examinar as emoes como Sidarta fez, se tentar identificar aorigem delas, vai descobrir que as emoes partem de uma compreensoequivocada, sendo, por conseguinte, fundamentalmente falhas. Todas asemoes so, basicamente, uma forma de preconceito. Em cada emoo hsempre um componente de julgamento.

    Por exemplo, uma tocha sendo girada a uma determinada velocidadeaparenta ser um crculo de fogo. No circo, as crianas inocentes e at alguns

    adultos acham o espetculo divertido e cativante. As crianas pequenas nodiferenciam a mo, o fogo e a tocha. Acreditam que o que vem seja real; soarrebatadas pela iluso de tica criada pelo aro de fogo. Enquanto dura aquelaviso, mesmo que seja por apenas um instante, elas ficam plena e

    profundam ente convencidas. De modo similar, somos enganados pela aparnciado nosso corpo. Quando olhamos para o corpo, no pensamos em termos decomponentes isolados: molculas, genes, veias e sangue. Pensamos no corpocomo um todo e, sobretudo, prejulgamos que ele seja um organismoverdadeiramente existente chamado corpo. Convencidos disso, primeirodesejamos ter um abdmen bem desenhado, mos artsticas, estatura imponente,

    belas feies ou uma forma curvilnea. Depois, ficamos obcecados e investimos

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    em mensalidades de academias, cremes hidratantes, na Dieta de South Beach,chs de emagrecimento, ioga, exerccios abdominais e leos aromticos.

    Exatamente como crianas que ficam absortas, empolgadas ou mesmoamedrontadas pelo aro de fogo, sentimos emoes que so provocadas pelaaparncia e pelo bem-estar do nosso corpo. Quando se trata do aro de fogo, emgeral os adultos sabem que aquilo uma mera iluso e no se perturbam. Umraciocnio elementar nos diz que o aro criado a partir da reunio de seuscomponentes: o movimento circular de uma mo que segura uma tocha acesa.Um irmo mais velho e esperto pode assumir um ar arrogante oucondescendente com o mais novo. No entanto, por conseguirmos ver o aro comoadultos amadurecidos, podemos compreender o fascnio da criana,especialmente se for noite e o espetculo vier acompanhado de bailarinos,msica hipntica e outras atraes. Ento, aquilo pode ser divertido at mesmo

    para ns, adultos, que conhecemos a qualidade essencialmente ilusria doespetculo. Segundo Sidarta, essa compreenso a semente da compaixo.

    A incontvel variedade de emoes

    medida que sua meditao se aprofundou, Sidarta passou a enxergar aqualidade essencialmente ilusria de todos os fenmenos. Com essacompreenso, pde refletir sobre sua vida pregressa no palcio, sobre as festas,os jardins com seus paves, os amigos e familiares. Viu que aquilo quechamamos famlia como uma pousada ou hotel onde diferentes viajantes sehospedam e formam um elo temporrio. Algum dia, esse conglomerado de seres

    se dispersa - na hora da morte, se no antes. Enquanto permanece junto, o grupopode criar laos de confiana, responsabilidade, amor e com partilharexperincias de sucesso e fracasso, das quais brota todo tipo de drama.

    Sidarta viu claramente como era fcil se deixar levar pela noo de umavida familiar idlica, pela idia de proximidade e por todos os fenmenosfascinantes da vida palaciana. Os outros no conseguiam ver o que ele via, ouver, como os adultos, que o aro de fogo ilusrio, apenas a reunio de partesdesprovidas de essncia. Entretanto, como um pai carinhoso, em vez demanifestar arrogncia ou condescendncia diante da fascinao das pessoas,Sidarta compreendeu que naquele ciclo no havia m al nem bem, no havia culpanem culpados; e isso o libertou para sentir apenas grande compaixo.

    Enxergando alm da superficialidade da vida palaciana, Sidarta agoraconseguia ver seu corpo fsico como desprovido de essncia. Para ele, o aro defogo e o corpo tm a m esma natureza. Na medida em que a lgum acredita queas coisas existem de verdade - seja por um m omento, seja para sempre -, essacrena est baseada num engano. O engano nada mais do que a falta deconscincia. E essa ausncia de conscincia o que os budistas chamam de

    ignorncia. dessa ignorncia que brotam as nossas emoes. Esse processo,que vai desde a perda de conscincia at o surgimento das emoes, pode ser

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    inteiram ente explicado pelas quatro verdades, como veremos.

    Existe uma variedade insondvel de emoes nesta esfera mundana. Acada momento, incontveis emoes so produzidas a partir de nossos erros deulgamento, preconceitos e ignorncia. Estamos familiarizados com o amor e

    com o dio, a culpa e a inocncia, a devoo, o pessimismo, a inveja e o orgulho,a vergonha e a tristeza, mas existem muitas outras. Algumas culturas tm

    palavras para designar certas emoes que no tm definio em outras culturase, portanto, no existem. Em algumas regies da sia, no h uma palavra quedesigne o amor romntico, ao passo que os espanhis tm vrias palavras paraidentificar diferentes tipos de amor. Segundo os budistas, h inmeras emoesque ainda no foram nomeadas em nenhuma lngua, e uma quantidade aindamaior de emoes que no se enquadram nas possibilidades de definio donosso mundo lgico. Algumas emoes so aparentemente racionais, mas amaioria delas irracional. Algumas emoes aparentemente pacficas tm suasrazes na agressividade. Outras, so quase imperceptveis. Podemos imaginar que

    uma pessoa seja completamente impassvel ou desinteressada, mas isso em sitambm uma emoo.

    As emoes podem ser infantis. Por exemplo, voc pode ficar com raivaporque uma pessoa no est com raiva, quando voc acha que ela deveria estar.Ou ento, num dia voc pode ficar contrariado porque sua companheira

    possessiva dem ais e, no outro, porque ela no suficientemente possessiva.Algumas emoes nos fazem rir, como no caso do prncipe Charles que, em ummomento de flerte clandestino, disse sua ento amante, Camilla Parker Bowles,

    que no se importaria em reencarnar como o absorvente dela. Algumasemoes se manifestam sob a forma de arrogncia, como no caso dosmoradores da Casa Branca que impem ao mundo sua idia de liberdade.Obrigar os outros a aceitar pontos de vista pessoais por meio de fora,chantagem, trapaa ou manipulao sutil, tambm faz parte da nossa atividadeemocional. No so poucos os cristos e m uulmanos que buscam ardentementeconverter os ateus e livr-los do fogo dos infernos e da danao, ao mesmotempo que os existencialistas se empenham em converter fiis em ateus. Asemoes podem se manifestar como um orgulho ridculo, como no caso dos

    indianos, que cultivam sentimentos patriticos por uma ndia que foi moldadapelos opressores britnicos. Muitos patriotas americanos sentiram-se os donos daverdade quando o presidente Bush, da ponte de comando do porta-avies USS

    braham Lincoln, declarou vitria sobre o Iraque, quando, na verdade, a guerramal havia comeado. O desejo desmedido por respeito uma emoo:considere a Malsia, Taiwan e a China competindo para ver quem consegueconstruir o edifcio mais alto do mundo, como se isso fosse uma prova devirilidade. As emoes podem ser doentias e pervertidas, levando pedofilia e

    bestialidade. Um homem chegou a pr um anncio na Internet procura deovens que quisessem ser mortos e comidos. Ele recebeu inmeras respostas e,

    de fato, assassinou e devorou um deles.

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    Descendo raiz: o Eu (inexistente)

    Todas essas vrias emoes e suas conseqncias provm de umacompreenso equivocada, e essa compreenso equivocada provm de umafonte, que a raiz de toda a ignorncia: o apego ao eu.

    Presumimos que cada um de ns um eu, que existe uma entidadechamada a minha pessoa. O eu, porm, apenas mais uma compreensoequivocada. De modo geral, fabricamos a noo de um eu que parece ser umaentidade slida. Somos condicionados a considerar essa noo como algoconcreto e real. Pensamos,Eu sou esta forma, levantando a mo. Pensamos,Eutenho forma; este o meu corpo. Pensamos, A forma sou eu; eu sou alto.Pensamos,Eu habito esta forma,aponando para o peito. Fazemos o mesmo comos sentimentos, percepes e aes.Eu tenho sentimentos; eu sou minhasercepes... Sidarta, porm, deu-se conta de que no existe, em lugar nenhum,

    uma entidade independente que corresponda ao conceito de eu, dentro do corpoou fora dele. Comoa iluso de tica do crculo de fogo, o eu ilusrio. Ele umafalcia - fundamentalmente um erro e, em ltima anlise, inexistente. Noentanto, do mesmo modo que podemos nos iludir com o aro de fogo, todos nosiludimos ao imaginar que somos o eu. Quando olhamos para o nosso corpo,sentimentos, percepes, aes e conscincia, vemos que so diferentescomponentes do que pensamos ser o nosso eu, mas, se formos examinar essescomponentes, verificaremos que o eu no reside em nenhum deles. O apego falcia do eu um ato de ridcula ignorncia; ele perpetua a ignorncia e leva atodo tipo de dor e decepo. Tudo o que fazemos na vida depende de como

    percebem os a nossa pessoa, o nosso eu; assim, se essa percepo estiver baseadaem uma compreenso errada, como inevitavelmente est, esse erro permeartudo o que fizerm os, virmos e vivenciarm os. No uma simples questo de umacriana que interpreta erroneamente a luz e o movimento; toda a nossa existnciaest assentada em premissas muito frgeis.

    No momento em que Sidarta descobriu que o eu no existia, descobriuque tampouco existia um mal dotado de existncia intrnseca - o que havia eraapenas a ignorncia. Especificamente, ele contemplou a ignorncia que cria o

    rtulo eu e o pendura em um grupo de fenmenos compostos, desprovidos dequalquer base, atribuindo importncia a esse eu e afligindo-se em proteg-lo.Essa ignorncia, ele constatou, conduz diretamente ao sofrimento e dor.

    Ignorncia simplesmente o desconhecimento dos fatos, a apreensoincorreta dos fatos ou o conhecimento incompleto dos fatos. Todas essas formasde ignorncia levam a uma compreenso ou interpretao erradas, a uma superou subestimativa. Imagine que voc esteja procurando um amigo e o veja, aolonge, no campo. Ao se aproximar, voc descobre que tomou um espantalho por

    seu amigo. Decerto, voc ficar decepcionado. No que um espantalhotravesso ou seu amigo tenham tentado sorrateiramente engan-lo; foi a sua

  • 8/10/2019 O Que Faz Voce Ser Budista - Dzongsar Jamyang Khyentse

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    prpria ignorncia que o traiu. Todas as nossas aes provenientes dessaignorncia tm um carter especulativo. Quando agimos sem entendimento oucom um entendimento incompleto, no h base para confiana. Nossainsegurana fundamental aparece e cria todas essas emoes, com e sem nome,reconhecidas ou no.

    O nico motivo que temos para nos sentir confiantes de que vamoschegar ao alto da escada ou de que o nosso avio vai decolar e pousar no destinocom segurana o fa to de estarmos imersos no doce embalo da ignorncia. Esseembalo, porm, no dura muito, pois ele nada mais do que uma constantesuperestimativa de que as probabilidades estejam a nosso favor, e umasubestimativa dos obstculos. claro, as causas e condies se aglutinam e ascoisas de fato acontecem como havamos previsto; tomamos, porm, esse tipo desucesso como algo lquido e certo, usando-o como prova de que no poderia serdiferente, de que nossas suposies so procedentes. Essas suposies, entretanto,so apenas combustvel para mal-entendidos. A cada vez que fazemos uma

    suposio - por exemplo, de que compreendemos nossos maridos ou mulheres -estamos nos expondo como uma ferida aberta. As suposies e expectativas quese apiam em uma outra pessoa ou coisa nos deixam vulnerveis. A qualquermomento, uma das incontveis contradies possveis pode vir tona e jogar salsobre essas suposies, e ento n