o problema moral · 2013-06-06 · t9 15p tugendhat, ernst o problema da moral / ernst tugendhat. -...

33

Upload: truongkhuong

Post on 30-Nov-2018

227 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O Problema da

MORAL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

CHANCELER - Dom Dadeus Grings REITOR - Norberto Francisco Rauch VICE-REITOR - Joaquim Clotet CONSELHO EDITORIAL

Antoninho Muza Naime Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Jayme Paviani Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva Regina Zilberman Telmo Berthold Urbano Zilles (Presidente) Vera Lúcia Strube de Lima

Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33

C.P. 1429 90619-900 Porto Alegre - RS

Fone/Fax.: (5 1) 3320-3523 E-mail: edipucrs @pucrs.br

www.pucrs.br/edipucrs/

ERNST TUGENDHAT

O Problema da

MORAL

L EDIPUCRS

PORTOALEGRE 20133

O Copyrigl~t de EDIPUCRS, 2003

T9 15p Tugendhat, Ernst O Problema da moral / Ernst Tugendhat. - Porto

Alegre : EDIPUCRS, 2003.

Apresenta palestra proferida na conferência inti- tulada "O Problema da Moral", realizada em 14 de maio de 2003, PUCRS, Porto Alegre, 2003.

1. Ética. 2. Filosofia. I. Título.

1 CDD 170

c Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa desta Editora

Capa: Agência Experimental - FAMECOS Diagramação: Cristina Mancini Berengan Revisão: Draiton Gonzaga de Souza Impressão: Gráfica EPECÊ, com filmes fornecidos

APRESENTAÇÃO DO EVENTO ................................... 07 Dr . Urbano Zilles

APRESENTAÇÃO DO AUTOR ...................................... 09 Dr . Draiton Gonzaga de Souza

O PROBLEMA DA MORAL ........................................... 13 Dr . Ernst Tugendhat

APRESENTAÇÃO DO EVENTO

Dv. Urbano Zilles

No dia 14 de maio de 2003, das 10h às 1 lh30min, no Auditório da Faculdade de Arquitetura (térreo do Prédio 9 da PUCRS), o eminente Prof. Dr. Ernst Tugendhat, professor emérito da Universidade de Berlim (Alemanha), proferiu, em um português claríssimo, a conferência intitulada Oproblema da moral. O Auditório com capacidade para mais de duzentas pessoas estava superlotado, e muitas pessoas não consegui- ram entrar.

O Planejamento Estratégico na PUCRS, já na primeira frase da formulação da missão, menciona a ética: "A PUCRS, fundamentada nos princípios da Ética e do Cristianismo (...)". Fala-se tanto sobre esse assunto, causando-se a impressão de que todos são especialistas nessa área. Porém, constata-se grande dificuldade, quando tentamos definir o que entende- mos por ética, assim como uma grande imprecisão no uso desse termo. Parece que estamos diante de algo semelhante ao que acontece com Santo Agostinho, quando é interrogado sobre o que seja o tempo. Se não me perguntam, diz ele, sei o que é; se me perguntam, não sei. Por isso, quer-se, através de algumas palestras, aprofundar a reflexão sobre questões tais como: o que é ética? Qual a diferença entre ética e moral? Pode existir uma ética não-religiosa? Como se relacionam ética e cristianismo? Quais são os "princípios" da ética? Co- mo se posiciona a ética frente às novas questões trazidas pela técnica e pela biotecnologia?

A palestra de Ernst Tugendhat aborda um ponto cen- tral da formulação da missão da PUCRS, implícito na palavra "fundamentada", e que é um dos grandes problemas que en- frentamos atualmente: o da fundamentação da ética. No que

vamos fundamentar proposições normativas do tipo "deves fazer isso", "não deves fazer aquilo"? Durante muitotempo, recorreu-se à natureza, à tradição e à autoridade para a fun- damentação de normas. Esse procedimento tornou-se, ao lon- go da história do pensamento humano, altamente problemáti- co. Como, então, fundamentar as normas? Aparece, também, uma outra alternativa de solução: a fundamentação da ética na religião. Mas se alguém não tem vinculação religiosa al- guma, isso significa que essa pessoa não pode agir eticamen- te?

Pelo fato de a reflexão sobre a ética ter recebido tanta importância no Planejamento da Universidade, a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação promoveu a palestra do insigne filósofo alemão, o segundo evento de uma série, que tem co- mo finalidade o aprofundamento da compreensão desse as- pecto fundamental da missão da PUCRS. O primeiro ocorrera em 18 de novembro de 2002, com a conferência "Ética na Universidade", proferida pela Profa. Dra. Adela Cortina (U- niversidade de Valência, Espanha). A próxima palestra dessa série promovida pela PRPPG ocorrerá no dia 25 de agosto de 2003, às 10 h, no Auditório da FACE (térreo do prédio 50 da PUCRS) e será ministrada pelo professor espanhol Dr. Diego Gracia Guillén, abordando questões de bioética.

Por meio da publicação desta palestra, precedida da apresentação da vida e obra do conferencista, a cargo do Prof. Dr. Draiton G. de Souza, coordenador do Programa de Pós- Graduação em Filosofia da PUCRS, queremos facultar o a- cesso à conferência do Prof. Tugendhat tanto àqueles que lhe assistiram como àqueles que estiveram impossibilitados de participar de tal evento, com o augúrio de que a leitura deste texto incite ao pensamento sobre uma questão que diz respei- to a todos nós, assim na vida particular como na profissional.

APRESENTAÇÃO DO AUTOR

Dr. Draiton Gonzaga de Souza

Ernst Tugendhat é, sem dúvida, um dos maiores filó- sofos contemporâneos, sendo o segundo filósofo alemão mais citado da atualidade (o primeiro é Jurgen Habermas). Nasceu em 1930, em Brno (Tchecoslováquia), transferindo-se, poste- riormente, com sua família, para a Suíça e depois para a Ve- nezuela. Estudou nas Universidades de Stanford (Estados Unidos) e de Freiburg (Alemanha), onde concluiu o doutora- do em 1956, com um trabalho sobre a filosofia aristotélica intitulado TIKATA TINOS. Uma investigação sobre estrutura e origem dos conceitos fundamentais de Aristóteles (TI KATA TINOS. Eine Untersuchung zu Strzlktur und Ursprung aristotelischer Grundbegriffe, 1958). A tese de habilitação foi escrita em Tubingen e teve como título O conceito de vevda- de enz Hzrsserl e Heidegger (Der Wahrheitsbegriff bei Hus- ser1 und Heidegger). Foi professor catedrático de Filosofia nas Universidades de Heidelberg (1966-1975) e de Berlim (1980-1992), depois de ter trabalhado, de 1975 a 1980, jun- tamente com Jurgen Habermas, no Instituto Max Planck de S tarnberg.

Esteve várias vezes no Brasil, ministrando cursos e palestras, e, em 1998, lecionou, a convite do Prof. Dr. Ernildo Stein, durante um semestre, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, do qual é professor visitante. Em abril e maio de 2003, ministrou, no referido PPG, um curso sobre o Livro azul de Wittgenstein.

Na sua produção filosófica, publicada em prestigiosas editoras alemãs, figuram obras que se tornaram clássicas, tais como as Lições introdutórias à j losoja analítica da lingua- gem e Autoconsciência e autodeterniiízação, que tratam, so-

bretudo, de problemas ligados à filosofia teórica. Após a palestra proferida na PUCRS, em 14.05.2003,

Prof. Tugendhat autografou o livro ~ z l o ~ o em Leticia, pu- blicado pela EDIPUCRS em 2002 e que pertence, por sua vez, às obras do autor que tratam de temas da filosofia prática (assim como Problemas da Ética, Ética e politica e Lições sobre Ética). Diálogo em Letícia, cuja tradução foi coordena- da pela Profa. Dra. Maria Clara Dias (UFRJ), ex-doutoranda do autor em Berlim, aborda temas altamente relevantes e atu- ais, tais como a questão da fundamentação da moral, do uni- versalismo moral, a questão da justiça e da corrupção, na forma de um diálogo que transcorre na cidade colombiana de Letícia. Publicada em 1997, essa obra constitui-se num exa- me crítico minucioso de posições defendidas pelo autor em obras anteriores; a propósito, a postura crítica e autocrítica é, notoriamente, um traço marcante das obras de Ernst Tugend- hat.

Algumas de suas obras já traduzidas para o português, além de Diálogo em Leticia (EDIPUCRS, 2002; Dialog in Leticia, 1997): Não somos de arame rígido (Ed. da ULBRA, 2002); O livro de Manzlel e Camila. Diúlogos sobre a moral (Ed. da UFG, 2002; Wie sollen wir handeln, Reclam, 2000); Lições sobre ética (Vozes, 1996; Vorlesztngen uber Ethik, Suhrkamp, 1993); Propedêutica lógico-seinântica (co-autora: Ursula Wolf, Vozes, 1997; Logisch-sen~antische Propüdezitik, Reclam. 1983) e Lições introdzrtórias à JilosoJia analítica da linguagem (tradução parcial, Ed. da UNIJUI, 1992; Vorle- szingen zzir Einführung in die sprachanalytische Philosophie, Suhrkamp, 1976).

Em espanhol, dispomos das seguintes obras: Ética -y

politica (Madrid: Tecnos, 1998; Ethik und Politik; Suhrkamp, 1992); Problemas (Barcelona: Gedisa, 2002; Aufsütze 1992- 2000, Suhrkamp, 2001); Ser, verdad, acción (Barcelona: Ge- disa, 1998; Plzilosophische Agfsatze, Suhrkamp, 1992); Pro-

blen~as de la ética (Barcelona: Crítica, 1988; Probleme der Ethik, Suhrkamp, 1984) e Autoconciencia e autodeterminaci- Ón (México: Fondo de Cultura Económica, 1993; Selbstbe- wusstsein und Selbstbestimrnung, Suhrkamp, 1979).

No segundo semestre deste ano, Prof. Tugendhat pu- blicará o livro Egocentricidade e mistica (Egozentrizitat und Mystik) pela renomada editora Beck, de Munique. A maioria das obras supracitadas está disponível na Biblioteca Central da PUCRS.

O PROBLEMA DA MORAL

Dr. Ernst Tugendhat

Nesta conferência, quero apresentar uma visão de con- junto de minha concepção da moral. Eu já fiz isso numa con- ferência que apresentei em Porto Alegre, há dois anos, e que agora está publicada numa coletânea de conferências sob o título Não somos de arame rígido. O que quero fazer aqui é apresentar a mesma concepção, mas com algumas modifica- ções que, em parte, se referem a um livro publicado, há dois anos, o qual retoma a minha posição contratualista, mas de uma maneira muito diferente. Eu vou referir-me algumas vezes a este livro, para contrastar com a minha posição. O autor chama-se Peter Stemmer, e o título da obra é Handeln zugunsten anderer (Agir em favor de outros). Como não te- nho muito tempo para expor, de uma maneira bem argumen- tada, a minha posição, vou dizer, em alguns casos, simples- mente que a minha opinião é tal e tal.

Num problema como este em que, em parte, se trata de esclarecer o que é o que uma palavra significa, em nosso caso, a palavra moral, o primeiro passo sempre tem de consistir em distinguir os diferentes sentidos em que se pode entender a palavra. Creio devermos distinguir em particular três sentidos em que se pode entender a palavra moral. Num primeiro sentido, moral significa um sistema de obrigações intersubjetivas. Este sentido é particularmente óbvio, quando dizemos que uma ação é imoral: isso significa que a ação transgride as no?mas que consideramos ser intersubjetiva- mente válidas.

Num segundo sentido, a palavra nzoral significa com- portamento altruísta. Vou chamar o primeiro sentido de ml e o segundo de m2. É fácil de ver que os dois conceitos coinci-

dem somente em parte. A maioria dos sistemas normativos morais contém só, parcialmente, exigências altruísta%-qor outro lado, existem ações altruístas que não são normativas, como, por exemplo, todas as ações altruístas de outros ani- mais, as quais não têm uma referência normativa. Essa distin- ção entre ml e m2 é importante, tanto na discussão da socio- biologia como também para distinguir diferentes motivos de ações humanas. Evidentemente, faz uma grande diferença, se uma ação altruísta é condicionada quimicamente ou pelo ins- tinto ou se, como entre os homens, é uma coisa livre e fun- ciona por normas ou por simpatia ou compaixão. Não tem sentido lutar por, se a moral humana é fundada sobre normas, ou, como Schopenhauer defendia, sobre a compaixão, porque são dois conceitos diferentes de moral. Depois, vamos ver que eles podem combinar-se, mas, para isso, é importante distingui-los, em primeiro lugar, como dois conceitos diferen- tes.

Existe um terceiro conceito fundamental, que deve- mos distinguir de ml e m2 e que significa qualquer coisa que uma pessoa crê dever fazer, como deve viver. A palavra de- ver é ambígua, porque pode ter o sentido intersubjetivo de ml, mas pode também simplesmente ter o sentido da pergun- ta: como é para mim bom viver, e, neste segundo caso, a pa- lavra dever não tem o sentido de uma obrigação. Vou falar, então, de um m3. Nesse sentido de m3, em geral, não é usada a palavra "moral", mas sim a palavra "ética". Considero o m3 como um conceito mais geral que ml, e, como já disse, ml e m2 se entrecruzam. De m3 não vou falar mais nesta palestra. Meu tema será ml, e depois vamos ver que ml não pode ser esclarecido, sem referir-se também a aspectos de m2.

Como então devemos entender a moral no sentido de ml? Esta será a única questão desta palestra. Esta pergunta equivale à pergunta de como devemos entender as palavras dever e ter que, quando as usamos moralmente. A minha res-

posta é a mesma que já dei na conferência anterior. Continuo tomando como ponto de partida o sentido em que se usa a palavra moral na etnologia, quando se pergunta em que con- siste a moral de uma sociedade. Diz-se que ela consiste na- quelas regularidades do comportamento que se baseiam na pressão social. Uma moral, nesse sentido, é um sistema de exigências recíprocas. Eu considero erradas todas as concep- ções de obrigação - como a de Kant -, que entendem a obri- gação moral sem reciprocidade e que supõem que o ter que tenha um sentido absoluto ou consista em racionalidade. So- ciedades humanas não podem sobreviver, exceto num sistema de obrigações recíprocas, diferentemente da situação em ou- tras espécies, onde o comportamento altruísta é determinado geneticamente e funciona por instinto. O que nos homens é determinado geneticamente é que eles têm a capacidade de aprender normas. Tanto para o indivíduo como para a socie- dade, isso significa uma maior liberdade e flexibilidade, os sistemas de normas podem mudar-se historicamente segundo as condições do meio social. Na evolução biológica isso sig- nifica uma vantagem.

Agora esses sistemas normativos não podem ser en- tendidos, exceto como sistemas de sanção recíproca. A san- ção recíproca é o que se quer dizer, quando se fala de pressão social. Reagimos com um afeto negativo, quando alguém transgride as normas. Tal afeto moral pode ser chamado de indignação. Como se trata de um afeto que qualquer pessoa da sociedade teria com qualquer outra, de um afeto comparti- lhado, também a pessoa transgressora tem esse afeto, quando outros transgridem e, por isso, tem um afeto negativo corres- pondente, quando ela mesma transgride; e esse fato pode ser chamado de culpa. No sentido de culpa, antecipa-se a indig- nação dos outros. Por isso, tem-se o sentimento de culpa tam- bém quando os outros não sabem que se tinha transgredido a norma. Assim, as normas se internalizain, gera-se o que se

chama a consciência. O conjunto de indignação e sentimento de culpa constitui o que-é a sanção em relação &s n o r m m o - rais. Alguns têm-me criticado por essa concepção de que as normas morais não podem ser entendidas sem a sanção afeti- va, mas, na minha opinião, não se pode entender sem ela ein que consiste o dever moral. Um tipo de dever ou obrigação só se pode entender, em se podendo dizer o que é o que vai su- ceder, se não se faz o que se deve fazer, e isso é, no caso es- pecial da moral, que os outros e a própria pessoa têm estes afetos.

Agora, se a moral é um sistema de exigências mútuas, então isso implica que se tem um conceito do que significa ser, nesse sentido, uma pessoa boa ou má. Moralmente bom é o membro de uma sociedade moral, quando ele se comporta como os membros o exigem mutuamente uns dos outros. Com isso, estão conectados os conceitos de louvor e repreen- são. A repreensão contém o fator afetivo da indignação. Mo- ral, então, está sempre relacionada a um nós: pode-se chamar isso de sociedade moral, e, se hoje tendemos a entender a moral como algo universal, temos de falar de uma sociedade moral universal.

Agora, a moral é um sistema que restringe a liberdade dos membros da sociedade; a moral é um peso que impomos a nós mutuamente. Dali se tem que entender que normas mo- rais só são aceitas pelos membros da sociedade, se eles crêem que as normas são justificadas.

Muitos não levam em consideração essa necessidade de justificação, por exemplo, quando simplesmente se fala de pressão social, e outros não o entendem bem e acreditam que um sistema normativo teria que ser justificado como tal. Normas não podem ser justificadas como tais, mas sim a al- guém, e, como devem ser recíprocas, elas têm que ser justifi- cadas reciprocamente. O que é que se tem que justificar? Não só que se tem que agir de uma certa maneira, senão também

que devem ser aceitas as normas. E isso, aceitar uma norma, significa estar disposto a louvar e repreender-se reciproca- mente em relação a elas, e isso significa que se tem o senti- mento de indignação, quando alguém as infringe. Aceitar um sistema de normas significa estar disposto a ter os sentimen- tos de indignação e culpa em relação a eles.

Parece-me importante que se veja que o fator afetivo, que pertence i moral, e o aspecto de justificação não estão em competição. O que se tem que justificar é precisamente ter esses sentimentos em relação com essas normas. O aspecto de justificação também esclarece o que significa ser autônomo no seu juízo moral, quer dizer independentemente do que os outros dizem. O que julga e age moralmente de uma maneira autônoma julga e age só assim, como ele mesmo considera ser justificável reciprocamente. Não creio que se pode enten- der a autonomia moral independentemente da reciprocidade de justificação, mas existe a diferença entre o que se crê ser justificável reciprocamente e o que é.

Na minha opinião, existem dois e somente dois tipos de justificação recíproca de normas: o religioso e o relaciona- do aos interesses dos membros da sociedade. O primeiro pode ser denominado de justificação vertical (ou autoritária), e o segundo de justificação horizontal. Em todas as sociedades tradicionais, a justificação era vertical. Nietzsche e Dostoi- ewski pensavam que, quando a justificação vertical se torna impossível, a moral simplesmente não é justificável, e muitos pensam assim ainda hoje. Nisso se pode ver em que grau se sente a moral como um peso e como uma coisa não-natural. Por outro lado, a justificação religiosa parece conduzir para além de si mesma, porque parece insatisfatório justificar o moralmente bom só autoritariamente. Pode-se perguntar: as normas são boas porque Deus as promulgou ou Deus as pro- mulgou porque são boas? No segundo caso, fica em aberto a pergunta de como se pode justificar que as normas são boas,

de modo que a justificação vertical conduz de per si à justifi- caqãcrhorizontal: -- ---

- - -

Na minha conferência anterior, tentei ilustrar a justifi- cação da moral, por meio de um exemplo em que uma criança pergunta a seus pais: por que tenho que ater-me às normas, ou formulado de outra maneira: por que os outros reagem com indignação, quando as infrinjo? Nesta pergunta da criança, pode-se ver que perguntar por uma justificação não é apenas uma coisa dos filósofos, mas que pertence também à consci- ência normal da moral. Na cultura moderna, deparamo-nos com a seguinte pergunta: como deve ser a resposta a esta per- gunta, num tempo em que não se pode mais recorrer a uma autoridade religiosa? Não creio que se pode entender essa questão corretamente, se não se parte dos esclarecimentos que eu acabo de fazer sobre a estrutura geral da moral no sen- tido de mi. A pergunta de como se tem que justificar uma moral, de uma maneira não-religiosa, tem que ser entendida como o segundo passo de uma questão, cujo primeiro passo consiste nos esclarecimentos gerais sobre em que consiste a estrutura de uma moral em geral. Geralmente os filósofos não fazem essa distinção e começam imediatamente com a se- gunda pergunta. O que é certo é que a segunda pergunta é a que nos interessa em primeiro lugar.

Poder-se-ia duvidar se é possível responder a esta se- gunda pergunta. Não se poderia dizer com Nietzsche que a moral desaparece, quando não a justificamos religiosamente? É isso o que se pode esclarecer com a ilustração da conversa entre a criança e seus pais. Uma vez que a justificação religi- osa é rejeitada, os pais poderiam perguntar à criança - e isso é a única coisa que eles podem agora fazer -: o que é o que tu mesmo queres? Quais são os recursos que a criança e que todos os seres humanos têm para querer uma moral? A essa pergunta quero responder, em variação do que disse na confe- rência anterior: a moral tem duas fontes não-religiosas: em

primeiro lugar, o interesse próprio e, em segundo, a simpatia e a compaixão; mas a primeira - o interesse próprio - tem a prioridade, não só porque se pode pressupor mais geralmente que todos a têm igualmente, mas também porque só a partir dela se pode entender a geração de um sistema normativo. Por isso, inicialmente, vou ater-me só a essa primeira fonte e perguntar até onde se chega assim e, posteriormente, recorre- rei ao aspecto da simpatia e da compaixão. Então os pais per- guntarão à criança: não queres tu mesma que exista uma norma que proíbe aos outros enganar-te, machucar-te, etc.? Isso é um fundamento do qual para quase todos os homens surge a disposição de aceitar normas que lhes impedem de ser desconsiderados, se os outros também aceitam essas normas. Pode-se falar de uma justificação baseada sobre os interesses egoístas. Normas morais são por definição normas recíprocas. Por isso, toda justificação de uma moral, também a religiosa, tem que ser recíproca. Mas o específico da justificação que se refere aos interesses egoístas é que tem que ser recíproca também neste outro sentido: que cada um está disposto a res- peitar os interesses dos outros sob a condição de os outros respeitarem os interesses dele. Aqui se podem esclarecer os diferentes sentidos em que uma moral é algo intersubjetivo: num primeiro sentido, toda moral é recíproca, porque consiste em exigências recíprocas, mas isso em si ainda não significa que o conteúdo do que se está exigindo consista só em respei- to mútuo. Numa moral religiosa, exige-se também uma certa maneira de comportamento do indivíduo para consigo mes- mo. Só quando a justificação é tal que se baseia unicamente sobre os interesses de cada um, a moral se reduz também em seu conteúdo a uma reciprocidade. O conteúdo agora só pode consistir em obrigações altruístas, obrigações para consigo mesmo agora não podem ser justificadas.

É a força da moral que se baseia sobre os interesses de todos que têm um fundamento egoísta para cada um. Agora já

vimos que toda moral em geral se relaciona também a uma idéia-de pessoa moralmente boa, quer dizer que tem-uma i- déia de louvor e de repreensão; e isso tem como conseqüência a geração de uma motivação moral. Todos os homens preci- sam de um sentimento de valor próprio, e esse valor próprio sempre depende do apreço dos outros ou pelo menos do pos- sível apreço dos outros. Em que grau se busca, em particular, o possível apreço moral dos outros, depende de cada um, mas, enquanto é assim, isso significa que a consciência moral tem um peso motivacional para o indivíduo. Esta é uma mo- tivação gerada pelo próprio sistema da moral. O que importa aqui é ver que, não obstante a moral ter uma base egoísta, a moral gera essa outra motivação que não é egoísta no sentido normal.

O que tenho que esclarecer, agora, é a estrutura da moral baseada sobre os interesses. Cada um só está disposto a aceitar as normas, se os outros também as aceitam: este é o aspecto contratualista dessa moral. É importante entender esse aspecto contratualista corretamente. Por um lado, não se pode pôr em dúvida esse elemento contratualista, pois se trata de um consenso condicional, e, por outro lado, se deve ver que o consenso moral se distingue de um contrato no sentido normal. O consenso moral não se refere, como num contrato, simplesmente a que se devem fazer ou não fazer certas coi- sas, senão que a gente se põe de acordo em louvar e repreen- der as mesmas coisas, e isso significa ter iguais sentimentos morais em relação h infração das normas. Isso significa que a gente se põe de acordo sobre um conceito de bom, um con- ceito em relação ao qual eles vão louvar e repreender-se mu- tuamente. Isso é um aspecto de toda moral, também da religi- osa. Mas, agora, o conceito de bom, de pessoa moralmente boa, tem que estar relacionado aos interesses dos membros da sociedade moral, e isso significa que o conceito de bom tem que ser relacionado ao conceito de "bom-para", de bom para

cada um. A partir disso, pode-se esclarecer a diferença entre o acordo moral e um contrato normal. Um contrato normal tem como conceito básico o conceito de bom para A, bom para B, etc., mas não um conceito comum de bom. O contrato se efe- tua, quando o que A oferece a B é suficientemente bom para B, e o que B oferece a A é suficientemente bom para A para entrar no contrato. Aqui não aparece o conceito de "bom" simples, e por isso não aparecem louvor, repreensão, senti- mentos morais. Os parceiros de um contrato não formam uma sociedade moral, eles não têm que coincidir em aprovar uma e a mesma coisa.

Então a diferença fundamental entre o consenso moral e um contrato consiste em que só o consenso moral se rela- ciona a um conceito de bom, mas o elemento contratual da moral contratualista - o que tem em comum com um contrato - é que também está baseado, como um contrato, sobre o que é bom para A, bom para B, etc.; do contrário, não se poderia justificar esta moral para cada um, não se poderia justificá-la reciprocamente. Mas o fato de o conceito de bom moral estar baseado sobre o conceito de bom para X não significa que pode ser reduzido a ele. Creio que a única maneira como os dois conceitos podem ser relacionados um ao outro é que devemos definir agora o que é moralmente bom como o que é igualmente bom para todos. Não seria suficiente dizer: o que é bom para todos, porque então poderia ser desigualmente bom para eles. Esse seria o caso de uma sociedade de castas, onde as normas em relação a alguns são diferentes ou menos estritas que em relação a outros. Nesse caso, a moral não po- deria ser justificada reciprocamente, não se chegaria a um consenso sobre ter os mesmos sentimentos morais, sobre con- siderar as mesmas coisas como más e boas, o que quer dizer que tal sociedade não teria a unidade duma sociedade moral. É, por conseguinte, necessário dizer: bom é o que é igualmen- te bom para todos, e por isso não se pode reduzir o conceito

de bom ao conceito de bom para X. Estamos aqui num ponto central. A razão por que a

palavra "igualmente" aparece aqui é que a moral tem que ser justificada reciprocamente ou, o que equivale à mesma coisa, porque uma sociedade moral só se constitui, se os seus mem- bros podem ter os mesmos sentimentos morais em relação hs mesmas normas e podem louvar e repreender os mesmos comportamentos. Isso significa que a origem da igualdade na moral se encontra no fato de os sentimentos morais serem sentimentos compartilhados.

Assim surge, na moral relacionada aos interesses, um conceito de justiça igualitária. Se o sistema não fosse igual- mente bom para todos, seria injusto; isso significa que uma parte das pessoas teria que aceitar essas normas por força, não se poderiam justificar a elas. Um contrato normal natu- ralmente não contém um conceito de justiça; aqui o decisivo é o que cada um pode oferecer e por isso o poder. Daqui se pode entender a diferença entre meu entendimento de uma moral contratualista e as teorias morais contratualistas de outros, em particular de Peter Stemmer e também de David Gauthier. Nenhum deles levou em consideração os sentimen- tos morais e os outros conceitos fundamentais da moral, o conceito de bom, de apreço moral, etc. Stemmer, por isso. siinplesmente declara que o conceito de justiça não tem um lugar na moral, enquanto Gauthier lhe dá um certo lugar, mas Stemmer e eu pensamos que Gauthier faz isso ilegitimamen- te.

Antes de prosseguir com o conceito de justiça, quero esclarecer que um sistema puramente contratual, como eles o defendem, isto é, um sistema contratual que não é moral, po- deria pensar-se e de fato tem lugar em certos comportamentos huinanos. Por exemplo, o comportamento entre as nações é. em grande medida, um comportamento puramente contratual e, por isso, determinado pelo poder dos mais fortes. Aqui me

posso referir a um conceito da sociobiologia, que foi introdu- zido por Robert Trivers. o conceito de altruísmo recíproco. No reino animal, existem espécies, nas quais os indivíduos são determinados geneticamente a executar atos altruístas, tanto em relação aos indivíduos da mesma espécie como também, em muitos casos, aos de outras espécies, mas só se os outros retribuem de uma certa maneira. Existe, por exem- plo, uma espécie de peixes pequenos que limpam a boca de certos peixes grandes e que, em contrapartida, não são devo- rados por estes. Nesses casos, existe uma simples troca de rendimentos altruístas, naturalmente sem sentimentos morais. Tal sistema recíproco é mantido sem sanções, é mantido sim- plesmente pela utilidade recíproca e pelo fato de que o que não coopera vai ser, por sua vez, descuidado. Uma reciproci- dade desse tipo ocorre esporadicamente também entre os se- res humanos. Quando ocorre entre estes, não tem um funda- mento genético, senão que depende de um verdadeiro contra- to, ainda que este não esteja baseado necessariamente num acordo explícito, senão que se realiza automaticainente. Um exemplo é o usar luz baixa no tráfego noturno dos automó- veis. Esse comportamento dos motoristas normalmente não está relacionado a normas morais, senão que depende sim- plesmente da expectativa da troca. Este é um caso especial por que a situação mesma produz uma certa igualdade: todos têm o mesmo interesse em que os outros usem luz baixa. Mas um sistema de altruísmo recíproco não contém um princípio de igualdade em si e, por isso, normalmente vai ser determi- nado pelo poder dos mais fortes. Em famílias e em outros espaços, aos quais o direito civil não chega, podem existir relações altruístas recíprocas sem 11lora1, determinadas pela pura reciprocidade e o poder. Peter Stemmer, na sua teoria moral, reduz a moral a um sistema de altruísmo recíproco, sem sentimentos morais e sem um conceito comum de bom; por isso, na minha opinião, ele fala impropriamente de obri-

gação. Eu não digo que relações humanas não podem ser as- sim, senão que então não são morais no sentido do que cha- mei mi. Podemos fazer um exercício mental, imaginando que houve um tempo em que os antecessores dos homens geneti- camente ainda não tinham a capacidade para os sentimentos morais, quer dizer, que ainda não puderam ter um sistema moral e sim puderam entrar em relações de altruísmo recípro- co sem repreensão e sem sentido de culpa, sem sentimentos compartilhados e sem a internalização das normas. Creio que se pode ver que, em relação a um sistema intersubjetivo desse tipo, um sistema moral, isto é, com sentimentos morais, etc., tem uma vantagem, e se poderia especular que é por isso que a capacidade para sentimentos morais foi desenvolvida na evolução biológica de nossos antecessores. A igualdade que contém a moral é para os mais fortes, por um lado, uma des- vantagem, mas, por outro, o poder contar com a internaliza- ção das normas e o ter sentimentos compartilhados conduzem a uma maior coesão social. Por isso, ainda é vantajoso para os mais fortes ser igualitários, pelo menos verbalmente.

Prossigo, agora, abordando o problema da justiça. Stemmer tem duas opiniões sobre justiça que eu con-

sidero erradas: primeiro, que justiça é um conceito que pode ser definido independentemente da moral. Segundo, ele crê, baseando-se em Aristóteles, que toda justiça tem um sentido proporcional, relativo a um critério. Em contraste, parece-me que o sentido de "justo" está intimamente ligado ao sentido de "moralmente bom". Toda moral, mesmo a religiosa, tem um conceito de "justo". A palavra "justo" se refere a um certo aspecto do conceito do moralmente bom, ao aspecto respei- tante ao equilíbrio entre os indivíduos. Em todo sistema de normas morais, o equilíbrio entre as pessoas tem que ser de- terminado de uma maneira ou de outra. Numa moral religio- sa, este equilíbrio é determinado pela autoridade religiosa, ao passo que na moral, que se justifica reciprocamente, em rela-

ção aos interesses, já que nessa justificação cada um tem va- lor igual, se gera um conceito de equilíbrio igualitário. A i- déia de uma justiça proporcional, segundo um critério, é se- cundária, porque alguém tem que decidir quais são os crité- rios decisivos. Aristóteles deixou a questão do critério em aberto. Numa moral relacionada aos interesses de todos, que é justificada reciprocamente, a questão de quais critérios são relevantes em quais situações, só pode ser determinada pelos membros da sociedade ou em referência a eles. Se se diz que não todos valem de modo igual, então se tem decidido isso previamente à justificação recíproca. Isso significa que a jus- tiça igualitária é mais fundamental que a justiça proporcional. Também quero observar que a discussão contemporânea so- bre justiça me parece infeliz, porque é relacionada unilate- ralmente à pergunta da distribuição de bens materiais. Isso pode conduzir à opinião estranha de que o justo consiste na desigualdade. Na Alemanha, publicou-se há pouco uma cole- tânea de ensaios com o título Igualdade ou Justiça. Mas o conceito de justiça não pode ser esclarecido, partindo-se do problema da distribuição de bens materiais. O lugar primário da justiça consiste na distribuição de direitos morais, e nin- guém hoje tem dúvida sobre se os direitos fundamentais de- vem ser distribuídos igualmente, por isso se chamam direitos humanos. No caso de uma distribuição de bens materiais, é verdade que a distribuição vai ser proporcional segundo al- gum critério, mas a pergunta sobre quem decide sobre o crité- rio é uma vez mais uma pergunta igualitária.

Já disse que a razão por que o conceito de justiça de- sapareceu na concepção contratualista de Stemmer é que ele, tal como o resto dos contratualistas, passa por cima dos sen- timentos morais e do conceito de boa pessoa e assim também do apreço e desprezo moral. É, de fato, claro que o altruísmo recíproco - assim como é definido na sociobiologia - não pode gerar uma idéia de justiça. Poder-se-ia perguntar tam-

bém se tal concepção do contratualismo moral pode sequer chegar até ao conceito de uma comunidade moral e de nor- mas. Parece-me característico que Stemmer e também Gau- thier sempre falam simplesmente de dois indivíduos A e B. Assim como o vê Stemmer, cada indivíduo, quando encontra outro, primeiro tem que se assegurar se as condições de uma reciprocidade estão dadas. Assim não se chega a um sistema normativo onde todos exigem de todos comportar-se de uma certa maneira.

Para entender isso, mesmo o meu próprio ponto de partida. como o descrevi até agora, poderia ser não-suficiente. Assim como eu apresentei a conversa dos pais com a criança, os pais esclarecem à criança, só que cada um tem um interes- se na institucionalização de certas normas. Dessarte, a situa- ção da criança em relação às normas fica subdeterminada. Numa sociedade moral não só se repreende, senão que se louva também, e são essas duas valorações, a negativa é a positiva, que todos os membros da sociedade moral exercem reciprocamente, pelas quais se gera uma sociedade moral. A criança se encontra numa rede de avaliações negativas e posi- tivas. O recurso ao que cada um quer egoisticamente é neces- sário para excluir aquelas normas que não estão relacionadas aos interesses. Porém, a maneira como, dentro de uma socie- dade, cada um se relaciona aos outros não se reduz a exigên- cias, mas contém igualmente a disposição ao reconhecimento, ao apreço moral igualmente como ao desprezo. Sem esse as- pecto reforçante, não se pode entender como o tecido norma- tivo de uma sociedade moral se faz. Nesse tecido entram, numa moral relacionada aos interesses, não só os motivos egoístas de cada ator, senão também os interesses altruístas dos espectadores; e esses interesses altruístas dos espectado- res conduzem o ator a uma motivação egoísta de um segundo nível de ser apreciado moralmente. A motivação do especta- dor é naturalmente diferente da motivação do ator: como es-

pectador, a gente não tem um motivo egoísta contrário à ação moral, a gente em seu papel de espectador simplesmente tem o interesse em que os outros ajam moralmente bem. Isso sig- nifica que, no tecido de uma moral contratualista, essa atitude de cada um como espectador também entra. E sem esse fator, não se pode explicar a geração do tecido de normas de uma sociedade moral.

Isso nos leva a um outro aspecto. Já disse, no começo, que uma moral não-religiosa tem duas fontes, o interesse ego- ísta, por um lado, e a simpatia e a compaixão, por outro. O problema com a compaixão é que ela só pode ser moralmente relevante, se for generalizada. Eu posso deixar aberta a per- gunta se existem pessoas que, por natureza, têm uma disposi- ção geral de serem compassivas. Mas, de qualquer maneira, para a compaixão ser um elemento na moral, necessita-se de um fator que, se não a gera, pelo menos a reforça, e isso me parecem ser precisamente os membros da sociedade moral em seu papel como espectadores. Todos, como espectadores, temos o interesse de reforçar o agir moral dos outros. Lou- vamos os outros no grau em que agem altruisticamente; e, como a compaixão é um motivo para o comportamento altru- ísta, ela é incluída no louvor moral e é, além disso, generali- zada na maneira que tem que ser no contexto moral. Natu- ralmente nem todas as ações morais se podem referir ao so- frimento ou possível sofrimento dos outros, mas a maioria. Consideramos uma pessoa que observa as normas contratuais, não só por motivos contratuais, senão também por compai- xão, como moralmente melhor; e aqui se pode acrescentar tudo o que Schopenhauer disse em favor da compaixão. Mas Schopenhauer não viu o entrelaçamento entre compaixão e moral contratualista (e nenhuma outra pessoa o viu). Ser compassivo, intensificar e generalizar a própria disposição para a compaixão se faz uma obrigação moral.

Incluir a compaixão na moral contratualista conduz a

mais um outro passo. Uma vez que a compaixão é generali- zada de tal maneira que funciona como base adicional para a moral, essa generalização não se pode conter nos limites do contratual. Uma vez que a capacidade de compaixão é reco- nhecida como qualidade de um bom caráter moral, isso cons- titui um potencial de generalização que tem que ampliar a moral relacionada aos interesses além dos limites estreitos do contratual.

Tem-se que ver isso em dois passos. O primeiro diz respeito à ampliação da moral contratual a todos os que po- dem e querem participar dela. Enquanto, na minha opinião, é fácil de ver-se que a moral contratual tem que ser igualitária, não é tão fácil de ver-se que também tem que ser universal, não é tão fácil de ver-se que estar disposto a ampliar a moral para além do próprio grupo é, por sua vez, uma obrigação moral. Na minha conferência anterior, fracassei nessa dificul- dade. Peter Stemmer declara que entrar numa sociedade mo- ral com outros só é racional quando eles têm o poder de pre- judicar-nos. Não estou seguro se esse argumento de Stemmer pode ser rejeitado numa posição puramente contratualista. Não creio que Stemmer percebeu suficientemente as conse- qüências dessa concepção. Se fosse assim, não seria imoral atacar um país frágil, e a mesma coisa se aplicaria nas rela- ções individuais. Parece que uma moral contratualista só po- de ser entendida como uma moral geral, quando se combina com aquela generalidade que está contida na simpatia genera- lizada. Seria a generalidade da simpatia que impediria limitar a generalidade contratual arbitrariamente e que assim condu- ziria à universalidade da moral.

Este foi o primeiro passo. Ele se refere só àquela uni- versalização, que contém todos os que podem e querem parti- cipar na sociedade moral. Mas a compaixão, uma vez que é generalizada, se estende além dos limites da sociedade moral com suas exigências recíprocas. Uma vez que se vê a com-

paixão generalizada como virtude moral, esta virtude pode estender-se a todos os que são possíveis objetos de compai- xão, quer dizer a todos os homens que não são - ou ainda não são - capazes de entrar num consenso moral, e não só aos homens, senão a todos os seres que podem sofrer, quer dizer também aos animais. Aqui surge a questão em que grau a obrigação moral, que consiste em exigências recíprocas, pode estender-se além da dimensão de reciprocidade. Em princí- pio, isso é possível: já expliquei, no começo da conferência, que a intersubjetividade das exigências não implica que tam- bém os conteúdos só possam ser recíprocos. A moral religio- sa não se restringiu a obrigações recíprocas. Porém, a pergun- ta é se as obrigações podem ter um conteúdo que vá além da reciprocidade numa moral que é justificada contratualmente. Agora vimos que, em tal moral, também o elemento da com- paixão generalizada fica incluído como uma coisa moralmen- te exigida, mas não sei como se pode decidir sobre se e em que grau a compaixão pode ampliar a extensão da moral para além do que pode ser recíproco. A única coisa que me parece certa é que a categoria "homens" não pode servir como crité- rio. A idéia de que um membro da espécie humana tem que ser um objeto de respeito moral, também quando existe em estado de embrião, não se pode entender nem de uma nem da outra fonte da moral, e só se pode entendê-la como resquício da tradição judaico-cristã, para a qual todos os homens têm uma situação privilegiada, por serem criados à imagem de Deus.

Stemmer tentou reduzir a moral a um mínimo contra- tual, no qual teria que parecer irracional a cada um não in- gressar nela. Mas, em primeiro lugar, creio ser uma ilusão pensar que jamais pode ser prudencialmente necessário entrar numa moral, não importa quão estreitamente é concebida; em segundo lugar, creio que a estrutura de uma sociedade moral nos obriga a conceber a moral mais amplamente do que

Stemmer ou Gauthier o fazem; em terceiro lugar, creio ter demonstrado que a própria moral contratual inclui a compai- xão generalizada, e, em quarto lugar, parece-me natural que não se possa definir duma maneira unívoca o âmbito da mo- ral. O único elemento determinante aqui é a capacidade hu- mana, fundada geneticamente, de entrar, com base na sua disposição para os sentimentos morais, em sistemas de exi- gências recíprocas que têm que ser justificados reciprocamen- te. Tal justificação não pode ser pendurada na razão e, quan- do se prescinde de justificações religiosas, nem pode ser pen- durada no céu, e assim parece natural que os homens sempre vão brigar sobre o âmbito da moral. Essa disputa tem certos pontos de apoio, mas deixaríamos de ser homens, se essa dis- puta se pudesse decidir de uma maneira definitiva. E como, em particular, a capacidade à compaixão nos homens não é igual, sempre vamos ter o conflito entre aqueles que William James designou como os duros e aqueles que designou como os brandos.