o lado escuro da lua · público e privada, na temática da história da África e das populações...
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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
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O Ensino de História da África: apontamentos da experiência em torno do Curso de
Formação Continuada de Professores(as)
Carolina Corbellini Rovaris1
Resumo: O Curso de Formação Continuada de Professores(as) intitulado “Introdução aos
Estudos Africanos e da Diáspora”, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros
(NEAB/UDESC), tem como objetivo geral formar professores (as) da rede de ensino
público e privada, na temática da História da África e das populações de origem africana na
diáspora. Realizado na modalidade a distância (EaD), através da Plataforma Moodle, o
curso envolve acadêmicos (as) de graduação em História da UDESC/FAED, professores(as)
e pesquisadores(as) associados(as) ao NEAB, na discussão, sistematização e elaboração de
materiais didáticos sobre a temática. Tal ação visa contribuir para a implementação dos
princípios e dos fundamentos contidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana. A presente comunicação pretende apresentar alguns resultados do curso
realizado em 2013 apontando, a partir da análise das discussões realizadas pelos
professores(as) cursistas nos Fóruns de discussão, a forma como os conteúdos relacionados
a história e cultura de algumas sociedades africanas foram apropriados pelos(as) mesmos
(as).
Palavras-chave: África, Diáspora, História, Formação Continuada.
O Projeto História da África e das Populações de Origem Africana na Diáspora
Com a sanção da Lei Federal n.º 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004) ocorreu a demanda por ações
que contribuíssem para a implementação de tais dispositivos legais. Neste sentido, o Núcleo
de Estudos Afro-brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC)
organizou e desenvolveu o curso de formação continuada para professores(as) da rede de
ensino intitulado “Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora”.2 Por ser um curso a
distância, contamos com o apoio do Centro de Educação a Distância - CEAD, que
disponibilizou e auxiliou no uso da Plataforma Moodle, usada como ferramenta para o
desenvolvimento do trabalho. O curso ofereceu 500 vagas a nível nacional, sendo que todas
foram preenchidas. Dos que iniciaram o curso, 168 concluíram os estudos e receberam a
certificação.
1 Graduanda da 5a fase do Curso de História. Bolsista do NEAB (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros) da UDESC, vinculada
ao Projeto de Extensão “História da África e das Populações de Origem Africana na Diáspora”, coordenado pela professora
Doutora Claudia Mortari. E-mail: [email protected] 2 O referido curso faz parte do Projeto de Extensão “História da África e das Populações de Origem Africana na Diáspora”,
coordenado pela Professora Claudia Mortari. No ano de 2013 foi oferecida a sua terceira edição. Tal projeto faz parte de dois
Programas de Extensão: Diversidade Étnica na educação (Edital UDESC/PAEX de 2012) e Memorial Antonieta de Barros
(Edital MEC/PROEXT 2011).
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A preparação e elaboração do curso envolveu acadêmicos de graduação em História da
UDESC/FAED, professores(as) e pesquisadores(as) associados ao NEAB. Estes discutiram,
sistematizaram e elaboraram um conjunto de conhecimentos históricos sobre a temática –
desenvolvidos no âmbito das disciplinas de História da África I e II e dos projetos de pesquisa
desenvolvidos no Núcleo –, para serem compartilhados e disseminados. Especificamente as
temáticas discutidas estão vinculadas a processos históricos ocorridos no continente africano e
na diáspora empreendidos pelas populações africanas.
Partimos do princípio que a disseminação de conhecimentos relativos à temática,
através do curso, poderia possibilitar a apropriação de referenciais históricos para a reflexão
do tema e incorporação nos currículos e nas práticas pedagógicas de conteúdos e de ações
objetivando que à comunidade escolar estabelecesse uma reflexão sobre a diversidade,
visando a luta pelo direito de cidadania, de solidariedade e de respeito para com todas as
referências culturais de africanos e seus descendentes na sociedade atual construindo
possibilidades para o enfrentamento da discriminação.
O presente trabalho apresentará alguns resultados desta terceira edição do curso,
realizado no período de 03 de abril a 21 de junho de 2013. A partir da análise das postagens
realizadas pelos(as) professores(as) cursistas nos fóruns de discussão, buscou-se compreender
a forma como os conteúdos relacionados à história e cultura de algumas sociedades africanas
foram apropriados pelos(as) mesmos(as).
Sobre a Lei 10.639/2003 e a Formação Continuada de Professores(as)
A aprovação Lei Federal n.º 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana (Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004) é resultado, como lembra Cardoso
(2006), da luta nas últimas três décadas de educadores e organizações antirracistas. Está
pautada na ideia de que o conhecimento possibilita romper e contestar ideologias e
preconceitos instituídos na sociedade brasileira, através de uma pedagogia antirracista. Isto
porque, estudos recentes sobre desigualdade e pobreza no Brasil apontam que a negação da
contribuição histórica dos africanos (e seus descendentes) pode ser considerada fator de
exclusão e produção de desigualdade. A implementação destes dispositivos, portanto,
colabora sobremaneira para o combate ao racismo e a discriminação. Além disso, representam
o rompimento com o silêncio oficial sobre a questão.
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Na introdução das Diretrizes, sua relatora, Conselheira Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva (Diretrizes, 2004, p. 10), afirma que estas têm como objetivo oferecer na área da
educação resposta às demandas das populações afrodescendentes, através do estabelecimento
de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, de reconhecimento e
valorização de sua história, cultura e identidade. Neste sentido, trata-se de uma política
curricular que tem como fundamento as dimensões históricas, sociais e antropológicas
provenientes da realidade brasileira, que tem como objetivo combater o racismo e as
discriminações que atingem particularmente os negros. As questões introduzidas pelo parecer
abrangem um amplo público alvo: professores, administradores e todos aqueles envolvidos na
elaboração, execução e avaliação de programas de interesse educacional. Assim, torna-se
necessário o planejamento de ações que efetivem a implementação da Lei 10.639/2003 e das
Diretrizes nos sistemas educacionais, o que inclui também a introdução de novas abordagens
e perspectivas de ensino na escola e a produção de novos conhecimentos3.
No sentido de contribuir para estas questões, mas, também, para além delas,
implementamos o curso Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora visando a
capacitação de professores(as) para atuar no ensino básico. Primeiramente, é necessário
considerar que este é um campo no qual os profissionais reproduzem e promovem reflexões
que contribuem para a formação de posturas dos indivíduos na sociedade, bem como para a
construção de visões de mundo. Evidentemente sabe-se que a educação não está presente
somente no âmbito escolar, mas este ainda é considerada o principal espaço de formação de
posturas e perspectivas. Assim, a capacitação do(a) professor(a) é fundamental para a
implementação da lei, uma vez que, como afirma Lima (2009), é na sala de aula que a maioria
dos jovens terá possibilidade de entrar em contato pela primeira vez com o continente
africano como um espaço de produção de saberes, técnicas e riqueza.
No entanto, para Lima (2009), várias dificuldades e obstáculos estão presentes neste
caminho. Primeiro deve-se considerar que o currículo multicultural para o ensino escolar
ainda se configura como uma proposta pedagógica inovadora, visto que não cabe no
funcionamento tradicional das instituições de ensino. Segundo, grande parte da geração de
professores que atua no ensino básico e procura cursos de formação continuada em história da
África, afirmam nunca terem tido contato com a temática na graduação, portanto, não se
3 Evidentemente, existem críticas específicas realizadas por historiadores em relação as Diretrizes. Sobre esta questão ver:
ABREU, Martha e MATTOS, Hebe. Em torno das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-
raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 21, nº 41, janeiro-junho de 2008, p. 5-20.
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considerando preparados para ensiná-la na sala de aula. Além disso, afirmam que não
encontram bibliografias de boa qualidade nem material didático para trabalhar com os alunos.
Entretanto, isto não justifica um absoluto imobilismo dos professores em tratarem da
temática.
Tais questões apontadas pela autora são encontradas também em relação aos
professores que realizaram e concluíram o nosso curso. Destes, 53%4 se graduaram entre os
anos de 2006 e 2012, portanto, após a sanção da Lei 10.639/2003, mas não tiveram em sua
formação, preparação para o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. A busca
pelo curso teve como objetivo o conhecimento e aprofundamento na temática visando a
atuação em sala de aula para a implementação da lei 10.639/03 e, mais especificamente, para
lidar com questões relacionadas ao racismo no dia-a-dia.
Outro fator importante do perfil dos professores cursistas é que 17 deles, ou seja, 10%
do total tem formação e atuam na área de História e o restante, 90% estão inseridos em
diversas áreas do conhecimento, desde a Biologia ao Teatro. Especificamente em relação aos
professores de história, onze já haviam realizado cursos na temática e outros onze cursado
alguma disciplina que apresentou temas em relação a História da África na graduação. No
entanto, a abordagem dada à história das populações africanas e afrodescendentes apresenta
variações: para alguns houve a valorização e discussão crítica das contribuições destas para a
cultura e história brasileira; para outros, além de não contarem com uma disciplina específica
de história da África, a abordagem em relação ao tema foi feito sob a ótica da escravidão nas
disciplinas de História do Brasil. Contudo, em todos os casos, esta perspectiva foi abordada
somente numa disciplina e durante um semestre.
Das abordagens sobre os principais temas estudados e as discussões feitas nos fóruns
Ao longo do curso, os professores cursistas tiveram acesso ao material pedagógico e,
uma vez realizadas as leituras de cada capítulo5, tinham de participar de todas as discussões
dos fóruns, que se constituíam em um espaço de debate nos quais os tutores e os cursistas
4 Dados obtidos através do questionário de inscrição do curso. 5 Os conteúdos trabalhados no curso foram organizados em três módulos, disponibilizados através da Plataforma Moodle. No
módulo I intitulado “O Ensino de História da(s)África(s): alguns apontamentos”, o conteúdo foi dividido em dois capítulos
nos quais está presente uma discussão acerca do ensino de História da África e da historiografia finalizando com uma
abordagem sobre a concepção de tempo, história, ancestralidade e mito para algumas sociedades africanas. No módulo II,
“História da África (séculos XV ao XIX)”, também contendo dois capítulos, a abordagem é focada em algumas sociedades,
suas formas de organização e suas diversidades e o contato com os europeus. No módulo III, “Experiências das populações
africanas e afrodescendentes na diáspora”, contendo quatro capítulos, aborda-se a temática da diáspora africana através do
tráfico atlântico, dos vínculos familiares, das irmandades religiosas, das lutas por emancipação no pós-abolição e da
constituição do movimento negro no Brasil.
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expunham suas opiniões e considerações acerca da temática estudada. Através destes fóruns é
possível perceber e analisar de que maneira os professores se apropriavam dos conceitos,
abordagens e conteúdos propostos pelo curso.
Para nossa discussão, centraremos o foco de análise nas temáticas referentes aos
módulos 1 e 2, portanto, nas questões que envolvem a apreensão de conhecimentos sobre o
continente africano enquanto espaço de fazeres e saberes de diversas populações, a invenção
de África, as formas africanas de lidar com o passado e a escravidão em África. Vale apontar
que a abordagem dos conteúdos de todo o material do curso está pautada na ideia central de
que para mudarmos nossas concepções hegemônicas e enfrentarmos as desigualdades e os
preconceitos incrustados na sociedade brasileira, é necessário conhecer, discutir,
problematizar e refletir sobre a história das Áfricas e de suas populações. A intenção, neste
sentido, é de construir uma nova perspectiva sensível às experiências e histórias dos sujeitos,
destituída de ideias preconcebidas e de estereótipos. Portanto, lançou-se o desafio propor o
pensar e o refletir criticamente sobre as diversidades.
É sabido que a historiografia, durante um tempo, tratou a África como um continente
sem história, totalmente homogêneo e primitivo. Este tipo de conhecimento, etnocêntrico e
eurocêntrico, baseado numa concepção racial e na perspectiva imperial (a consciência
planetária) resultou numa imagem do continente e de suas populações a partir de uma ótica
preconceituosa e negativa. Essa perspectiva é denominada por Leila Hernandez (2005) de
“invenção da África”. Esta está relacionada à uma construção do conhecimento que advém do
racionalismo, que surge no século XVI e é consolidado entre a segunda metade do século
XVIII e a primeira metade do XIX. Este conhecimento fundamentou valores políticos, éticos
e morais ditos modernos, que dominaram o pensamento ocidental. Aqueles que não os
possuiam, ou que os ocidentais acreditavam que não possuiam, eram menos capazes. Assim, a
África e os africanos foram julgados sob os pressupostos dos europeus: “aproximando-se por
analogia o desconhecido ao conhecido considera-se que a África não tem povo, não tem nação
e nem Estado; não tem passado, logo, não tem História” (HERNANDEZ, 2005, p. 18). O
pensameto sobre a historicidade africana só vai mudar em meados do século XX, quando esta
vai ser considerada como um problema histórico e político em que busca-se explicar a África
pela sua pluralidade. Atualmente, tenta-se entender a África pelos seu próprios pressupostos,
considerando-se toda a sua pluralidade e diversidade, fundamentais para compreender o
processo histórico protagonizado pelos africanos. O material didático, portanto, remete-se a
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estas populações de maneira plural, referindo-se ao continente também de maneira plural: as
Áfricas.
É a partir das discussões anteriores que o primeiro fórum de discussão foi elaborado.
Este propunha aos professores que elaborassem um trabalho/atividade que pudesse ser
desenvolvido em sala de aula com base no que foi discutido nos conteúdos estudados,
instigando a construção de um novo olhar, destituído de ideias preconcebidas e de
estereótipos, sobre as experiências e histórias das sociedades africanas.
Neste sentido, em todas as postagens, os professores salientaram a importância de
inserir nas suas aulas as histórias e as culturas africanas e afro-brasileiras a partir de uma
abordagem voltada para os valores do continente africano, problematizando a imagem
estereotipada da África presente nos livros didáticos e demais meios de comunicação.
Inicialmente solicitaria que elaborassem uma lista ou desenhos com informações que
possuem sobre o continente africano, essa atividade poderia ser retomada ao final do
ano para percebermos se as impressões iniciais se alteraram, se o olhar para o
continente africano é o mesmo ou não. Partindo disso abre-se o leque para pensar
que essa imagem popularmente conhecida da África é uma imagem que o mundo
ocidental criou de um continente isolado, exótico, primitivo, selvagem, atrasado que
se integra á História apenas com a chegada dos europeus6.
Em uma de minhas experiências em sala de aula, pedi para meus alunos escreverem
quais são as primeiras ideias que eles tinham sobre a África, e a grande maioria me
respondeu: fome, miséria, doenças e escravidão. Isto posto, procurei mostra-los a
diversidade cultural presentes nas Áfricas e a relação com a história brasileira. Para
isto, utilizei alguns vídeos musicais de ritmos como o reggae, rap, blues e samba,
intercalando com a forte presença que a música da diáspora negra tem em nossa
cultura7.
A estratégia destes professores de partir das impressões próprias de seus alunos foi
muito válida, uma vez que isto aproxima o conteúdo escolar do seu cotidiano. Iniciar os
estudos sobre culturas e histórias africanas partindo do presente é um exercício eficaz, uma
vez que considera a consciência histórica dos alunos e a complexifica. Dificilmente as
imagens de miséria, fome e mundo selvagem que os alunos têm da África desaparecerão para
sempre. Contudo, é importante ensiná-los que as Áfricas não são somente isto. Não é
desconsiderar os problemas sociais, econômicos e políticos presentes no continente africano
contemporâneo, mas compreender que estes são apenas uma faceta do território, assim como
o são na Europa ou na América.
Esteve muito presente nos debates, portanto, o perigo de uma história única, uma vez
que muitos dos professores se apropriaram da fala de Chimamanda Adichie. Colocaram que
da mesma maneira que o eurocentrismo, o afrocentrismo também pode nos levar a algumas
6 Comentário realizado por um professor cursista no Fórum 1. Optou-se em não divulgar os nomes dos cursistas com o
objetivo de preservar a identidade do mesmo.
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armadilhas. Sendo assim, propunham trabalhar a temática não isolada em si mesma, mas
sempre concomitante a história de outras populações, principalmente fazendo conexões com a
História do Brasil.
No desenvolimento das minhas aulas de história procuro sempre desenvolver
relações entre diferentes fenômenos históricos e povos, como forma dos discentes
perceberem como as "coisas" estão inter-conectadas, facilitando também o
aprendizado deles em relação a tantos fenômenos históricos trabalhados na
disciplina.
Portanto o ensino de história das Áfricas com relação aos outros povos se torna
profícuo na medida em que o aluno consegue estabelecer o novo conteúdo a ser
aprendido com o anterior. No entanto, conforme expresso no capítulo 1 deste curso,
o ensino de História da África não pode somente privilegiar este aspecto, isto é, os
fatores exógenos, desse modo, desenvolvo com os meus alunos uma análise
detalhada da particularidade dos povos africanos estudados naquele contexto
histórico. Desse modo o contexto histórico estudado seria porta de entrada para o
estudo focalizado das realidades dos povos africanos.
Nesse sentido, vejo como é profícuo trabalhar o contexto religioso Medieval, com a
consolidação do cristianismo no Ocidente, e o desenvolvimento do Islão no Oriente
e sua expansão na África, nos detendo na caracterização dos reinos africanos (Kush,
Mali, Gana, Songai, etc.), portadores de sua própria história.8
Percebe-se ai, a apropriação da ideia de Waldman e Serrano (2007), que afirmam que
o continente nunca esteve isolado, ao contrário, é marcado pelo contato com outras
populações, que propiciou um intercâmbio cultural e étnico, além de trocas comerciais; e
também por deslocamentos e migrações, internas e externas, dos povos africanos. Este foi
outro ponto relevante para que os professores cursistas pudessem pensar no continente
africano como um continente heterogêneo.
Neste sentido, outra proposta que apareceu fortemente nas postagens foi a de trabalhar
a temática a partir da sua geografia:
é preciso situar o aluno quanto à localização do continente africano no mapa mundi
e pedir que em grupo, escolham um país do continente que desejam conhecer. Nesse
momento talvez seja necessário pedir que coloquem no papel suas impressões sobre
o país escolhido como por exemplo a economia, a religião, costumes e outros
aspectos que o professor ache importante. Peça que troquem suas impressões com os
colegas do grupo e observem o quanto elas coincidem e quais as diferenças entre as
mesmas. Para casa, peça que o aluno pesquise sobre o país escolhido pelo grupo e
que montem um vídeo com imagens e informações colhidas na pesquisa marque o
dia das apresentações e em seguida discuta com a turma sobre a relação entre o que
eles pensavam sobre o país escolhido e o que encontraram na pesquisa. Peça que
concluam o trabalho fazendo uma reflexão sobre o que aprenderam. Os alunos terão
uma visão dos países do continente africano bem diferente daquela retratada na
mídia e no livro didático9.
A abordagem histórica da África deve ser feita analisando-se sua extensão territorial,
aspectos geográficos distintos, a presença de vários povos com diferentes modos de
organização socioeconômica e diferente cultura, a mais longa ocupação humana que se
7 Comentário realizado por um professor cursista no Fórum 1. 8 Comentário realizado por um professor cursista no Fórum 1.
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conhece e o contexto das migrações que nela ocorreram. Ou seja, não se pode estudar a África
sem se ter conhecimento sobre as suas peculiaridades continentais.
Outra questão importante para o ensino da temática sobre as Áfricas se refere a
questão da ancestralidade e da tradição oral, a qual foi tema de estudo e fórum de discussão. É
sabido que o sujeito histórico africano possui características culturais próprias sendo o seu
pensamento caracterizado por dois aspectos fundamentais: sua intemporalidade e sua
dimensão essencialmente social. Sendo assim, é necessário pensar nos conceitos de tradição e
ancestralidade africanas. O segundo fórum, então, teve como problemática a importância da
oralidade, da tradição e da memória para as populações africanas. Para elas, questões como a
palavra, o mito, o tempo, a memória servem de base para o seu ser, estar e explicar o mundo.
A partir destas considerações e do material de base, os cursistas deveriam apontar os
princípios que norteiam a tradição oral. A seguir, destacamos algumas discussões apontadas
por um cursista:
A oralidade dessas sociedades desenvolve a memória e fortalece a ligação entre o
homem e a palavra. A palavra, como vimos é considerada divida, é lenda, mas não
se limita a isso, ela é religião, ciência natural, arte, história, divertimento. Um velho
ao fazer uma caminhada pelo bosque encontrar uma colmeia transforma esse
episódio, então em conhecimento sobre as abelhas (a vida em comunidade, a
solidariedade para se fazer o mel e até a mesmo a hierarquia presente). Assim
qualquer acontecimento pode ser transformado em vários tipos de conhecimento. Os
Diélis (poetas e músicos que conhecem muitas línguas e viajam pelas aldeias
contando e cantando histórias tem em seu próprio significado a essência do que a
palavra falada. Díeli em língua bambara quer dizer “sangue”; e a circulação do
sangue é a própria vida em movimento. Como a palavra que circula. Esses
contadores de história são tão importantes que em caso de guerra, são poupados pelo
inimigo para que a história daquele povo seja preservada. O a África pode ensinar
para o resto do mundo? Essa pergunta pode ir permeando nossos estudos fica aqui
dois grandes ensinamentos: o respeito aos mais velhos, e o “fio de bigode” tão
importante ou mais que um carimbo de cartório.
A oralidade foi ponto mais marcante nas respostas dos cursista: em todas, a palavra
falada foi colocada como um valor moral fundamental além de um caráter sagrado vinculado
à sua origem divina e considerada a materialização da vibração das forças. Conforme afirma
Hampaté-Bâ: “A tradição, pois, confere a Kuma, a Palavra, não só um poder criador, mas
também a dupla função de conservar e destruir. Por essa razão a fala, por excelência, é o
grande agente ativo da magia africana.” (1982, p. 186).
A tradição africana é essencialmente oral e a ancestralidade está intimamente ligada à
memória, uma vez que há uma tentativa constante de invocar o passado, e ao tempo, pois “a
causalidade atua em todas as direções: o passado sobre o presente e o presente sobre o
9 Comentário realizado por um professor cursista no Fórum 1.
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futuro”. (BOUBOU; KI-ZERBO, 1982, p. 62). O tempo e história africanos giram em torno
da força vital do universo. Cada população possui um mito fundador e este, por sua vez,
governa e justifica a história. Ao tecerem considerações sobre a problemática do segundo
fórum, os cursistas centraram suas respostas na concepção da palavra. Instigados pelas tutoras
a fazer relações com a diáspora, principalmente com o Brasil, e sobre a relação dos mitos e
ancestralidade, os mesmos retomaram os textos bases e fizeram comentários a respeito.
Uma vez que a história, os mitos, e a oralidade estão conectados na cosmogonia
africana, o segundo elemento corrente nas discussões dos cursistas foi refletir sobre as formas
de lidar com o passado e com a história através da palavra.
A concepção que havia anteriormente, mas precisamente com os historiadores
europeus do século XIX era de que a história devia ser fundamentada em
documentos oficiais, tanto que a divisão (que inclusive ainda é adotada atualmente)
entre Pré-História e História tem esse pressuposto. Porém, com o desenvolvimento
da Ciência da História e principalmente com a Pós-Modernidade, a contribuição da
Antropologia e das Ciências Sociais trouxe uma nova perspectiva de documento
histórico. Abriu-se um leque de possibilidades para o estudo da história que nos
mostrou novas formas de entender comunidades e sociedades com roupagens
diferentes, tentando assim, romper com o eurocentrismo. A tradição oral é
considerada hoje uma fonte histórica bastante rica e passível de estudos sobre os
povos com heranças culturais muito antigas. No caso da África, é possível com isso
valorizar, através do reconhecimento da oralidade como fonte histórica, a
perpetuação de tradições e costumes através da oralidade e da importância dela para
uma comunidade.10
Percebemos na escrita do professor curssita o conhecimento adquirido através das
discussões propostas pelo material didático do curso: tenta-se entender a África pelos seu
próprios pressupostos, ou seja vista do interior, considerando-se toda a sua pluralidade e
diversidade, fundamentais para compreender o processo histórico protagonizado pelos
africanos e não regrada por padrões de valores estrangeiros. Sem dúvida, os documentos
escritos por estrangeiros, produzidos pelo olhar de fora da África são essenciais porque nos
fornecem informações acerca dos intercâmbos econômicos entre africanos e europeus (rotas
comerciais, principais mercados, recursos naturais, agricultura, entre outros), observações
acerca dos costumes e cotidianos africanos (vestimentas, comportamentos e até estratégias de
guerra). Contudo, é necessário que o historiador ao tomar tais escritos como fontes avalie e
interprete-as destituídas do olhar pejorativo e etnocêntrico. Neste contexto podemos utilizar
os relatos de viajantes, de missionários, de cônsules, colonizadores e aventureiros como fonte
para se entender os povos africanos. Por outro lado, para compreendermos as Áfricas, é
necessário considerar também as fontes orais e os testemunhos escritos dos próprios
africanos, pois assim, a história da África se diversifica e se constrói de diferentes formas.
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10
Gostei bastante do texto e dos elementos que ele nos trás para a reflexão.
Especialmente, aqueles referentes ao tempo e a memória e como ela foi sendo
reformulada pelas rupturas históricas com a da tradição oral, seja pelo islamismo ou
pela dominação colonial, via a escrita. Todavia, percebo a inserção da escrita como
um deslocamento da tradição oral e não como uma ruptura. No campo da literatura
africana, por exemplo, alguns estudiosos como a professora Inocência Mata,
defendem a ideia de os povos africanos mantém a tradição oral, por via da escrita.
Quando escrevem da forma que falam, por exemplo.11
Neste aspecto, a professora foi além do proposto e criou outra problemática. A
tradição oral e a palavra não estão presas no tempo como blocos monolíticos. É importante
também considerar as ressignificações e apropriações através do contato com o outro. A
escrita e a oralidade, neste caso, não eliminam uma à outra. Elas devem ser consideradas
como elementos importantes do processo histórico destas populações, cada uma com suas
atribuições.
Já o quarto fórum teve como discussão central a escravidão. É corrente na
historiografia a ideia de que a escravização africana assumiu proporções drásticas para o
território. Além das vidas humanas e das transformações ocorridas no continente, criou-se um
imaginário no qual o africano tornou-se sinônimo de escravo e vice-versa. No entanto, a
preocupação em apontar a África como o continente da escravidão é resultado de um olhar
eurocêntrico sobre este e suas populações Portanto, é preciso pensar e problematizar algumas
questões em relação à temática. Neste sentido, os cursistas tiveram que desenvolver as
seguintes questões: “o que é ser escravo e quais as formas e as características da escravidão
nas diversas sociedades africanas? Quais as transformações ocorridas nestas sociedades a
partir da implementação do tráfico atlântico europeu? A partir das reflexões estabelecidas
argumente se é possível considerar a África como o continente da escravidão e esta como
endógena ao mesmo e justifique o seu argumento.”.
Qualquer tentativa de explicação referente ao termo "escravo", será generalizante e,
desse modo, simplista. Explicar tal conceito, que foi utilizado em diferentes
sociedades humanas e em complexos contextos históricos, é demasiadamente dificil,
visto a variedade de formas como foi interpretado objetivamente. De todo modo, em
geral, o escravo era visto como uma propriedade de seus senhores que possuíam
total poder sobre ele.
O ser humano tende a naturalizar algumas de suas concepções, historicamente
constituídas, levando-as para diferentes tempos e sociedades que, por sua vez,
possuem seus próprios sistemas interpretativos do real.
A ideia de que "todo africano é escravo" é uma delas, assim como "A África é um
continente da escravidão", tais concepções se referem a um tempo, a um espaço e a
um grupo social que impôs esse modo de ver.
10 Comentário realizado por um professor cursista no Fórum 2. 11 Comentário realizado por um professor cursista no Fórum 2.
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"Eles escravizaram seus próprios irmãos". A própria terminologia para classificar os
africanos é carregada de uma mentalidade cristã conjuntamente com a ideia de
identificação étnico-racial, esquecendo-se que tais estruturas de pensamento são
daqueles que falam, herdeiros da tradição cristã-ocidental, que não é a mesma que
das diversas populações africanas que, por sua pluralidade, possui uma estrutura de
pensamento que lhes são própria.
Inicialmente é preciso apontar que, todas as postagens aqui analisadas criticaram a
ideia pré-concebida de que o continente africano é, por excelência, o território da escravidão
e, consequentemente, o africano é identificado como escravo. Tal pensamento resultou na
estigmatização destas populações e na insígnia negativa que carregam até os dias atuais.
Não sendo os povos africanos os únicos que foram submetidos a este regime, mas,
os povos que carregam em sua herança a estigmatização de serem descendentes de
escravos, herança esta que fez surgir na história os racismos e preconceitos sobre
etnias e povos diversos espalhados pela terra em uma dispersão quase que sem
retorno as suas origens. Os africanos foram inseridos em um sistema de economia de
mercado, cuja mercadoria mais valiosa era pessoa.
Assim como em outras respostas, o cursista salienta que a escravidão não é endógena
ao continente africano e afetou outras sociedades desde a Antiguidade Clássica até o século
XX. É certo que a escravidão já existia na África antes do século XV. Entretanto com a
chegada dos europeus ao continente e com a consequente expansão do comércio escravista,
esta, segundo Lovejoy (2002), resultou em transformações gradativas e de forte impacto para
as sociedades africanas:
Então é muito importante para mim entender “os africanos escravizavam seus
inimigos, não seus irmãos”; Conceber a escravidão como uma instituição antiga que
não possui sua gênese no continente africano, embora nele tenha assumido
proporções dramáticas, que levaram a compreensão do africano como sinônimo de
escravo; Entender que, em que pese a escravidão tenha existido no continente
africano, não é possível afirmar que tenha havido um modo de produção escravista,
dominante. Ou seja, existem modos diversos de vivenciar os sistemas escravistas nas
Áfricas, e em cada um deles o significado do ser “escravo” assume características
específicas.
A cursista trouxe neste momento, outro aspecto importante: fazer algumas
considerações sobre o que é o ser escravo. No contexto do direito, o escravo é um objeto de
propriedade, alienável e submetido ao seu senhor. Porém, não podemos comparar um escravo
ao um objeto, visto que o primeiro é sujeito ativo de sua história. Além de que para realizar
suas tarefas, o escravo tem que ser considerado ser humano, acreditando na sua capacidade de
inteligência, caso contrário, o sentido do trabalho escravo estaria comprometido.
Sendo assim, o imaginário estereotipado de que os africanos escravizavam seus irmãos
é totalmente equivocado e foi debatido pelos cursistas nos fóruns de discussão. O escravo,
antes de tudo, era o estranho. O estranho “é aquele que não se desenvolveu no meio social em
que ele se encontra, que não cresceu dentro dos laços das relações sociais e econômicas que
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situam um homem em relação a todos os outros” (MEILLASSOUX, 1995, p. 11). Mas para
ser escravo, o estranho deve ser recusado do parentesco na comunidade em que vive. Isto
porque somente o fato de o indivíduo não ter nascido ou crescido na comunidade não basta
para torná-lo o estranho absoluto, permitindo a sua exploração. Nas comunidades domésticas,
por exemplo, é necessário haver um equilíbrio entre o número de produtores e improdutivos.
É a produtividade, segundo Meillassoux, que define as capacidades de reprodução e de
crescimento demográfico da comunidade. Os produtores são aqueles trabalhadores ativos
capazes de produzir alimentos que nutram um substituto até a idade adulta; enquanto que o
improdutivo não é capaz de realizar tal trabalho. Assim, devido a esta necessidade, a
comunidade é levada a inserir um estranho para refazer seus contingentes e estruturas. Ele
acaba, portanto, sendo socializado por laços de parentesco que estabelece com os membros da
comunidade e deixa de ser um completo estranho. Quando o estranho não é introduzido no
ciclo reprodutivo da comunidade, estabelecendo sua função somente na produção, ele não é
socializado, pois não tem nenhum laço de parentesco. É aí, que ele permanecerá na condição
de um estranho, sendo susceptível à exploração. No entanto, este fato não faz da comunidade
doméstica uma comunidade escravagista: “Nas condições históricas de existência da
comunidade doméstica, a exploração do estranho ou do cativo provém mais das capacidades
restritas da comunidade para integrá-lo socialmente como reprodutor genético ou social, do
que de uma vontade de empregá-lo como produtor” (MEILLASSOUX, op.cit., p. 28). Isto
significa, portanto, que a economia não dependia da mão de obra escrava.
A escravidão, no ambiente africano, não alterava a base essencial da formação social.
Não havia uma classe de escravos. Os escravos exerciam diversas funções, sejam em meio
econômico como no meio doméstico, de forma a contornar as relações sociais já existentes e
de modo a aumentar o poder de um grupo ou indivíduo. A escravidão não era uma instituição
essencial. O desenvolvimento da escravidão na África está direcionado à demanda exterior,
primeiramente pelo fator islâmico e, posteriormente, coma chegada dos europeus. Com a
expansão islâmica, a escravidão era justificada pelo fator religioso de que aqueles que não
eram muçulmanos poderiam ser legalmente subjugados à condição de escravo. Ela era
concebida, então, como uma forma de ensino religioso para os pagãos, de converter os não
muçulmanos. Quando o escravo assimilava a religião do seu senhor, conquistava um melhor
tratamento e garantia um pré-requisito para a sua emancipação, ou seja, para a sua libertação,
configurando uma das diferenças com a escravidão no ambiente africano. Neste, a
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emancipação era conquistada com o casamento e pela integração sucessiva das gerações;
enquanto que na prática islâmica era através da assimilação religiosa.
O comércio transatlântico teve impacto decisivo na evolução da escravidão na África.
Isto porque, juntamente com este comércio desenvolvia-se também a exportação de escravos
como principal item. A escravidão passou, então, a ser uma instituição, apesar de a
transformação maior ter se dado no campo econômico e não no ideológico.
a escravidão como instituição (fruto da expansão árabe e da presença do islã no
continente desde os fins do século VII) permitiu a comercialização acentuada de
escravos, dando vazão para que a escravidão ganhasse novos contornos. Porém, foi
após o tráfico atlântico e com o contato entre europeus e povos de sociedades
africanas que houve o desenvolvimento de um sistema de produção escravista em
algumas regiões em África. É então a partir do século XV que o tráfico iria
amplificar o comércio de escravos em sociedades no próprio continente. Ou seja, o
“ser escravo” sofreu uma nova ressignificação para além das transmutações que já se
entrelaçavam, seja pela presença islâmica, seja pelas dinâmicas e necessidades das
sociedades em suas especificidades. Dali em diante as consequências do comércio
de cativos seria densamente drástica social, política, econômica e culturalmente para
as populações africanas.
Nesta discussão, a cursista evidenciou as mudanças que provocaram o surgimento de
sociedades escravocratas nas quais antes a escravidão era somente uma característica
periférica. O comércio transatlântico de escravos fez com que existisse, principalmente nas
Américas, sociedades agrícolas que não sobreviveriam economicamente sem esta mão de
obra, ocasionando em uma maior demanda de escravos. A utilização destes nas populações
africanas tornou-se, então, mais comum. A escravidão não pode ser entendida unicamente
através do continente africano. Por isto, a escravidão não é endógena a ele. Como afirmou
Meillassoux, “se existe uma gênese a escravidão na África, é na escala de uma história que
ultrapassa o continente que se deve procurá-la” (1995, p. 31).
Trabalhar estas questões na sala de aula transmite para o aluno uma visão real do
continente africano bem como a organização das suas sociedades, mostrará que nem
todo africano era escravo e que até mesmo para os escravos havia uma forma
diferente e mais humana de servidão diferente da que eles encontraram do lado de cá
do oceano Atlântico.
Nesta reflexão, a cursista demonstra a importância de se trabalhar o continente
africano em diferentes vertentes, evidenciando a escravidão como mais um processo na sua
História, mas não o único. Entender as relações estabelecidas antes da intervenção dos
europeus no continente e as transformações drásticas respaldadas através do contato com o
outro é essencial para problematizarmos a invenção de uma África homogênea, monolítica e
sem história.
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Considerações Finais
Considerando-se estas reflexões acerca do conhecimento histórico sobre África e da
sua invenção, devemos compreender que tais categorias, como o conceito racial e a vertente
do racionalismo, construíram, a partir de preconceitos e pré-noções, uma concepção ocidental
de África. Esta construção histórica é feita em cima do completo desconhecimento da
diversidade das populações africanas, sendo que estas foram classificadas de forma
homogênea. Portanto, para se conhecer o continente africano é necessário estudá-lo e analisá-
lo a partir de todas as suas singularidades e pluralidades. Somente assim os estereótipos
produzidos acerca deste continente poderão ser desconstruídos.
O curso Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora possibilitou ao mesmo tempo
apresentar aos cursistas novas ideias e percepções acerca da temática. Através das postagens
nos fóruns de discussão pudemos perceber a forma como os conteúdos relacionados as
histórias e as culturas de algumas sociedades africanas foram apropriados por professores e
professoras cursistas. Estes, de certa forma, evidenciaram através de suas reflexões: a) uma
abordagem das Áfricas como locais de diversas configurações sociais, políticas, econômicas e
culturais, caracterizada pela complexidade; b) a crítica à explicações reducionistas e
simplistas sobre o continente, sua história e suas populações; c) uma percepção mais sensível
às experiências do outro, levando em consideração as suas próprias especificidades,
cosmogonias e modos de viver, não necessariamente atrelados aos valores e códigos
ocidentais; d) possibilidades de tratar a história e cultura africana e afro-brasileira
problematizando as suas imagens correntes e ao conteúdo do livro didático, mesmo que este
não forneça perspectivas diferenciadas sobre a temática e carregue em seus textos estereótipos
e preconceitos; e e) observações acerca da sua própria prática pedagógica, reconhecendo-se
enquanto agentes transformadores, mas também enquanto portadores de pré-conceitos que
devem ser problematizados.
É fundamental, portanto, continuar trilhando o caminho de aprofundamento e
aperfeiçoamento do ensino de História da África e das populações de origem africana. O
curso foi o ponto de partida para que professores e professoras participantes se capacitassem
para trabalhar a temática com os seus alunos. Contudo, será na sala de aula que buscaremos
formar uma sociedade mais igualitária, na qual as Áfricas, os africanos e seus descendentes
serão vistos menos rotulados por estigmas e preconceitos.
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