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Gilberto Dupas

O incidente2ª edição

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08-3124

© Gilberto Dupas

Preparação de originais: Fabio GonçalvesProdução gráfica: Katia Halbe

Diagramação e projeto gráfico: Join bureauCapa: Miriam LernerRevisão: Joana Milli

Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela Editora Argumento.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada emsistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico,de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

Texto revisto pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

CIP-Brasil. Catalogação na FonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

D942iDupas, Gilberto, 1943-

O incidente [recurso eletrônico] / Gilberto Dupas. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Argumento,2013.recurso digital

Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebInclui índiceISBN 978-85-7753-236-0 (recurso eletrônico)

1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

CDD 869.93

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CDD 869.93CDU: 821.134.3(81)-3

007862

EDITORA ARGUMENTOAv. das Américas, 7777, loja 326

Rio de Janeiro, RJ – CEP: 22793-081Tel.: (21) 2438-7644

2013Produzido no Brasil

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SUMÁRIO

HISTÓRIAS PARA OCUPAR O TEMPO

COMIDAS

BEBIDAS

PEQUENOS ESPETÁCULOS

DINHEIRO

ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

UMA LONGA PAUSA

AMARRAS E FURACÕES

DENSO, SÓLIDO, IRRADIANTE

CASULOS

LÂMINA DE AÇO

ENXAQUECA

O CLARO DO SOL

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HISTÓRIAS PARA OCUPAR O TEMPO

O VENTO PENETRAVA PELAS PEQUENAS FRESTAS do abrigo de madeira onde dezaventureiros, mais um guia, tentavam se proteger da noite de nevasca.Reunidos ao acaso por uma operadora local de turismo, e enfiados em suasvestes alugadas de alpinistas de fim de semana, eles pareciam não se conhecer.O frio estava intenso. O atropelo causado pela corrida desenfreada deixou-osencharcados de suor. E as quedas constantes fizeram aderir neve fofa em suasroupas, agora transformada em manchas de água gelada. O guia, quepermanecia recluso com eles à espera do amanhecer, não tinha como tornarmuito confortável para o grupo as longas horas que viriam. Acendeu ealimentou uma pequena fogueira na base de pedra que ficava no centro docômodo único, convidou seus hóspedes involuntários a tirarem os agasalhospara secarem-se um pouco e sugeriu que colocassem suas poucas provisõesindividuais sobre uma toalha estendida ao chão para um pequeno lanchecoletivo. Sua experiência indicava que, em momentos de emergência comoaquele, quando pessoas sem nenhum vínculo eram obrigadas a ficar um bomtempo juntas em situação precária, seria mais fácil suportar o desconforto seele incentivasse atividades que os aproximassem. Estivessem nos dias atuais,pelo menos uma coisa seria diferente. Vários celulares estariam acesos, comogigantescos vaga-lumes a pontuar a escuridão com suas luzesfantasmagóricas, conectando aqueles indivíduos com famílias, tentativas deresgate, video games e tudo o mais. O que aconteceu ali seria, então,improvável. Mas não, o isolamento era total.

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Na verdade, o incidente decorrera de um grande azar. A pacata subidatinha como atrativos a cratera de um vulcão para sempre adormecido e a neveque cobria parte da montanha naquela época do ano. Era fim de verão, mas atemporada havia terminado; e o fluxo de turistas era pequeno, o que algunsachavam ser uma vantagem. As noites ainda estavam curtas. Na perspectivado guia, tudo consistia em levar o grupo de micro-ônibus até a base damontanha, dar as instruções já sabidas de cor, subir e descer. Eles ouviriamcomo sempre com atenção flutuante sua lenga-lenga monótona: usem muitoprotetor solar; fiquem sempre juntos; se alguém se perder, permaneça nomesmo lugar e grite por socorro; faremos o lanche terminada a subida, emtorno das quinze horas; não desperdicem água, pois precisarão dela até o fimda jornada; e coisas que tais. Antes do escurecer estariam de volta à base,onde o ônibus teria retornado para devolvê-los aos seus hotéis ou pousadas.Quase cinco anos desse trabalho intermitente lhe garantiam parte não trivialdo seu sustento. Até porque, de resto, uma pequena cidade perdida em zonaturística decadente não conseguia lhe oferecer muito mais. Ele havia sidoprofessor de literatura do colégio local, que foi transferido para municípiovizinho mais próspero. Gostava de esportes de inverno, porém uma fraturaliquidou seu entusiasmo. Ajudava na gerência de um restaurante, mas o seutrabalho como guia agora lhe era fundamental.

Imprevistos? Poucos. Acumulara no seu histórico de pequenos acidentescom clientes uma queda com rompimento de ligamento, meia dúzia detorções de tornozelo e dois ou três transtornos com as quebras do jáenvelhecido micro-ônibus. Era tudo que lembrava. Quando o tempo estavaruim, para não correr riscos, simplesmente não saía com os grupos.

Dessa vez, havia nevado nas regiões altas por vários dias, o que garantia àparte superior da montanha bastante neve e escalada mais difícil, mas aprevisão era de tempo bom. O dia amanheceu ensolarado e, embora naquelasparagens mudanças radicais de clima fossem comuns, ninguém imaginavaturbulência especial. A subida havia ocorrido normalmente. A cratera estavalá, coberta por sua eterna mortalha branca. O grupo passeou, fotografou eimpressionou-se com o panorama imponente do vale abaixo. Naquele

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momento não havia mais ninguém no alto do morro, o que transmitia certasensação de enlevo e um pouquinho de medo. Pouco antes da hora do lanche,o tempo começou a mudar de repente. A tempestade veio inesperada e muitoforte, com nuvens escuras, ventania e indícios de breve nevasca. O guia sepreocupou. Mesmo acostumado às incertezas climáticas daquele sul extremo,ele nunca tinha visto algo tão ameaçador. Descer, naquelas condições, poderiaser muito arriscado ou até impossível. A alternativa era o refúgio de madeiraenfiado num refluxo da montanha, a uns mil metros da descida. Tinha queagir com rapidez, até porque as condições atuais do abrigo eram incertas. Dequalquer forma, alguma proteção ele daria. Mobilizou o grupo com vigor,mas antes de partirem o vento já estava muito forte. A caminhada foi agitadapor inúmeros tombos e dificultada pela escuridão que rapidamente se fez.

Agora estavam todos lá, razoavelmente acomodados. O maior receio haviapassado, mas eles já sabiam que não poderiam mais regressar naquele dia.Restava improvisar uma noite muito maldormida e cheia de inquietudes. Olanche teria de render até o dia seguinte. O guia previdente recolheu nevelimpa em sacos plásticos e deixou-a derreter no pouco calor do interior. Aprovisão de água estava resolvida. Restava entreter seu grupo o melhor quepudesse para disfarçar a fome, o frio e as condições precárias. Risco maiornão havia. Se a nevasca permanecesse até o dia seguinte, a agênciaprovidenciaria resgate. Nesse caso, seria prudente içar um pano vermelho,que ele trazia consigo, em algum ponto visível. Após a rápida e racionadarefeição comum, deixadas umas parcas provisões para a manhã seguinte, eledescreveu a situação ao grupo em cores róseas. Verificou o estoque de lenha eviu que ele era farto. Deveria ser suficiente para manter o fogo durante toda anoite.

Acomodou-se, então, em um canto. Pela primeira vez olhou para cada umdos indivíduos de seu grupo com mais atenção. Sabia que eram latino-americanos, na maioria brasileiros, quase todos vindos para participar de umencontro internacional de ciências sociais, ou algo parecido, que iniciaria empoucos dias próximo à capital. Eram sete homens e três mulheres,aparentemente havia um casal. Vistos através da luz bruxuleante da pequena

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fogueira, todos aparentavam mais de quarenta anos, sendo que dois ou trêstalvez estivessem em torno dos sessenta. Mas não podia distingui-los bem.Olhou o relógio: cinco da tarde. Isso significava que estariam mais doze outreze horas enfurnados no refúgio. O vento assobiava pesado e tornava difícilouvir com clareza o que se falava. Ainda assim, era preciso entretê-los.Pensou em alternativas. Baralho não havia. Além do mais, a escuridãointerrompida pelos lampejos da fogueira dificultava as coisas. Então teve umainspiração. Que tal se cada um contasse um pequeno episódio sobre sua vida?A reação inicial foi de certa perplexidade e hesitação. Ele insistiu que valia apena tentar. Ajudaria a passar as longas horas e a esquecer uma pequena fomeque já se insinuava. As pessoas tinham se aproximado do fogo e algumas já setocavam de leve ombro a ombro, em busca de aquecimento e proximidade.

Fez-se então um longo silêncio e uma mulher, semioculta na penumbra,iniciou com um assunto que, àquela altura, começava a sensibilizar a todos.

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COMIDAS

VOU COMEÇAR RAPIDINHO, ARRISCANDO UM tema delicado. Para mim, pensarem alimento alivia a fome. A maioria aqui não deve sentir assim. Peçodesculpas a quem o assunto incomodar. Interromperei à primeirareclamação.

Talvez seja essa a minha lembrança mais antiga. As fatias grossas depolenta chiavam sobre a chapa quente do fogão a lenha e eram viradas dequando em quando com uma espátula de metal. A operação exigia habilidade,pois o fundamental era manter a crosta cada vez mais dourada revestindo amassa. A leiteira, com o líquido grosso quase sempre ligeiramente derramadona primeira fervura, aguardava sobre a chapa. Lá também era preparado ocafé. Recém-moído em pequeno moinho manual de madeira, o pó recebia aágua fervente num grande coador de pano, e o líquido perfumado caía sobreum recipiente que ficava num canto mais distante do fogo, de modo a nãoferver depois de pronto. Valorizados pela fome da manhã à espera daprimeira refeição, os cheiros eram divinos. A mesa posta no centro da grandecozinha da casa de meus avós era coberta por toalha de pano rústico acabadacom bordado caprichado, com avessos tão perfeitos que não se sabiadistingui-los. Sobre ela, grandes tigelas brancas, um pote de açúcar cristal,colheres de sopa e guardanapos com o mesmo tecido e acabamento metidosem argolas de madeira pintada cada qual com uma cor, de modo que,identificadas pelos seus donos, rendessem três a quatro refeições. Prontas asprimeiras fatias, os bules de leite e café vinham para a mesa. Cada um pegavasua tigela, escolhia no fogão um pedaço crocante de polenta e o partia em

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vários pedaços com as mãos. Eram necessários cuidados: os dedos deveriampermanecer sempre apoiados na crosta, pois a temperatura interna da massapermanecia alta e era fácil queimá-los. Já à mesa, leite, café e açúcar eramacrescentados a gosto. Estava completa a refeição matinal da casa dos avós.Uma pequena maravilha.

Havia também a flor de abóbora, colhida no amplo terreno baldio vizinho,onde os enormes frutos cresciam. Fragilíssima, tinha de ser usada na mesmamanhã. Lavada com cuidado apenas com água fresca, era passada no ovobatido com um pouco de sal e na farinha branca, e frita delicadamente emmanteiga ou banha de porco. Iguaria rara e saboreada com um pouco deculpa, pois, para valorizá-la, alguém sempre lembrava que cada florzinhacolhida era uma enorme abóbora a menos.

Já na casa de minha tia viúva, o prato especial era o bife com potcho. Aorigem dessa palavra permanece desconhecida, talvez corruptela local dealgum dialeto do Norte da Itália, deformado pelos anos de uso longe da terranatal. O pedaço de contrafilé ou alcatra, com um indispensável naco degordura amarela, era bem amaciado porque batido com pesado martelodentado de madeira. Cebolas cortadas em rodelas fininhas eram fritas namanteiga pega a colheradas de uma tigela de louça cheia d’água, onde ficavadepositada para evitar rançar. Épocas sem geladeira. Abria-se espaço nafrigideira para o bife que, enquanto fritava, exalava notáveis aromas enlaçadoscom cebola. Por fim, uma concha com molho de tomate feito de véspera eraacrescentada para completar o potcho. A graça estava em comer os nacos decarne com um pedaço de pão fresco, obviamente feito em casa, embebendo-ono molho riquíssimo. A essa operação batizou-se potchare. O toque final eralimpar totalmente o prato com um resto de pão, resgatando os últimospedaços de cebola. Às vezes, sob olhar tolerante da tia, atacávamos com osdedos.

Se aguentarem que eu continue com o suplício, o miolo de boi à dorê erauma das especialidades da minha mãe. Ele exigia condições muitíssimoespeciais. O açougueiro tinha de garantir que o animal tivesse sido abatidonaquela manhã. A peça delicada tirada do crânio com todo o cuidado era

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trazida para casa e preparada para o almoço daquele mesmo dia. Removiam-se as membranas externas e lavava-se tudo em água corrente, retirando-sepequenos resíduos de sangue e meninges. Fatias cortadas grossas eramligeiramente salgadas, passadas uma a uma no ovo batido e, em seguida, nafarinha de rosca. Fritas rapidamente em gordura bem quente, elas eramdepositadas em papel grosso para absorver excessos e servidas imediatamente.A cremosidade do miolo e sua extrema delicadeza combinavam à maravilhacom arroz e feijão e o azedinho da salada temperada com azeite e vinagre.Agora, nunca mais. Em meu país está proibido “por lei”; miolo, só congelado.Ora, vejam!

Risoto de frango e canja de galinha. A distinção das aves é fundamental,embora a condição básica seja a mesma: criadas soltas pelos quintais,comendo minhocas e grãos de milho. Todos os miúdos são necessários,especialmente o pescoço. O risoto, mais temperado, deve ter cada pedaço daave inteiro, com osso. E o arroz tem de ser cozido junto, dentro do tempero,entremeando as peças de carne. Já para a canja, mais branca e leve, um néctarpara convalescentes, bastam os miúdos e as pontas da galinha, nuncaesquecendo de retirar o excesso de gordura que flutuará ao final. É precisotomar certo cuidado com o tempo de cozimento. Moela demora, fígado érápido e vale a pena separá-lo para que não endureça e perca o sabor. Deresto, pescoço e cabeça devem ser comidos com a mão, o primeirodesmontando com os dentes osso por osso e saboreando o fio branco detutano; já a cabeça precisa ser bem amolecida para o osso partir fácil e sepoder chupar os miolos. Sim, trata-se de chupá-los, inclusive com obarulhinho mal-educado. Os pés podem ser descartados ao final; já terãocumprido sua função essencial de adensar a canja com seu “mocotó”. Asas,deliciosas, mas também usando as mãos. Tanto no risoto como na canja, nãoesquecer a folha de louro. Feitos assim, são insuperáveis.

Por fim, uma refeição rápida, para mãe atender a filho que chega tarde outem de sair antes do horário da refeição da família: arroz com ovos fritos.Pode ser excelente. A exigência é um arroz soltinho, recém-feito, nuncarequentado. Os ovos, se não vieram do quintal, que sejam de sítio conhecido e

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de aves sem ração industrial e suas porcarias. Milho e minhocas. Resultado:ovo avermelhado, gemas maravilhosas. Às vezes, um ou outro estará galado;nada contra. A fritura é muito exigente. Na manteiga muito quente, a claradeve ficar dourada nas bordas, a gema totalmente líquida, mas bem aquecida,um instante antes do início da coagulação, quando também se polvilha umpouco de sal. O ovo – de preferência dois, pois aumenta a chance de um delessair perfeito – deve ser depositado sobre o arroz quente com a gema paracima. Faz-se um furo com o garfo de modo que o conteúdo vaze para baixo,envolvendo de dourado escuro o arroz branco. Os ávidos cortam os ovos empedaços e misturam tudo. Coisa bruta, falta de elegância. Essa refeição, na suasimplicidade, é extraordinária se realizada com requinte. A clara se comeiniciando-se pelas bordas crocantes, cada pequeno pedaço com uma garfadade arroz, todos mastigados suavemente. Ao final, o néctar supremo do arrozembebido no dourado. Divino.

Bem, como podem perceber, com toda essa tradição nas costasmodestamente admito que sou uma boa cozinheira. Pena que não tenhamosaqui alguns ingredientes e um pequeno fogão. Ia ser muito mais divertido.

Ela parou e tentou adivinhar o semblante dos companheiros na salaescura. Estariam eles acalmados, salivando ou indignados com sua ousadia defalar de corda em casa de enforcado? Não pôde perceber nenhuma reaçãoespecial. Achou que, no mínimo, teve a coragem de começar a falar. Pelomenos a sua fome tinha se acalmado ao relembrar todas aquelas delícias.

Não houve pausa. Outra mulher tomou a palavra.

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BEBIDAS

VOU ENGATAR LOGO MINHA HISTORINHA. Um assunto puxa outro. Falarei dasbebidas. Tenho a meu favor que, afinal, água não nos falta. Curioso.Justamente sobre aquela bebida considerada o néctar universal, a primeira detodas, eu não tenho a mais remota lembrança. O tal leite materno só se realizaem mim à custa de uma pesada elaboração intelectual, nunca comolembrança viva ou sensação. Quando me permito chafurdar um pouco nolodo desses sentimentos antigos, vem-me um certo desagrado e até um poucode nojo. Mais do peito que do leite. Não do seio em si, para sempre magnífico,mas daquele tal que me alimentou. Por favor, não se escandalizem. Aliás,surpreendo-me quando me asseguram que mamei, e durante longos meses. Osenso comum vem em minha ajuda para argumentar ser muito poucoprovável que eu não gostasse. Aceito, mas não entendo como isso não batecom minhas recordações. Quanto à mamadeira, é muito mais fácil imaginá-lafonte de prazer. Já o copo de leite frio da minha infância, acompanhado deuma bolacha doce especial muito fina e crocante, esse era um maravilhosoelixir para todos os momentos. Estranha essa hierarquia mental invertidaentre a mãe e a vaca, ambas fêmeas como eu. Naquela época o leite integralnada tinha a ver com essa coisa rala que hoje chamam tipo A. Ele era entregueem litros de vidro com tampa de papel encerado, fechados a fio de aço. Agrossa gola de creme que se formava no gargalo tinha de ser removida acolher para que o líquido pudesse vazar.

Em seguida, na hierarquia do gozo, estavam para mim as bebidinhas dasfestas de aniversário e as compradas na cantina do ginásio: sodinhas,

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guaranás e groselhas, em garrafinhas de vidro pequenas. Não me lembro dossucos nas refeições de minha casa, mas acho que com frequência lá estavamaqueles horríveis e açucarados pós artificiais que poluíram para sempre asmesas das famílias. A enganação já era a mesma, alardeando fantásticossabores naturais feitos da mais pura e nociva química industrial. Na época daminha adolescência, houve a fase do leite batido. O liquidificador e aamericanização já tomavam os espaços, e o milk-shake virava moda, com amania de inventar misturas exóticas. A minha preferida era leite comovomaltine ou nescau com um pouco de essência de baunilha e muito açúcar.Ou o frappé de coco, que eu também fazia regularmente. O nome francêsdeve ter sido aprendido nas estadas da minha família em hotel da serra, ondeum barman careca todo de branco fazia um fabuloso e insuperável frappéservido com canudinhos de palha. Constava que tinha certa queda porninfetas, o que parecia fazer aumentar o sabor do líquido branco e espumoso.

Vinho era coisa rara, reservada para uma ou outra refeição de férias,casamento de parentes, Natal e Ano-novo. Eu nunca ouvi, quando pequena,elogios ou boas referências sobre essa bebida ancestral. Suas virtudes, saborese odores tive de aprender sozinha muito mais tarde. Perigoso, causava tanto aalegria frenética de uma tia que sempre saía do sério nos encontros de família,quanto o desastre pessoal de um primo alcoólatra. Os mais jovens só tinhamautorização para dois dedos de champanha nas datas principais. Nós,meninas, nem isso. O que não impedia os goles furtivos dos fundos de copoque sobravam à mesa, provocando deliciosa tontura inebriante, qual lança-perfume cheirado em Carnaval. O cafezinho, sempre muito doce, eraautorizado desde que ficasse só em uma xícara. Chás eram usados comoremédio: erva-doce para dor de barriga, camomila ou cidreira como calmantee hortelã contra vermes.

O tempo, as azias e os conceitos me encaminharam para novasalternativas, associadas à moda politicamente correta do prazer de sersaudável. Os sucos viraram só de frutas frescas e radicalmente sem açúcar;idem para o café e os chás. Mas vieram, principalmente, os vinhos. Fiqueimuito impressionada quando um amigo, convidado a escolher um em

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restaurante fino de Genebra, puxou com enorme seriedade uma tabelinha desafras do bolso do paletó e, mal disfarçando um razoável esnobismo, ficoubons minutos a discutir sua escolha com o sommelier. Até pensei em tentar,mas percebi que nunca me transformaria numa connaissaise. Programeicursos que nunca fiz, comprei livros que não li. Fui até aonde me pareceusensato. Descobri que, para mim, conhecer bem os vinhos é obrigação dehomem. Quero que eles me indiquem, escolham, façam a primeira prova eesperem minha reação de aprovação. E fico aguardando seus comentáriosmais técnicos para aprender alguma coisa.

Criei algumas regrinhas básicas para quando vou comprá-los sozinha.Assumo que, aos preços médios que aceito pagar, consigo bons vinhosargentinos e chilenos, vez ou outra da África do Sul, da Austrália e daCalifórnia, mas nunca da França, da Itália ou da Espanha, que exigiriamdespesa maior para o mesmo padrão. Leio com relativo interesse as colunasdos especialistas, aliás todos homens, descrevendo as complexas nuances degosto e odor. Alguns deles constroem verdadeiras personalidades: rico,complexo, generoso, expansivo, austero, elegante. Outros falam de sutilezas:perfeito equilíbrio entre fruta e madeira, traços de carvalho, cravo e frutassilvestres, toque aveludado e assim por diante. Críticos internacionaismencionam insuperáveis relações custo-benefício e distribuem notas,seguidas das inúmeras siglas que os identificam como grandes experts. Essasnotas, nunca comparáveis entre si, raramente são proporcionais aos preços epouca ajuda me prestam. Mantenho uma pequena adega em armário comumcom umas cinquenta garrafas de vinhos tintos e umas dez de brancos, algunsPortos de qualidade razoável, um whisky de vinte anos e um conhaquefrancês para emergências, além de dois ou três licores, inclusive um caseiro dejabuticaba feito por uma tia, que fica ótimo para colocar em creme de abacatebatido com leite condensado. Eventuais amigos que me visitam chegam a seimpressionar. Observo, obviamente, a posição horizontal para os vinhos e osclassifico mais ou menos pela ordem das safras, de modo a consumir primeiroos mais antigos. Em geral, para evitar riscos de azedar, evito guardá-los pormais de quinze anos. Bobagem? Sei distinguir algumas uvas, o que me rende o

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orgulho banal de poder dizer que o Tannat é uma boa variedade uruguaia eque a Argentina fabrica sempre um belo Merlot. Tomo, como rotina, umataça de vinho, normalmente tinto, todos os dias na hora do almoço.

Relatos sobre o bem que os vinhos tintos fazem ao coração e o hábito igualde minha avó, que viveu quase cem anos, legitimam meu pequeno vício.Como trabalho mais em casa, isso é mais fácil e não custa muito. Uma garrafadura toda a semana. E, máxima sofisticação, para que ele não azede até o fimdo uso, tenho uma daquelas rolhas de pressão com seu equipamento especialpara sugar o ar. Não sigo à risca essa história de vinho tinto com carnes ebranco com peixe. Mas concordo que os rosés, com raras exceções, são paraquem não gosta de vinho. E não abro mão de abrir um ótimo tinto paratemperar carnes ou um excelente branco para elevar o sabor dos risotos depeixes e frutos do mar. Isso é tudo que sei. É muito pouco, mas achosuficiente; saboreio meus vinhos com prazer, em geral sei dos que gosto maisou gosto menos, e até identifico neles um ou outro traço que li nosespecialistas. Não preciso mais, julgo cansativo ir além. Para uma mulher,acho que está ótimo. Deixo a especialização para meus amigos homens, que sesentem inflados com isso.

Outro dia reparei nos catálogos que já se vende vinhos orgânicos. Acheium péssimo sinal, prova de que o nível de contaminação por agrotóxicos econservantes químicos deve ter aumentado. Mas as ofertas são poucas e caras.Entrar por esse caminho exigiria rever meu pequeno conjunto de regras ecomplicaria minha vida. Desisti.

Finalmente há a água. Bebida vital e espetacular, e a gente quase não nota.Tomo bastante, quase como o ar que respiro, em goles pequenos, tendo umcopo ou uma garrafinha sempre ao meu lado. Há muito não a uso filtrada,fazendo questão da mineral até para chá e café. Dou-me ao direito dessepequeno luxo em respeito a mim mesma e a esse líquido essencial, cada vezmais contaminado por nossas poluições e abusos ambientais. Outro diadescobri uma grande multinacional vendendo água de rua filtrada como sefosse de fonte. Somente um exame do rótulo com lupa revelava o engodo. Erasó o que faltava. Felizmente, nesta noite penosa, água não nos falta com essa

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neve recém-caída por todo lado. Diz-se que a poluição também chegou a elaaté nestes confins. Que se há de fazer. Lá estão alinhados os saquinhos deplástico. Não temos, pois, o que reclamar. De sede não morreremos.Otimismo, pessoal. E que se candidate logo o próximo contador de casos.

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PEQUENOS ESPETÁCULOS

ENTÃO AGORA VOU EU. TRÊS ESPETÁCULOS dos meus tempos de meninice talvezsirvam para nos animar. As pequenas companhias de circo dos meados doséculo passado acabaram batizadas de mambembes. Se me lembro bem, aorigem dessa estranha palavra vem da justaposição de mumbe, da línguabanta, falada em Angola pelos ambundos, que significa abandono e solidão,com o sufixo mbe. Em suma, abandonados e isolados, como estamos nós aquinesta noite em meio à tempestade. Aplicadas aos pequenos espetáculos, elaquer dizer grupo teatral medíocre, de má qualidade, que percorre pequenascidades do interior. Nada mais injusto, como bem sabem os mais velhos quecresceram com esses circos por perto. Aqueles que tiveram esse privilégio,quanto não dariam para ter um deles nos entretendo agora, neste fim demundo gelado?

Havia um grande terreno baldio e bem localizado ao lado de minha casa;isso era ótimo porque para lá iam os pequenos circos quando passavam pelacidade. Tudo começava com um bando de pessoas capinando touceiras quehaviam crescido desde a última atração. A molecada do bairro buscavainformações e ficava sabendo que uma nova companhia chegaria. O alvoroçose espalhava de boca em boca. Cada etapa dos trabalhos era acompanhada pormim e alguns meninos vizinhos: os mastros alinhados ao chão como raios deroda de uma enorme bicicleta, mais longos e mais curtos; os buracos feitos emtodo o círculo e no centro dele, esse último para acolher o alto esteio central; aterra bem aplainada para o picadeiro; as cordas desenroladas; e o sistema depolias armado. Iniciava-se então a mágica operação de montagem. Cada

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mastro era apoiado na beira do seu buraco e içado por meio de roldanas demadeira. Homens fortes, em geral os equilibristas, malabaristas e palhaçosdos futuros espetáculos – ainda com roupas velhas e macacões –, hasteavam-nos um por um, mantendo-os em equilíbrio estável até que fossem aterradose ligados definitivamente por cordas e lonas. Sensação muito estranha entrardebaixo daquele imenso toldo vazio e deixar a imaginação infantil preenchê-lo com fantasias heroicas.

Enquanto a montagem de arquibancadas e picadeiro prosseguia,começavam a chegar à cidade os caminhões com equipamentos, apetrechos eeventuais jaulas de animais. Quando havia bichos, era um ou outro pôneiamestrado, um elefante decadente ou um tigre desdentado. Mas bastava paraelevar ainda mais a agitação. A última etapa era a serragem para o picadeiro,as divisões e cadeiras nos camarotes, e as luzes externas, que fariam o circobrilhar na noite dos espetáculos. O globo da morte, evento raro, podia levar-nos ao frenesi. Duas motocicletas velhas e fumacentas percorriam aquelecírculo de ferro simulando trombadas iminentes e arrancando gritos daplateia. As companhias menores, para encurtar a primeira parte, mais cara etrabalhosa – trapézio, equilibrismo, malabarismo, animais –, tinham umpequeno palco onde encerravam o espetáculo com um número exótico deteatro, exibindo roteiros adaptados com pouco ou nenhum talento de novelasde rádio, contos de fada ou óperas conhecidas.

Os artistas? Escondidos sob máscaras ou maquiagem pesada mal-aplicada,lá estavam os mesmos que antes haviam feito um pouco de tudo, inclusiveerguido mastros e estirado lonas. Agora eles improvisavam versos dosLusíadas e arranhavam trechos de óperas de Verdi. Se erravam ougaguejavam, riam como palhaços de si próprios e seguiam em frente. Quandoo espetáculo terminava, as crianças saíam embevecidas. Famílias inteiras sedivertiam. Mambembe? Uma razoável injustiça.

Também havia o Carnaval. Curiosa e contraditória é a etimologia destapalavra. Parece vir de dialetos do Norte da Itália, talvez do milanêscarnelevale, falados no século XII e passados a outras línguas europeiasquinhentos anos mais tarde. Sua origem é o latim carne levare, ou seja,

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abstenção da carne. Tinha, pois, a ver com a Quarta-Feira de Cinzas e ocomeço da Quaresma, e não com os festejos lascivos dos três dias anteriores.Como se os grandes dias de pecado só pudessem ser evocados pelo nome desua penitência. Na minha época de rapazote o Carnaval não se pareciaexplicitamente com desregramento permitido. Mas as máscaras, as fantasiascom saias curtas e blusinhas decotadas das garotas, as matinês e os dois diasde desfiles meio capengas pela avenida de cidade do interior eram o suficientepara transformá-lo em um espetáculo. Os itens necessários eram serpentina,confete, lança-perfume e óculos de plástico para proteger os olhos dos ataquesardidos dos outros, entrada para dois bailes num dos clubes principais e lugarem sacada de prédio da avenida para assistir ao desfile. Estar sem namoradaera melhor do que tê-la. Beijo rápido trocado num fim de noite, peitinhosroçados num movimento mais rápido da música, mão espalmada na coxacomo que por engano, eram essas as máximas ousadias daqueles tempos paraum Carnaval bem-sucedido. Melhor ainda se ocorressem com garotasdiferentes. As escolas de samba eram muito simples, os quatro ou cincocarros alegóricos – empurrados por homens exaustos ou preparados sobreum caminhão – sustentavam figuras toscas aproveitadas com ligeiraadaptação de ano para ano. Mas era divertido esperar e vê-las desfilar.

Nesses dias o louco mais popular da cidade, o Mané-Fala-Ó, circulavafreneticamente pelo centro cheio de foliões. As moças do local, que oconheciam tão bem, sabiam que durante o carnaval ele insistiria um poucomais, dentro do padrão de sempre: bastava responder com Ó ao seuimperativo Fala-Ó. Isso era a solução. Mas o que ele realmente buscava era asjovens de fora. Então a sua excitação atingia o auge. O não-saber-o-que-fazerou, ainda melhor, a recusa delas em responder, desencadeava no Mané umfrenesi incontrolável. Houve casos de namorados que tomaram a sério epartiram para cima dele, que continuava cada vez mais agitado a insistir,implorar por um Fala-Ó, dançando em volta da vítima ou cercando-a comsua bicicleta. Apesar da resistência do delegado, ele chegou a passar uma noiteno xilindró para acalmar a revolta de garotão posudo da capital, noivo demoça importante. Foi numa terça de Carnaval. Para o Mané, carregado e

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aclamado na saída da delegacia por um grupinho animado que cantava amarchinha de sucesso da época, as cinzas daquela quarta foram especiais.Ainda sobre os ombros dos foliões, gritou para a primeira garota que viu:Fala-Ó. Era uma moça voltando da igreja, terço e missal nas mãos, querespondeu mais que rápido: Ó!

Finalmente havia os jogos de futebol, assistidos no estádio do meu time dedevoção, ou no campo do grande e único rival da cidade quando havia dérbi.Era o espetáculo principal. Como vocês repararam, gosto de etimologia, depesquisar a origem das palavras. Vício profissional. Sei que todos aqui vão meperdoar. Meu interesse maior é quando o uso estabeleceu uma rupturaenigmática e aparentemente irresgatável na evolução do seu significado. É ocaso do tal dérbi. Por que cargas d’água uma corrida de cavalos patrocinadapelo Lorde Derby na Inglaterra do final do século XVIII passou a significarem meu país uma competição futebolística entre times rivais? Vou deixar noar essa questão que provavelmente só a mim interessa e voltar ao espetáculo.O estádio de meu clube era um velho conhecido, e suas pequenas reformas eampliações sempre foram comentadas como grandes inovações. O localpreferido dos jovens com mesada razoável era a arquibancada coberta,sempre meio vazia durante a semana à tarde, ou nos jogos menos importantesdos domingos. Paçoquinha, quebradinha de partir dentes e obturações,maria-mole ou pipoca melada – doces da minha região na época de menino –eram compradas dos ambulantes logo na chegada ao assento no cimento frio,para evitar atropelos e embalar a espera. A entrada dos jogadores em campo,que definia a escalação, era um dos pontos culminantes. Quando a vitória domeu clube não vinha contra time pequeno ou contra o rival da cidade, aangústia era pesada. Nos jogos com clubes importantes de fora, os climasemocionais eram a derrota desmoralizante ou a aceitação dela quandohonrosa, a pequena alegria do empate em casa ou a euforia de uma vitóriamuito ocasional. Mas a glória era a vitória maiúscula no tal dérbi. Entregarnossos humores aos resultados do futebol transformava aqueles espetáculosem grandes momentos.

Derrotas e fracassos recorrentes fazem alguns torcedores de times

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pequenos desistirem dessa condição desesperadora e reduzirem-se apenas aapreciadores do bom futebol. Mas a qualidade da satisfação mudaradicalmente. O envolvimento emocional acaba e, com ele, grande parte doprazer que vem da alegria do massacre do adversário ou da profunda tristezada derrota. Não adianta, somos sadomasoquistas. Precisamos de euforias edepressões para podermos nos sentir normais. É por isso que eu, ex-torcedorde timinho que, de tanto apanhar, já optou apenas pela arte-do-futebol,frequentemente me pego a torcer pelo azarão ou pelo mais fraco, ainda quetenha jurado manter-me como mero observador. O fato é que torcer querdizer sofrer. E é aí que o jogo volta a ser um espetáculo. Termino por aqui.Que o silêncio seja breve.

E foi brevíssimo.

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DINHEIRO

VOU LOGO RETOMAR. ATACAREI UM TEMA universal, que costuma movercorações e mentes. Minhas relações com ele sempre me pareceram originais eexóticas. Não passei necessidades; do corriqueiro, nada me faltou. Classemédia, pai com rendimentos razoáveis de funcionário público, os sinaisvisíveis de contenção e economia na família limitavam-se a meias cerzidas e amantimentos comprados no atacado por melhor preço, estocados na parte dadespensa fechada à chave. Nunca faltou dinheiro para a pequena gula nacantina da escola, nem para parque de diversões, cinema ou gomas de mascar.Mas houve um fato curioso que pode indicar o tamanho de minha ambição.Na escola primária circulava uma daquelas rifas com cem números. Para ovencedor, um fascinante livrinho com figuras que se mexiam quandoacionadas por pequenas hastes de papelão. Pedi à minha mãe dinheiro paradois números. Na falta de menor, levei nota graúda para trazer o troco; só quenão resisti à tentação e gastei tudo comprando trinta cartelas. Falta grave,pouquíssimo atenuada pela sorte de que saí vencedor. Cheguei em casa com olivrinho e a confissão do crime na ponta da língua. Não me lembro dasconsequências; talvez tenha preferido apagá-las. Até então o meu grandeobjeto de desejo havia sido uma caneta parker 21. Ela veio no Natal doprimeiro ginasial. Perspicaz, descobri rápido que era imitação. Ter sidoenganado pelos meus próprios pais foi um travo que nunca me abandonou,apesar das mil racionalizações sobre boas intenções.

Minha mesada de adolescente era suficiente; não me lembro de nada emespecial que tenha querido muito e não tivesse obtido. Provavelmente porque

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meus desejos eram reprimidos pela contínua ladainha dos pais sobre o deverde economizar. Durante a faculdade, morando sozinho em cidade grande,andava de ônibus, morava e comia de pensão; pela manhã era café com leite epão com manteiga. Na época da formatura, eu e meus colegas percorremos asruas rifando um carro para pagar viagem do grupo à Europa. Preferi pegarminha parte e dar entrada num carrinho pequeno usado. Arrependo-meamargamente, não do carro, mas da viagem jogada fora. Conheço tão bem ashistórias das aventuras dos colegas que foram, que as conto melhor do queeles; desde o execrável roubo de um pacote de gilete de um cego na Piazza SanMarco até o ridículo banho de água do mar em alguém com seu terno novonaquela noite de festa e tempestade, graças a uma escotilha aberta no salão denavio semicargueiro.

O começo da vida de casado foi apertado. Depois vieram tempos muitobons; virei executivo bem-sucedido e o dinheiro não parou mais de entrar.Uma das minhas primeiras providências foi tentar posar de pai dos meuspais; comprei-lhes um pacote de excursão para conhecerem a Europa antes demim. Mais uma vez o Velho Mundo adiado. Na medida em que minhasreservas aumentavam, a culpa crescia e foi ficando intolerável. Com filhoscrescidos e fundos suficientes, resolvi dedicar-me a coisas que satisfazem almae ego. Dou aulas nas universidades, faço pesquisas, escrevo livros de relativosucesso e em meu país sou referência sobre alguns poucos temas; algunschegam a me achar um intelectual razoável. Considero-me um homem deesquerda, seja lá o que isso ainda for. Mas nunca me livrei da culpa de terdinheiro num país com dezenas de milhões miseráveis. Sinto-me uma espéciede criminoso que, cedo ou tarde, será julgado e condenado.

Essa culpa alimenta em mim manias e manhas. Antes, eu me permitia terboas gravatas. Hoje, que não as uso mais, só me sinto totalmente à vontadepara gastar em livros, muitos livros, que leio com sofreguidão. E viajobastante à Europa, ela de novo, de onde também volto abarrotado de livros.Em tudo o mais, consumo só o que o bom-senso indica, mas sempre comdores. Negocio muito bem ao comprar qualquer coisa. Adoro conseguirdesconto quando adquiro pequenos objetos em quantidade. Um dia, num

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supermercado, comprei em oferta duas dúzias do meu sabonete; senti-meprofundamente lesado porque o encontrei trinta centavos mais barato nafarmácia da esquina. Anotei a perda de sete reais e vinte, xinguei baixinho odono do lugar mais caro e não sosseguei até que recuperasse o valor doprejuízo nas pequenas barganhas que fiz nas compras dos dias seguintes. Paramim, trocar de carro é um sacrifício. Gosto de marcas de boa qualidade, quenão quebram; e vou usando, usando, muitos anos a fio. Ando com roupasdiscretas, adoro as mais usadas e fico com elas até perceber que estão quaseridículas de tão velhas. Em avião, houve tempo em que me pagavam viagemde classe executiva e até de primeira; reconheço que adorava isso. Uma vezaproveitei um desses bilhetes e, numa promoção da Air France, fiz NovaIorque-Paris pelo supersônico Concorde; disfarcei o que pude, mas achei umtesão. Durante algum tempo meu estoque de milhas ainda me garantiaprivilégios. Hoje, acabou a festa. Voos internacionais de classe econômicaagora são minha rotina, justamente quando pernas, coluna e outras coisasmais já começam a chiar. Para minha surpresa, adaptei-me. Lembro-me que,quanto frequentava as rápidas filas de embarque das classes superiores,escondia-me de alguns amigos intelectuais e exibia-me discretamente para osmais ricos; o curioso é que, na ordem inversa, o mesmo acontece hoje na filade classe econômica. Sempre me deu muito trabalho posar alternativamenteou de homem singelo e herói sacrificado ou como “aquele que vive de acordocom suas posses e nível”. Frase horrorosa essa. Percebi que era o meuestrabismo de ser ambivalente que me perseguia. Os outros, em geral,estavam pouco se lixando sobre se eu estava na fila A ou B. É meu próprioolhar que me acusa da minha necessidade de tirar vantagem das situações.

Fez uma rápida pausa.Puxa, essa escuridão está me levando a abrir a alma. Espero que não me

reconheçam à luz do dia. Mas vamos seguir em frente. O padrão que relatei semantém em muitas situações de minha vida. Moro numa casa muito boa, eme alivio porque ela já é bem velha. Adoro que possa exibir sua idade, comuma ou outra parede manchada ou descascada, infiltrações aqui e acolá.Gosto de dizer que casa é como todos nós, deve ter direito a envelhecer. Mas

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sei que esse é apenas um truque para esconder minha culpa por estar cercadode barracos.

Vivo a inventar perseguições que culminariam com minha pobreza.Sempre meticuloso com meu imposto de renda, fantasio que vão me pegar.Tenho pesadelos de que vou ficar pobre. Não tem jeito. Riqueza, ainda quemuito relativa, me dá culpa; e pobreza me apavora. Meu sonho é converter oque tenho numa boa pensão vitalícia mensal garantida por Deus.Transformar estoque em fluxo enquanto durar a vida diminui a culpa. Nãopreciso nada mais; mas sei que isso é pura miragem, até porque não acreditoem Deus. Ainda que exista, não parece razoável que Ele se meta com solidezde bancos e seguradoras, área em que o Diabo deita e rola.

Meu lema trágico poderia ser “dinheiro traz angústia, pobreza traz terror”.Talvez um dia eu vire um frade e ocupe uma cela frugal de mosteiro. Mas essaminha outra fantasia projeta cenários medievais e circunstâncias utópicas. Seique o claustro também não me livrará desse quase pânico.

Meu caro guia, perdoe-me pelo que vou contar agora, mas essa situaçãoestranha está me levando a revelar intimidades e cometer inconfidências.Farei uma última pequena confissão. Ao comprar o ticket para esta excursão,fiquei tentado a obter aquele desconto de vinte por cento anunciado paracasais, e induzi uma das moças deste grupo a aceitar que eu declarasse sermosum par. Ela estava na fila ao meu lado, mas nunca a tinha visto antes. Estoumuito vexado. Deixarei a diferença dos dois bilhetes embaixo da sua mochilaem algum momento discreto. A ideia foi minha. A você que está aí em algumlugar na escuridão, peço desculpas por esta idiota revelação e declaro públicae solenemente que aceitou a contragosto; fique tranquila que não revelarei suaidentidade.

Não sei o que aconteceu comigo. Agora, chega. Vou tentar ser engolidopela penumbra, morrendo de vergonha.

O silêncio se fez. Foram alguns minutos de desconforto econstrangimento. Então, outro personagem se animou.

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ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

BRRR! PARECE QUE O FRIO FICOU MAIOR. Ainda assim, metido neste buracocercado de neve, definitivamente não sinto falta da companhia do cão quemora na minha casa. É o meu cão, mas não sei se posso chamá-lo de animalde estimação. Gosto dos bichos, mas nunca me entreguei a um afetoexcessivo. Meu avô, com quem morei quando pequeno, tinha um cão pastor-alemão para ajudar a guardar seu rebanho. Nas fotos antigas da família ograndalhão lambe meu rosto; eu pareço tranquilo. Havia também pintinhos.Ninhadas se sucediam e eu sempre escolhia uma vítima que ia para a cozinhapromovida a bichinho especial. Inventava um berço com caixa de madeira oupapelão, revestida de trapo, que obviamente ficava sempre vazia. O destino dopobre animalzinho era mesmo circular entre as pernas da cozinheira e daminha avó, perto de fogão quase sempre aceso, até que uma pisadadescuidada o aleijava ou esmagava. Alguma tristeza, talvez um pequenoenterro no chão de terra, não me lembro muito bem; o filhote mais bonitinhoda próxima ninhada seria a nova vítima.

Na casa dos meus pais pedi, insisti, mas sempre vinha o veto materno,definitivo: não quero saber de bicho solto sujando meu quintal. Nem depintinho. Eles que ficassem no pedaço cercado das galinhas. Mas como terpinto de estimação se ele fica preso entre telas de arame esperando virarassado? Pode-se até escolher um preferido, mas isso é outra coisa. Afinal,preferência é só predileção; estima significa afeição e amizade, o que exigeconvívio, e não eventuais visitas ao galinheiro.

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Um dia resolvi arriscar. Aceitei um cãozinho de ninhada nova de umamigo e levei para casa como fato consumado. Depois de ver falhar todo omeu estoque de argumentos e chantagens, tive de devolvê-lo, morrendo devergonha; senti muita raiva e humilhação. Só voltei a pensar no assuntoquando, já casado com filhos, mudei para uma casa com um amplo jardimrecém-plantado. Há muito, fazia parte dos meus planos a compra de um belocão. Escolhi um pastor-alemão, provável homenagem ao meu avô e àqueleperíodo de infância razoavelmente feliz. Grande, peludo e desengonçado, ocãozinho chegou em momento muito errado. Era tempo de chuva, jardimcom plantas e grama novas, e um superfilhote especialista em cavoucar,enlamear, destruir e chorar. Fiquei histérico com as estripulias do animal.Após uma semana de inúteis tentativas de contenção, as paredes pintadas debranco estavam marrons, as pedras do chão cobertas de barro; e o caosinstalado levou-me, pobre de mim, a uma solução radical. Num sábado cedo,antes que os filhos pequenos acordassem, peguei cão, coleira, escova parapelo, saco de ração, vidro de vitaminas e tudo o mais, coloquei na perua elevei de volta ao canil. Cheguei sem avisar e fui logo dizendo que não davamais, que o cara devolvesse o dinheiro que quisesse, porque eu estavaentregando o maldito filhote. No longo caminho de volta, eu estava muitoconfuso. Resolvi que não iria remoer meus sentimentos, convencido de quetomara uma decisão correta. Um cão teria de esperar mais, até que a casanova estivesse mais arrumada e a família preparada para ajudar a cuidar. Maseu não podia evitar a dura sensação de que estava ferindo afetos importantes,que pouco conhecia, dos filhos e da mulher. O momento da comunicação foiduro. Não me lembro de lágrimas, mas de muita reclamação. Senti-meracional, insensível, talvez meio tirano. Alguém tinha de decidir.

Os cães acabaram entrando definitivamente na vida da família um anoapós. Foram vários, sucessivos, sempre raças grandes. Afinal, o motivoprincipal era a guarda da casa, o velho conceito ancestral do cão de trabalho,muito útil para meu estoque de vacinas antiafeto. No entanto, fique claro quesempre me dei muito bem com eles; meus cães sempre me adoraram, até mepreferiam aos outros da casa. Alguns acham que é porque foram todos

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fêmeas. Gosto mais de pensar que sei usar a medida certa no trato com osanimais. Para mim, cão é cão, não é gente. E não quero saber de misturarsentimentos, manipular animais para compensar minhas carências. Afinal,mal dou conta do afeto com os humanos.

Também teve o ciclo dos gatos. Obviamente tudo começou quando essesoportunistas começaram a aparecer, gênero filhote esquálido, na porta daminha casa. Casos com felinos, em geral, iniciam com o primeiro pires deleite. O temperamento safado e sedutor dos desgraçados, muitas vezes bonitosde doer, conturba a cabeça de crianças e mulheres. Minha família nunca ficousem um gato. Uma vez, com a conivência de um filho pequeno, agarrei umdeles, coloquei-o num carrinho de feira com tampa de arame, e soltei-o dooutro lado do rio. Mas sempre que um sumia, outro entrava porta adentro.Meus cachorros e gatos sempre conviveram, mal e bem. Houve casos em quechegaram a dormitar lado a lado, para gáudio da mulher e das crianças, queacharam lindo. Para mim, cenas assim sempre pareceram absolutamenteantinaturais, motivadas pela desistência de cão cansado de seguir sua sina deperseguir gato, e pela fantasia da família de que cãezinhos e gatinhos sejamamiguinhos, bah!

Para minha sorte, uma rara regra vigorou sem muita discussão entre mime minha mulher, certamente por razões diferentes. Ela por higiene, eu paramanter uma mínima distância e evitar maiores riscos emocionais: os bichosnunca foram autorizados a entrar em casa, para tristeza das crianças. Vez ououtra, quando a lareira estava acessa e o frio era pesado lá fora, cedeu-se. Massó por minutos, e sempre como exceção. No restante, em matéria de animais,eu e minha mulher discordamos em quase tudo. Eu quero ficar rigidamentena ração, ela nas comidinhas. Ela está sempre a providenciar casinhas,cestinhas e paninhos, às vezes meio às escondidas para que eu não lhe encha osaco. E assim por diante. Com movimentos bruscos, dois dos nossoscanzarrões já causaram uma fratura e uma torção nas suas pernas gostosas.Consequências: num caso, uma cirurgia com pinos; no outro, dois meses deimobilização. Ela nem se incomodou. Eu fiquei indignado. Meu cão atual émeio maluco, uma pastora rebelde e elétrica que não se cansa nunca e dá

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muito trabalho. Mas precisamos dela e vamos tocando. O último gato, umavira-lata simpática batizada com nome de artista de teatro – que apareceu àporta irresistível e já meio estropiada de uma pata – perdeu as sete vidas outrodia, estatelada embaixo de um carro. Ela tinha olhos lindos e adorava exibir-se em evoluções eróticas na janela da cozinha. Reconheço, meioenvergonhado, que foi uma judiação, coitadinha; mas espero ardentementeque seja o último gato a frequentar minha casa. No fundo, bem no fundo, seique temo como o diabo que essa bicharada chegue perto demais de minhaalma e a alugue para sempre. Sinto-me muito pequeno para tantos afetos.

Como última concessão, admito que se estivéssemos nos Alpes Suíços, enão numa montanha do Chile, e um São Bernardo treinado chegasse agoralatindo e arranhando aquela porta, especialmente com um barrilzinho deconhaque no pescoço, eu era capaz de recebê-lo com um abraço e um beijono focinho cheio de baba. Fim de conversa. O próximo que se habilite.

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UMA LONGA PAUSA

OS RELATOS TINHAM SE ENCADEADO ATÉ então com poucos intervalos. Quandoum dos vultos mergulhados em trevas relativas terminava o seu, outro o haviasucedido sem espaços excessivos. As histórias se seguiam e o desembaraçodos seus autores aumentava. A última, no entanto, instaurou uma espécie delargo marco divisório. A menção ao cão salva-vidas e seu tonelzinho mexeucom coisas complicadas. O grupo se abateu. Talvez por sentir-se abandonadonaquele fim de mundo, sem quem viesse em seu socorro. Ninguém searriscava a continuar as histórias. Fez-se, então, um longo silêncio, como se àespera dos latidos à porta, que sabia-se não iriam acontecer. O ventocontinuava a soprar com força, o fogo aguentava bem mas não disfarçava ofrio. O guia lançou mão de um recurso de emergência. Lembrou-se de seupequeno frasco de bolso de conhaque, desde sempre escondido no fundo damochila. “Não temos cão, mas temos conhaque”, declarou. Pensou em dizeralgo como façam de conta que o São Bernardo sou eu, mas calou-se commedo do ridículo. Pegou a pequena garrafa, tomou um pouco e, passando nogargalo a franja da camisa, ofereceu ao seguinte da roda. Após uma pequenahesitação, ele também tomou seu gole e foi passando adiante. Ninguémrecusou. A partir do terceiro, o gargalo pareceu ter ido de boca em boca, semlimpezas intermediárias. Para o guia, que observava como podia em meio àsemiescuridão, pareceu um bom sinal. Devolvida a garrafinha vazia, novosilêncio se estabeleceu. Dava para distinguir brilhos de olhos aqui e alirefletidos num ou noutro maior bruxuleio das chamas. Ele foi até a lenha,pegou meia dúzia de tocos e realimentou o fogo. Em pouco tempo surgiram

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chamas maiores. Alguns rostos se tornaram um pouco mais visíveis. Alguémpareceu querer fazer uma pergunta qualquer sobre a condição do resgate e astarefas do dia seguinte. Mas abortou seu gesto depois de duas ou três palavras.Mais uma vez, um longo silêncio. O guia, mudo, esperava que a tensão geradapelo vazio pressionasse por uma última rodada de histórias. Parecia aindanevar e a temperatura estava mais baixa. Alguns arriscaram vestir seusagasalhos ainda úmidos. Passaram-se muitos minutos, impossível saberquantos naquelas condições estranhas em que uma certa vertigem imperava eo tempo, muito lento, pesava sobre todos como um manto sólido. Nenhumcão alpino arranhou a porta.

Finalmente um dos vultos tomou coragem e reiniciou os relatos. Noentanto, o tom já era outro. A bebida aqueceu as almas e considerávelintimidade parecia ter se estabelecido, o que animava a revelações aindamaiores sobre anseios e medos. E assim eles começaram a exibir melhoralgumas entranhas e seus furacões.

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AMARRAS E FURACÕES

UMA QUESTÃO COMPLICADA ME PERTURBA há muito tempo. Vou arriscar falardela esperando que a escuridão e o gole de conhaque me ajudem. Sei, porviver e reparar, que glória e poder não existem. São miragens. Faces damesma moeda. Ambos têm em comum a necessidade de aprisionarem ooutro e o risco de tornarem-se prisioneiros dessa necessidade. Afinal, para seradmirado é fundamental que haja quem precise admirar. Idem para sertemido. Não sei se estou conseguindo ser claro; e acho que vou me complicarainda mais. Os que se encantam com a glória de alguém ou admiram seupoder são, ao mesmo tempo, algozes e escravos. Algozes porque, pordefinição, o gozo de quem está coberto de glória e poder depende de terpessoas que o admire e o tema. Escravos, porque eles próprios não podemviver sem um deus ou herói.

Mas todas essas considerações não me ajudam muito. Continuo a olharcom gula para a glória e o poder. Às vezes eles aparecem em doseshomeopáticas. A vitória do bom argumento na discussão com amigos, o olharreconhecido da pessoa que ajudei, o elogio de meu leitor ocasional. Aí operigo é menor. Alimenta uma lasca da minha vaidade, faz-me sentir asatisfação de ser necessário para alguém. O meu balão oscila, brilha um poucoao sol, mas continua firmemente amarrado ao chão.

Há riscos um pouco maiores. Uma pessoa que depende de minha ajudapara uma questão importante ou um coitado que eu pego cometendo umagrave falha. Pronto. O poder de conceder e julgar! Velhas brasas são atiçadas,uma certa volúpia estimula minha mente e preparo-me com indisfarçado

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prazer para exercer meus papéis preferidos. Meu balão se agita, infla mais,estica as amarras. Porém ainda sei como controlá-lo. Há muito tempo jáaprendi a lidar com essas pequenas labaredas. Algum senso de justiça, umadose de moralismo e uma pitada de ética garantem a qualidade da minhaancoragem. Ele resiste altaneiro a esses ventos mais fortes. Mas eu nãoconsigo disfarçar um frêmito, quase um júbilo, por ter tido o privilégio deenfrentar um tempo meio ruim. Quando concedo algo a alguém, meu prazerfica por conta de saber que eu teria o poder de dizer não. Quando ofereçouma ajuda possível, contabilizo-a como uma espécie de crédito, que fica maisvalorizado quando eu não dou ao devedor a menor oportunidade de resgatá-lo. Tenho um imenso prazer em sentir que me devem algo.

Muita perversão? Será que ainda sobrou um pouco de conhaque?Paciência. Vou tentar continuar assim mesmo.

O perigo é muito maior, porém, quando sou recebido com alguma honra,quando me estendem pequenas passarelas vermelhas. O vento forte açoita aschamas, meu balão estufa, retesa as emendas. As cordas rangem, os ferrosdesdobram. Sei que nada pode deixar-me mais convencido de que sou maisuma espécie de deus do que o som das trombetas e os hinos de saudação.Preciso ficar lembrando sem parar que a fanfarra se dirige ao cargo eventual,não ao seu pobre ocupante. E que as palmas aplaudem mais o mito que omérito. O problema é que nessas raras horas há sempre um idiota que seoferece para carregar minha valise, um coitado pronto para o elogiodesbragado, um pobre diabo insistindo em enfiar uma coroa de louros naminha cabeça. Maldição. Como isso me seduz! Difícil resistir à tempestade.Nesses momentos críticos, lanço uma operação de emergência. Reforço oscabos rapidamente utilizando a consciência do fugaz e a ironia capaz de gozarda minha pretensão a pequeno tirano. Ainda que com muito esforço, façoprevalecer o bom-senso e suporto o turbilhão.

Mas há dois tipos de situação que põem à prova toda a minha perícia. Emambas o poder torna-se absoluto, insano e fascinante. O incêndio é abrasador,os ventos se transformam em tempestade. Um mínimo descuido pode serfatal. A primeira é o pátrio poder. Mágico, arrasador. Por que será que, após

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milênios de evolução, regras e padrões de conduta, leis e normas, nada podeproteger o confronto do pequeno ser indefeso, barro virgem, página branca,com o pai totêmico? Proibido, permitido; feio, bonito; certo, errado. Afeto,fúria; sorriso, grito; compreensão, intolerância. Produzem cicatrizesindeléveis. Destruindo e construindo. A cada momento o pai faz uma opção.A cada escolha solitária e onipotente, o enorme risco de mergulhar nofuracão. Em alguns segundos o balão sacode enlouquecido, as amarras serompem, tudo rodopia no imenso turbilhão. Quando os ventos se acalmam,sobram os destroços. Consola-me que, vez por outra – ainda que a duraspenas – consegui fazer boas escolhas. Nesses momentos raros o céu fica muitoazul, a vista sublime se estende por um amplo horizonte, o voo calmo carregapai e filho em paz provisória. De qualquer forma, sempre posso me consolarcom o “fiz o melhor que pude”. Mas não me iludo. As marcas estarão lá,estampadas em barro fresco para sempre.

Finalmente há a loucura da paixão. Nela, o poder não é meu. É só dooutro. Absoluto, brutal, entrega sem condições. Parece impossível de resistir.Começa com ligeiros sinais: a pequena curva do canto esquerdo da boca, ojeito contido de terminar o sorriso, um certo brilho de diamante no olhar, osdedos longos com unhas curtas sem esmalte, uma languidez felina aoacomodar-se no canto do sofá. Traços mágicos. Sem que saibamos de ondenem por que, eles acendem o fogaréu. Servem de pretexto, pontos de apoiopara as fantasias. Construída a paixão, entregamos-lhe todas as chaves dosnossos grilhões. Enquanto ela vive, assume um poder total. Tomapensamentos, condiciona atos, diz que o verde é vermelho, torna sublime oindecente.

Paixão rompe de vez quaisquer amarras. O balão voa enlouquecido peloscéus tingidos de violeta e púrpura, oscila freneticamente entre o céu e oinferno, expõe-se veloz ao frio sepulcral e as lavas incandescentes. Naprimeira vez que ela me surgiu, fui tomado de pânico. Após uma vista rápidaao paraíso, senti o bafo da morte. Tomado de desespero, desejei meu fim.Naveguei pelos infernos mais atrozes. Salvou-me um grande e sólido afeto.Ancorei-me nele e deixei a tempestade correr. Aos poucos, do lado da curva

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da boca surgiu um toque de cinismo, o final do sorriso acabou lembrandouma hiena, o brilho do olhar tornou-se glacial. Só os dedos longoscontinuaram belos. Mas não eram suficientes.

Hoje tomo cuidado. Não faço de conta que as nuvens escuras não existem.Perscruto-as, avalio: “Por aquela mulher até que eu seria capaz de meapaixonar.” Fico por aí. Sei que paixão é loucura em estado puro, é projeçãodos nossos próprios desejos encarnada em alguém, uma entrega cega doscadeados da nossa alma.

Agora meu balão exibe certo encanto que a experiência lhe deu. Apesardos remendos, seu estado geral reflete mais maturidade que velhice. Suascores pastel, um pouco encardidas e desbotadas pelo tempo, brilham comsuavidade. Parece sólido e altaneiro. Os cabos e as amarras transmitem umpouco da confiança de quem conhece seus limites. Mas ainda tenho dedisfarçar um frenesi quando os ventos do poder e da glória cruzam o ar.

Ele parou abruptamente. No grupo, o silêncio que se seguiu assemelhava-se mais a uma pausa para reflexão do que a um incômodo. Será que algunsestariam dormindo? Não parecia. Aquela conversa complicada devia terprovocado devaneios e meditações.

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DENSO, SÓLIDO, IRRADIANTE

ACHO QUE ESTOU PRONTA PARA FAZER MEU relato. Será uma declaração breve,que sintetiza as minhas confusões destes últimos anos. Esta viagem pretendiaser uma tentativa de encontro com meu eu, seja lá o que for isso. E até agoratinha sido uma bela decepção. Somente nessas últimas horas de imprevistos ealguma privação, em meio a essas falas estranhas, tive luzes novas. Quieta nodesconforto deste canto escuro veio-me uma inédita clareza do que de fatobusco. Tentarei explicar, mas falarei comigo mesma, olhando para dentro.Desculpem. Não pode ser de outro jeito.

Tomei uma decisão difícil. Deixei família, trabalho, rotina cheia decorrerias e meti-me sozinha numa viagem de dois meses, que terminará nestaescalada e no seminário onde estaremos em breve. Eu tinha como objetivoassuntar uma certa percepção. Cada vez mais a ideia de núcleo martela minhacabeça. Desde sempre invadida por todos os meus poros pelas ordens edesejos alheios, vigiada por milhares de olhos atentos, tenho procurado comaflição um pequeno refúgio sereno, porto seguro onde encontre saída paraalguns dos meus enigmas. Qual é a minha verdadeira imagem, que não seja arefletida pelo olhar do outro? De que gosto, de fato, acima da influência dequem quer que seja? E, principalmente, o que pode me propiciar pequenosmomentos de paz?

Passei a vida a correr de coisas que me ameaçam e que não sei identificar,o que tem me levado para lugares que não escolhi. Agitação, vitória,insucesso, amores e desamores, nada disso tem muito sentido. Meus gestos eações, eficientes e apressados, são apenas desempenhos vazios, rituais sem um

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farol que lhes dê um rumo. Quem me exige tais desempenhos? Alguém muitopoderoso parece ter me definido rotas obrigatórias e cobra continuamenteresultados que não conheço. Uma vez alcançados, sobra o vazio, não me cabeo prazer da conquista. Se havia meta, não era minha.

Meu sonho atual: um núcleo do meu eu. Denso, sólido e irradiante,comandando minha verdadeira identidade. O meu centro de gravidade. Afantasia é que, por pior que fosse a crise, ele seria capaz de garantir umequilíbrio sempre retomado. Imagino que esse núcleo precisa ser formado aospouquinhos, estruturado nos grandes afetos e polido com renúncias eprazeres postergados para poderem ser colhidos maduros um dia. Acho queele deve ser nutrido no olhar que acolhe, respeita e encara os enganos como aúnica maneira de aprender. E necessita ser amparado pelo abraço terno queentende estar o crescimento do ser estruturado na contradição, na sublimaçãodos primeiros amores, na aceitação dos limites de dentro e de fora.

Tenho tentado fazer algum esforço para concentrar-me nos fragmentosinteriores do meu eu. Esquecer por um instante do objetivo, da chegada, econseguir fixar-me num detalhe da beira da estrada. A laranja parece doce?Por que não parar e dar-me ao prazer de saboreá-la com muita calma,lambuzando as mãos? Que importam os quinze minutos de atraso? Ou, então,ao caminhar pelo parque fixar-me em determinada árvore e examinar muitoatentamente seu tronco. Sentir sua textura, observar bem de perto os matizesde suas cores, os maravilhosos contrastes das manchas mais claras dosliquens, cheirar o aroma das suas resinas. Descobri um centenário pau-ferro –como adoro essa árvore – implantado com impressionante solidez no chão deuma praça perto de minha casa. Toda vez que passo por ele, apoio as mãos emseu tronco sólido e sempre meio descascado, com meus braços esticados eolhos fechados. Sinto uma energia inexplicável que parece vir do fundo daterra onde estão implantadas suas raízes. Essa energia me contamina. Apóspoucos minutos, cheiro as palmas das mãos. Um aroma de seiva fresca estáimpregnado nelas. Delicioso. Anos atrás fiz a mesma coisa com um cedro-do-líbano bicentenário num jardim de Genebra. Ao apoiar-me no seu tronco,reparei em pequenas gotas de uma resina muito perfumada que rompia em

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algumas fendas da velha casca. Removi-as com cuidado e guardei-as comolembrança. Até hoje, se as aperto, elas voltam a exalar seu belo perfume.

Durante esta viagem flagrei-me examinando atenta e longamente osdetalhes de uma paisagem. Eu olhava com minúcia, longe do turbilhão depensamentos que meu cérebro insistia em fabricar. Estava esquecida de quasetudo que não fosse a matéria de minha observação. Percebi-me íntegra, donade mim, em equilíbrio com o meu núcleo. Nada parecido com aquela históriaoriental de fixar-me num ponto interior e esvaziar a mente de tudo o mais.Ao contrário, naquele momento minha mente estava cheia, mas só do que euobservava. Cheia de pura realidade.

Tudo isso parece exigir uma longa e árdua caminhada. Em cada uma desuas paradas – chegadas provisórias –, será preciso fazer o mesmo que osvelhos aborígenes australianos: sentar numa pedra e esperar até a minha almachegar. Sem ela não farei nada; o problema é que junto com ela também virãomeus velhos vícios. No entanto, não há alternativa. Terá de ser um exercíciosempre renovado. Diante de cada mesa posta para a próxima refeição, refletire selecionar exatamente o que quero comer, em que ordem e quantidade. Eperceber com cuidado o sabor de cada alimento. Ser capaz de demonstrarclaramente a alguém de quem não gosto que ele me aborrece, que não queroconversa. Ouvir uma música envolvendo-me integralmente, penetrando emsua essência, notando a gama de sentimentos que ela transmite. Deslumbrar-me com um pôr do sol, percebendo que ele é único. Desprogramar-me,entregar-me à intensidade do momento. Tudo isto pode parecer meio babaca,conversinha de pequeno príncipe, mas percebo agora que é a única opçãopara evitar que eu definhe na angústia e no tédio.

Essa é a minha ideia para uma nova vida, regida apenas pelo meu eu,tendo-me como senhora de mim. Talvez isso não exista; ou seja tarde demais.Não se muda a dinâmica de uma vida toda pautada pelo olhar do outro assim,de repente. Decisões tomadas em situações especiais, como neste fim demundo, podem ser tão inócuas quanto minhas promessas sobre regimes paraemagrecer ou parar de fumar. Mas tenho uma enorme ânsia por tentar.Vamos ver o que acontece com meus belos propósitos quando a noite clarear.

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Desculpem. Não me olhem assim, por favor. Posso tentar? Devia terguardado essas coisas para mim. Droga.

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CASULOS

POIS BEM. VIAGENS E IMPREVISTOS. CÁ ESTAMOS nós metidos nesta cabana notopo de um vulcão que dizem estar extinto. Nas minhas andanças pelomundo, levo sempre comigo meus medos e sensações persecutórias. Contoum exemplo típico. Fui chamado às pressas para uma viagem, justo no inícioda semana da entrega do meu imposto de renda. Pois bem, eu teria meia horapara arrumar as malas. Toda essa afobação me angustiava porque envolvedois assuntos que eu gosto de fazer com muita calma: preparar a bagagem efazer o acerto com o leão. Nessas duas áreas, odeio confusão e improvisações.Interessante, este bendito imposto já apareceu num dos relatos desta noite.Parece que nem o isolamento da montanha nos protege dele. E, vejam só,com que nome o tratamos em nosso país: leão.

Como sempre, eu tinha feito meu ritual anual da declaração de impostocom todo o cuidado e zelo. É matéria em que não me permito delegações. Eue a fera frente a frente. Olho no olho. Os documentos já estavam todosseparados e os formulários rascunhados. Justo quando ia fazer a revisão final,estourou uma viagem de emergência para acertar um convênio com umauniversidade de Londres. O preenchimento às carreiras do formulário finalprovocou em mim aquela péssima sensação de trabalho malfeito eimprudência. Eu não gosto nada desse tipo de risco. Que fazer? Assinei adeclaração e pedi à secretária que a entregasse no prazo. Ou melhor, já no diaseguinte, para evitar esquecimentos.

Com as malas, foi outra confusão. Estaria frio ou calor? Eu levaria capa dechuva ou casacão? Por absoluta falta de tempo, parei as perguntas por aí.

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Catei meia dúzia de camisas, outra de cuecas e meias, apanhei quatro gravatasfáceis de combinar, improvisei uma ou outra peça avulsa e joguei tudo – maisuma malha de lã e um tênis velho – na mala com rodinhas permitida nacabine do avião. Na pasta de mão, além de documentos e papéis de trabalho,após trinta segundos de reflexão coloquei dois livros da estante do corredor.De qualquer forma, poderia comprar outros lá, mas esta é outra área em quenão gosto de correr risco. Viajar sem um bom livro para mim é tragédia.

Logo nos primeiros minutos dentro do táxi, quando ainda dava tempopara voltar, meu cérebro estressado disparou as rotineiras dúvidas urgentes:passaporte, cartões de crédito, passagem. Apalpei os bolsos, senti oscontornos e acalmei. Meia hora depois, quando retornar já seria impossível,começaram a borbulhar as mil questões inúteis tipo “será que peguei meiasbrancas para o tênis?” ou “estou com um terno só, e se derrubar comida nacalça?”. Eu já não me perturbo muito com elas. Sei que são apenas pequenasvinganças de minha mente, castigando-me de algo que não sei bem. Meusvelhos esquemas de proteção dão conta dessas crises com mínimo sofrimento.

Habituei-me a fazer das viagens longas um casulo muito comprido eseguro cujo buraco de entrada é o momento da entrega do passaporte aosujeito da polícia federal. O olhar severo e frio conferindo a fotografia e oexame atento na listagem do computador têm para mim a solenidade de umrito de passagem. Quando mergulho na solidão do longo corredor rumo aoportão de embarque, já me vejo protegido e, principalmente, inalcançável.Garantir esta paz precária me é fundamental. A partir daquele momento, nãome sinto mais particularmente responsável por aquele monte de problemasque ficaram para trás. A não ser em caso extremamente grave, ninguémforçará contato através da armadura do casulo, até que eu chegue na outraponta. A viagem começava, pois, e eu teria umas deliciosas horas de trégua, sópara mim. Também não adiantava inventar preocupações. Naquele longotúnel, que terminaria em Heathrow, minha onipotência era de poucautilidade. Eu estaria confortavelmente isolado do mundo; e com amaravilhosa sensação de ser pego no colo, embalado e entregue ao seudestino.

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Apenas dois riscos graves me perseguem nessas horas: os imprevistos deviagem e os chatos. Quanto a problemas técnicos e meteorológicos, só dá paracruzar os dedos e torcer. Para o caso de indivíduos inoportunos, eu tenhoaprimorado eficazes estratégias de defesa. A bendita destinação prévia dosassentos já é um grande quebra-galho. Vem de graça com a passagem. Osujeito do “que coincidência, você por aqui?” pode insistir em ir comigo nomáximo até o corredor do avião. Mais que suportável.

Quanto ao vizinho de poltrona, risco gravíssimo, minhas táticas são maissofisticadas. O cumprimento muito formal, o olhar vazio e o fone de ouvidonormalmente bastam. Se for absolutamente necessário, e só nesse caso, oextremado “desculpe, mas preciso terminar esse livro”. Um recursocomplicado pois, se utilizado logo no começo da viagem, me obriga a ficarcom os olhos pregados no mesmo texto durante todo o tempo em que euesteja acordado. Para não ofender, é sempre bom aliviar o clima com umapalavra rápida durante a troca de pratos no jantar. Essa costuma ser a partemais delicada. É preciso muito cuidado na inflexão da voz e na amplitude doolhar. Qualquer exagero pode estimular a invasão e exigir, em seguida, umagrosseria radical. Finalmente, é sempre útil uma despedida bem cordial nodesembarque. Isso permite alguma retomada se, como já me aconteceu maisde uma vez, eu descobrir mais tarde que o suposto chato é uma figurainteressante ou importante que eu teria gostado muito de conhecer.

Pois bem, foi toda essa carga de experiência que coloquei, receoso, noolhar que dirigi à minha futura vizinha da longa travessia. Não havia dúvida.Eu teria problemas e enfrentaria uma velha bruxa. Feia, toda em gritante sedaestampada, penugem esbranquiçada saltando da verruga acima dos lábiosvermelho-carmim e, sinal de grande perigo, olhos vivos lançando apelos de“eu estou aqui” em todas as direções. Tirei o paletó, fechei a cara e concentrei-me na operação desmonte-da-pasta-de-mão. Retirei a malha de lã, um doslivros, a lapiseira, os chinelos e a nécessaire. Guardei dentro dela passaporte,travellers, carteira e passagem, travei-a com o segredo e ajeitei tudo no portabagagem. Mirei a velha de soslaio. Seu olhar agitado implorava por umachance de ajudar. Foi só eu sentar-me e ela disparou um “está indo pra

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onde?”. Era perigo em estado puro. Fingindo tranquilidade, balancei a cabeçadando a entender que não falava sua língua e, ainda sem o fone de ouvido emmãos, mergulhei a cabeça no livro. Mas uma velha como aquela não ia desistirfácil assim. Em nova arremetida, ela tenta o inglês; faço cara de búlgaro.Chega o comissário perguntando se queremos jornais e cometo o grande erro.Respondo na nossa língua comum: “O Herald Tribune, por favor”. A velhasente a pancada e faz um muxoxo, humilhada. Seu olhar agora é de desprezo eraiva.

Felizmente o fone de ouvido acabara de ser distribuído. Meto-lhe nacabeça e assumo que o estrago já está feito. Paciência. Sentada na poltrona docorredor, a velha tenta o companheiro do outro lado, com certo sucesso. Adistância entre os dois, porém, dificulta. Ela desiste em poucos minutos evolta-se com nova estratégia. Passa a olhar fixamente nas manchetes do jornalque agora tenho em mãos, implorando por comentários. Eu, mudo. A bruxabufa e resigna-se. É claro que, nessas circunstâncias, até aquela palavra rápidade gentileza na troca de pratos do jantar poderia ser fatal. Embora eu tivessecomeçado a ver até um lado cômico em toda aquela história, parte do climada viagem estava estragado. Mantive silêncio absoluto. Meu único gesto,provocador, foi na hora de dormir. Percebo a velha aflita, mergulhandoinutilmente o dedo indicador na confusão de botões do braço da poltrona,tentando apagar a luz. Quando ela desiste e procura chamar a aeromoça eu,num gesto quase imperceptível, aperto o botão correto. Percebendo sua luzdesaparecer, a velha tem um minuto de perplexidade. Depois, sem desfranzira testa e virando muito pouco a cabeça, dispara um curto e duro “obrigada”.Parecia um tiro. E, até o fim da viagem, foi tudo.

Os dias em Londres correram lentamente. Os compromissos foramespaçados e o hotel ficava perto do Hyde Park. Eu não desgostava das longascaminhadas, livro embaixo do braço, observando os pequenos esquilos eaqueles ingleses branquelas expondo coxas e costas aos raros raios do sol deabril. Mas vez por outra vinha a crise. “Eu aqui a milhares de quilômetros decasa, mero pontinho perdido na face do globo, fazendo cera para a próximareunião, enquanto o meu bendito imposto de renda, preenchido porcamente,

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repousa nas mãos do fiscal sedento de sangue. Ele vai me pegar por bobagens,pecados que não cometi, e lá estarei eu a chafurdar no atoleiro da burocraciapública, sem direito a ar-condicionado e tratado como suspeito. Droga deviagem!”

Nesses momentos, em meio à depressão, sentia-me corpo sem pele.Profundamente exposto e ameaçado. Daria tudo para voltar para sempre aogrande casulo. “Vou me apresentar e pedir para refazer as contas. Mas seráque não é pior?”, pensava eu. Sem saída, escapista, eu fantasiava: “Se o aviãocair, não será tão trágico assim.” “Quem sabe o pessoal do imposto é maistolerante com viúvas.” Reajo, de repente, como um macho: “Nunca. Não voudeixar essa fria pra minha mulher. Eu vou resolver!”

Em meio a essas alucinações, a missão em Londres foi concluída. Osfantasmas estavam a postos para a volta. E eu sabia, por experiência, que o talcasulo protetor só funcionava nas idas, nunca nas voltas. Tentava meconsolar. Afinal, o que tinha feito de errado? Na verdade, nada. Só não haviaconferido com cuidado a declaração. E, portanto, poderia haver erros. Masera o que bastava para eu alimentar minha agonia transatlântica.

Cheguei em casa saudoso, dolorido e assustado. Abracei forte demais amulher e os filhos, entreguei as lembrancinhas, tomei um banho e parti para auniversidade. Fui enfrentar meu destino. Abri a porta, cumprimentei osprimeiros que vi, entrei em minha sala e chamei a secretária para saber daspendências. Ela, gentil, perguntou-me pela viagem e deu-me o primeirorecado: “Só para seu controle, adiaram a entrega do imposto para o mês quevem. Veja só, toda aquela correria à toa. Deixei os formulários na gaveta decima, caso o senhor queira fazer uma revisão.”

Por essas e outras, pensando em todas as tragédias que já inventei naspoucas horas de reclusão neste barraco perdido, não me surpreenderei se,daqui a pouco, eu simplesmente acordar na cama fofa e quente do meu hotele descubrir que isto tudo não passa de um pequeno pesadelo. Belisquem-me,por favor.

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LÂMINA DE AÇO

TODOS NÓS ESTAMOS COM UM POUCO DE medo, não é verdade? Lamento, masnão dá para negar. Temos um abrigo, mas ele é muito precário. A pequenafogueira irradia certo calor, mas o vento frio entra pelos buracos. Nossasroupas estão úmidas. A noite sempre foi lugar dos fantasmas mais feios. Masesta, em especial, com todo seu desconforto e incerteza, está sendo muitolonga. Sentimentos de ameaça e medo são, portanto, inevitáveis. Pelo menosno meu caso, eles não têm nada de especial. São velhos companheiros que vãoe voltam, qual febre intermitente. Estão sempre por aí, como parte da minhaprópria pele, frágil e descoberta, incorporados. Mais angústia que pânico.

De fato não sei quando a ameaça real apareceu em minha vida pelaprimeira vez. Tenho a impressão de lembranças muito remotas, mergulhadasem arcaísmos e inconscientes coletivos. Quem sabe um meu antepassadodistante, saindo da caverna em busca da caça arriscada, mulher e filhosdeixados para trás a ouvirem feras rondarem a precária fogueira. Pode até ser.Mas já que o medo é parte muito importante da minha vida, não querodividi-lo com ninguém; exijo, no mínimo, que ele seja fruto de minhaspróprias experiências.

Em assunto tão sério, fico puto quando me vêm com a tal insinuação deparanoia. E o assalto na minha casa? Eu, mulher e filhos encurralados,ameaçados por dois idiotas prepotentes com revólveres na mão, tendo deengolir minha raiva, minha revolta, cheio de dedos com os imbecis que aqualquer momento podiam estourar nossos miolos. “Sim, aqui estão as joias.”“Claro, temos alguns dólares.” “Evidente, meus amigos, não vamos contar à

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polícia.” “Compreendemos seus problemas. Não tiveram as mesmasoportunidades que nós.” “Lamento mas não tenho cofre. Juro que é verdade.Mas levem o que quiserem, o colar da vovó, a caneta de ouro do papai. Só nãomachuquem as crianças.” Dentro da minha própria casa! Ora, não mevenham falar em paranoia.

Um amigo com muitos anos de divã de analista provoca: “Espera aí, antesdo assalto você já não sentia medo?” Pronto, tenho de ceder à lógica. Partoem busca de um fato mais antigo. Cavouco a memória e não me lembro deoutra ameaça grave antes daquele assalto. Mas precisa? E a jovem grávidabaleada pela polícia na porta da sua casa – a maldita bala perdida –, o pai defamília morto a tiros em frente da mulher e dos filhos, as pessoas sequestradastodos os dias? Não são suficientes para provar que meu medo é real? Meuamigo aprendiz de psicanalista acha que não. “Está acontecendo com vocêagora? Medo de uma fantasia ou da mera possibilidade é paranoia.”

Lá estou eu na estaca zero de novo. Enquanto espero uma explicação,continuo minha eterna semivigília até a madrugada, quando acordo paraverificar se o filho retardatário trancou a porta do primeiro andar. Só após ainspeção permito-me o sono. Mesmo sabendo que posso ser acordado nanoite escura com uma lâmina de aço espetada na minha garganta. Defendo-me mergulhando na ambígua proteção do sono irresistível, fuga eficaz ementirosa. Esqueço aquele medo até a manhã seguinte, trocando-o pelosfantasmas dos sonhos.

Ao acordar, confuso, minha mente demora a espantar as brumas da noite.Talvez ainda flerte saudoso com as tramas do inconsciente, tênues quimerasincapazes de vencer um reles ruído de despertador. Completado o ritualmatinal, pego a chave da porta do primeiro andar. É bom dar uma escutadaatenta antes de abrir. Movo a maçaneta com força, esperando que o eventualintruso do térreo se denuncie com um movimento assustado. Já assimilei atática do bandido. Quero ter o fator surpresa a meu favor. Sempre haverátempo para fechar de novo a porta e acionar o alarme. Aliás, esse estratagemasó vale quando toda a família estiver trancada no andar de cima. Casocontrário, decidi há muito tempo que é sempre melhor não alertar a polícia.

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Já vivi a absurda realidade de estar sozinho com os ladrões e sei que aí eutenho pelo menos algumas chances. Com os tiras cercando sua casa, atragédia é certa.

Desço com cuidado os primeiros degraus. Já enxergo a janela do terraço.O cachorro está vivo e quieto, abanando o rabo. Bom sinal. Novo susto podeacontecer ao abrir a porta da cozinha que dá para o hall de serviço. Osgatunos esperaram um vizinho em lugar semelhante pela madrugada adentroaté que o coitado abrisse a porta.

Com certa ousadia, eu avanço agora para a garagem, que dá direto à rua.Espio pelo olho eletrônico. Tudo parece tranquilo. Muito atento, abro astravas, à espreita de algum barulho. Respiro fundo e escancaro a porta.Procuro o maldito jornal, atirado pelo entregador cada dia num lugar maisdifícil. Agacho-me ao lado do carro, cato o jornal e avanço rapidamente paraa porta entreaberta, trancando-me de novo. Tudo bem, por enquanto.

Ao sair para o trabalho, a rotina de tensos cuidados se repete. Entro nocarro, apressado. Sei do risco clássico de ser assaltado na saída da garagem.Com a chave da porta no bolso e a família toda exposta… dentro de casa. Quecontradição. Um horror! Engato a ré e saio com certa velocidade. Um dia,quase atropelei um pacífico casal de vizinhos que fazia seu cooper. Outra vez,raspei o para-choque do carro na árvore da calçada. Até agora, nunca meencontrei com o ladrão. Quando lembro do ridículo das cenas, não contenhoum riso sarcástico.

Paranoia? Risco eminente? Que me importa!Nas férias passadas um conhecido, descansando na praia, recebeu um

interurbano da polícia. “Encontramos um carro em seu nome, abandonado ecom sinais de violência.” Era a filha que o usava. Ela tinha ficado em casa,preparando-se para viajar numa excursão de ônibus, com amigos. “O quequer dizer com sinais de violência?”, perguntou o pai apavorado. “Vidroquebrado, toca-fitas arrancado e lugar ermo”, respondeu uma vozdesinteressada. Família em desespero. Várias pessoas mobilizadas. É precisoachar o telefone da casa de algum amigo da filha, companheiro de passeio, econfirmar se ela de fato embarcou. “A agenda dela, no apartamento”, lembra

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a mãe. “Mas está trancado!” “Então peça para alguém arrombar.” Consegue-se a agenda. O primeiro localizado não sabe exatamente quem viajou. Osegundo não conhece a filha. Cinco horas depois do maldito alarme, todosliteralmente apavorados, o sexto telefonema resolve a questão. “Sim, ela foicom a turma. Aliás, disse que deixou o carro numa ruela aqui perto.”

Pronto, foi só um roubo vagabundo. A filha está salva!Loucura, ameaça real? Que diferença faz?O que me interessa, de fato, é que o medo passou a ser para mim uma

espécie de pecado original. Faz parte de minha primeira natureza. O perigoestá em toda parte. Não acontecer comigo, naquele momento, é uma meraquestão de sorte. Acidente de avião, assalto no farol, batida no carro, balaperdida, terremoto, queda no poço do elevador, arquibancada que desaba…Dá para evitar? Aliás, há mais risco em viagem de avião ou na descida daserra, dirigindo em mão dupla? São questões que tenho procurado responder.Sei, porém, que conhecer a resposta em nada resolverá minha angústia.

Tento pesquisar aquelas situações especiais em que o medo, qual infecçãooportunista, fica tão quieto que dá a impressão de que sumiu. Vou mapeandocom lupa meus próprios sentimentos. Descubro com espanto que na casa demeus pais, velhos indefesos, sinto-me mais seguro. Não me lembro, quandomenino, de ter sentido ameaças reais. Pai e mãe pareciam um escudoprotetor. Como se absorvessem sozinhos todo o medo do mundo. Ou quemsabe a idade quebre os filtros especiais a que a infância se permite, como secada um recebesse a quota limite de medo que pudesse suportar em cadamomento de sua vida. Mas como, não me recordo mais dos medos decriança? E aquela prova decisiva, a falsificação do boletim, a ameaça de surrado colega mais forte?

Os antigos pavores imaginários, esses sim estão claros em minhamemória. Deles, não posso me defender. Dias e dias de pânico no banho dechuveiro, na hora de ensaboar a cabeça. Olhos fechados, a faca macabra dacena de Hitchcock, em Psicose, pronta para sangrar. Até hoje esses medosestão por aí. Controlo-os mal, com truques idiotas como manter os olhosabertos ou trancar a porta do banheiro.

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Exploro outro caminho. Parece que estar enamorado ou ter filhosintroduz uma carga adicional de medo. Pessoas muito queridas passam a sernovos alvos. Além de mim mesmo, agora tenho de aguentar que outros dequem gosto também estarão a perigo. Riscos multiplicando-se em progressãogeométrica.

Será que meus filhos me veem como eu via meus pais?Fazer o quê? Só resta disfarçar o medo. Às vezes sinto vontade é de voltar

ao útero. Não o de verdade. Dentro desse os cientistas, com suas experiênciasmacabras, já fizeram o favor de demonstrar que o feto sente dores e estresse.O que quero mesmo é o Éden, o paraíso da fantasia de todos nós. Mas o gozoe a liberdade duramente conquistados, não o foram em troca da culpa eternae do medo da condenação? Não foi essa trágica e bela decisão de Adão, a decomer a maçã – ou a Eva – que deu sentido à condição humana?

Bem, se todo esse medo é a outra face inevitável da liberdade e do prazer,só me resta considerá-lo como fizeram João Cabral de Melo Neto, poeta daminha terra, ou Freud, com suas dores. Seja a do poeta – cefaleia persistente –ou a do desbravador da mente, consequência de sua longa moléstia fatal. Nãopermitiam que elas lhes tomassem plenamente. Encaravam a dor física comouma mera prova de que estavam vivos e a encapsulavam em uma pequenaparte da mente. Mas medo é diferente; é dor de alma.

Conformado, interrompe sua narrativa. Talvez aquele seu amigo tenharazão. Apesar de todo o desconforto, que ameaça real paira agora, aqui?Ladrões ou bandidos nessas paragens, em meio à tempestade? Ele ficapensando se os mortos também sentem medo.

Agora espera-se que alguém tome seu lugar. A impressão geral é de quetalvez falte apenas um a falar.

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ENXAQUECA

BEM, ACHO QUE NÃO TENHO ESCAPATÓRIA. Chegou minha vez. Vou falar daminha velhíssima dor. Era inevitável que ela fosse aparecer. A tensão datempestade se aproximando, a correria até o abrigo, a comida racionada e odesconforto. Mas, principalmente, a perda do controle diante do imprevisto.Maldito imprevisto, sempre inevitável. Um filósofo espanhol diz que, emboraimaginemos nossa vida organizada sobre certezas, são os imprevistos que adefinem. E a sabedoria popular há muito já definiu: certeza mesmo, só damorte. Nenhuma novidade. Sabemos todos disso muito bem. Mas como édifícil ter de lidar com toda essa incerteza. Temos aqui um exemplo vivo.Subíamos nós placidamente um velho vulcão coberto de neve, certos de queapós contemplarmos um buraco que já foi cratera e a paisagem do vale,comeríamos nosso lanche, desceríamos e estaríamos à noitinha no confortode nossos hotéis, preparando-nos para um bom jantar. Olhem só onde nosmetemos. Alguns dirão: não há nada de trágico nisso, é até uma experiênciadiferente. Desculpem a linguagem tosca; eu acho esta situação uma merda.Deixemos para lá. O fato é que a dorzinha velha começou logo apóschegarmos ao abrigo, e eu sei bem aonde ela teria me levado se não tivessetomado minhas providências, ou melhor, meu comprimido salvador. Penaque agora tenho receio dele. Explico depois. Quero contar sobre os temposantigos em que isso tudo começou. Ou seja, descobrir-me portador de umsintoma clássico, mas de causas complexas, que atende pelo nome estranhode enxaqueca.

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A lembrança mais velha vem da época de menino doente, lá pelos dez ouonze anos, e tratado pela minha mãe com zelos de cuidar de menina. Resolvi,então, que minha única salvação para afirmar-me como um machinho eratentar jogar bem futebol. Naquela época o ginásio estadual que eufrequentava era o melhor da cidade. Rigoroso e exigente, o professor deeducação física fazia questão de ter nos esportes equipes competitivas. Pobrede mim. Franzino, meio sem jeito, eu dava tudo o que podia no futebol. Epodia bem pouco. O máximo que consegui foi ser esforçado titular da minhaclasse em posição sem nenhuma responsabilidade, e eterno reserva da seleçãoentre as classes do ano. Isso me exigia um esforço intenso, e meus colegas mevalorizavam por ele. No inverno frio e encoberto, as coisas ainda caminhavamsem sequelas. Mas nos longos meses de verão e forte sol, as consequênciaseram imediatas. Mal eu chegava em casa e a dor se instalava.

Como os treinos de futebol eram quinzenais, minhas enxaquecas de verãotambém o eram. Horror à luz, náuseas e muita dor de cabeça, de preferêncianas têmporas. Eu sofria pra caramba e mobilizava minha mãe para umasolução. Nunca houve. Os analgésicos de sempre nunca davam conta. Eramdois a três dias de sufoco, em quarto escuro e comendo, no máximo, caldinhode galinha. Essas crises eram a razão principal para a longa lista de faltasjustificadas que minhas cadernetas escolares ostentavam. Outro dia, antesdessa viagem, abri o velho baú e examinei-as. Juntando bronquites eenxaquecas, a lista somou em um ano mais de trinta dias de ausência. Eupassava de série porque, modéstia à parte, era inteligente. Somatizações paragarantir a atenção da mãe? Acho que não, até porque a tinha mais do quegostaria. Nunca se sabe. Se era por isso, eu pagava um preço enorme. Umabarra muito pesada.

De vez em quando havia uma companheira para a minha dor. Uma tia-avó que vira e mexe passava umas semanas lá em casa e era a rainha daenxaqueca. Nas suas frequentes crises, trancava-se no quarto; e, quando saía,tão branca que mais parecia um fantasma, usava um lenço amarrado à testacom rodelas de batata crua. Para ela, isso aliviava os sintomas. Gemia peloscantos e xingava em um dialeto espanhol irreconhecível. E tomava chá de

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boldo, muito chá de boldo, um horror amargo que ela preparava e deixava eminfusão num copo ao lado do filtro de água, consumindo-o às colheradas.

Pois bem, minhas enxaquecas acompanharam toda a minha vida,aprontando-me situações dolorosas. Numas delas eu fazia o discurso deformatura da faculdade, representando os alunos. Verão forte, um ridículo edesconfortável smoking alugado, muita tensão e holofotes na minha cara. Eela, a maldita enxaqueca, plenamente instalada. Lembro-me de ter saídocorrendo, mal terminei, para vomitar atrás de um pilar escuro, pois não deutempo de chegar a lugar mais apropriado. Outra vez era meu aniversário.Estávamos provisoriamente metidos num apartamento mínimo, velho eindecente, cuja cozinha era um corredorzinho caindo aos pedaços. Minhamulher fez mágica e improvisou um surpreendente jantar, tudo preparadopor ela. Um esforço enorme para me homenagear. Chego de um dia detrabalho em meio a um calor tórrido, todo suado e com a cabeça explodindo.Só o cheiro já me liquidou. Ela estava com a mesa posta, pronta para acenderas velas. Pedi-lhe mil desculpas, tomei um banho e caí na cama. Ela comeusozinha. Nunca me perdoou. Por essas e outras, decidi não deixar essemonstro se apoderar de meus dias, passei a ser um pesquisador no tema. Edescobri coisas incríveis. Uma das doenças mais conhecidas e relatadas desdea remota antiguidade, a enxaqueca apresenta uma sintomatologia –desculpem os termos, mas a boca entortou com o uso excessivo do cachimbo– que varia de indivíduo para indivíduo; e, às vezes, para o mesmo sujeito, seapresenta com cara diferente. A mais comum é horror à comida e à luz edores variadas na cabeça. Mas as causas, essas permanecem um enormemistério.

Um neurologista de prestígio mundial tem um livro inteiro sobre oassunto. Quatrocentas e tantas páginas para mostrar a absoluta falta depadrão para os fatores desencadeantes. Há relatos de mulheres que passarama ter enxaqueca depois da primeira gravidez e das que, ao contrário, sararamdepois do nascimento do primogênito. Alimentos e circunstâncias quedisparam crises pra alguns, atenuam-nas para outros, e assim por diante. Nomeu caso, acho que ela está muito ligada a questões de desempenho. Exijo

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demais de mim. A tensão aumenta, e vem a crise. Um dos meus sonhosrecorrentes é estar caminhando para fazer uma conferência e perceber aflitoque esqueci a gravata. O pênis, dirão os freudianos. Vá lá. Se, além do mais,estiver calor e houver foco de luz nos meus olhos, o risco aumentarapidamente. Quanto aos tais avanços da ciência médica, que em geralrepudio – odeio tomar remédios –, acompanho-os em detalhes no caso daenxaqueca. Minhas longas investigações em busca de aborto ou alívio dasminhas crises levaram-me a duas soluções razoáveis. Uma delas é umamistura de dipirona com cafeína e mais uma ergotamina. Ou seja, umanalgésico, um constritor dos vasos periféricos cranianos e um estimulantepotencializador dos dois primeiros. Desculpem mais uma vez os termos. Ofato é que ele funciona para a boa parte das situações. Mas o meu míssilteleguiado, que corta todas as crises com a mão, descobri-o há pouco tempo.É uma triptana. Agora, preparem-se. Ela tem uma atividade agonista sobre osreceptores vasculares 5-HT, causando vasoconstrição associada à inibição daliberação de um peptídeo vasoativo relacionado ao gene de calcitonina e àsubstância P. Não me perguntem do que se trata, não entendo porranenhuma. Só sei que é tiro e queda. Foi o que tomei há quatro horas porqueachei que a situação exigia. E estou perfeito.

Ando sempre com minhas duas alternativas e uso-as de acordo com aimportância do momento. Se vou fazer uma conferência ou ter um encontroimportante, tomo logo o míssil. Só que, agora, com mais cuidado e certomedo. Trata-se de remédio de última geração, pouco testado, que oslaboratórios ávidos de lucros se apressam a lançar no mercado para depois veras consequências. Não é que no mês passado um médico inglês, ao operar umdoente, verificou espantado que seu sangue estava verde? Saiu nos jornais.Pesquisa demonstrou que ele havia ingerido triptana em excesso. Maldição!Definitivamente não é um bom sinal. Preciso tomar mais cuidado. Estoupensando em fazer da dose de hoje a última. Sei lá. Vamos ver. Esperemos odia amanhecer. Num mundo sem imprevistos, sem tensões, sem riscos, compouco sol, razoável frio e sem holofotes, talvez eu não tivesse mais enxaqueca.

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Um amigo me disse que só conhece um mundo assim: o dos que não vivemmais.

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O CLARO DO SOL

O SILÊNCIO QUE SE SEGUIU FOI DIFERENTE DE todos os outros. Aos poucos ficouevidente que não havia mais ninguém a falar. A lenha chegara ao fim. Do fogoda noite só havia sobrado um ralo braseiro. Muitos cochilavam. No lugar dovento da madrugada, agora lanças de luz penetravam pelas frestas, fazendo osvultos adquirirem estranhos contornos. De repente, frases foram surgindoquase ao mesmo tempo: “Amanheceu”, “Parou de nevar”, “Temos sol”. Oguia, que andara dormitando um pouco, levantou-se lépido, foi até à porta emoveu-a devagar. Como boa porta de abrigo de neve, ela abria para dentro. Aluz penetrou violenta, incendiada de branco e amarelo. As pessoas fecharamos olhos tal saídos de uma solitária. Uma barreira de gelo de uns quarentacentímetros formava um degrau que atestava o tamanho da nevasca.

Os companheiros de escalada colocaram apressados seus abrigos, cadaqual querendo ser o primeiro a sair. Olhados agora na clareza do dia, nenhumdeles parecia ter nada a ver com as histórias e relatos da longa vigília.Percebia-se uma tentativa geral de identificar os depoimentos com os rostosque agora se mostravam ao sol. No entanto, essa tarefa parecia qua-seimpossível. Mesmo em relação às três mulheres, não era fácil. No máximo,podia-se fazer hipóteses.

Um tempo razoável pareceu estar dedicado a esse jogo de adivinhação.Até que o guia resolveu intervir e pôr ordem nas coisas. Sugeriu que asnecessidades da cada um fossem feitas atrás de uma pequena encosta ecobertas com neve, indicou lados diferentes para homens e mulheres, liberoualguns sacos plásticos cheios de água para as lavagens matinais de quem se

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dispusesse a enfrentar o frio e determinou um horário para que, terminado olanche coletivo com os restos da refeição da tarde anterior, o grupo iniciasse adescida. Lembrou-se que tinha três ou quatro saquinhos do chá e pensou emtentar improvisar um pequeno fogareiro para servir um pouco de bebidaquente. Isso poderia ajudar alguns no despertar final para a marcha. Quandolevantou sua mochila para abri-la em busca de material, percebeu embaixodela umas notas de dólar e as pôs no bolso. Era o reembolso do falso casal.

Apesar da neve alta e fofa que dificultava a caminhada, a descida foitranquila. No meio dela percebeu-se à distância dois guias da agência quevinham ao encontro dos excursionistas preparados para enfrentaremergências. Saudaram-nos com vigor. O micro-ônibus, que agora tinhacorrentes nos pneus para enfrentar a neve, estava no lugar combinado e era osinal concreto de ligação com o mundo.

Entraram todos e iniciou-se a volta. O clima entre as pessoas era estranho.Embora, para o guia, o grupo parecesse o mesmo da subida, cada uma delastinha uma percepção diferente. Decididamente algo havia mudado.Resistências se quebraram, sentimentos novos emergiram, propósitos tinhamse estabelecido. O silêncio que se instalara dentro do veículo era de outraqualidade.

Quando alguém o rompeu, foi para dizer: “Meu caro guia, este atrasotalvez nos faça perder o voo. Vamos precisar de sua ajuda o mais urgentepossível.”

Desfez-se o encanto. Parecia novamente apenas um grupo de turistas quehaviam se metido numa aventura meio exótica e perdido meio dia de viagem.O incidente estava terminado.

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