o percurso composicional de giacinto scelsi

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  • 7/28/2019 O Percurso Composicional de Giacinto Scelsi

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    ANDR RICARDO SIQUEIRA

    O PERCURSO COMPOSICIONAL DE GIACINTO SCELSI:IMPROVISAO, ORIENTALISMO E ESCRITURA.

    BELO HORIZONTE2006

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    ANDR RICARDO SIQUEIRA

    O PERCURSO COMPOSICIONAL DE GIACINTO SCELSI:IMPROVISAO, ORIENTALISMO E ESCRITURA.

    Dissertao apresentada Banca Examinadora daUniversidade Federal de Minas Gerais, comoexigncia parcial para a obteno do ttulo deMESTRE em Msica, rea de concentrao emEstudos das Prticas Musicais, sob a orientao daProf Doutora Sandra Loureiro de Freitas Reis.

    Belo Horizonte2006

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    COMISSO EXAMINADORA

    ___________________________

    Prof. Doutora Sandra Loureiro de Freitas Reis

    Universidade Federal de Minas Gerais

    ___________________________

    Prof. Doutor Oiliam Lanna.Universidade Federal de Minas Gerais

    ___________________________

    Prof. Doutor Renato de Mello.

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Belo Horizonte, 22 de Fevereiro de 2006.

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    A DANIELE E PEDRO.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, por tudo.

    Aos meus pais, por me ensinarem que possvel romper a ordem estabelecida.

    A Daniele, minha companheira, pela imensa pacincia e apoio.

    Ao meu filho Pedro, por me fazer, com um simples sorriso, acreditar.

    minha orientadora, Sandra Loureiro que, com sua calma e sapincia, aceitou me

    orientar, pessoa fundamental para a concluso deste trabalho.

    Aos doutores, Carlos Palombini, Fausto Borem, Maurcio Loureiro e Srgio Freire,por suas contribuies.

    Aos amigos Fernando Kozu, Mrio Loureiro e Paulo Estevo, motoresindispensveis de toda minha inquietao musical.

    A Oiliam Lanna, Silvio Ferraz, Renato de Mello e Roberto Victrio, pelas inmerascontribuies, conversas e motivaes, todas oferecidas sempre com muito carinhoe desprendimento.

    Aos professores do Curso de Msica da Universidade Estadual de Londrina, aosquais devo grande parte de minhas concepes de mundo.

    Aos professores, alunos e funcionrios da Universidade Federal de Minas Gerais,em especial, Edilene de Oliveira, por todo o suporte oferecido.

    Agradeo, de modo muito carinhoso, Fundao Isabella Scelsi, de Roma, pelaremessa de vrios materiais utilizados nesta pesquisa e, de modo muito especial,ao senhor Luciano Martinis, que esteve sempre pronto a colaborar, no acesso aos

    raros textos de Scelsi.A CAPES, pela bolsa concedida.

    A todos aqueles que, de maneira direta ou indireta, contribuiram para este trabalho.

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    H muito tempo atrs, na Prsia, havia um flautista que tocava sempre a mesmanota. Depois de haver suportado, por vinte anos, com pacincia e discrio, sua

    mulher ressaltando-lhe que todos os outros msicos utilizavam com sucessodiversos sons, ele lhe responde, um dia, que no o ignorava mas que j havia

    encontrado a nota certa, enquanto os outros ainda a estavam procurando.

    Rino Rossi

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    SIQUEIRA, Andr R. O Percurso Composicional de Giacinto Scelsi:improvisao, orientalismo e escritura. 2006. Dissertao (Mestrado em Msica) Universidade Federal de Minas Gerais.

    RESUMO

    Esta dissertao tem, como propsito, discutir a vida e a obra do compositor italiano Giacinto Scelsi, apartir da anlise de seu pensamento esttico e composicional, tendo por base seus textos e suamsica. O desenvolvimento de sua obra passa pela absoro de conceitos orientais, culminando naescolha da improvisao como principal ferramenta composicional. Seu pensamento esttico ecomposicional peculiar levou-nos escolha de trabalhar sobre seus textos originais, na tentativa deque o processo analtico sobre o compositor fosse desenvolvido a partir de seu prprio discurso. Osconceitos de escritura em Roland Barthes e de orientalismo em Edward Said formam a basemetodolgica para as discusses referentes ruptura do compositor com a vanguarda hegemnicado perodo ps-guerra. A teoria tripartite de Jean Molino, desenvolvida por Jean-Jacques Nattiez,tambm tangencia a anlise de seu procedimento composicional baseado no conceito de medium.

    Estas abordagens indicam novas possibilidades de interpretao da obra do compositor que, emboraainda pouco conhecido, torna-se uma importante referncia dentro da msica contempornea.

    Palavras-chave: Giacinto Scelsi, composio, improvisao, orientalismo, anlisemusical.

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    SIQUEIRA, Andr R. The Compositional Path of Giacinto Scelsi: improvisation,orientalism and escriture. 2006. Dissertation (Mestrado em Msica) UniversidadeFederal de Minas Gerais.

    ABSTRACT

    The aim of this dissertation is to discuss the life and the work of the italian composer Giacinto Scelsi,on the grounds of an analysis of his aesthetic and compositional thinking taken from his texts andmusic. The development of his work can be traced starting from his appropriation of easternphilosophical concepts and culminating with the choice of improvisation as his main compositionaltool. His peculiar aesthetical and compositional thinking led us to choice to work on his original texts,in the attempt to develop the analytical process of the composer directly from his own discourse. TheRoland Barthess concept of writing and the Edward Saids concept of orientalism, both form themethodological basis for the discussion on Scelsis rupture with the postwar hegemonic forefront. Thetripartite theory of Jean Molino, further extended by Jean-Jacques Nattiez, also permeates theanalysis of his compositional proceeding based on the concept of medium. We believe that theseapproaches provide new possibilities of interpretation of his compositions, which, although not yet well

    known by the majority, constitutes an important reference within the modern (contemporaneous)music.

    Keywords: Giacinto Scelsi, musical composition, musical improvisation, orientalism,musical analysis.

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    SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................1

    Etapas de um percurso composicional.........................................................2

    Relevncia do estudo......................................................................................4

    Objetos de pesquisa........................................................................................4

    Problemas.........................................................................................................5

    1. GIACINTO SCELSI: COMPOSITOR CONTEMPORNEO

    1.1 Dados biogrficos...........................................................................................9

    1.2 Reviso bibliogrfica....................................................................................24

    1.2.1 Dicionrios..........................................................................................24

    1.2.2 Textos biogrficos e de anlise.........................................................33

    1.2.3 Textos referentes msica espectral...............................................44

    1.3 Metodologia de anlise e seus fundamentos tericos..............................46

    2. IMPROVISAO

    2.1 Improvisao eperformance musical.........................................................50

    2.2 Improvisao como geradora da obra em Scelsi......................................54

    2.3 A escolha da improvisao..........................................................................59

    3. ORIENTALISMO

    3.1 Orientalismo..................................................................................................74

    3.2 Orientalismo e estilo musical......................................................................76

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    3.3 O orientalismo de Scelsi..............................................................................81

    4. ESCRITURA.........................................................................................................98

    5. CONCLUSO.....................................................................................................108

    BIBLIOGRAFIA........................................................................................................112

    ANEXOS..................................................................................................................120

    POSFCIO...............................................................................................................131

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    O Percurso Composicional de Giacinto Scelsi:improvisao, orientalismo e escritura.

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    INTRODUO

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    INTRODUO

    O desenvolvimento da msica no sculo XX apresenta-se como uma teia complexa

    e multifacetada de tendncias dentro das quais, cada compositor parece ser um

    universo particular. A imploso dos sistemas que determinavam de certo modo a

    criao artstica, no foi uma exclusividade da msica. As cincias e a filosofia

    conviveram com as mesmas rupturas e partilharam as mesmas dvidas e anseios. O

    ps-guerra, no caso da msica, estilhaou ainda mais uma matria j pouco

    uniforme e o surgimento das tecnologias de gravao, processamento, anlise e

    sntese do som, projetaram na conscincia coletiva do fenmeno musical uma

    escuta e uma viso sem precedentes na histria. Nesse terreno catico todas aspossibilidades surgem em estado latente.

    Ocorre ento, uma tentativa desesperada de salvar a msica, neste caso, uma

    msica especfica, cuja tradio remonta ao surgimento da polifonia e que, nos

    perodos posteriores, teve na tradio germnica sua perpetuao. Relega-se, a

    partir disto, ao segundo plano outras tantas msicas quantas seriam possveis

    dentro das constelaes de compositores.

    No pretendemos, a partir deste estudo, fazer justia aos que foram silenciados

    pelo cnone, mas, atravs de um compositor especfico, e at pouco tempo

    desconhecido, tentaremos a talvez pretensiosa tarefa de apresentar outras formas

    possveis de se vivenciar a msica e o som. O que Scelsi nos mostra que, em

    plena segunda metade do sculo XX, onde as estruturas e o racionalismo foram

    dominantes, foi possvel realizar obras de arte a partir de um conceito praticamenteesquecido, o de definir-se como intermedirio, um medium, longe da pretensiosa

    exaltao do ego.

    Sobre esta base espiritualista e orientalista, Scelsi conseguiu traar uma linha de

    fuga s correntes hegemnicas, mesmo que isto tenha lhe custado alguns anos de

    anonimato, fato que, na realidade, ao que tudo indica, foi intencional. Sua obra

    despontou, na dcada de oitenta do sculo passado, como precursora de uma

    msica processualmente avanada e conceitualmente voltada para seu elemento

    primordial, ou seja, a msica feita a partir de sua matria prima, o som e seu

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    espectro. O estudo de Scelsi sobre o som, ou melhor, seu procedimento de escuta

    atenta aos detalhes timbristicos do som, projeta-se trinta anos frente de seu tempo.

    Sua novidade no est s no tipo de controle sobre o material ou no modo

    improvisativo de criar suas obras, mas na atitude de tratar o som como um universo

    constitutivo de todas as possibilidades musicais latentes. O que mais chama a

    ateno, neste caso, como o interesse de Scelsi pelo fenmeno sonoro em si

    levou-o a um completo reestabelecimento de suas relaes com a composio

    musical e com a arte de maneira geral.

    Este trabalho procura mostrar, a partir de textos escritos pelo prprio compositor, em

    que medida se operou sua ruptura com a vanguarda hegemnica e como ocorreusua aproximao e seu interesse pelas filosofias orientais e o ocultismo.

    Gostaramos de ter tido tempo para, de modo mais profundo, debruar-nos sobre

    suas partituras e verificar, mais detalhadadamente, nossas suposies sobre como o

    procedimento composicional, baseado na improvisao, interferiu na feitura das

    obras.

    Lembramos tambm que, apesar de Scelsi ser conhecido como o homem da notarepetida, sua obra no se faz somente de sons reiterados, mas tambm de

    belssimas melodias (no sentido tradicional), as quais remetem ao tempo

    encantatrio e aos fluxos no mensurveis dos mantras. A partir de sua busca

    espiritual, analisaremos sua obra. Mesmo sendo possvel encontrar padres de

    repeties e sons reiterados, esquemas numricos e citaes, o que procuramos

    deixar transparecer aqui, a atitude criadora de Scelsi ao no se considerar um

    compositor, mas sim um intermedirio entre dois mundos.

    Etapas de um percurso composicional

    O compositor italiano Giacinto Scelsi (19051988) tornou-se um caso particular

    dentro da msica contempornea. At a metade do sculo, utilizou vrios sistemas

    composicionais sendo que, ao final dos anos quarenta, j havia composto dezenas

    de obras baseadas no atonalismo livre, no dodecafonismo e nos procedimentos

    estilsticos de Scriabin e do futurismo. Depois de permanecer oculto por

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    aproximadamente trinta anos, foi "redescoberto", no final da dcada de 70, por um

    grupo de compositores que o tiveram como inspirao para uma nova escola

    composicional: o espectralismo.1

    Aps um colapso mental sofrido na dcada de 40, ocorreu uma ruptura em sua vida

    e, conseqentemente, em sua obra, apresentou-se uma completa reformulao de

    seus procedimentos composicionais, que passaram a ser baseados na escuta

    detalhada do som, provvel reflexo de seu profundo interesse por filosofias orientais

    e prticas meditativas. Esta nova postura conduziu-o a uma subverso do conceito

    de composio como comumente entendido. Sua tarefa no seria simplesmente a

    de componere, ou seja, de juntar partes, mas de se transformar em um veculo, ummeio para manifestaes extrasensoriais que, segundo ele, atravessam o verdadeiro

    artista no momento da criao.

    Relacionada a esta crise e ao conceito de medium, exposto acima, est talvez a

    maior ruptura causada por Scelsi: o mergulho no interior do som, atravs da

    reiterao exaustiva de uma mesma nota, desenvolvida composicionalmente pela

    escuta atenta de detalhes da srie harmnica2

    e a improvisao, vista como o nicomeio possvel de captar a fora csmica que atravessa o homem, no instante da

    criao artstica.

    As obras produzidas aps os anos cinqenta surgiram a partir de improvisaes

    gravadas em fita magntica e transcritas, posteriormente, por uma equipe de

    msicos. Analisaremos este procedimento luz do conceito de escritura,

    desenvolvido por Roland BARTHES (2004).

    3

    Estas improvisaes soacompanhadas de um discurso de supresso do ego, no qual Scelsi se considera

    um simples intermedirio entre dois mundos, um receptor. Este discurso tambm

    1 Sobre msica espectral, ver: CASTANET (1989), ANDERSON (2000), FINEBERG (1999).2 Para Silvio Ferraz: "Suas obras so construdas a partir de repetio de uma nota, um cluster, umgrupo de notas, sempre bastante limitado, que deixa a cada repetio transvasar suas diferenas:

    Scelsi trabalha como um entalhador de detalhes espectrais do material repetido. E, com isto, cadarepetio revela o objeto reiterado, mas tambm uma srie de outros objetos que estavamescondidos na leitura que o compositor faz de seu ponto de partida"(FERRAZ, 1998, p. 77).3 A data de publicao do original francs : 1953.

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    ser comentado a partir do conceito de orientalismo desenvolvido por Edward SAID

    (1990).

    Tendo sido tambm um tipo sui generis de orientalista, Scelsi traduz em seu

    percurso composicional a busca potica pela msica oculta dentro do prprio som,

    onde os conceitos de forma, estrutura e organizao sucumbem ao conceito de

    energia do som, fora csmica do som, nas palavras do prprio Scelsi: " somente

    o som que conta, mais do que sua organizao"(SCELSI, 1993).

    Relevncia do estudo

    Esta pesquisa se desenvolve no mbito da hermenutica, onde os textos de Giacinto

    Scelsi sero analisados com o objetivo de uma melhor compreenso de sua obra

    musical. No existe no Brasil nenhuma publicao de carter monogrfico relativa ao

    compositor, ainda pouco conhecido, mesmo dentro das Universidades e dos crculos

    da msica contempornea. Com este trabalho, pretende-se facilitar o acesso aos

    escritos de Scelsi que, alm de raros, ainda no foram traduzidos para o portugus.

    Objetos de pesquisa

    A pesquisa tem como base, os textos originais de Scelsi, subdivididos em trs

    diferentes categorias:

    Textos poticos: Scelsi escreveu ao todo seis livros de poesia: Extraits de son

    journal (RomaVeneza, 1928), Le poids net (Paris, 1949), La conscience aigu(Paris, 1962), Lhomme aux chapeaux (RomaVeneza, 1985), Cercles (Roma

    Veneza, 1986), e Octologo (RomaVeneza, 1987).

    Textos de esttica: So os textos enfocados de modo mais direto nesta pesquisa.

    Nestes textos, Scelsi explica seus procedimentos composicionais, justificando a

    escolha da improvisao como geradora da maior parte de sua obra e explicando

    sua preocupao com mincias internas do som. Alguns destes textos se encontram

    publicados como livros: Art et connaissance (RomaVeneza, 195354), Son et

    musique (RomaVeneza,195354), volution de lharmonie (Roma, 1992), volution

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    du rythme (Roma, 1992).Outros como Sens de la musique(prima stesura, 1991), La

    forza cosmica del suono (1993), Due considerazioni sulla creazione artistica (1994),

    Osservazioni sulla composizione (2001), fazem parte das publicaes da revista i

    suoni, le onde, da Fundao Isabella Scelsi de Roma.

    Textos autobiogrficos: O livro de maior contedo autobiogrfico de Scelsi ser

    publicado na ntegra, segundo informaes da Fundao Isabella Scelsi, no ano de

    2006. Trata-se de Il sogno 101 I parte, do qual vrios excertos figuram nesta

    dissertao. O livro, Il sogno 101 II parte, il ritorno (RomaVeneza, 1982), de

    difcil classificao, j que envolve caractersticas de depoimento pessoal, com forte

    contedo existencialista. Ambos os livros foram registrados pelo autor em fita

    magntica e depois transcritos.

    Problemas

    Ao romper o conceito de composio como tradicionalmente conhecido, Scelsi

    abre uma fissura na histria da msica, na qual o papel de criador fica subjugado amanifestaes que, por no serem de ordem material, no podem ser mensuradas

    nem cristalizadas como um procedimento composicional fechado. Esta ruptura

    baseada em dois pontos principais: o orientalismo, que serve de base e justificativa

    para toda a sua produo madura e a improvisao.

    Muitos compositores se utilizam ou utilizaram da improvisao para criar suas obras.

    Podemos citar, como exemplo, Igor Stravinsky que, aps a manipulao deelementos ao piano, desenvolvia suas composies. A improvisao , neste caso,

    geradora dos primeiros motivos, da matria prima da composio.

    Um compositor improvisa sem direo da mesma maneira como umanimal escava o terreno. Ambos vo escavando porque cedem compulso de procurar coisas. Que necessidade do compositor atendida por essa investigao? A das regras que ele carrega comoum penitente? No: ele est em busca de seu prazer. Ele procura

    uma satisfao sabendo perfeitamente que no a encontrar se nobrigar por ela(STRAVINSKY, 1996, p. 57, traduo de L. P. Horta).

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    Na msica popular, a improvisao tambm um fato corriqueiro. No Jazz, no

    Choro, e em msicas de culturas no ocidentais como aquelas dos hindus, rabes e

    balineses, a habilidade do msico avaliada pela sua capacidade de improvisar. H

    ainda a obra aberta (ECO, 1971) onde a improvisao funo do intrprete, ao

    reorganizar o material previamente composto.

    No caso da msica de Scelsi, suas improvisaes tambm serviram de base para a

    construo de sua obra. Seu procedimento composicional gerava a necessidade de

    uma recriao, no atravs do desenvolvimento motvico da idia primeira, mas da

    transposio material da fita magntica para a partitura. Em algumas obras, a

    improvisao foi fielmente transcrita, como no caso das peas para instrumentos

    solo, em outras, foram arranjadas e orquestradas posteriormente por uma equipe de

    msicos que, trabalhando sob a direo de Scelsi, criavam as partituras de acordo

    com a inteno do compositor. Esta prtica rompe com aspectos no s da

    composio musical, como tambm da improvisao. A composio, neste caso,

    no realizada fora do tempo4, como na tradio composicional do ocidente, na qual

    o compositor ordena, arranja os elementos, desvinculado do processo temporal de

    escuta da obra.

    A improvisao, tradicionalmente vinculada performance, atravs de padres e do

    fator de risco, presente nas escolhas ocorrentes no tempo, no permitida ao

    intrprete na maior parte da msica de Scelsi, pois suas partituras so fechadas,

    determinadas, no possibilitando improvisos em sua execuo.

    Breve escoro dos captulos:

    Estas sero as questes trabalhadas a partir dos textos do compositor: a escolha da

    improvisao como geradora da obra e como esta se fundamenta na idia de

    orientalismo. O trabalho ser dividido em quatro captulos:

    4 Fora do tempo refere-se s categorias temporais de Iannis Xenakis: hors-temps, en temps, e

    temporelles. Segundo Silvio Ferraz, "essa idia apresentada a partir da noo de que so possveistrs tipos de abordagem composicional e, conseqentemente, da escuta: arquiteturas hors-temps,arquiteturas 'temporais', e arquiteturas en-temps. A primeira a que pensa a simultaneidade dosconjuntos de possibilidades assim que um sistema determinado; a segunda diz respeito

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    No captulo I, sero enfocadas as caractersticas biogrficas do compositor. Sendo

    desenvolvido de modo cronolgico, sero ressaltadas as memrias da infncia de

    Giacinto Scelsi, no castelo da famlia, em Valva. Sua origem aristocrtica se deixar

    transparecer por toda sua carreira, junto ao seu ttulo de conde e seu acesso aos

    crculos artsticos mais importantes da primeira metade do sculo XX.

    As memrias de Scelsi encontram-se em textos destacados, ainda no publicados

    em forma de livro. A anlise de seu discurso passa, necessariamente, pela

    considerao de sua posio social que, apesar de todo o seu desprendimento, no

    deixar de marcar sua produo. Deste modo, uma equipe de msicos,

    especializados nas transcries de suas partituras, necessariamente devia sepontuar por um gasto financeiro considervel. Portanto, mesmo se desvinculando do

    ambiente mundano ao qual pertencia, e se tornando um eremita, aps os anos

    cinqenta, Scelsi, em momento algum, despreza o ritual das salas de concerto. Seu

    discurso atravessa um terreno fictcio, no qual realiza uma opo consciente pelo

    tipo de escritura presente em sua msica. Isto justifica o fato de que o compositor

    nunca esteve totalmente fora dos crculos da vanguarda, ainda que tenha sido

    encapsulado dentro da prpria vanguarda hegemnica.

    A anlise de parte da bibliografia existente revela que uma biografia oficial do

    compositor uma tarefa impraticvel, pois, muitos dados importantes sobre sua vida

    no podem ser definidos com preciso e muitas obras, que figuram em dicionrios e

    livros sobre a histria da msica no sculo XX, apresentam problemas quanto aos

    nomes e datas de suas composies, do mesmo modo como, muitas vezes, omitem

    ou ignoram conceitos importantes para a compreenso da msica de Scelsi.

    No captulo II, trataremos da improvisao. Poderamos dizer que a improvisao,

    em Scelsi, possui um carter sistemtico, no sentido de que funciona como um

    arcabouo tcnico na feitura das obras. Para Scelsi, a improvisao era uma

    ferramenta composicional de importante valor, na medida em que a criao de sua

    msica no passava necessariamente pelo filtro do intelecto e, muito menos, da

    ocorrncia real do evento; a terceira pe no tempo os elementos fora do tempo da primeira"(FERRAZ, 1998, p. 7778).

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    escrita. No lhe era possvel uma apreenso do fenmeno musical de outra maneira

    que no a do procedimento improvisativo.

    O captulo III tem, como objetivo, discutir a influncia oriental sobre a obra de Scelsi,

    o tipo de filosofia pela qual o compositor foi influenciado e de que modo baseou

    nestas filosofias seus procedimentos composicionais. Veremos que esta atitude

    orientalista tem razes na cosmo-viso ocidental. O orientalismo de Scelsi, porm,

    muito bem disfarado por sua prtica meditativa e sua idia de supresso do ego.

    Porm, sua msica, com todas as preocupaes acsticas a ela subjacentes,

    dificilmente poderia ter surgido no Oriente. Suas preocupaes com a vida interna do

    som aproximam-no de compositores cujas pesquisas seguiam seus mesmospressupostos de liberao do som, das amarras formais que, durante sculos,

    caracterizaram a msica do Ocidente.

    No quarto e ltimo captulo, trataremos do conceito de grau zero da escritura, ou,

    grau zero da escrita, como foi abordado por BARTHES (2004). A aproximao

    realizada, a partir de Scelsi, tenta mostrar como a negao do artesanato do estilo

    se traduz em uma nova escritura. A relao com modos de criao, encontrados naantigidade grega clssica e nas formas de escrita musical da igreja medieval,

    insere Scelsi, mesmo que anacronicamente, na histria da arte ocidental. A

    descoberta, por Scelsi, de uma escritura nova, justifica-se na fuga das correntes

    racionalistas, as quais s lhe foi possvel subverter, devido crise que nele se

    instaurou, durante a segunda guerra mundial, e que no deixou outra soluo ao

    compositor, seno a de transformar-se em um medium, negando a escrita e criando

    suas obras mais importantes, a partir da transcrio de seus improvisos. Scelsipossui, portanto, uma raiz fincada na tradicional igreja romana: podemos consider-

    lo uma espcie de papa Gregrio Magno, dos tempos modernos.

    Em anexo, traremos dois textos originais do compositor. A traduo foi realizada

    com o objetivo de facilitar o acesso s idias estticas de Scelsi. Os textos

    traduzidos, Sens de la Musique (1985)e Sens de la Musique (prima stesura, 1991),

    foram escolhidos por conterem uma sntese do pensamento esttico e composicional

    de Scelsi, e por serem de fundamental importncia para um primeiro contato com as

    idias do compositor.

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    CAPTULO 1

    1. GIACINTO SCELSI, COMPOSITOR CONTEMPORNEO.

    1.1. DADOS BIOGRFICOS.

    Ao iniciarmos a biografia de Giacinto Scelsi, deparamo-nos com alguns obstculos.

    Os dados sobre sua vida esto repletos de anacronismo e as fontes de referncia

    acham-se espalhadas entre artigos de comentadores e alguns textos de sua autoria,

    muitos dos quais pertencentes a volumes mais amplos, ainda no publicados. Deste

    modo, ainda nos falta uma viso completa de seus escritos, principalmente os de

    carter autobiogrfico, como o caso de Il sogno 101 - prima parte,5 ainda no

    editado em sua totalidade. Contendo fatos importantes sobre a vida do compositor,

    alguns excertos foram publicados pela revista i suoni, le onde..., da Fundao

    Isabella Scelsi, sediada em Roma e constituem a principal fonte deste captulo.

    Giacinto Francesco Maria Scelsi nasceu em La Spezia,regio da Ligria, Noroeste

    da Itlia, no dia 08 de Janeiro de 1905, s 11:00 horas. De origem aristocrtica,

    passou grande parte de sua infncia no castelo medieval da famlia em Valva,

    provncia de Salerno, regio Sudoeste. Proveniente de uma famlia siciliana, o av

    de Giacinto Scelsi teve um papel importante na unificao da Itlia, durante o sculo

    dezenovee seu pai, Guido, na poca de seu nascimento, era Tenente da Marinha6.

    Sua me, Marquesa Giovanna7 d'Ayala Valva, era de Taranto, mas residia no

    castelo de Valva, na Irpinia. Scelsi, junto com sua irm mais nova, Isabella, passava

    5 Segundo informaes da Fundao Isabella Scelsi, o livro Il sogno 101 prima parte, oriundo degravaes realizadas em 1973, ser publicado em 2006, como parte das comemoraes dos cemanos de nascimento do compositor.

    6 A seguinte nota ilustra a atividade do pai de Giacinto Scelsi, na marinha italiana, onde eraresponsvel pelo teste de novas aeronaves dirigveis: "20 de outubro de 1909: O tenente da marinhaGuido Scelsi, completou um vo sobre Roma com o dirigvel n. 1-Bis, preparado em Vigna di Vallecom a participao dos oficiais da brigada militar especialista. No dia seguinte, foi feito um vo sobreCivitavecchia, Porto S. Stefano e Isolda del Giglio. Em 31 de outubro, Scelsi completar um vo, semescalas, de Vigna di Valle Napoli e retorno" (RANOCCHIA, 2005 , traduo de A.Siqueira).

    7 Genealogia de Giacinto Scelsi: a partir de sua me, Giovanna Enrichetta (*Napoli 29-3-1875 +Roma 25-4-1969), Nobre dos Marqueses de Valva. Casou-se com o Almirante Guido Scelsi, emRoma, em 2-4-1904. GiacintoScelsidAyalaValva(assume o sobrenome por expressa vontade dame, via decreto do Guardasigilli de 20-7-1951). (*La Spezia 8-1-1905 + Roma 9-8-1988), clebre

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    muitos meses por ano no castelo, onde recebeu uma educao condizente com sua

    infncia aristocrtica: aulas de latim, de esgrima e xadrez.

    Passei, assim, grande parte de minha infncia, at os onze ou dozeanos: muitos meses, talvez mais de seis por ano naquele castelo deValva com minha irm, alguns anos mais nova que eu, com minhame, meu av e freqentemente com o irmo dele: o tio Pietro.

    As crianas do lugarejo vinham ao castelo brincar comigo e,naturalmente, se brincava de guerra. O parque era muito grande: deum lado se erguia o castelo, depois, mais acima, uma torre queconstitua para ns um outro castelo: aquele dos inimigos.[...]Resumindo, era bastante divertido. Eu era naturalmente o generalque comandava uma parte, depois nomeava outro general para o

    grupo adversrio e assim fazamos uma verdadeira guerra, quedurava horas (SCELSI, 2005 p. 3, traduo de A. Siqueira).8

    As primeiras manifestaes musicais de Scelsi deram-se quando era ainda bem

    jovem, na idade de trs a quatro anos. No castelo de Valva, havia um velho piano,

    no qual o pequeno Scelsi gostava de passar as horas brincando, e por que no dizer

    "improvisando"? O que se tornaria posteriormente uma caracterstica fundamental de

    seu processo composicional parece ter sido enraizado em sua memria, durante a

    infncia.

    No castelo tinha um pequeno piano e eu freqentemente me sentavaa preludiar...assim...sem saber aquilo que fazia: com certeza noeram exerccios piansticos. Tocava-o e nem minha me, nem asgovernantas se importavam, pelo contrrio, ficavam contentes maspor outra razo: que quando eu estava ao piano elas aproveitavampara pentear meus cabelos (possua-os longos at os ombros,encaracolados e ficaram muito tempo assim, cortaram-no somentequando comecei a me vestir como homenzinho). E eu detestava queme tocassem na cabea e de fato ainda detesto, por exemplo, nunca

    me deixo tocar por nenhum barbeiro: eu mesmo corto meu cabelo, etenho sempre feito assim. Detesto sentir mos sobre minha cabea e

    compositor de vanguarda (Giacinto Scelsi). Autor principalmente de obras orquestrais, de cmara epara piano (SHAM, 2003, traduo de A. Siqueira).8Este texto pertence ao original Il sogno 101 - prima parte gravado em 1973 ainda no publicado nantegra, esta citao se encontra entre as pginas 405 416 do datiloscrito original. "Trascorsi cosgran parte della mia fanciullezza, fino allet di undici, dodice anni: molti mesi, forse pi di sei ognianno in quel castello di Valva con mia sorella, di alcuni anni pi piccola di me, con mia madre, il nonnoe spesso anche con suo fratello: lo zio Pietro. I ragazzi del paese venivano al castello per giocare conme e, naturalmente, si giocava alla guerra. Il parco era molto vasto: da una parte se ergeva il castello,

    poi, molto pi in s, una torre che constituiva per noi laltro castello: quello dei nemici. [] Insomma,era abbastanza divertente. Io, naturalmente, era il generale in capo di una parte; poi nominavo laltrogenerale per la schiera avversaria e cos facevamo una vera guerra che durava ore"(SCELSI, 2005 p.3).

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    desde criana no suportava que me penteassem. Porm, enquantoestava ao piano tornava-me indiferente a qualquer coisa que mefizessem onde estava, o que pensava se eu pensava em algo, ouno: tocava e escutava os sons que saam de minhas mos. E elas

    aproveitavam daquele meu momento de passividade para pentearmeus cabelos, para escovar-me a cabea9 (SCELSI, 2005, p. 6,traduo de A. Siqueira).

    (Vista lateral do castelo de Valva)10

    Posteriormente, sua famlia mudou-se definitivamente para Roma, onde Scelsi

    iniciou sua educao musical formal, atravs de aulas particulares com o maestro

    Giacinto Sallustio. Freqentou tambm a casa de Ottorino Respighi, onde era

    arrebatado pelas conversas com Elsa San Giacomo, compositora e pianista, esposa

    9 Idem nota 8. "Nel castello vi era un piccolo pianoforte e io mi sedevo spesso a preludiarecossenza sapere quello che facevo: certo non erano esercizi pianistici. Suonavo e n mia madre n legovernanti vi davano alcun peso; anzi erano contente ma per altre ragioni tutti loro, e cio che quandoio stavo l al pianoforte loro approfittavano per pettinarmi i capelli (che avevo lunghi fin sulle spalle aboccoli, e che rimasero a lungo cos; me li tagliarono soltanto incominciai a vestirmi da maschietto).Ed io detestavo farmi toccare la testa e difatti ancora adesso, per esempio, non me faccio toccare maida nessun barbieri: mi taglio i capelli da me, e ho sempre fatto cos. Detesto sentirmi le mani sullatesta e gi da bambino non sopportavo che mi pettinassero. Mentre invece quando stavo alpianoforte, diventavo indifferente a quel che mi facevano chiss dovero, chiss cosa pensavo se

    pensavo a qualcosa, oppure no: suonavo e ascoltavo i suoni che uscivano delle mie mani. E loroapprofittavano di quel mio momento di passivit per pettinarmi, per spazzolarmi la testa" (SCELSI,2005, p. 6).10 Imagem retirada do website da Fondazione Isabella Scelsi.

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    de Respighi11. Nos anos vinte, comeou a participar do crculo artstico, travando

    amizade com grandes nomes como Jean Cocteau, Norman Douglas, Mim

    Franchetti, Virginia Wolf, dentre outros, que o iniciaram nos movimentos artsticos

    internacionais da poca. Neste perodo, Scelsi realizou inmeras viagens ao exterior,

    principalmente para a Frana e Sua. Porm, a mais importante viagem desta

    poca foi para o Egito, no ano de 1929,12 como hspede de sua irm Isabella, que

    havia se casado com um egpcio de origem sria, o conde Patrice de Zogheb.

    Nesta viagem, "(...) ao invs da vida luxuosa que conduzia a comunidade

    cosmopolita daqueles anos, preferiu realizar experincias pessoais e se interessar

    pelos aspectos mais secretos da variada cultura, ainda presente, naquela terramilenar" (MARTINIS, 2003, p. 9, traduo de A. Siqueira).

    Por sorte alm de tudo isto encontrei um personagem realmenteimportante: um primo do Rei Fuhad, o prncipe Haidah Fasil, umliterato,um homem cultssimo que havia traduzido o Alcoro para ofrancs, e que para mim fora uma das tradues mais belas j feitasdo texto sagrado mulumano.

    O prncipe mostrou-me tambm os conventos Coptas do deserto aos

    quais era vetado, ordinariamente, o ingresso; alguns destesconventos eram ainda habitados e havia coisas muito interessantesdo ponto de vista histrico, assim como das cerimnias e da msicareligiosa. Acompanhou-me, alm disso, para ver os Dervises aqueles verdadeiros, no os que se exibem aos turistas e devodizer que fiquei muito impressionado com a cerimnia na qual osDervises giravam, giravam com muita velocidade sobre eles prprios,com saias que se erguiam horizontalmente devido fora centrfuga,evidentemente muito envolvidos em um tipo de estupor mstico, dextase, provocado mais ou menos por estas evolues circulares, outalvez ainda por algo mais: no sei. Certo que considero uma

    verdadeira sorte poder ter assistido quela dana ritual.E naturalmente me falou tambm do Sufismo que eu conheciavagamente e do esplendor de seus textos msticos, alm depoticos, seres grandes, verdadeiramente grandes. Falou-metambm do Dikir, desta espcie de Yoga maometano, muulmano,

    11

    H meno s aulas com Alfredo Casella (1883

    1947), no verbete do Grove Dictionaryde 1954.12 Existe uma pequena divergncia entre os dados da biografia de Scelsi no website da FundaoIsabella Scelsi, e o artigo Il "Distacco dalla terra", de Luciano Martinis, publicado na revista i suoni, leonde... n. 10, do primeiro semestre de 2004. Na biografia, a viagem data de 1927 e no artigo, 1929.

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    um tipo de Mantra-Yoga (SCELSI in: MARTINIS, 2003, p. 9,traduo de A. Siqueira).13

    Luciano Martinis segue relatando a continuidade da viagem que, ao que tudo indica,

    exerceu grande influncia sobre Scelsi, em toda sua produo iniciada a partir deste

    ano. Sendo assim, a idia orientalista j se faz presente, atravs de seu interesse

    pelo esoterismo e pelas culturas orientais. Este interesse parece derivar de sua

    prpria condio ptria, do imaginrio alimentado pela conquista e ocupao de

    territrios localizados alm das fronteiras de seu pas.

    E sua viagem prosseguiu por todo o Oriente, atravessou o canal deSuez, em um barco a remo, visitou a Terra Santa da Palestina, o

    Santo Sepulcro, o Muro das Lamentaes, o Monte Tabor, o MonteCarmelo, o lago de Tiberades, onde teve uma curiosa experincia deembriaguez.

    Da noite passada no Monte das Oliveiras, relatou uma impresso toprofunda que nunca mais voltou a coment-la, atribuindo a este fato,valor inicitico.

    Passou pela Sria, Turquia e, finalmente, visitou a Grcia.

    Pode-se considerar esta viagem como o incio do progressivodistanciamento da vida que levava at aquele momento e a escolhadefinitiva de dedicar-se composio musical; e, de fato, destemesmo ano sua primeira obra, Chemin du coeur14 (MARTINIS, 2004,p. 9, traduo de A. Siqueira).

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    Este texto foi retirado de Il sogno 101 prima parte, ainda no publicado na ntegra. "Per fortuna oltre a tuto questo incontrai un personaggio veramente importante: un cugino di Re Fuhad, ilprincipe Haidah Fasil, un letterato, un uomo coltissimo che aveva tradotto in francese il Corano, unadelle pi belle traduzioni, pare, che mai siano state fatte del sacro testo musulmano. Il principe mi fecevedere anche i conventi copti del deserto dei quali ordinariamente era vietato lingresso; alcuni diquesti conventi erano ancora abitati e vi erano cose assai interessanti dal punto di vista storico eanche da quello delle cerimonie e della musica religiosa. Mi accompagn inoltre a vedere i Dervisci quelli veri, non quelli che si esibiscono per i turisti e debbo dire che rimasi molto impressionato dallacerimonia nel corso della qualle i Dervisci giravano, giravano vorticosamente su se stessi, con lesottane che si sollevavano orizzontalmente per la forza centrifuga, evidentemente in preda ad unasorta di stupore mistico, di estasi, pi o meno provocata da queste evoluzioni circolari e forse ancheda altro: non so. Certo si `e che considero una vera fortuna aver potuto assistere a quella danzarituale. [] E naturalmente mi parl anche del Sufismo che io conoscevo solo vagamente e dello

    splendore dei loro testi mistici, oltrech poetici: grandi esseri, veramente grandi. E mi parl anche delDikir, di questa specie di Yoga maometano, mussulmano, una sorta di Mantra-Yoga" (SCELSI in:MARTINIS, 2003, p. 9).14 Para violino e piano, segundo Todd McComb, no existem gravaes desta obra (McComb, 2000).

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    Sua primeira obra de projeo internacional foi Rotativa,15poema sinfnico para trs

    pianos, sopros e percusso, executada na sala Pleyel,em Paris, sob a regncia de

    Pierre Monteux, em 1930. "Apesar da insatisfao do jovem compositor, muito

    rigoroso no resguardo da prpria obra, a execuo de Rotativa atraiu para ele a

    ateno da crtica e do mundo musical" (MARTINIS, 2000, traduo de A. Siqueira).

    Nos anos trinta, Scelsi teve uma interessante atividade criativa, apesar de problemas

    com a sade, de perodos bomios e constantes viagens ao exterior. Vrios

    intrpretes de destaque no mundo musical italiano interessavam-se por sua msica

    e, em 1937, organizou s suas prprias custas uma srie de quatro concertos de

    msica contempornea, em Roma, com a colaborao de Goffredo Petrassi.16

    Foram executadas obras de compositores ainda desconhecidos na Itlia, entre eles:Kodaly, Hindemith, Schoenberg, Stravinsky, Schostakovitch e Prokofief. Estes

    concertos, porm, tiveram vida breve: o incio da vigncia da lei racial, na Itlia,

    proibiu a execuo de obras de compositores judeus, fato que Scelsi no aceitou,

    forando-o a um gradual distanciamento de seu pas.

    (Pgina inicial de Rotativa)17

    15 De 1929. Poema sinfnico. Para 3 pianos, metais, e percusso. Existe uma verso para dois pianose percusso, datada de 194445. Durao: 6 minutos.16 Goffredo Petrassi, compositor e maestro italiano, nascido em 1904 (Latina) e falecido em 2003(Roma).17 Idem, nota 10.

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    Data desta poca o interesse de Scelsi pela teoria de Rudolf Steiner,18 pela

    Teosofia,19 bem como pelo curioso grupo do Monte Verit.20Neste perodo, surge

    tambm o contato com o sistema composicional de Scriabin e o dodecafonismo,

    respectivamente aprendidos com Egon Koehler21, em Genebra, e Walter Klein, em

    Viena.

    Alguns comentrios de Scelsi sobre Koehler e Klein revelam as orientaes estticas

    de cada um deles e como estas o afetaram. Neste primeiro excerto, colocada sua

    relao com a obra de Scriabin, atravs de Koehler e seu desinteresse pelos

    compositores que ensinavam na Itlia, na dcada de 30.

    Koehler foi seguidor de Scriabin, assim como Sallustio foi deDebussy. Mas (ele seguiu) Scriabin no (somente) como um msico,mas tambm pelas concepes que Scriabin tinha do mundo, dafilosofia e, particularmente, da Teosofia. Parecia inacreditvel, paraele, ter um pupilo como eu em Genebra, especialmente porquetambm tenho grande admirao por Scriabin, que representa ooposto da extrovertida e, muitas vezes, provinciana esttica deRespighi e do neoclassicismo de Casella.

    Como Pizzetti e Malipiero, sua msica no esteve em posio de ter

    qualquer influncia duradoura, infelizmente, sobre seus alunos.22

    Este era o quarteto que ento ensinava na Itlia, em absoluto noera o que eu estava procurando.

    Com Koehler eu falei principalmente de msica, particularmente dateoria, em parte atribuda a Goethe e Steiner, da pr-existncia de

    18 Steiner o criador da Antroposofia, mtodo de conhecimento que aborda o ser humano em seusnveis fsico, vital, anmico e espiritual, e mostra como essas naturezas, absolutamente distintas entresi, atuam em constante inter-relao.19 Estabelecida, em 1875, com a fundao, em Nova Iorque, da Sociedade Teosfica, a Teosofia seapresenta como uma sabedoria dos deuses, sabedoria universal ou tica divina. Tem o objetivodeclarado de investigar cientificamente fenmenos ditos espiritistas e prega: a fraternidade humana,sem distino de raa, cor, religio ou condio social; o estudo de religies antigas do mundo parafins de comparao e a compilao de uma moral universal; o estudo e desenvolvimento dos poderesdivinos latentes no homem. Em 1921, a Sociedade Teosfica contava 40.572 membros espalhadospor 35 Sociedades Nacionais, dos quais 7.092 haviam ingressado naquele ano (vide BLAVATSKY,1892).20 Comunidade fundada no final do sculo XIX em Ascona, Sua, pelo casal alemo HenriOedenkoven e Ida Hofmann, que procuravam um terreno frtil para implantar uma cooperativavegetariana individualista.21 Segundo Gregory Natan Reish, Koehler foi quem introduziu Scelsi na Antroposofia e na Teosofia

    (REISH, 2001, p. 5).22 Ottorino Respighi (18791936), Alfredo Casella (18831947), Ildebrando Pizzetti (18801968) eGian Francesco Malipiero (18821973) so todos membros da generazione dell'ottanta, assimchamada pelo fato de terem nascido por volta de 1880.

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    sons e cores, que podem se manifestar sob certas condies, masno so causadas por estas. Uma teoria metafsica, certamente, masfascinante23 (SCELSI in MARTINIS, 1992, p. 9, citado por REISH,2001, p. 5, traduo de A. Siqueira).

    Scelsi aprendeu as tcnicas do sistema dodecafnico com Walter Klein, um discpulo

    de Schoenberg, "Existem varias citaes na bibliografia, indicando que Scelsi

    estudou com Klein, em 1935 'e' 1936, mas Luciano Martinis, que foi prximo de

    Scelsi, ressalta que foi em 1935 'ou' 1936. Scelsi lhe contou que o perodo de estudo

    foi somente de trs dias" (REISH, 2001, p. 5, traduo de A. Siqueira).

    Eu at mesmo estive em Viena para estudar o dodecafonismo com

    Walter Klein, que era um dos alunos de Schoenberg. Fiz isso edepois fiquei doente. Claro. a conseqncia normal. Quandoalgum consegue permanecer horas ao piano, sem saber o que faz,mas ainda assim fazendo algo, porque ele animado por umafora fora do comum que o atravessa. Mas se voc a impedepensando em um contraponto ou em uma resoluo de stima nose chega a nada. Eu pensava demais. Desde aquele momento, nopensei mais. Toda minha msica e minha poesia foram feitas sempensar (SCELSI in MARTINIS, 1993, p. 9, traduo de A. Siqueira).24

    Quando a Itlia entrou na guerra, em 1940, Scelsi estava na Sua e l permaneceu

    at o final do conflito. Casou-se com Dorothy Kate Ramsden, uma parente da famlia

    real britnica e, apesar da dificuldade, durante os anos de guerra, teve uma profcua

    atividade como compositor e poeta, desenvolvendo, neste perodo, o incio da base

    terica de seus futuros trabalhos. Ajudou vrios amigos, perseguidos pelo nazismo,

    a encontrar refgio: um deles, Pierre-Jean Jouve,25 conseguiu escapar de Paris

    ocupada, graas a um golpe, o de que sua esposa necessitava de cuidados

    psiquitricos que somente a esposa do embaixador chins, em Genebra, poderia

    providenciar (FREEMAN, 1991, p. 9).

    23 Este excerto foi traduzido do ingls, da tese de Gregory N. Reish (REISH, 2001). O original italianose encontra no texto de Luciano Martinis,Art de musique, em: i suoni, le onde..., revista da FundaoIsabella Scelsi n. 3 (1992, p. 9) e se trata de mais um trecho de Il sogno - 101 prima parte.24 "J'ai mme t Vienne tudier la dodcaphonie avec Walter Klein, qui tait l'un lves deSchoenberg. J'ai fait a et plus je suis devenu malade. Bien sr. C'est la consquence normale.Lorsque quelqu'un peut rester des heures au piano sans savoir ce qu'il fait, mais en faisant quandmme quelque chose, c'est qu'il est anim d'une force hors du commun, qui passe travers lui. Maissi vous la bloquez cela en songeant un contrepoint ou une rsolution de sptime, on n'arrive

    rien. Je pensais trop. Depuis ce moment-l, je n'ai plus pens du tout. Tout ma musique et ma posieont t sans penser"(SCELSI in MARTINIS, 1993, p. 9).25 Poeta francs nascido em 1887 e falecido em 1976, fortemente influnciado pela psicanlise, suapoesia carrega forte contedo espiritualista.

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    Durante seu refgio na Sua, foram executados o Trio para cordas26, dirigido por

    Edmond Appia e vrias peas para piano, executadas por Nikita Magaloff. Ao final

    do conflito, retornou Itlia, estabelecendo-se em Roma, onde viviam tambm sua

    me, seu pai e sua irm Isabella. Scelsi retorna da Sua, com uma forte crise

    psquica, o que no o impediu de terminar dois trabalhos j iniciados: o Quarteto 1 27

    (1944), executado pelo Quarteto de Paris, em Paris no ano de 1949 e a cantata para

    coro misto e orquestra, La nascita del verbo,28 executada tambm em Paris, em

    1950, sob a regncia de Roger Dsormires.29

    Existe um aspecto lendrio, envolvendo Scelsi, no que diz respeito estranha

    doena que atacou o compositor, no final dos anos quarenta. Contudo, segundoScelsi, este mal j o perturbava desde antes da guerra, em 1939 e agravou-se,

    consideravelmente, durante o conflito.

    [] Esta minha misteriosssima doena teve incio j antes daguerra, em 1939, com manifestaes que se acentuaram,naturalmente, durante a guerra, com todas as dificuldades, inclusivepsicolgicas daquele tempo. Escrevi o Quarteto 1 com grandedificuldade, mas naquele momento os deuses estavam perto de mim

    e consegui creio fazer algo de bom. Depois, as coisas pioraram epara La Nascita del Verbo complicaram-se de modo incrvel, sendoque podia escrever, compor, s por alguns minutos e depois,precisava parar e ficava estagnado, estagnado, sendo vtima dedistrbios nervosos que me controlavam. Esta obra foi escrita commeu prprio suor de sangue e fria da firmeza de vontade, uma vezque sabia bem que, a cada vez que me concentrava e escrevia,pagava as conseqncias de modo muito doloroso: verdadeiramentecom suor de sangue. De fato, a um certo ponto ca e no escrevimais, nem como j havia dito fui capaz de escrever por alguns

    26 Para violino, violoncelo e piano, Scelsi escreveu dois trios para esta formao, este de 1936 e umsegundo de 1939.27 Para quarteto de cordas convencional.28 De 1948. Para coro misto e orquestra: flautim, 2 flautas, 2 obos, corne ingls, 2 clarinetas Bb,clarineta baixo, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba baixo, piano, 2harpas, vibrafone, xilofone, celesta, glockenspiel, tmpanos, 3 percussionistas e cordas. Durao: 42minutos.29 H uma divergncia na data de composio da cantata. Scelsi afirma, na nota do programa doXXIV Festival da Sociedade Internacional de Msica Contempornea, realizado em Bruxelas, no anode 1950, que a cantata foi composta em Roma entre 194648. Esta informao no seriaquestionada se no discordasse com outra, Scelsi afirmou ter voltado para a Itlia com o Quarteto 1 e

    grande parte da cantata j composta. Voltou para a Itlia em 1945 e, devido s dificuldades da poca,viajou somente com o essencial e portanto com suas ltimas composies. Este fato foi providencial,j que as maletas deixadas em depsito num albergue de Lausanne, se perderam definitivamenteConforme MARTINIS (2004, p. 4).

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    anos. Quando La Nascita del Verbo foi executada, em 1951 [sic],estava em um estado deplorvel, tanto que, depois de um almoo,fiquei em estado de semi coma por quinze dias []30 (SCELSI in:MARTINIS, 2004, p. 4, traduo de A. Siqueira).

    Scelsi ficou internado em um sanatrio na Sua e, ao que tudo indica, aps este

    perodo de profunda crise, surgiu o procedimento focado na escuta de um som

    apenas, procurando revelar as mincias ocultas dentro deste. Sobre o perodo em

    que ficou internado no existem muitos detalhes, mas, o texto seguinte pode ser

    esclarecedor:

    Blanche Jouve, a psicanalista, me disse um dia: O senhor no tratvel, seu tratamento o de curar os outros. Talvez tivesse razo:com efeito, algumas vezes, tenho podido ajudar as pessoas (podemcr-lo ou no, mas assim). Dentre os cento e vinte seis mdicoscom os quais me tratei, muitos eram psiquiatras, o que me deixoumeio louco, mas no mais do que antes. Um deles me disse: Comofao para cur-lo, se o senhor nasceu pela metade!? O senhor aindaest no ventre do qual provm!. Em um certo sentido, penso terrazo: eis porque tocava o piano com a idade de quatro anos, sempensar. Tive tudo: nunca trabalhei, nunca pensei, isto j estavainteriorizado quando nasci no quero parecer descorts dizendoisto. Sou uma metade, mas esta metade suficiente31 (SCELSI apud

    MALLET in: CISTERNINO, 2004, traduo de A. Siqueira).

    Enquanto estava internado, Scelsi encontra um meio de viajar dentro do som, ou

    seja, de conseguir ouvir as propriedades acsticas do som, o que o tornaria um dos

    precursores da msica espectral.

    30 "[] Questa mia misteriosissima malattia ebbe inizio gi prima della guerra, nel 1939 conmanistezioni che si accentuarono naturalmente durante la guerra e con tutte le difficolt, anchepsicologiche, di quel tempo. Scrissi il Quartteto n.1 con grande difficolt, ma in quel momento gli dierano vicini a me e riuiscii credo a fare qualcosa di buono. Poi le cose peggiorarono e per LaNascita del Verbo si complicarono in modo incredibile, nel senso che potevo scrivere, comporre, soloper qualche minuto e poi dovevo fermarmi e restavo spossato, spossato e in preda a disturbi nervosi.Questopera fu scritta proprio con sudor di sangue e a furia di fermezza di volont, poich sapevobene che ogni volta che mi concentravo e scrivevo ne avrei pagato le coneguenze in modo assaispiacevole: veramente con sudor di sangue. Infatti a un certo punto crollai e non scrissi pi, n comevi ho gi detto fui in grado di scrivere per alcuni anni. Quando La Nascita del Verbo fu eseguita, nel1951 [sic], ero in uno stato deplorevole, tanto che dopo un pranzo rimasi in stato semicomatoso perben quindici giorni [](SCELSI in: MARTINIS, 2004, p. 4).

    31" Blanche Jouve la psicanalista, mi disse un giorno: 'lei non curabile; la sua cura di guarire glialtri.' Forse aveva ragione: in effetti talvolta ho potuto aiutare delle persone (potete crederlo o no, ma cos). Tra i centoventisei medici con cui ho avuto a che fare molti erano psichiatri, il che mi ha reso

    mezzo pazzo, ma non pi di prima. Uno di loro mi disse: 'Come faccio a curarla, lei nato a met! Lei ancora nel pancione da cui proviene!'. In un certo senso penso avesse ragione: ecco perchsuonavo il pianoforte dallet di quattro anni, senza pensare. Ho avuto tutto: non ho mai lavorato, nonho mai pensato, cera gi un contatto inserito quando sono nato non vorrei apparire scortese

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    Eis como se deve escutar um som. Fiz esta experincia sozinho, semconhecer a histria,32 quando estava na clnica, enfermo. Na clnicaexistem sempre uns pequenos pianos escondidos, que quaseningum toca; um dia, me pus a tocar: d, d, r, r, r Enquantotocava, algum disse: Aquele o mais louco de ns! Rebatendodurante longo tempo uma nota, esta se torna ampla, to ampla quese ouve ainda mais a harmonia, e essa nos engrandeceinteriormente, o som nos envolve. Asseguro que tudo uma outracoisa: o som contm um universo inteiro, com harmnicos que nuncase escutam. O som preenche o lugar no qual nos encontramos,cerca-nos, pode-se nadar dentro dele. Mas o som tanto criador,quanto destruidor, teraputico, pode curar como pode destruir. Acultura tibetana nos ensina que com um s grito pode-se matar umpssaro e no sei se o som possa faz-lo reviver. Na poca daeletrnica e do laser, os tibetanos podem ser o simples grito quemata. Por fim, quando se entra em um som, -se envolvido,

    tornando-se parte do som, pouco a pouco -se engolido por ele eno se tem necessidade de nenhum outro som. Hoje, a msica setornou um prazer intelectual combinar um som com outro etc. intil. Tudo est l dentro, o universo inteiro preenche o espao,todos os sons possveis esto contidos neste. A concepo atual damsica ftil relao entre os sons, trabalho contrapontstico:deste modo, a msica se torna um jogo.

    Sinto-me mais prximo aos filsofos orientais, que so contra aviolncia, contra as manifestaes prticas da vida terrestre, prefiroviver sobre outros planos; de outro modo, corro o risco de destruirmeu sistema nervoso. um risco que se precisa correr33 (SCELSI

    apudMALLET in CISTERNINO, 2004. Traduo de A. Siqueira).

    Durante este perodo de crise, encontrou uma via de escape na poesia, nas artes

    visuais e no interesse pelo misticismo oriental e esoterismo. A profunda amizade

    dicendo questo. Ci sono a met, ma questa met sufficiente (SCELSI apud MALLET, inCISTERNINO, 2004).32 A histria qual se refere o conto Zen de um piolho, do qual o jovem discpulo deve ver pulsar ocorao para alcanar a iluminao.33"Ecco come si deve ascoltare un suono. Ho fatto questa esperienza da solo, senza conoscere la

    storia, quando ero in clinica, malato. Nelle cliniche ci sono sempre dei piccoli pianoforti nascosti, chequasi nessuno suona. Un giorno mi misi a suonare :do, do , re, re , re Mentre suonavo qualcunodisse: Quello pi pazzo di noi!. Ribattendo a lungo una nota essa diventa grande, cos grande chesi sente sempre pi armonia ed essa vi si ingrandisce allinterno, il suono vi avvolge. Vi assicuro che tutta unaltra cosa: il suono contiene un intero universo, con armonici che non si sentono mai. Il suonoriempie il luogo in cui vi trovate, vi accerchia, potete nuotarci dentro. Ma il suono creatore tantoquanto distruttore; terapeutico: pu guarire come distruggere. La cultura tibetana ci insegna che conun solo grido si pu uccidere un uccello e non s se il suono lo possa far rivivere. Nellepocadellelettronica e dei laser, i Tibetani possono essere il semplice grido che uccide. Per finire, quando sientra in un suono ne si avvolti, si diventa parte del suono, poco a poco si inghiottiti da esso e nonsi ha bisogno di un altro suono. Oggi la musica diventata un piacere intellettuale combinare unsuono con un altro ecc. inutile. Tutto l dentro, lintero universo riempie lo spazio, tutti i suonipossibili sono contenuti in esso. La concezione odierna della musica futile rapporti fra i suoni,

    lavoro contrappuntistico: cos la musica diventa un gioco." (...) Mi sento pi vicino ai filosofi orientali,che sono contro la violenza, contro le manifestazioni pratiche della vita terrestre; preferisco vivere sualtri piani, altrimenti rischio di distruggere il mio sistema nervoso. E un rischio che bisogna correre"(SCELSI apudMALLET in: CISTERNINO, 2004).

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    com Henri Michaux tambm serviu de estmulo para sua pesquisa musical que

    coincidir com o aprofundamento e a prtica das filosofias orientais, da doutrina Zen,

    da Yoga e da problemtica do inconsciente. Isto resultar em novas pesquisas e

    experimentaes sonoras, utilizando processos aleatrios34 na instrumentao das

    obras, como em Maknongan,35 onde a instrumentao se inscreve, para

    instrumentos graves, sendo possvel vrias leituras timbrsticas da linha meldica.

    A improvisao gera todas as obras de Scelsi, aps o perodo de crise, algumas

    delas literrias, como Il sogno 101 - II parte il ritorno36, que tambm foi realizada a

    partir da transcrio de gravaes. Impossibilitado de escrever as partituras, delega

    esta funo a um grupo de ajudantes que, supervisionados por ele, transcrevem as

    improvisaes gravadas. Alm de instrumentos tradicionais, utilizados de forma no

    ortodoxa, Scelsi utilizou um instrumento eletrnico, denominado ondiola, que

    permitia ao compositor uma grande gama de recursos, como quartos e oitavos de

    tom, vibratos de vrias velocidades e saltos rpidos de oitava. Conceitualmente, o

    que chama mais a ateno, nesta nova fase do compositor, no a improvisao

    em si, mas o simbolismo que ela carrega, ao vincular o ato de manipulao do

    instrumento idia de transe ou, como Scelsi definiu seu modo de compor, em

    lcida passividade.

    Scelsi encontrou, nesta fase, o mundo sonoro que tanto buscava. A partir deste

    perodo, teve incio um ocultamento de suas obras precedentes, consideradas muito

    acadmicas. Esta nova fase se mostra com a execuo das Quatro pezzi su una

    nota37, no Teatro Nacional Popular de Paris, em dezembro de 1961, sob a regncia

    de Maurice Leroux. Seu sucesso sempre foi maior no exterior. Na Itlia, o meio

    acadmico o condenava, talvez por operar tantos processos de ruptura com a

    34 Aqui no fazemos distino entre os termos acaso e aleatrio, levando em conta a dicotomiaentre as concepes de Pierre Boulez e John Cage. Este assunto ser retomado no captuloreferente improvisao. Sobre estes conceitos em Boulez e Cage, ver: (TERRA, 2000).

    35 De 1976. Durao: 4 minutos.

    36 A inscrio no livro a seguinte: Este relato foi registrado pelo autor diretamente sobre fitamagntica na noite de 27/28 de dezembro de 1980 e depois transcrito fielmente por R.S. (SCELSI,1982).

    37 De 1959. Para flauta em sol, obo, corne ingls, 2 clarinetas em si bemol, clarone, fagote, 4trompas, saxofones contralto em mi bemol e tenor, 3 trompetes em d, 2 trombones, tuba baixo,

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    composio musical, talvez pelo conservadorismo presente em seu pas.38 Neste

    perodo, as poucas execues de suas obras, na Itlia, foram devidas ao compositor

    Franco Evangelisti e realizadas no mbito do festival Nuova Consonanza.

    Esta incapacidade de escrever as prprias partituras, tarefa que parece ser to cara

    aos compositores, rendeu muitas crticas e uma desavena autoral, aps sua morte.

    Um de seus colaboradores, maestro Vieri Tosatti, reclamou para si a autoria de

    todas as obras de Scelsi escritas aps os anos cinqenta. O trabalho em parceria

    com intrpretes tambm deve ser considerado, muitos chegaram a ser seus

    hspedes, com o intuito de desenvolver e pesquisar as interpretaes de suas

    peas. Seu sistema de orquestrao consistia em defasar linhas meldicas deinstrumentos similares, em quartos e oitavos de tom, produzindo batimentos e

    qualidades sonoras imprevisveis. As transcries das improvisaes no

    terminavam com a escrita das linhas meldicas, os signos mais importantes de suas

    partituras so os que indicam detalhes de timbre e que so minuciosamente escritos

    de acordo com o resultado sonoro desejado. Alguns detalhes de suas orquestraes

    incluem o uso da voz, como elemento de ruptura da estrutura sonora, instrumentos

    de corda tratados como percusso, Ko-tha;39

    surdinas especiais para cordas,Quarteto 2, 40 Khoom,41 Trilogia,42 Voyages;43 sobreposio de execuo ao vivo

    flexatone, tmpanos, percusso (2 bongs, conga, pratos suspensos, tant pequeno e tant grande) ecordas (2 violas, 2 violoncelos, e contrabaixo). Durao: 13 minutos.38 At hoje, Scelsi ainda pouco conhecido na Itlia, sendo totalmente boicotado pelas instituiesmusicais notavelmente a RAI, que se recusa a tocar suas obras. Isto ocorre, provavelmente, porresqucios de seu refgio na Sua, durante a guerra, tendo se tornado um tipo de persona nongrata(ANDERSON, 1995).39 De 1967. Para violo solo, deitado sobre as pernas, afinao convencional. Primeira execuo em

    1973, quila, por Gianluigi Gelmetti. Verso para contrabaixo de Fernando Grillo e, para violoncelo (6cordas), Frances-Marie Uitti. Durao 9 minutos.40 De 1961. Primeira execuo em Roma, 1972. Durao: 17 minutos.41 De 1962. "Sete episdios de uma histria de amor e de morte no escrita, em um pas distante."Para soprano e seis instrumentos ( 2 violinos, viola, violoncelo, 2 percusses). Para a execuo destaobra so necessrias as mesmas surdinas do segundo quarteto. Primeira execuo em Roma, 1963,soprano Michiko Hirayama. Durao: 20 minutos.42 De 195765. "Os trs estados do homem." Para violoncelo solo, na execuo desta obra necessria a mesma surdina utilizada no Quarteto 2 e em Khoom. Triphon (1957) Juventude-Energia-Drama. Durao: 13 minutos e 30 segundos. Dithome (1957) Maturidade-Energia-Pensamento.Durao: 13 minutos. Igghur (1965) Velhice-Memria-Purificao-Liberao. Durao: 14 minutos.

    Primeira execuo, Como, 1976, por Frances-Marie Uitti.43 De 1974. Para a execuo desta obra necessria uma surdina especial diferente da utilizada noQuarteto 2, Khoom, e Trilogia. Il allait seul. Durao: 5 minutos. Le fleuve magique. Durao: 3minutos. Primeira execuo em Paris, 1977, por Frances-Marie Uitti.

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    com fita magntica, Pranam I,44 Litanie;45 amplificao dos instrumentos, Aitsi,46

    Hurqualia,47 TKRDG48 e instrumentos eletrnicos: ondas Martenot, Uaxuctum49 e

    rgo eletrnico Riti,50 e Pranam II.51

    Scelsi passou os ltimos anos de sua vida em sua casa na Via San Teodoro, 8,

    frente ao antigo frum romano. Neste perodo, a editora Le Parole Gelate iniciou o

    processo de publicao de seus escritos musicais e literrios e a editora Salabert, de

    Paris, inicia a publicao de sua obra musical. Nestes anos, Scelsi viajou muito

    pouco, saindo de Roma apenas para comparecer aos concertos a ele dedicados. O

    ltimo concerto em sua presena ocorreu no dia 01 de abril de 1988, em La Spezia,

    sua terra natal, onde nunca havia retornado desde sua infncia.

    44 De 1972. " memria de Jani e Sia Christou." Para voz, 12 instrumentos e fita magntica (flauta,corne-ingls, clarineta, fagote, sax alto, trompa, trompete, trombone, 2 violinos, viola e violoncelo).Primeira execuo em Roma, 1972, sob direo de Gianluiggi Gelmetti. Durao: 7 minutos e 30segundos.45 De 1975. Para 2 vozes femininas em unssono e voz feminina com fita magntica. Primeiraexecuo em Roma, 1980, por Brenda Hubbard. Durao: 4 minutos.46 De 1974. Para piano amplificado. Primeira execuo em Roma, 1982. Durao: 6 minutos.47 De 1960. "Um reino diferente."Para 4 percussionistas, timpanista e orquestra (flautim, 2 flautas, 2

    obos, 2 clarinetas Bb, clarineta baixo, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 2 trombones, tuba baixo,tuba contrabaixo, cordas sem violinos), mais instrumentos amplificados. Primeiro microfone: obocorne-ingls, clarineta, flautim. Segundo microfone: trompa, sax tenor, serra, viola, contrabaixo.Terceiro microfone: 2 trompetes, trombone. Durao: 6 minutos.48 De 1968. Para 6 vozes masculinas, violo amplificado e 2 percussionistas. Durao: 14 minutos.49 De 1966. "A lenda da cidade Maia que se auto-destruiu por razes religiosas." Para 7percussionistas, timpanista, coro e orquestra: (clarineta Eb, clarineta Bb, clarineta baixo, 4 trompas, 2trompetes, 3 trombones, tuba baixo, tuba contrabaixo, sistro, vibrafone, ondas Martenot, 6contrabaixos. Durao: 20 minutos.50 De 1962. "O funeral de Alexandre Magno" (323 a.c.). Marcha ritual. Para rgo eletrnico,contrafagote, tuba, contrabaixo, e percussionista (bumbo, tmpanos e tam-tam). Primeira execuo

    em Amsterd.Durao: 7 minutos e 45 segundos.51 De 1973. Para 9 instrumentos: 2 flautas, trompa, clarineta baixo, rgo eletrnico, violino, viola,violoncelo, e contrabaixo. Primeira execuo em Roma, 1975, sob direo de De Barnard. Durao: 6minutos.

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    (Vista do Frum romano, foto tirada da casa de Scelsi na Via San Teodoro, 8, que abrigahoje a sede da Fondazione Isabella Scelsi)

    Nos ltimos anos de sua vida, Scelsi tinha uma premonio de que, quando os 8 se

    alinhassem, nmero que certamente ele associava idia de infinito, ele partiria.

    Esta fixao pelo nmero 8 pode ser relacionada maneira como o tempo, em suamsica, se torna encantado, parecendo no ter comeo nem fim. A percepo dos

    eventos sonoros fica congelada no presente, como se suspensa por um tipo de

    transe. Scelsi, de fato, cessou suas comunicaes neste mundo, no dia 08/08/1988,

    vindo a falecer no dia seguinte.

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    1.2 REVISO BIBLIOGRFICA

    Neste primeiro momento, faremos com que os verbetes dos dicionrios,

    principalmente as edies de 1954, 1980 e 2001, do Grove Dictionary of Music and

    Musicians,junto aos autores que, de algum modo, se remetem a Scelsi, falem a

    respeito da vida e obra do compositor. Ao lado da inexatido das datas, as

    informaes, muitas vezes contraditrias sobre os acontecimentos, reforam a idia

    de que Scelsi nunca se preocupou com uma biografia oficial, o que dificulta o

    trabalho de quem se lance em tal empreendimento.52 Esta reviso da literatura se

    dividir em trs partes: dicionrios, textos biogrficos e de anlise e textos referentes

    msica espectral.

    1.2.1 Dicionrios

    Comecemos, ento, com os verbetes dos dicionrios Grove, que se tornaro mais

    elaborados a partir da verso de 1980, quando, ento, as anlises englobam a

    caracterstica metafsica de sua obra. Todos os verbetes, com exceo do primeiro,

    se referem a uma primeira fase prxima s tendncias futurista, atonal,dodecafnica, surrealista,53 alm da influncia sofrida pelos procedimentos

    composicionais e estticos de Scriabin.54 A ruptura dos anos 50, que instaura novos

    procedimentos composicionais e novas perspectivas para sua arte, enfocada

    somente nos verbetes mais recentes, 1980 e 2001. A msica de Scelsi sofreu, talvez

    como a de nenhum outro compositor do sculo XX, a influncia das filosofias

    52 As obras com datas errneas sero indicadas no corpo do texto com a data trazida pelo autor doverbete e a data correta trazida em nota. As obras sem problemas de data sero trazidas somentecom o nome no corpo do texto, sendo que todas as outras informaes estaro presentes em nota.53 Scelsi se remete aos concertos futuristas organizados por Russolo (este fato comentado maisadiante). A esttica futurista prev a arte dos rudos; esta esttica aponta a ineficincia da orquestratradicional na criao de sons que, no incio do sculo, j habitavam a paisagem sonora das cidades.Os futuristas invocavam os sons-rudos rompendo com o crculo restrito dos sons puros. Scelsitambm foi influenciado pelas idias de Andr Breton, sendo que, depois, especificamente em Art etconnaissance (SCELSI, 1982), ir criticar tambm esta esttica, dizendo que a maioria dos trabalhossurrealistas no conseguiram romper com as camadas superficiais do subconsciente e do sonho.54 As semelhanas entre Scelsi e Scriabin so inmeras: o misticismo, a influncia da teosofia, oeclipse pelo qual suas obras passaram e a busca de uma nova sonoridade, no caso de Scriabin,

    tentando romper com o tonalismo e os preceitos composicionais de Wagner e, no caso de Scelsi,rompendo com a esttica da segunda escola de Viena e tudo o que ela representava. Para maioresdetalhes sobre os materiais e tcnicas utilizados por Scriabin ver (COOPER, 1973, p. 229), (DALLIN,1974, p. 99), (KOSTKA, 1990, p. 62), (PERSICHETTI, 1985, p. 61, 81, 85, 222).

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    orientais e a consumao do conceito de medium no qual baseou todo seu

    pensamento composicional aps os anos 50.

    Em 1954, na quinta edio do dicionrio Grove of Music and Musicians, Felix

    Aprahamian iniciou o verbete sobre Giacinto Scelsi, ressaltando que o av do

    compositor foi um dos heris do ressurgimento italiano55, no sculo dezenove e seu

    pai, um dos pioneiros da aviao na Itlia. Comenta tambm que Scelsi, desde muito

    cedo, com apenas cinco anos de idade56, mostrou aptido musical, tocando piano e

    improvisando com facilidade. Aprahamian relata viagens de Scelsi pela Europa,

    principalmente Frana, Inglaterra e Sua e ressalta os estudos de composio em

    Roma com Giacinto Sallustio e as instrues recebidas de Ottorino Respighi eAlfredo Casella,57 no se tornando discpulo de nenhum deles.

    Esta afirmao de Annibaldi faz com que nos lembremos de que Scelsi, na

    realidade, nunca foi discpulo de ningum. O que ocorreu, devido s suas viagens a

    Paris, Genebra e Viena, foi a absoro, por parte do compositor, de inmeras

    tendncias composicionais em voga na poca. A partir disto, seu estilo se tornou

    uma mistura de impressionismo, neo-classicismo, mecanicismo e atonalismo daSegunda Escola de Viena. A produo deste perodo, em sua maioria, para piano.

    Os materiais utilizados na Sute 6 e na Sonata 2, por exemplo, ambas de 1939,

    incluem: reiteraes de clusters, figuraes de segundas menores e j neste

    perodo, a repetio de uma mesma nota. O uso de tcnicas impressionistas, como

    o pandiatonismo e acordes de teras estendidos, com movimento paralelo,

    aparecem em Chemin du coeure Dialogo.58 Esta influncia da msica francesa em

    Scelsi, tambm encontrada nas canes de 1933 e 1937, sobre poesia francesa.

    59

    Seu contato com o impressionismo se deu a partir da convivncia com a msica de

    55 Processo de unificao da Itlia, ocorrido entre 1815 e 1861, e que resultou na expulso dosfranceses e austracos que governavam provncias italianas, principalmente Bologna eAncona.56 Scelsi menciona a idade de 3 a 4 anos, o que conota, portanto, extrema precocidade.57 Os trs compositores trabalhavam sob uma esttica neo-clssica, enraizados na tradiogermnica. Casella chegou a sugerir que a msica italiana deveria resistir ao que ele chamou desirene alm dos Alpes, referindo-se ao impressionismo francs.58

    De 1932, pea para violoncelo e piano.59LAmour et le crne, de 1933, sobre poema de Charles Baudelaire. Primeira execuo em Roma,1934. Perdus, de 1937. Poema de Jaan Wahl. Primeira execuo em Paris, 1949. Durao: 4minutos.

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    Scriabin, que, alis, possui influncia mais forte sobre o tratamento harmnico usado

    por Scelsi, como a harmonia quartal, presente em algumas de suas peas para

    piano da dcada de 30.

    Seu primeiro sucesso ocorreu em 193160, com a pea orquestral Rotative, executada

    por Pierre Monteux. Aps este perodo, realizou viagens ao Oriente e frica e

    estudou em Viena com Walter Klein,61 sendo influenciado pela escola de

    Schoenberg.62 Em 1937, organizou, em colaborao com Goffredo Petrassi, uma

    srie de concertos de msica contempornea, em Roma. Em 19431945, na Sua,

    comps seu primeiro quarteto de cordas e Balade63, para Violoncelo.

    Durante este perodo, Scelsi escreveu muitos ensaios musicais e contribuiu com a

    revista La Suisse Contemporaine.64 Sua mais importante composio deste perodo

    La nascita del verbo, terminada em maio de 1948. Esta imensa obra, para coro

    (incluindo partes solo) e orquestra, baseada num poema do prprio compositor.

    Um livro de poesia, em francs, foi publicado em Paris, em 1950.65

    Claudio ANNIBALDI (1980)66

    comenta a educao recebida por Scelsi, durante suainfncia aristocrtica, remetendo-se ao ttulo de Conde d'Ayala Valva.67 Annibaldi

    ressalta a excepcional musicalidade do compositor quando ainda criana, sem que

    tivesse estudado msica sistematicamente. O que Annibaldi destaca que Scelsi

    aprendeu com Sallustio os rudimentos da harmonia tradicional e, durante o perodo

    entre guerras, viajou para Genebra, onde estudou com Koehler que o iniciou no

    60 H uma discordncia entre as datas, a data correta 1930.61 Walter Klein foi um discpulo de Schoenberg.62 A influncia de Schoenberg, via Walter Klein, apresenta-se de modo claro em algumas peas,principalmente a cantata La nascita del verbo, na qual Scelsi comenta a utilizao de uma sriedodecafnica.63 De 1943, Balatta , na realidade, uma pea para piano e violoncelo. Primeira execuo em Losane,1945, por Paul Burger, violoncelo e Denise Bidal, piano. Durao: 15 minutos.64Le sens de la musique in Suisse Contemporaine n. 1, Losane, janeiro de 1944.65 Trata-se de Le poids net, publicado em Paris, no ano de 1949. H uma verso em ingls do mesmolivro, traduzido por Robin Freeman, sob o nome Summit of fire, publicado em 1984, porBrans HeadBooks e uma verso da editora Le parole gelate,de 1988, na lngua original.66 No verbete da edio do New Grove Dictionary of Music and Musicians.67 A educao recebida por Scelsi, no castelo da famlia em Valva, constitua-se em aulas de xadrez,esgrima e latim. Para a genealogia da famlia, ver nota 7.

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    sistema composicional de Scriabin. Depois, em Viena, entrou em contato com a

    tcnica dodecafnica, atravs de Klein, um discpulo de Schoenberg, em 193536.68

    Voltou para Roma, em 195169, onde participou, como membro do grupo Nuova

    Consonanza,70 da organizao de concertos de msica contempornea, como j

    havia feito em 193435. Escreveu ensaios filosficos e musicais, muitos no

    publicados71, exceto aqueles que contribuiram para La Suisse Contemporaine em

    1943 e 45. Annibaldi ressalta, ainda, que para Scelsi:

    A msica uma forma de ligao intuitiva com o transcendental oque implicaria numa anulao da individualidade criativa e explicariaas suas inmeras mudanas de estilo, contribuindo para a

    caracterstica no profissional de sua vasta produo, podendo servista meramente como um fenmeno que incorpora um processoespiritual substancialmente imutvel.

    As caractersticas dos trabalhos realizados at o incio da dcada de50, embora de aparente dificuldade, como na Sonata para violino de1934,72 foram apreendidas da tradio musical europia. Estestrabalhos empregam geralmente o atonalismo livre, com estilos quevo da "machine music"em moda nos anos 20, como em Rotativepara conjunto de cmara, ao neo-romantismo com influncias deScriabin, como em Poemi73 de 1937, ou na difcil Balatta de 1945.74O serialismo emerge nas Variaes e Fuga para piano de 1941, uma

    pequena homenagem a Webern, e na cantata La nascita del verbo(ANNIBALDI, 1980, p. 581, traduo de A. Siqueira).

    68 Scelsi diz que estudou com Klein, em 1935 ou 1936, sendo o perodo de estudo de apenas 3 dias.(REISH, 2001, p. 5).69 Scelsi retornou a Roma de seu refgio na Sua, com o fim da guerra em 1945. Na data citada porAnnibaldi, Scelsi estaria retornando da clnica (Sua) onde ficou internado.70 Grupo composto pelos compositores Domenico Gucero (19271984) e Franco Evangelisti (19261980). "As inclinaes polticas de esquerda do grupo geraram certa animosidade com relao aScelsi, principalmente por causa de seu dinheiro, seu ttulo e seu refgio na Sua durante a guerra.Porm, Evangelisti e alguns outros admiradores da obra de Scelsi insistiam em sua contnuaparticipao conseguindo algumas execues espordicas de suas peas" (REISH, 2001, p. 9,traduo de A. Siqueira).71 Os ensaios aos quais Annibaldi se refere, provavelmente so "Art e connaissance" (arte econhecimento) e "Son et musique" ( som e msica), publicados entre 1981 e 82, pela editora LeParole Gelate, Roma e Veneza.72 A Sonata de 1934 para violino e piano. Primeira execuo em Roma, 1984, por Massimo Coen,

    violino, e Richard Trythall, piano.73 Obra para piano de 1934. Primeira execuo em Roma, 1935, por Nikita Magalof.74 A obra foi composta em 1943.

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    Annibaldi chama a ateno para a imensa capacidade de sntese demonstrada por

    Scelsi na cantata, ao opor vrias tendncias da msica ocidental, inclusive o

    dodecafonismo, a um texto potico puramente metafsico.

    A partir dos anos 50, conforme Annibaldi, Scelsi abandonou os ttulos convencionais

    de suas obras e passou a usar termos exticos ou esotricos, como veremos no

    decorrer do texto, voltando-se para o ascetismo da arte oriental. Isto envolveu uma

    mudana tcnica significativa dos procedimentos que caracterizavam sua msica,

    procedimentos estes j existentes no Quarteto 1. Engenhosamente, Scelsi enfatizou

    a abertura harmnica75, para desenvolver a tenso de toda a obra, como na

    envolvente Quattro pezzi per orchestra, onde cada pea baseada em uma nicanota, com a ateno focada em pequenas variaes de ritmo, dinmicas e alturas

    que, de certo modo, sugerem a comparao com prticas meditativas. Alm disso, a

    escrita micro-intervalar to fortemente explorada nesta obra e, posteriormente,

    desenvolvida principalmente nas composies para cordas, como em seus ltimos

    trs quartetos,76 e em Xnoybis77 e Natura Renovatur,78 permitiu a incluso de

    material sonoro fora do sistema temperado, como o emprego de clusters e de

    recursos da musique concrte, respectivamente emAction music79

    e Prnam.80

    Tendo rompido com a atitude esotrica "fora de moda" de seusprimeiros trabalhos (uma atitude com antecedentes nos interessesteosficos de Scriabin e Schoenberg), o desenvolvimento de Scelsinos ltimos vinte anos tem revelado uma profunda simpatia pelatendncia anti-racional da nova msica. Termina, assim, uma longavida de isolamento que ajuda a explicar a ausncia de qualquer

    75"A potncia com a qual os blocos de acordes de ritmo pontuado, na introduo Quasi Lento,vo defato, explodir, para penetrar nos mistrios e profundidade do som"(ZENCK, 1983).76 Scelsi comps ao todo cinco quartetos de cordas: Quarteto 1 de 1944, primeira execuo em Paris,1950, pelo Quatourde Paris, durao: 28 minutos; Quarteto 2 de 1961, primeira execuo em Roma,1962, pela Societ Cameristica Italiana, durao: 17 minutos; Quarteto 3 de 1963, primeira execuoem Roma, 1976, pelo Quartetto di Nuova Musica, durao: 16 minutos; Quarteto 4 de 1964, primeiraexecuo em Atenas, 1966, pelo Quartetto di Nuova Musica, durao: 10 minutos; Quarteto 5 de198485, " memria de Henri Michaux", primeira execuo em Roma, 1985, pelo Arditti StringQuartet.77 Para violino solo, de 1964. Primeira execuo em Paris, 1964, por Devy Erlih. Durao: 14 minutos.78 Para 11 instrumentos de arco, de 1967. Primeira execuo em Veneza, 1969, sob direo de

    Claudio Scimone. Durao: 10 minutos e 30 segundos.79 De 1965. Para piano solo. Durao: 15 minutos.80 Trata-se de Pranam Ide 1972, vide nota supra 44.

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    escrito sobre ele (ANNIBALDI, 1980, p. 581, traduo de A.Siqueira).

    O verbete, escrito por David OSMOND-SMITH para a segunda edio do New Grove

    (2001, p. 42021), acrescenta vrias informaes sobre o nascimento aristocrtico

    de Scelsi, lembrando-nos o ttulo de conde do compositor e enfatizando a recepo

    de seu casamento no palcio de Buckingham.81 A msica de Scelsi atraiu grande

    nmero de msicos, principalmente em Paris, onde Pierre Monteux regeu a estria

    de Rotative. OsmondSmith lembra que, aps o sucesso inicial como compositor,

    Scelsi sofreu um devastador colapso mental entre a composio de La nascita del

    verbo e a sute 8 Bot-ba.82

    Sobre as primeiras composies de Scelsi, o autor do artigo repete as mesmas

    informaes de Annibaldi. Osmond-Smith ressalta que os trabalhos posteriores

    dcada de 50 revelam a preocupao com a obsessiva reiterao de sons

    individuais, um legado do longo perodo de reabilitao de sua doena. Scelsi

    descreve como tocava persistentemente, por vrios dias, uma mesma nota ao piano,

    desenvolvendo assim um novo tipo de escuta intensamente focado. As formas, com

    vrios movimentos de suas peas subseqentes, podem ser ouvidas como extenso

    da explorao reiterativa de um mesmo som. O artigo indica que, apesar de sua

    msica continuar atraindo performances nos anos 50 e 60, a carreira de Scelsi foi

    eclipsada pela emergncia dos compositores italianos do ps-guerra, tendo sido, a

    partir disto, marginalizada. Isto ocorreu at os anos 70, quando sua obra comeou a

    ser reconhecida por uma nova gerao de compositores, entre eles, Alvin Curran,

    Tristan Murail, Gerard Grisey e Horatiu Radulescu. O interesse destes compositores

    pela msica de Scelsi reside, particularmente, na concentrao de transformaesgraduais do timbre.

    Ainda de acordo com OsmondSmith, nos anos 60, muitos compositores da

    vanguarda iniciaram a explorao da vida interna dos sons, escrevendo obras que

    81 Sua esposa Dorothy, cujo apelido "Ty" figura em dois ttulos de composies de Scelsi, seria

    parente da famlia real britnica.82 Sute para piano de 1952. "Uma evocao do Tibete com seus monastrios sobre altas montanhas.Rituais tibetanos Preces e danas."Primeira execuo em Middelburg, 1977, por Geoffrey Wladge.Durao: 25 minutos.

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    focam pequenas flutuaes sobre aglomerados sonoros que se estendem no tempo.

    A distino entre as peas do italiano e os trabalhos de Gyrgy Ligeti ou Frederich

    Cerha a profunda subjetividade do engajamento de Scelsi com o material,

    engajamento do qual a abstrao parece no fazer parte.83 Em sua maioria, as

    caractersticas de timbre, registro e dinmica so ouvidas como potencialidades

    expressivas, inerentes a cada som. Scelsi, intuitivamente, comps obras que podem

    ser ouvidas como antecipao de desenvolvimentos sistemticos, no s da msica

    espectral, mas tambm da explorao do contnuo alturatimbre na msica

    eletroacstica.

    O mundo espiritual dos trabalhos maduros de Scelsi enraizado em uma mistura

    extica de pantesmo e teosofia,84 derivada de Gurdjieff, Blavatsky e Sri Aurobindo,

    mas tambm estimulado por suas visitas ndia e Nepal. Scelsi viu seu trabalho

    como uma ponte entre as estticas do Oriente e Ocidente, utilizando os recursos

    instrumentais do Ocidente em uma msica em que o foco meditativo em sons

    individuais possui uma ligao com ambas as tradies monsticas, do Budismo

    Tibetano e do princpio isonmico do culto ortodoxo bizantino.85 Os ttulo de suas

    obras oferecem vrias evidncias:Ain,86Anahit,87Pwyll,88Konxompax.89

    83 Os detalhes sobre os procedimentos composicionais e a escrita das obras de Scelsi sero tratadosnos captulos subseqentes.84 No captulo relativo ao orientalismo, traremos maiores detalhes sobre as influncias destasdoutrinas na vida e obra de Scelsi.85 Este princpio isonmico provavelmente se refere ao canto bizantino, no qual notas longas deigual durao so sustentadas enquanto ocorrem floreios sobre estas.86 De 1961. "Quatro episdios de uma jornada de Brahma." Para 6 percussionistas, timpanistas e

    orquestra (2 obos, corne-ingls, 2 clarinetas Bb, clarineta baixo, 3 fagotes, contrafagote, 6 trompas,3 trompetes, 4 trombones, 4 tubas, harpa, 4 violoncelos, 4 contrabaixos). Primeira execuo emColonia, 1985, sob a regncia de Zoltan Pesko. Durao: 19 minutos.87 De 1965. "Poema lrico dedicado a Vnus."Para violino e 18 instrumentos (2 flautas, flauta baixo,corne-ingls, clarineta Bb, clarineta baixo, 2 trompas, trompete, saxofone tenor, 2 trombones, 2 violas,2 violoncelos, 2 contrabaixos). Primeira execuo em Atenas, 1966, violino: Devy Erlih. Durao: 11minutos.88 De 1954. Pwyll um termo drudico gauls. Para flauta solo. Primeira execuo em Roma, 1957,por Severino Gazelloni. Durao: 6 minutos.89 De 1969. O ttulo traz a palavra "paz", em assrio antigo, snscrito e latim."Trs aspectos do som:enquanto primeiro movimento do Imutvel, enquanto Fora Criativa, enquanto a slaba Om." Para

    coro e orquestra (2 obos, 2 clarinetas Bb, 2 clarinetas baixo 2

    tambm como 3

    clarineta Bb 4trompas, 2 trompetes, 4 trombones, 2 tubas baixo uma delas tambm tuba tenor 2 harpas,tmpanos, sistro, 2 percussionistas, rgo de trs teclados, cordas. Primeira execuo noreconhecida pelo autor no 32 Festival Internacional de Msica Contempornea, na Bienal de

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    OsmondSmith