mythos e logos no poema de parmênides - bruno loureiro conte

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P U C S P PUC-SP Bruno Loureiro Conte Mythos e logos no poema de Parmênides M F S P 2010

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Como é bem sabido, o poema de Parmênides, considerado uma das obras fundamentais do pensamento filosófico grego, apresenta uma pluralidade de elementos míticos, seu esclarecimento constituindo um problema para os intérpretes. Trata-se, neste trabalho, de investigar o significado histórico-filosófico do mythos e do logos no poema, a partir da inserção da obra em seus contextos culturais. Nossa análise inicia-se destacando a presença do mythos, entendido em seu sentido original de maneira autorizada de falar, mostrando-o de tal modo entrelaçado ao logos que o ``argumento'', sem ele, sequer seria compreensível. De outro lado, procuramos determinar a especificidade do logos de Parmênides: trata-se de um logos reflexivo, ``refutativo'', mas não, como pretendem alguns intérpretes, de uma estrita ``demonstração''. Estabelecido esse ponto, surge a obra de Parmênides como produtora de agenciamentos míticos diversos, apropriando-se das imagens do poeta tradicional inspirado, da iniciação nos cultos de mistérios, de figuras de divindades e da concepção da existência humana presente na Lírica arcaica, efetuando-se o poema em múltiplas configurações discursivas (narrativa, argumento, fala oracular). Nesse sentido, introduzimos a hipótese interpretativa da associação da fala da deusa no poema a um tipo específico de oráculo, similar ao do médico-adivinho. Tais associações ou agenciamentos, todavia, não se revelam como simples reproduções de aspectos presentes na cultura grega: eles são mesmo subvertidos em direção à instauração filosófica de uma reflexão radical, que recolhe ``sinais'' do visível e do invisível, conduzindo ao ``pensar''.

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Po1iiti: Uiviisii:ii C:1oiit: ii S\o P:iioPUC-SPBruno Ioureiro ConteMythos e logos no poema de ParmnidesMis1i:io ix Fiiosoii:S\o P:iio2010Po1iiti: Uiviisii:ii C:1oiit: ii S\o P:iioPUC-SPBruno Ioureiro ConteMythos e logos no poema de ParmnidesMis1i:io ix Fiiosoii:DissertaoapresentadaBancaExamina-dora como exigncia parcial para obtenodo ttulo de M em Filosoa pela Ponti-fcia Universidade Catlica de So Paulo, soba orientao da Profa. Doutora Rachel Ga-zolla de Andrade.S\o P:iioioroBanca examinadora RachelAgradecimentosAos meus pais, minha famlia e amigos, agradeo pelo apoio e incentivos.Lembro aqui os professores do Programa que me acompanharam, os quais, oferecendodiferentes perspectivas, contriburam de maneira relevante para minha formao: Profa.Jeanne-Marie Gagnebin, Prof. Mrio Gonzles Porta, Prof. Peter Pal Plbart e Prof. Mar-celo Perine.Muito do que se apresentar a seguir devido aos bons encontros propiciados pelasvrias edies do Simpsio Interdisciplinar de Estudos Greco-Romanos da PUC-SP, organi-zado pelos Profs. Marcelo Perine e Rachel Gazolla de Andrade alguns dos pesquisadoresparticipantes do evento esto citados neste trabalho.Particularmente, agradeo aos Profs. Jos Trindade Santos e Henrique Murachco pelaincansvel disposio de ensinar e debater, e a este ltimo, juntamente ao Prof. Hugo Re-nato Ochoa, tambm pela participao em minha banca de qualicao.Agradeo ao apoio dos colegas do Centro Universitrio So Camilo, e tambmaos meusalunos, que em muito animaram esta pesquisa.Aos amigos Eduardo Nasser e Bruno Rates devo incontveis ocasies de dilogos fr-teis, nesses j alguns anos de companhia. A Pedro Monticelli, Aline Ramos e Julio Rego,cujas amizades so mais recentes, agradeo os muitos auxlios, bem como ao Nicola Gal-gano, meu colega de estudos eleticos.Aos colegas do Grupo de Estudos Platnicos e demais colegas do Programa, pela ami-zade e as conversas inteligentes. Em especial a Ivanete Pereira, por seu carinho e apoio. PUC-SP, instituio que me acolheu desde o curso de graduao. Ao Coordenador,Prof. Edlcio Gonalves de Souza. A Joice Tremonti e Simia, secretrias do Programa. sagncias de fomento, Capes e CNPq, pelo nanciamento parcial desta pesquisa.E, nalmente, mas no menos importante, minha gratido Profa. Rachel Gazolla deAndrade, nossa Mestra, a quem dedico este trabalho de iniciao.ResumoCONTE, Bruno Loureiro. Mythos e logos no poema de Parmnides. 2010. 138f. Dissertao(Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2010.Como bem sabido, o poema de Parmnides, considerado uma das obras fundamentaisdo pensamento losco grego, apresenta uma pluralidade de elementos mticos, seu es-clarecimento constituindo um problema para os intrpretes. Trata-se, neste trabalho, deinvestigar o signicado histrico-losco do mythos e do logos no poema, a partir da in-sero da obra em seus contextos culturais. Nossa anlise inicia-se destacando a presenado mythos, entendido emseu sentido original de maneira autorizada de falar, mostrando-ode tal modo entrelaado ao logos que o argumento, sem ele, sequer seria compreensvel.De outro lado, procuramos determinar a especicidade do logos de Parmnides:trata-sede um logos reexivo, refutativo, mas no, como pretendem alguns intrpretes, de umaestrita demonstrao. Estabelecido esse ponto, surge a obra de Parmnides como produ-tora de agenciamentos mticos diversos, apropriando-se das imagens do poeta tradicionalinspirado, da iniciao nos cultos de mistrios, de guras de divindades e da concepo daexistncia humana presente na Lrica arcaica, efetuando-se o poema em mltiplas con-guraes discursivas (narrativa, argumento, fala oracular). Nesse sentido, introduzimos ahiptese interpretativa da associao da fala da deusa no poema a umtipo especco de or-culo, similar ao do mdico-adivinho. Tais associaes ou agenciamentos, todavia, no serevelamcomo simples reprodues de aspectos presentes na cultura grega: eles so mesmosubvertidos emdireo instaurao losca de uma reexo radical, que recolhe sinaisdo visvel e do invisvel, conduzindo ao pensar.Palavras-chave: eleatismo, pr-socrticos, visvel e invisvel, mito, razo.AbstractIt is widely known that Parmenides Poem, which is considered a fundamental work in Greekphilosophical thought, presents a plurality of mythical elements, and that its clarication con-stitutes an issue to the interpreters. is research is an investigation of the historical andphilosophical meaning of mythos and logos in the Poem, considering the work in its culturalcontexts. Our analysis begins by bringing to the foreground the presence of mythos, understoodin its original sense of authorized way of speaking, pointing out its interweaving with logos,in such a manner that without the former the argument of the latter would remain incom-prehensible. On the other hand, we aim to determine the specicity of logos in Parmenides:it shows up as a reexive, refutative logos, but not, as some interpreters have sustained, astrict demonstration. Having established this point, Parmenides work shows itself as pro-ductive of a plurality of mythical assemblages, appropriating images of the traditional inspiredpoet, of initiation in cults of mystery, of divinity gures and of the Archaic Lyric conception ofhuman existence. Furthermore, the Poem deploys itself in multiple discursive congurations:narration, argument, oracular speaking. In accordance to that, we introduce an interpretativehypothesis associating the Goddess speech in the Poem to a particular kind of oracle, similarto that of the mantic healer. Such associations or assemblages, nonetheless, are not simple re-productions of aspects already present in Greek culture: they are, as a matter of fact, subvertedin the direction of the philosophically instituted radical reection, which collects signals fromvisible and invisible, leading to thinking.Keywords: eleatism, pre-socratics, visible and invisible, myth, reason.SumrioIntroduo p. 81 O poema de Parmnides e o problema do saber no pensamento arcaico p. 161.1 Paralelos com Hesodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 161.2 O logos puricatrio de Xenfanes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 241.3 A exigncia de uma transmutao do mito na obra de Parmnides. . . . p. 292 Os caminhos do poema p. 382.1 A multiplicidade de caminhos e os caminhos como logos . . . . . . . . . p. 382.2 Os dois caminhos de investigao (fr. 2) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 502.2.1 O logos reexivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 502.2.2 A estrutura dicotmica dos caminhos de investigao . . . . . . p. 602.3 Estabelecimento da perspectiva crtica sobre a doxa irreetida dos mor-tais (frs. 6 e 7) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 682.4 Precises sobre o logos no poema: demonstrao ou refutao? . . . . . . p. 733 A fala oracular da deusa p. 803.1 A inteligncia errante dos mortais ( ) em referncia lricaarcaica (fr. 6,4-6) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 813.2 A congurao oracular da fala da deusa . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 914 O pensar p. 1004.1 O presente de . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 1004.2 O pensar e as opinies dos mortais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 110Concluso p. 123Visvel e invisvel, saber e no-saber . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 123Referncias Bibliogrcas p. 127Anexo A -- Traduo dos fragmentos do poema p. 134Sobre a natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 1348IntroduoVernant mostrouque o nascimento da losoa, longe de poder ser compreendido comoo milagre grego de uma Razo que descobre a si mesma, vai de par a transformaespoltico-sociais e ao surgimento da Cidade-Estado (polis). Com efeito, a razo, entre osgregos, teria primeiro se formado e se exprimido no plano poltico:A experincia social pde tornar-se entre os gregos o objeto de uma ree-xo positiva, porque se prestava, na cidade, a um debate pblico de argu-mentos. O declnio do mito data do dia em que os primeiros Sbios pu-seram em discusso a ordem humana, procuraram deni-la em si mesma,traduzi-la emfrmulas acessveis sua inteligncia, aplicar-lhe a norma donmero e da medida. (VERNANT, 1984, p. 103)Posteriormente, Detienne investigou a emergncia de uma palavra-dilogo, a diferen-ciar-se da palavra ecaz do rei de justia, do poeta e do adivinho, homens excepcionais cujafala inseparvel de condutas e de valores simblicos: estes so, pois, mestres da verdade,e sua fala mgico-religiosa coincide com a ao que ela institui em um mundo de foras epotncias que so tambm invisveis. Detienne encontra os primeiros traos dessa transi-o nas assemblias de guerreiros descritas por Homero: precedendo a expedio dos Ar-gonautas, os Aqueus deliberamsobre os assuntos que dizemrespeito a seu grupo; atravs doaconselhamento mtuo, discute-se o que interessa a cada um em sua relao de alteridade.A fala torna-se instrumento de dilogo, sua eccia no se baseia em foras religiosas quetranscendem aos homens, mas funda-se essencialmente sobre o acordo do grupo social,manifestando-se pela aprovao ou desaprovao. A se prepara, diz Detienne, o futuroda fala jurdica e do discurso losco. Com o estabelecimento do direito, em substituioaos procedimentos ordlicos e do juramento, o advento da cidade grega marcar, por m,DETIENNE, 2006, p. 94.9a ruptura e o triunfo da palavra-dilogo:A palavra no mais tomada em uma rede simblico-religiosa, mas al-cana sua autonomia, constitui seu mundo prprio no jogo do dilogo quedene uma espcie de espao, um campo fechado onde enfrentam-se osdois discursos. Por sua funo poltica, o logos torna-se uma realidadeautnoma, submetida a suas prprias leis. (DETIENNE, 2006, p. 103)Se a losoa , em larga medida, tributria da emergncia do logos que descobre suasprprias potncias no debate argumentado e contraditrio, ao mesmo tempo, porm, elaprocura instaurar o seu domnio prprio, diferenciando-se da discusso dos homens nacidade: coloca problemas, diz ainda Vernant, que s a ela pertencem.E se o discursolosco argumenta, debate e demonstra, ele tambm no abre mo de uma pretenso verdade que o aproxima, em alguma medida, como veremos, fala do mito. no quadrodessa ambigidade que se desenvolver este estudo.Plato no deixou de perceb-la, emumdilogo emque se coloca a tarefa de enfrentar asofstica, de compreend-la emseus fundamentos oude denunciar seumal-fundado. Exibiro falso do e no discurso sofstico uma maneira de defender a verdade da dialtica losca,de mostrar que o logos no se deve encerrar na mera disputa argumentativa, mas abrir-seao verdadeiro, falar sobre o que , exprimir o ser. O lsofo, precisa-se no Sosta, aquelecujo logos est sempre ligado ao que . E, entretanto, se a losoa, ao menos essa queAristteles chamaria losoa primeira, ontologia, sua elucidao no prescinde de umacerto de contas com os mitos ou com a mitologia, dizer do mito. Em uma passagem doSosta, o Estrangeiro de Elia esse personagem annimo que conduz o dilogo no lugarde Scrates no deixa passar a ambigidade a aproximar o campo do mythos ao do logos:E. A meu ver, parece-me que com uma satisfao descuidada quese dirigem a ns Parmnides e todos os que empreenderam discernir edeterminar o nmero e a natureza dos seres.T. Como?E. Do-me todos eles, cada um a seu modo, a impresso de contar-nos uma espcie de mythos, como faramos a crianas... (Sosta, 242 b-c)VERNANT, 1984, p. 104.Cf. Sof., 254 a: .Traduo de Paleikat e Cruz Costa.10Aristteles, na diaporemtica do livro B da Metafsica quanto cincia investigada isto , quanto losoa primeira ou metafsica , tambm reclama dos que procuramdiminuir-nos ( , 1000 a 10). Trata-se, nesse caso, de Hesodo e da-queles a quem o estagirita denomina telogos. Eles so caracterizados como (a 18-19): expresso interessante, pois diz que os telogos transmitem umasabedoria (), mas tambm que o fazem de uma maneira mtica. Que essamaneira mtica de dizer que nos negligencia, como se fssemos tomados por crianas?Ficamos sabendo logo a seguir, por contraste: no se deve fazer uma investigao muito asrio sobre o que dizem esses telogos, mas interrogar junto queles que argumentam pordemonstraes ( , a 19-20). E, contudo, nem se despreza omito, nem negado que ele possa veicular a verdade: verossmil que toda cincia e artetenhamsido muitas vezes encontradas e novamente perdidas, e que as opinies dos antigosconservem-se, atravs dos mitos, como relquias. Distingue-se, assim, o logos demonstra-tivo do mythos, mas no como o verdadeiro da inverdade.Quando, portanto, na passagem do Sosta, o Estrangeiro diz que Parmnides e outros,ao falarem sobre o ser ou os seres, contam-nos um mythos, no se deve entender a expres-so como uma desqualicao dos pensadores, como se dissessemfalsidades ou narrassemmeras fbulas: a palavra no tem originalmente esse sentido. Em Homero, ex-presses como mythos eipein e mythemai so freqentes, e podemser traduzidas, como sefaz habitualmente, por falar, dizer. Mas no se trata, muitas vezes, de umdizer semqua-licaes. Ao incio da Ilada, Agamnon recusa os presentes oferecidos por Crise emtrocado resgate de sua lha Criseida. Humilha o sacerdote de Apolo e proclama ummythos: noquer v-lo esgueirando-se por entre as naus, esperando que lhe devolva a lha. Ordena-oa parar de aborrec-lo se quiser voltar com segurana a seu lar. Resta ao velho sacerdoteapenas obedecer s suas palavras e retirar-se emsilncio. Agamnon no precisa utilizar-seSobre o signicado de Met. Bna investigao metafsica de Aristteles, consultar BERTI, 2002, pp. 77-81.Cf. JAEGER, 1953, p. 19.Met. 8, 1074 b 1-14., todavia, como traduzem Paleikat e Cruz Costa.11de nenhuma polidez, no argumenta. O mythos que dirige a Crise estabelece ou conrmauma relao de domnio e subordinao. Designa-se por mythos uma maneira autorizadade falar, uma fala que produz efeitos de poder.Entre os sculos V-IV a.C. perodo em que vive Plato, pelo menos oitenta anos de-pois do nascimento de Parmnides esse sentido, sem se perder, matizado, e vai de parcom o surgimento e a elaborao do que podemos chamar de uma racionalidade demons-trativa: ao mythos, agora, ope-se o logos. Da palavra de autoridade, proferida sem justi-cativas, diferencia-se o discurso argumentado, que expe suas razes. A tenso se expressano aparecimento de uma palavra nova: o verbo . Ao diferenciar-se a palavra deautoridade do argumento racional, justicado, pode-se ento qualicar negativamenteum discurso (logos) como sendo no-argumentativo. Algum mitologiza quando nojustica seus prprios argumentos, apoiando-se, por exemplo, na antiguidade de uma tra-dio ou na inspirao das Musas. Que o substantivo mythologos seja atribudo pessoaque fala, como ao pots, particularmente signicativo: indica o delineamento de umaconscincia da distino entre o sujeito de enunciao e o contedo do enunciado.A distino entre o mtico e o racional saliente na fala que Plato atribui a Prot-goras, no dilogo que leva seu nome: para defender a ensinabilidade da aret e explicar porque os atenienses consultam qualquer cidado em matria de poltica, apesar de deixarema cargo de especialistas o que diz respeito s technai particulares, o sosta diz poder recor-rer tanto a um mythos quanto a um logos (320 c ss.). Como relata o mito, por terem sidopresenteados comdons divinos (as technai, de umlado, Dik e Aids, de outro), os homensso tambm os nicos seres a estabelecer cultos aos deuses. Que essa armao venha deum homem que, como Plato noticia, era um agnstico (cf. Teet., 162 d), isso no deveser considerado contraditrio e nem indcio de inautenticidade da representao feita dososta: o fenmeno religioso um fato antropolgico, e Protgoras perfeitamente capazCf. MARTIN, 1989; LINCOLN, 1996.Para os contextos em que essas palavras aparecem, cf. LSJ, s. v. , .12de explicar os principais pontos do relato mtico no discurso racional que o segue.Se lembrarmos o agnosticismo de Protgoras que, como se sabe, levou-o expulso oufuga de Atenas, seguida de sua morte, em que ele consiste?O abderita teria iniciado umtratado Sobre os deuses armando no poder dizer nem se os deuses existem nem comoso, pois, diz ele, muitas diculdades o impedem.Talvez no se trate tanto de umanegao da tradio mtico-religiosa, de uma descrena a respeito dos deuses ou de umdesprezo impiedoso (ainda que pudesse ter sido assim interpretado pelos que o julgaram),mas de operar um corte, de reconhecer um limite crtico. Protgoras marca uma na dis-tino entre o que pode e o que no pode ser objeto do debate contraditrio, entre aquilosobre o que o logos pode estabelecer argumentos e o que cheio de obscuridade, ,o que embaraoso e resiste ao conhecimento ( , DK B 4,6). Feitaessa separao, bemsabe o sosta o que passvel de transpor do mito ao discurso racionale, reciprocamente, o que comporta argumento e o que no.O pensamento de Protgoras uma expresso maior da racionalidade demonstrativaque se elabora. Dizer se so ou o que so os deuses no comporta um juzo denitivo.De outro lado, o que se impe percepo (aisthsis) como claro e evidente deixa poucamargem deliberao e ao argumento.Entre os dois plos, est aberto o campo do logosargumentativo, que pode desdobrar-se no estabelecimento de uma tese ou, posta uma tese,tom-la a m de convert-la em sua contraditria, passando do pr ao contra. Nesseespao intermedirio de obscuridade e claridade, entre o invisvel e o absolutamente ma-GUTHRIE, 1988, pp. 64-65, 266.DK A 12 B 4. Traduo de Ana Alexandre Alves de Souza e Maria Jos Vaz Pinto.Ver ZAFIROPOULO, 1948, pp. 90-92, que caracteriza os sostas, de maneira geral, como desprezandoo invisvel em favor do visvel.Segundo os fragmentos citados, um dos motivos apontados para a impossibilidade do saber sobre osdeuses reside em no haver deles percepo, . de notar que, no Teeteto, remeta-se a tese da identi-dade de saber e percepo doutrina de Protgoras do homem-medida: o logos, e a possibilidade da antilogia,da contradio, esto vinculados ao aparecer () a cada um. Mas a relao no direta: da equiva-lncia do rme saber () e da percepo () deve diferenciar-se a a respeito do que nose oferece como presena imediata (uma distino desse tipo pressupe tambm Iscrates, ao dizer que noh das coisas futuras). no campo das opinies que se pode, propriamente, produzir a contradio(cf. Fedro, 260 b; Alcibades Primeiro, 111 b-c). Sobre a introduo, por Plato, da como instnciareceptora da sensao e produtora da , ver GAZOLLA, 2007, pp. 405-408.13nifesto, o sosta pode exercer sua habilidade na demonstrao (epideixis), exibir-se em suavirtuose argumentativa. Como j se observou, umo de continuidade faz a ligao da ree-xo sofstica teoria do silogismo epistmico de Aristteles: tanto no campo da sofsticaquanto no da cincia procura-se situar o mbito do demonstrvel, exploram-se as possibili-dades do logos como prtica argumentativa que se exerce por si mesma, parte de qualquermythos.Face s exigncias dessa nova forma de racionalidade, como cam os antigos mestresda verdade? Nem a cosmogonia de um poeta como Hesodo mas talvez nem, tambm,as cosmologias dos jnios e milsios so passveis de estrita demonstrao, de passar pelocrivo de umlogos que coloca na balana os argumentos contra e a seu favor: nenhumdessespoetas ou pensadores enuncia uma tese passvel de um exame que estabelea, de maneiraimanente, a sua verdade. Antes, o que eles tm a enunciar muito mais uma revelaodo que uma tese. Tiveram acesso privilegiado a um saber, o qual comunicam aos mortais.Eles mesmos sentem-se umpouco como deuses, mais divinos do que humanos emalgunscasos, como o de Empdocles, a prpria condio mortal parece um escndalo, ndice defaltas cometidas em uma existncia anterior.O sbio que tem uma verdade a revelar fala do alto, distante dos homens comuns. Nopareceria diferente o caso para Parmnides:se em seu poema pode-se ler, de um lado, ainaugurao de uma razo crtica, que separa e discrimina o ser do no-ser, apon-tando a diferena entre verdade e o opinio, de outro, porm, o fundamento da verdadedessas distines atribudo, em princpio, fala de uma deusa: esta no comporta obje-es nem acrscimos. Dirigindo-se a um iniciado, a deusa proclama, imperativamente,uma palavra a ser por ele escutada e guardada ( , B 2,1 DK).O carter acusmtico dessa verdade, enunciada como um mythos, o que reprova, atmesmo em Parmnides, o Estrangeiro de Elia:Cf. AUBENQUE, 1962, pp. 94-106.31 B 118, 119 DKB 7, 3-6 DK: ; cf. FATTAL, 2001, pp. 112-120.14 Se disseram ou no algo de verdadeiro sobre todas essas coisas (- ), difcil dizer, almde pretensioso levantar crticas, em assuntos to importantes, a homensque defendem a sua glria e antiguidade.Mas, sem incorrer em censura,podemos declarar que O qu? Que, olhando-nos do alto (-), pouca considerao tiveram para conosco, o vulgo ( ); pois todos eles prosseguememseus logoi at o m, semse importa-rem em saber se ns os estamos acompanhando ou se, j muito antes, nosperdemos. (Sof., 243 a-b)V-se aqui a ambigidade da posio de Plato diante da forma de racionalidade que sedesenvolve em seu tempo: de um lado, reverenciam-se os antigos, os palaioi. No se querdesprezar a sua altheia.De outro, tambm no possvel escapar ao caminho sem voltaaberto pelo logos demonstrativo, de que o movimento sosta, incluindo-se Scrates, amaior expresso.Diante desses discursos que no argumentam, que enunciam a verdade atravs de umlogos que ainda tem muito de mythos, o Estrangeiro de Elia prope que se faa recursoao seu mtodo habitual ( , 243 d 7). Aquilo que apresentado como uma revelao precisar, doravante, submeter-se discusso. Se osantigos no argumentam, deveremos ns nos tornar capazes de falar em seu lugar, de agircomo se eles estivessempresentes pessoalmente, como se lhes colocssemos questes que,evidentemente, tero de ser respondidas por ns mesmos. A verdade dos antigos, enunci-ada originalmente como mythos, precisa agora ser convertida em uma tese a se sustentare examinar dialeticamente. A crtica do Estrangeiro de Elia a Parmnides estabelecer arealidade do no-ser, como sabido, mas no se trata de proclam-la miticamente, e, sim,de lanar-se refutao e demonstrao ( , 242 b 4).Contudo, e evidentemente, o poema de Parmnides no simplesmente um mito. Eleveicula uma sabedoria, prope um ensinamento que j no tem as caractersticas do mitotradicional. Se no demonstra propriamente, sua verdade tambm no se revela por inspi-rao potica, e no o lemos da mesma maneira como escutaramos a um poeta ou aedo.Traduo de Paleikat e Cruz Costa, levemente modicada por ns onde indicado.Para a incluso de Scrates no movimento sosta, cf. KERFERD, 2003, p. 62.15Passemos, assim, leitura do poema, procurando investigar a ambigidade que ele man-tm com a tradio mtica, ao mesmo tempo em que nos esforamos por apreender aquiloque nele j no mythos, mas logos losco.161 Opoema de Parmnides e o problema dosaber no pensamento arcaico1.1 Paralelos com HesodoAo compor uma obra em hexmeros, o pensador eleata recorda e se insere na tradioda poesia pica, ao lado de Homero e Hesodo, e tambm de seu contemporneo Xen-fanes. O promio descreve a jornada de um jovem, espcie de discpulo ou iniciado, que conduzido pelas jovens Filhas do Sol ao encontro de uma deusa, trilhando o caminhodo homem que sabe ( , B 1,2). O tema da viagem, da jornada, no semparalelo com a narrativa homrica da Odissia, cujo protagonista descrito, em seus pri-meiros versos, visitante de muitas cidades, tornando-se um conhecedor dos homens e desuas maneiras:As guas me levam onde o corao () pedisseconduziam-me, pois, via multifalante me impeliramda deusa (), a qual, a tudo, leva o homem que sabe;por esta eu era levado, por esta, muito sagazes me levaramas guas o carro puxando, e as moas a viagem dirigiam. (B 1,1-5)Od., I, 3: . de se observar, no obstante, que as tra-dues do poema de Parmnides descrevem, em B 1,3, o caminho como sendo, e. g., o que por todas ascidades leva o homem que sabe (J. Cavalcante de Souza) apiam-se em um equvoco no estabelecimentode texto adotado pela edio Diels-Kranz. no gura em nenhum dos manuscritos, devendo-se,possivelmente, a uma falha na leitura do cod. N de Sexto Emprico por Mutschmann, editor do Adversusdogmaticos, que a teria transmitido a Diels (COXON, 1968). De outro lado, a jornada do lsofo nada a tema ver com uma peregrinao pelas terras dos homens em uma busca incessante por conhecimentos, comoobserva JAEGER (1953, pp. 115-116).Traduo de Jos Cavalcante de Souza, com correo do texto (B 1,3: Cordero), cf. notaanterior. de notar que a emenda torna a construo ambga: pode-se ler tanto a deusaconduz (COR-DERO, 1984, p. 35) quanto a viaque leva a tudo (CONCHE, 1999, p. 45). Parece-nos desejvel que atraduo mantenha as duas possibilidades.17Ao escrever em versos, utilizando-se da mtrica e de temas ou motivos do pico, eno do gnero da prosa j disponvel em seu tempo, Parmnides parece assumir o lugartradicional do poeta que tem uma verdade a comunicar, uma sabedoria e um ensinamentoa transmitir. Emprega o eleata uma linguagem cuja forma, vinculada a tradies bemestabelecidas, coloca o leitor sob o alerta de no se enunciar ali algo pertencente ao registroda palavra ordinria, como conrma a fala da deusa de que a via percorrida pelo jovemest fora da senda dos homens (B 1,27).O que os poetas tm a dizer corresponde a um saber sobre o homem e sobre os deuses.Em Homero, conta-se da guerra de Tria e de suas conseqncias devastadoras. Apresen-tam-se heris comomodelos de uma existncia seja odaquele que decide morrer jovemnocampo de batalha emlugar de uma velhice inglria, seja o daquele cuja fama se faz graas sua habilidade de sobreviver. EmHesodo, se estabelece, de umlado, o catlogo dos deusesque so sempre, narram-se suas relaes familiares desde umcomeo de luta e violncia ata constituio do reinado justo de Zeus; de outro, descreve-se a precariedade da condiohumana e a necessidade do trabalho, dando a ver um mundo em que a injustia acabapor ser punida e a piedade recompensada. Os poetas tm, no eps, a prerrogativa de dizera verdade sobre esses temas, os mais importantes e essenciais, pelo conhecimento supra-humano que as Musas lhes conferem a respeito do que distante ou alm da capacidadeordinria dos homens. O que os homens conjecturam ou tm conhecimento apenas porouvir dizer, o poeta sabe por fora da inspirao das Musas: , MOURELATOS (2008, pp. 11-12) introduziu essa distino na abordagem do promio: os motivosreferem-se a formas e conguraes, enquanto os temas dizem respeito ao sentido e aos valores simblicosque essas formas representam.Cf. ROBBIANO(2006, pp. 37-50), que mostra a relevncia de se considerar a questo do gnero literriona interpretao do poema, sobretudo nos aspectos de sua verdade e de sua pretenso educativa.Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Cf. MOST, 1999, pp. 342-344, ao apontar como duas caractersticas fundamentais da poesia pica averacidade do relato e a essencialidade do contedo.18Musas, que o Olimpo habitais, vinde agora, sem falhas, contar-mepois sois divinas e tudo sabeis; sois a tudo presentes;ns, nada vimos; somente da fama tivemos notcia.(Ilada, II, 484-486)O que os homens comuns conhecem apenas por ouvir dizer, pois nada sabem, nadaviram ( ). As Musas, porm, essas lhas da Memria, esto presentes a tudo:podemrevelar ao poeta o mundo invisvel dos deuses e dos heris. Na experincia do mito,o que canta o aedo no simplesmente o relato das aes e eventos passados, narrativa doque j foi e no mais: esse passado continua de algum modo presente, e mesmo maisreal do que o presente visvel, do que o tempo em que se inscrevem as aes humanas. Opoeta, possuidor de uma sabedoria inspirada, transportado ao mundo invisvel, tem deleuma revelao direta, a qual nos transmitida por suas palavras. por isso aparentado aovidente, conforme indica a frmula semelhante com que se descrevem a este e inspiraopotica:, , , Eia! Pelas Musas comecemos, elas a Zeus paihienando alegram o grande esprito no Olimpodizendo o presente, o futuro e o passado (Teogonia, 36-38) , Calcante, nascido de Tstor, de sonhos intrprete [o melhor]que conhecia o passado, bem como o presente e o futuro (Ilada, I, 69-70)No poema de Parmnides, tambmse nos revela umuniverso de divindades: Anank eMoira (B 1,28; 8,30; 8,37), emis e Dik (B 1,14; 1,26), ros e Afrodite (B 13; 18,2). Almdelas, h as jovens (), Filhas do Sol, e a deusa () que recebe o jovem, jamaisnomeada.Dia e Noite surgem em alguns fragmentos (B 1,9; 1,11; 8,59; 9) sem que sai-bamos ao certo se so divindades. A imagem dos primeiros versos do promio certamenteTraduo de Carlos Alberto Nunes.Sobre a funo potica da Memria, cf. VERNANT, 1990, pp. 135-143.Traduo de Jaa Torrano.Traduo de Carlos Alberto Nunes, levemente modicada onde indicado.19nos confere a representao de um transporte ao mundo invisvel, e j foi comparada arelatos de xamanismo. Chama a ateno, pois, que o poeta seja guiado pelas Filhas do Sole termine por encontrar um daimn, o que pareceria justicar o paralelo. Mas, mais ime-diatamente, no que diz respeito ao registro literrio do poema, destaca-se que essas gurasestejam em substituio funo que tm, tradicionalmente, as Musas na poesia pica: ( ), , , .O eixo nos mees emitia som de sirenaincandescendo (era movido por duplas, turbilhonantesrodas de ambos os lados), quando apressavam a enviar-meas Filhas do Sol, [deixando? aps terem passado?] as moradas da Noite[,]para a Luz, das cabeas retirando com as mos os vus (B 1,6-10)As Filhas do Sol, l-se, levam o jovem. Mas aonde? Para a luz ( ) encaixa-secom (quando, emque). Mas devemos ligar orelativoa (as Filhas do Sol apressavam a enviar-mepara a Luz) ou a - (aps terem passado as moradas da Noite para a Luz)?As duas leituras sosintaticamente possveis, mas do direes diferentes viagem narrada. No primeiro caso,as Filhas do Sol passaram das moradas da Noite, e enviam o jovem para a Luz. No se-gundo, a Luz seria o destino da viagem inicial das Helides desde as moradas da Noite,percurso que j teria sido completado, e o jovemestaria sendo conduzido comelas de voltaao Trtaro.Essa segunda leitura, podemos conjecturar, talvez parecesse a mais natural para umgrego familiar com Hesodo. Ela se conrmaria com o verso seguinte, que diz do destino aReferncia sobre o tema do xamanismo grego o artigo de MEULI, 1935. DODDS (2002, pp. 139-180) atribuiu importncia inuncia, na Grcia, de culturas xamnicas presentes na Ctia e na Trcia. Paraum estudo amplo do xamanismo, consultar ELIADE, 2002. Limitamo-nos a indicar a bibliograa, pois notocaremos no tema seno indiretamente, mais frente, quando aproximarmos a fala oracular da deusa domdico-adivinho, o qual parece ter origens xamnicas (cf. cap. 3 e p. 92, n. 38).Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Para a anlise da sintaxe dos versos, indicando as duas possibilidades de leitura, cf. MILLER, 2006, pp.19-20.20que enviam as Filhas do Sol: v l que esto as portas aos caminhos de Noite e Dia (B 1,11)Na Teogonia, conta-se de um lugar, grande umbral de bronze, onde se encontram ese alternam a Noite e o Dia. Ao descrev-lo, mencionam-se a morada dos Filhos da Noitee o palcio subterrneo de Hades, erguido sobre Trtaro nevoento, vasto abismo ()no qual se cairia por mais de um ano sem atingir o solo (767-773). Noite lha do Caos,nascida dele semunio sexual, juntamente comrebo, divindade das trevas profundas. DeNoite so gerados Morte, Sono, Sonhos, Escrnio, Misria, Nmesis, Engano (Apat), Phi-lots espcie de aspecto negativo do amor , Velhice e Discrdia (ris) (212-230). Ocanto de Hesodo leva-nos morada dos Filhos da Noite, Sono e Morte, terrveis deusesque jamais o Sol contempla com seus raios (758-760). l que est o palcio de Ha-des, guardado pelo co que vigia-lhe as portas, deixando nele os homens entrar, mas delejamais sair. Em sua proximidade habita uma deusa, terrvel Estige, detestada ()dos imortais (767-776) o mesmo adjetivo encontraremos na segunda parte do poema deParmnides, atribudo ao parto e unio regidos por uma divindade que tudo governa (B12,3-4).Com efeito, ao iniciar o verso com (a, l que est, B 1,11), e na posteriormeno ao que pode ser ambigamente uma abertura ou um abismo (, B 1,18),Parmnides faz remisso literria frmula que repetida ao longo de toda a descrio dasimediaes do umbral de Noite e Dia e do Trtaro nevoento:A () os Deuses Tits sob a treva nevoentaesto ocultos por desgnios de Zeus agrega-nuvens,regio bolorenta, nos conns da terra prodigiosa. (729-731)A (), da terra trevosa e do Trtaro nevoentoe do mar infecundo e do Cu constelado,de todos, esto contguos as fontes e os conns (736-738)Traduo de Jos Cavalcante de Souza.As tradues so de Jaa Torrano.21Vasto abismo ( ), nem ao termo de um anoatingiria o solo quem por suas portas entrassemas de c para l ( ) levaria tufo aps tufotorturante, terrvel at para os Deuses imortais (740-743)A () os lhos da Noite sombria tm morada (758)As ambigidades marcam o promio do poema de Parmnides, com sua referncia Noite mtica, ela mesma ambgua:ao mesmo tempo procria uma gerao funesta, mastambm, por unio comrebo, d nascimento ao ter brilhante e ao Dia (Teog., 123-125). Ameno posterior a uma Dik que castiga abundantemente (, B 1,14; cf. Teog.748-751) bemse aproxima da representao pictrica encontrada no ba de Kypselos: umabela Dik golpeia a feia Adikia (Injustia), acertando-lhe com um basto. Em Hesodo, ajustia pe m s discrdias e no deixa crescer a (Trab., 213). O poeta compe umaparbola, contando de um caminho da Justia e outro do Crime (Hbris), como duas viasdas quais se deve escolher aquela a determinar o curso de uma vida (Trab., 214-218).Essas associaes pareceriam incitar o leitor de Parmnides a perguntar: aquele queacompanha as divindades est no bom caminho? No poderia ser que tais divindades oconduzissem a julgamento por uma cometida?No contexto da associao com o Hades e a Morte, tem tambm o sentido denorma que se aplica a uma categoria de seres, que lhes determina sua sorte e seu modode ser. Quando Ulisses, tendo descido aos infernos, encontra sua me, pegunta-lhe porque no pode tir-la de l: ela responde que tal a dos mortais ( , Od., XI, 218). Aseparao dos vivos e dos mortos est na base de smbolos e ritosreligiosos; so reinos distintos que no devem, em princpio, misturar-se. O domnio domorto , ao mesmo tempo sagrado e interdito. Domnio perigoso para o homem,toc-lo pode produzir uma mcula, um miasma. Estaria o jovem, levado em seu carro,Traduo de Jaa Torrano. Ver ainda a repetio de nos vv. 734, 767, 775, 807 e 811.Cf. BURKERT, 1985, p. 185, segundo o relato de Pausnias (V, 18, 2).BENVENISTE, 1969, p. 110.Nesse sentido, o homicida, por exemplo, maculado pelo sangue da vtima, comete uma e 22aproximando-se de limites que no se deveriam ultrapassar?Todas essas associaes mtico-religiosas esto presentes no poema, adquirindo nele,todavia, uma signicao que surpreende o leitor. Atravessar as portas que esto noscaminhos de Noite e Dia, a que se associaria a morte ou a transgresso, mostra-se, no po-ema, isento do sinal negativo do que nefasto. Dimones como os ligados vingana e mcula esto relacionados ao ultrapassamento do modo especicamente humano de ser,conduzem e injustia; nesse sentido, um , uma divindade ruim,pode lanar o homemao que est almde suas medidas, comterrveis implicaes. Anadadisso, porm, leva o do poema: prestes a enunciar o seu , diz-nos a deusa queno sorte funesta ( , B 1,26) ter sido conduzido por esse caminho.Atraindo-o para uma senda que no aquela por onde transitam habitualmente osmortais ( , B 1,27), trata-se, assim mesmo, de um caminho do homem, para ohomem. Ao segui-lo, ele mantido dentro de suas prprias medidas. , pois, uma rotaestabelecida por e (B 1,28), que em nada contraria a sua essncia.Por ela, noobstante, aparta-se o jovem dos demais homens, deles se distancia (cf. ,B 1,27). Homem, e ao mesmo tempo diferenciado-se do plano comum dos homens apalavra, no plural, dizendo da inferioridade comrespeito aos deuses , aquele que adentraessa via recebe, no poema, umnome distintivo: ele aquele que sabe literalmente, aqueleque v ( , B 1,3). l que esto as portas aos caminhos de Noite e Dia,e as sustenta parte uma verga e uma soleira de pedra,contaminado por um . Tais mculas so tambm potncias religiosas do tipo , as quais, porvingana, suscitam e propagam a impureza (VERNANT, 1992, pp. 104-121). Cf. tb. DODDS (2002, pp.44-49) e a citao a Licurgo: quando o dio dos dimones est ferindo um homem, a primeira coisa queacontece que ele retira dele a capacidade de bem discernir e o conduz ao pior dos juzos, de maneira que eleno consegue mais se conscientizar de seus prprios erros (Leocratem, 92).Em uma anlise retrico-literria, ROBBIANO (2006, pp. 150-163) destacou essas surpresas do poemapara uma audincia acostumada a Hesodo.Cf. CHANTRAINE, 1968, s. v. , p. 90: o termo [o]pe-se primeiramente a e emprega-se sobretudo, em Homero, no plural; designa o homem enquanto espcie; emprega-se por vezes no vocativocom tom de desprezo. Com efeito, a palavra deve ser entendida na designao da ambivalncia (vs/cm)entre homens e deuses: aqueles s se compreendem na oposio a estes, que so ao mesmo tempo o seucomplemento. Trataremos da lgica arcaica da ambivalncia no captulo 4 deste trabalho.23e elas etreas () enchem-se de grandes batentes;destes Justia de muitas penas () tem chaves alternantes.A esta, falando-lhe as jovens com brandas palavras,persuadiram habilmente a que a tranca aferrolhadadepressa removesse das portas; e estas, dos batentes,um vo escancarado ( ) zeram abrindo-se, os brnzeosumbrais nos gonzos alternadamente fazendo girar,em cavilhas e chavetas ajustado; por l, pelas portaslogo as moas pela estrada tinham carro e guas. (B 1,11-21)Opercurso descrito por Hesodo leva s profundezas e s trevas, ao Hades, fazendo vero destino ao qual seguem os mortais em uma rota de mo nica. Em oposio, o poemade Parmnides ao menos sugere um movimento ascensional, j que as portas pelas quaisas Filhas do Sol conduzem o jovem parecem ser talhadas no ter (, B 1,13), ele-mento associado parte mais brilhante e elevada da atmosfera.Se essas portas no estolocalizadas no alto do cu (e talvez no estejamemlugar algum), contrasta como elementosombrio da Noite e do subterrneo de Hesodo o etreo, morada dos deuses. Ainda, emuma parte posterior do poema, anuncia a deusa que o jovem conhecer sobre o Olimpo (B11,2) nada encontramos nos fragmentos que nos chegaram, todavia, de descries dosdeuses olmpicosParmnides apropria-se, assim, de elementos mticos tradicionais, mas, comeamos av-lo, no para os reproduzir simplesmente. Na comparao com Hesodo, constatamosque a narrativa chega mesmo a subverter a geograa das portas de Noite e Dia, as quais,invs de levarem ao mundo subterrneo, insinuam uma viagem celeste. Que sentido, e queimportncia tm os mitos no poema de Parmnides?Antes de tentar dar uma resposta aessa difcil questo, falemos brevemente, e a ttulo de contraste, de Xenfanes.Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Segundo o Bailly, le ciel consider comme demeure des dieux. Cf. CONCHE, 1999, p. 49.241.2 O logos puricatrio de XenfanesEm Xenfanes, que foi, provavelmente, contemporneo de Parmnides, encontramosuma crtica s concepes tradicionais sobre os deuses, com um colorido particularmentemoral: recusam-se as representaes que deles fazem Homero e Hesodo, que os mostrampraticando adultrios, roubos e embustes (DK 21 B 11, B 12). No impossvel que asinverses apontadas no poema de Parmnides, quanto ausncia do nefasto na passagemdos caminhos de Noite e Dia, juntamente ao que pode ser uma deliberada negao de haveralgo como um , sigam a mesma direo de uma concepo do divino quetornou-se abstrata, segundo a qual recusa-se tudo aquilo que no apropriado a ela. Apalavra para dizer do que apropriado, , aparece emXenfanes emumfragmentoonde se arma no ser conveniente ao deus a ausncia de repouso, o mover-se em uma ououtra direo (B 26), o que se ofereceria ao menos primeira vista a uma aproximaocom o que diz Parmnides sobre o que ( ) em B 8.Jaeger destacou o conceito do apropriado emXenfanes, como critrio regulando tam-bma crtica ao antropomorsmo e a que faz na perspectiva moral. Oautor remonta a con-cepo teolgica de Xenfanes de um deus abstrato cosmologia de Anaximandro, coma especulao de que o divino, como , no comporta limites e nem a propriedadede ter vindo a ser. O pensador de Colofonte teria desenvolvido as conseqncias dessaespeculao teolgica, questionando as representaes mticas tradicionais.Muito poste-riormente, ser cunhada a palavra , para dizer do pressuposto da interpretaoalegrica dos relatos homricos sobre os deuses, pelos Esticos, sendo o conceito tambmrecebido pelos Padres da Igreja, servindo-lhes de pedra de toque para a teologia crist.Mas ainda em uma outra perspectiva, subjacente concepo teolgica (mais clarano pensador de Colofonte do que emParmnides), que o paralelo entre os dois pensadoresinteressa-nos especialmente, no que diz respeito ao nosso tema. Xenfanes reete sobre oJAEGER, 1953, pp. 62-64.25poder da palavra tradicional: desde o incio todos aprenderam seguindo Homero (B10). Preocupa-se ele, inclusive, em situar no tempo os poetas picos, estabelecendo a ante-rioridade de Homero com relao a Hesodo (B 13). Em seus versos, notadamentea palavra do cantar dos deuses e que, de acordo ao pressuposto teolgico que lhe serve decritrio, deve ser reverente, juntando-se a um discurso puricado das representaes for-jadas pela tradio, , imprprias a eles. O divino deve, pois, ser cantado com e , com mitos piedosos e palavras puras (B 1,14; cf.B 1,21-24).Os mitos so compreendidos ao mesmo tempo como a palavra que diz sobre o divino o qual se deve louvar , como tambm a que tem origem em relatos tradicionais, passadosatravs das geraes desde os antigos. Nuana-se, de outro lado, o logos como algo que,sem se lhe opor, diferencia-se do mythos: o primeiro pode puricar o cantar dos deu-ses de tudo aquilo que no lhes convm. Assim lemos no fragmento 34: E o que claro()nenhum homem viu, nem haver algum que conhea () sobre os deusese acerca de tudo que digo (). No nos parece correta a posio de Fattal, que v nodizer de Xenfanes o recolhimento de um saber claro sobre todas as coisas. Mais ade-quado o entendimento de Lesher: nenhum ser humano apreendeu ou vir a apreender averdade sobre os assuntos de maior importncia os atributos dos deuses e os poderes quegovernam o mundo natural. Xenfanes reconhece que sobre os deuses no h, entre oshomens, um saber rme. A respeito dos deuses ( ), diz ele, h apenas opiniar eopinio recebida ( ): por mais perfeitamente que algum se pronunciassesobre o divino, ele mesmo no saberia ( , B 34).Delineia-se, portanto, a distino entre umsaber claro () e as conjecturas dos ho-mens ignorantes, diviso essa que, em princpio, no pareceria estranha de Parmnidesentre a verdade e as opinies. E, no obstante, se Xenfanes pode dizer do divino, porqueFATTAL, 2001, p. 35.LESHER, 1999, p. 231.26h um critrio para seu logos puricatrio. Ao mesmo tempo em que se recusa a falar detits ou de gigantes (B 1,21), adota Xenfanes concepes fsico-materialistas sobre a ori-gemdos seres (todos nascemos da terra e da gua, B 33). Comcerta probabilidade, acolheuma viso de mundo transformada pelas especulaes cosmolgicas jnias. Mas, longe desimplesmente substituir os mitos por uma explicao naturalista (pouco encontraria, alis,em seus fragmentos, quem neles buscasse elaboraes cientcas), tais especulaes, comofoi notado por Burnet, dirigem-se apenas crtica ao antropomorsmo e capacidade dohomem de saber sobre os deuses, restringindo-se a ela. Medimos o mundo invisvel dosdeuses por nossa experincia humana, quando, no entanto, ela est circunscrita ao queaparece entre a terra e o cu: , Da Terra este o limite superior que ns vemos aos nossos ps,em contato com o ar; mas a sua parte inferior continua indenidamente.(DK B 28)O autor do tratado sobre Melisso, Xenfanes e Grgias atribuiu-lhe a tese de que omundo no nem nito nem innito, reconstruindo-a com argumentos. Apoiando-senessa obra, a tradio peripattica tardia talvez tenha exigido mais do que o pensador deColofonte pudesse lhes dar. Interessante a observao de Aristteles, censurando-o porno ter dedicado esforos em perseguir uma explicao mais conveniente. De fato, aoempregar a expresso , Xenfanes parece menos oferecer uma tese cosmolgicapara rejeitar a topologia subterrnea de Hesodo do que declarar ser indenvel (porqueinexperiencivel) o que est para almdos limites do visvel, e portanto do que podemos,realmente, saber.Teofrasto reporta que Xenfanes teria ouvido Anaximandro (DIOG. LARCIO. Vidas, IX, 21).Cf. BURNET, 1994, p. 107.Traduo em Kirk-Raven-Schoeeld.Segundo BURNET (1994, pp. 109-110), isso acabou por introduzir uma interminvel confuso emnossas fontes.De caelo, 294 a 21 = DK 21 A 27.27Atribuir-lhe-amos uma espcie de ceticismo? A partir do que se v, podemos con-jecturar, com a observao de conchas no interior dos morros, de marcas fsseis de peixese plantas nas pedras, que em um tempo primitivo todas as coisas fossem lodo. Mas Xe-nfanes tem pouco interesse em aprofundar essas explicaes. Se no foi desde o incioque os deuses tudo revelaram aos mortais, o tipo verdadeiro de investigao () queestes podem perseguir com o tempo diz menos respeito a examinar teses positivas parasuplantar ou conrmar a ignorncia sobre as origens e sobre o invisvel do que procurardescobrir o que melhor (, B 18).Asabedoria de Xenfanes, a qual mereceria mais louros do que os conferidos aos cam-pees do pugilato, do pancrcio ou das corridas de cavalos (B 2), consiste na conscinciados limites do saber humano. A especulao jnia parece ter tido o efeito eminentementenegativo de, destacando o mundo visvel feito de terra, gua e vento, revelar que nada sabe-mos sobre o que est para almdele. Da a conotao decididamente moral de suas elegias,exortando ao que do alcance efetivo dos homens:o cultivo da virtude que faz a cidadeviver em melhor ordem e encher os seus celeiros (vv. 19-22).Como bem observou Snell, surge apenas como virtude a sabedoria.No nos pareceadequado, porm, dizer que em Xenfanes encontre-se pela primeira vez a atividade, abusca e o esforo do homem para estender uma ponte entre o humano e o divino. Snellcarrega nas tintas ao procurar, em sua leitura da histria do pensamento, o desenvolvi-mento da atividade espiritual versus receptividade passiva das impresses. Como nota oprprio estudioso, no temos do pensador de Colofonte nenhum relato a respeito de comoo homem, pela investigao, poderia participar no saber divino. Osaber, para Xenfanes,parece ser mais uma ddiva divina do que o resultado da atividade inquisidora de iniciativahumana.Com base nessa assuno de ignorncia, mas sem que se negue a existncia do divino, a sugesto de KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, p. 180.HIPLITO. Ref., I, 4; cf. BURNET, 1994, pp. 107-108.Cf. SNELL, 1992, pp. 183-186.28o um-deus ( ) de Xenfanes s pode ser descrito de maneira privativa, pela recusado antropomorsmo e do teriomorsmo: no se lhe atribuiro impiedade, gerao, vesti-mentas, voz, corpo, rgos sensoriais ou fadiga (B 12; B 14; B 23; B 24; B 25). Assim, apesarda limitao da capacidade dos mortais de falar acerca dos deuses, Xenfanes pode julgarque seu ensinamento negativo e puricatrio ao menos uma melhor aproximaode algo que seja digno de conana ( , B 35). Em meio a um no-saber fundamental, o logos pode recolher e diferenciar o que ou no apropriado para falardo divino.Mas no porque o critrio seja, em ltima instncia, moral: a exigncia moralimpe-se pelo no-saber, e por isso a imoralidade dos homens no pode ser projetadanos deuses como justicativa ignorante para seus prprios vcios. Tendo compreendido ofundamento mais moral do que epistemolgico dos , o logos de Xenfanestem o poder de retirar todo elemento sensvel ao dizer sobre o divino. Sua moral deriva-sede sua epistemologia, ao primeiro reconhecer a ignorncia sobre o invisvel, e a exignciamoral obriga ao esforo de abstrao do visvel em sua teologia.Se no nos parece que Xenfanes seja um mero moralista, e que base de sua morale de sua teologia haja um problema epistemolgico, segue-se, todavia, que sua epistemo-logia tenha um papel apenas negativo: o desconhecimento do mundo invisvel fundanteda exigncia moral, devendo os homens cuidar de serem virtuosos sem saber e porqueno sabem nada do que h para alm desta vida e do que nela vemos. Talvez se insiranesse contexto a passagem irnica sobre Pitgoras, ao reconhecer, em um co que espan-cavam, a alma de um amigo (B 7): deve-se, segundo Xenfanes, buscar o melhor, no pelaexpectativa de recompensa no alm desta vida, mas porque apenas este o mundo queconhecemos e em que agimos.A teologia que podemos extrair de seus fragmentos no tanto se erige como umaSe nossa interpretao correta, de notar certa similaridade coma exaltao virtude pelos socrticos,ou mesmo com o retrado que Plato faz do mestre na Apologia de Scrates, ao dizer que no se deve temer amorte e portanto que sua possibilidade no pode entrar em conta na deliberao sobre o agir por nadasabermos a respeito dela (cf. 28 b-29 e, 37 b, 41 a-b).29possibilidade de saber humano sobre o divino, quanto antes puricatria e atende sreivindicaes morais da constatao da impossibilidade desse mesmo saber. Xenfanesreconhece os limites do saber humano, e pra a. Para que surja o saber losco, serpreciso que se estabelea outra relao entre humano e divino (ou, antes, entre visvel einvisvel), outra congurao do mito e outra forma de logos.1.3 Aexigncia de uma transmutao do mito na obra de Par-mnidesAo estabelecer seu logos puricatrio, Xenfanes critica os poetas e os mitos tradi-cionais. Recusa o antropomorsmo e o teriomorsmo, retira dos deuses as falsas repre-sentaes que se lhe atribuem os homens. Todavia, ele no faz mais do que prolongar,radicalizando-a, uma antiga concepo de que apenas os deuses sabem, sendo os homensfundamentalmente ignorantes. Para ela, o plano divino e o plano humano, na perspectivado conhecimento, esto separados do mundo invisvel dos deuses sabemos apenas atravsda mediao do poeta, e este pode cant-lo somente porque as Musas o revelam: , , , , .Pastores agrestes, vis infmias e ventres s,sabemos muitas mentiras dizer simis aos fatose sabemos, se queremos, dar a ouvir revelaes.(Teogonia, 26-28)Comessa fala, marca-se a inferioridade dos mortais que, almde obrigados a despenderesforos no trabalho com a terra para sobreviver, so tambm completamente ignorantessobre as coisas divinas e suas origens. So as Musas que sabem, enquanto os homens, pri-vados de conhecimento, sequer seriamcapaz de distinguir, no que elas dizem, as falsidades() das verdades (). Porque as Musas revelam ao poeta o que , o que ser, oTraduo de Jaa Torrano.30que foi, ele um mestre da verdade.Em Parmnides, pelo contrrio, surge-nos uma deusa que, sem a mediao das Musas,pretende dizer a verdade a um iniciado:E a deusa me acolheu benvola, e na sua a minhamo direita tomou, e assim dizia e me interpelava: jovem companheiro de aurigas imortais,tu que assim conduzido chegas nossa moradasalve! Pois no foi mau destino que te mandou perlustraresta via (pois ela est fora da senda dos homens)mas lei divina e justia; preciso que de tudo te instruas,do mago inabalvel da verdade bem redonda,e de opinies de mortais, em que no h f verdadeira.No entanto tambm isto aprenders, como as aparnciasdeviam validamente ser, tudo por tudo atravessando (B 1,25-32)No contraste com Xenfanes, a diferena salta aos olhos: invs de intensicarem-seos limites do conhecimento humano, prope a deusa que preciso de tudo instruir-se( , B 1,51). Diferentemente do que se l em Hesodo, invs de insistir-se emsua inferioridade, o jovem denominado homem que sabe (B 1,2).Uma deusa, um , apresenta-se como introduzindo o viajante ao saber. Queso os dimones? Uma tradio losca posterior a Parmnides, ps-platnica, estabele-cer para eles uma categoria determinada, como divindades intermedirias, prximas aosdeuses e aos heris. Emtermos das crenas mais tradicionais, emHomero, os dimones soseres divinos ou foras espirituais. A palavra utilizada quando se reconhece umapotncia superior, sem bem diferenci-la e atribu-la a uma divindade particular: nessesentido, se a emprega de maneira quase sinnima a quando se diz os deuses, no plural, odeus ou o divino ( , , ).Para a identicao da fala do poeta Altheia, ligada sobretudo ao elogio que salva do Esquecimento(Lth), ver DETIENNE, 2006, pp. 59-84.Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Cf. BURCKHARDT, 2003, p. 172. Segundo GERNET; BOULANGER (1970, p. 205), um tratamentosistemtico da categoria dos dimones levado a cabo tardiamente por Xencrates, um discpulo de Plato apareceria apenas ligado losoa, sendo a sua concepo como intermedirios entre homens e deusesalgo prprio a Plato (Banquete, 202 s.).31Por outro lado, em Hesodo, no relato potico das cinco idades do mundo (Trabalhos,109-201), encontramos alguns traos na concepo dos dimones que os diferenciam dasimples sinonmia como divino. Na primeira das pocas narradas pelo becio, a Idade deOuro, os deuses olmpicos criaram homens que viviam como deuses, sem enfermidades,sem conhecer a fadiga e a velhice. Nesse tempo, a Era de Cronos, a terra ofereceria frutosem abundncia. Diferentemente do que ocorre com os da terceira gerao, na Idade deBronze, aqueles homens, ao morrerem, no rumamao Hades sombrio a morte se apoderadeles docemente, como um sono, e so convertidos, por mandado de Zeus, em dimones eguardies dos homens:Eles ento vigiam decises e obras malss,vestidos de ar vagamonipresentes sobre a terra. (Trabalhos, vv. 124-125)O mito hesidico narra tambm uma segunda poca, a Idade de Prata, na qual os ho-mens conhecemuma longa infncia e, chegados adolescncia, no conseguemconter suainsensatez e desmedida: deixam de prestar honras aos deuses, motivo pelo qual o Cro-nida decide exterminar essa raa. Assim, Zeus oculta-os sob a terra ( , v.140), tornando-os dimones ctnicos, segundos, mas que os mortais tambm nomeiamventurosos. Seriam as jovens Helides do poema de Parmnides, em sua eterna adoles-cncia, dimones dessa gerao?Elas parecem mover-se, pois, do sombrio subterrneo luz, desoculando-se ao retirar os seus vus ( , B 1,9-10).Rohde destacou a novidade, com respeito aos dimones, do relato hesodico em com-parao a Homero: este nada conhece dessa classe de seres que, depois da morte, circulamentre os homens, sem serem vistos, observando a justia e oferecendo riquezas. Esseshomens da primeira gerao se convertem, pois, em entes ecazes, que, ao morrer, nopassam a um alm inacessvel, mas moram e atuam sobre a terra, na proximidade dos vi-vos. Assemelham-se, talvez, aos deuses homricos, assumindo mltiplas formas, viajandopelas cidades para observar os ultrajes e as virtudes dos homens.Traduo de Jaa Torrano. Os versos so considerados uma interpolao.ROHDE, 2006, pp. 108-109. Se Parmnides pretendeu associar o caminho da divindade a essa crena32No precisamos aderir, todavia, tese de Rohde de que a concepo dos dimones,em Hesodo, seria vestgio de uma antiqussima crena em uma alma separada do corpo,sobrevivendo e preservando a conscincia aps sua separao, e qual se endereariamos cultos aos mortos. Retenhamos aqui, apenas, dois traos fundamentais: a idia geral dodivino, de umlado, e a representao de que esses dimones, invisveis, habitamprximosaos homens, de outro.Aristteles, em uma passagem, relata a percepo que se tem do saber dos pensadorescomo algo distante da preocupao com as coisas humanas, o que, por isso, caracteriza-ocomo daimnico:Dizem que eles, com efeito, sabem de coisas espantosas, difceis e daim-nicas (), tambm inteis, j que no investigam os bens humanos( ). (tica a Nicmaco, Z 7, 1141 b 7-8)Tendo em vista tais notcias, o anonimato da deusa, no poema de Parmnides ondea presena ou ausncia de nomes sempre signicativa , bem convm a essa expressogeral, indiferenciada, do divino que toca o humano. Um tal entrelaamento de humano edivino nada tem, entre os gregos, de algo propriamente sobrenatural, contrrio ao cursodas coisas: a plenitude da presena divina preenche as aes e os sentimentos dos homens,semque represente necessariamente nada de extraordinrio. Oreconhecimento de uma talpresena no algo que se atinge por umesforo de introspeco, mas permeia a existnciana multivariedade de seus aspectos. Por isso, no h em princpio disparate de, em umaobra que a tradio intitulou Sobre a natureza, haver referncia a dimones, no sendo odivino seno parte da , e no algo de exterior a ela.Todavia, em Parmndies, o conceito losco de , como tal, est em vias de ela-borao. Que transformaes no precisaram ocorrer na concepo do divino como con-dio para que um saber losco, uma possibilidade de saber para alm da ignornciacom que a tradio mais antiga caracterizava o homem, pudesse vir luz? No em umaem dimones que circulam entre os homens, teramos motivo para aceitar como uma conjectura razovel aemenda (por todas as cidades) para o texto corrompido de B 1,3 (cf. supra, p. 16 n. 1).Ver OTTO, 2005, pp. 151-155 e passim.33mera contraposio do logos ao mythos que essa evoluo histrico-losca se deixarialer. Vimos, pelo contra-exemplo de Xenfanes, que sua oposio do mtico ao racionalpde resultar apenas em uma radicalizao dos limites humanos do conhecimento.Aponta-se, portanto, que somente atravs de uma transformao dos prprios mitos apossibilidade do conhecimento de tipo losco, ao modo como pretende o eleata, pdeemergir. Saberamos traar os antecedentes do poema de Parmnides nessa transformao?notvel que ele mencione uma Justia de muitas penas (, B1,14), guardi dasportas de Noite e Dia, pois o epteto atribudo a Dik emumfragmento rco (OF 223).Emuma passagemdas Leis, apontada como possvel parfrase das Rapsdias rcas, lemosuma expresso particularmente interessante para o nosso problema. Ali, Plato refere-seao deusque, como diz tambm o texto antigo, tem o princpio, o m e o centrode todos os seres ( ), encaminha-se diretamente at o seu m seguindo as revolues danatureza; acompanha-o () a Justia, vingadora das infraes dalei divina (Leis, IV, 715 e-716 a = OF 31-32)Como observa Bernab, comentando as passagens, Parmnides situa sua Dik emumaporta que tem muito em comum com uma entrada ao Alm, o lugar em que unem-sepassado, presente e futuro, o lugar onde se conhecem todas as coisas. possvel que a tra-dio rca tenha preparado o caminho para um conhecimento que j no mais, comoo do poeta, a respeito de um passado-presente mtico revelado pelas Musas, ou sobre oseventos passados ou futuros adivinhados pelo vidente. Que similaridades no encontra-ramos entre essa fuso das partes do tempo de que se falava nas seitas de mistrios e oconhecimento do parmendico?Em todo caso, no resta menos que Parmnides, ao instaurar o pensar losco, tam-bm se utilize dos mitos. Ao falar do que ( ), o poema apresenta os elementosPara as citaes e comentrio que se seguem, cf. BERNAB, 2008, pp. 1149-1150.Adaptao da traduo espanhola de Alberto Bernab.Tal estudo exigiria uma pesquisa muito mais ampla do que a por ns empreendida no presente trabalho.34tradicionalmente associados ao destino e Necessidade, esta qual at mesmo os deusesse curvam. As amarras (B 8,14) impostas por Dik impedem gerao e perecimento; oser permanece imvel em limites de grandes liames, mantidos por Anank (B 8,26; 8,30);Moira o encadeia a ser inteiro e imvel (B 8,37). Um dimon , mtico-religiosamente,quase umsinnimo de , o lote ou destino designado a cada umou a seu grupo. Eman-tigas cermicas, umdimone parece ter sido representado como uma gura alada que lanauma trama. Imagens como a dos de encaixes das portas que levam morada da deusa (B1,16-20), cadeias, tramas e amarras so guraes pelas quais se pensa miticamente a Ne-cessidade. emis e Dik presidem, tradicionalmente, ao complexo das relaes, sejamquelas entre os deuses, seja no que diz respeito justia humana.ros e Afrodite, comotalvez tambmse possa ler nos fragmentos do poema, ao unir macho e fmea participamdagerao (B 12,3-6; cf. B 13; B 17), conferemuma boa ou m descendncia (B 18): pareceriaque no deixa de insinuar-se, no poema, um entrelaamento de humano e divino.Se podemos ler o poema de Parmnides procurando apreend-lo apenas em seu con-tedo assimchamado losco, isso no muda o fato de que o pensador precisou dos mi-tos para dizer o que tinha a dizer. No se trata, para ele, de vestir um saber racional comuma roupagem mtica. Apenas para ns, que j chegamos muito depois, haveria sentidoem perseguir uma desmitologizao do poema, distanciados que estamos do solo mticoonde pde germinar a semente do logos losco.Para Parmnides, o pensar loscoque est por ser instaurado: sua emergncia no se d por uma simples oposio s tradi-es mticas, mas por uma transformao interna, imanente, que abre espao, nelas, suapossibilidade.Jaspers pde dizer que apenas um mito capaz de verdadeiramente interpretar outroPara um estudo extensivo sobre Anank, consultar SCHRECKENBERG, 1964.Cf. ONIANS, 1951, pp. 399-402. Segundo o autor, as amarras ou cadeias do poema podem ser compa-radas quelas, emHomero, comas quais etys e Okeanos enlaama Terra ( ); os rcos repre-sentaram tambm Chronos como uma serpente que envolve o mundo, e os pitagricos concebiam Anankcomo circundando o universo ( ) (p. 332).35mito. Parmnides no mede os mitos por um saber racional, mas procede sua reelabo-rao e reinterpretao. Como comeamos a perceber, em uma pluralidade de associ-aes que o poema se desdobra: com o pico de Homero, com as teogonias hesidicas ercas, com tradies religiosas e, ao que tudo indica, tambm com as cosmologias jniase as doutrinas pitagricas. Ao incio deste captulo, zemos recurso a uma conjectura deordem psicolgica, sobre as expectativas (e surpresas) que experimentaria um leitor acos-tumado a Hesodo ao ler o promio. Podemos agora descartar esse tipo de exposio, queteve funo propedutica, e tocar no verdadeiro problema:a obra de Parmnides no seconstri simplesmente a partir de paralelos ou associaes temticas com as tradies quea precedem. Ela entretm com elas relaes de ambigidade, que tm por efeito a sua sub-verso: apropria-se de imagens, contedos, smbolos e conguraes discursivas, masno simplesmente para reproduzi-las, e sim para transplant-las a um outro plano, em umoutro clima, sob o qual o logos e o pensar loscos podem vingar.Essa considerao, alm disso, deve chamar-nos a ateno sobre um ponto: a possibili-dade de uma tal pluralidade de apropriaes e agenciamentos, a produo de ambigidadee polissemia, d-se emuma obra escrita, emuma obra eminentemente literria, a qual per-tence a um contexto cultural, elaborando-se com ele e a partir dele. Proclus notou queParmnides no propriamente poetiza, apenas metrica corretamente (A 46). Isso noquer dizer, necessariamente, que o poema apresente uma linguagemrida e semsabor, masa percepo de certa articialidade. Como obra literria, ele capaz de colocar em jogoregistros mltiplos, tradies mticas diversas. A instaurao do discurso losco, emParmnides, depende de uma transmutao do mito, que vai de par a uma transformaoCf. JASPERS; BULTMANN, 1969, pp. 15-16.Krishnamurti Jareski, em sua pesquisa de doutorado ainda em curso (sob a orientao da Profa. Dra.Rachel Gazolla de Andrade, PUC-SP), observou que o mesmo procedimento se encontra em Plato, quefreqentemente apropria-se de tradies mticas ambigamente, modicando-as e, muitas vezes, invertendo-as em muitos pontos. de notar que a composio parmenidiana no siga o procedimento tradicional dos aedos, que criamde viva voz a partir de grupos de palavras, frmulas prontas que servem ao preenchimento de hexmerosdactlicos (DETIENNE, 2006, pp. 65-66).Veremos melhor o signicado dessa expresso, utilizada por Couloubaritsis (2008), no captulo 4.36do logos.Se a emergncia do pensar losco passa pela apropriao de tradies mticas diver-sas, importante notar que essa possibilidade no totalmente estranha aos prprios mitos,na cultura grega. Kirk, nesse sentido, colocou uma objeo a Vernant, quando este diz deum pensamento mtico a partir do qual diferenciar-se-ia um pensamento losco. Oestudioso britnico aponta que no haveria o mito, mas os diversos relatos tradicionais,de muitos tipos e funes diferentes, destacando que a Grcia teria j perdido muitos tra-os de tradicionalidade antes de Homero, e mesmo antes da Era Micnica. Coloca-se, comisso, a diculdade mais geral de compreendermos a signicao cultural dos mitos gregos,que perduram at e muito depois de Homero: eles passam por uma sistematizao semparalelos em qualquer sociedade verdadeiramente tradicional e, sem o prvio desapare-cimento do uso orgnico do mito, sequer teria havido a possibilidade da losoa. Apartir dessas colocaes, no haveria propriamente novidade em um uso, enquanto tal, domito por Parmnides, consistindo a diculdade muito mais emdeterminar a especicidadedesse uso.Se obra de Parmnides parece-nos operar uma engenhosa sntese de tradies culturaise mticas, preciso ver que ela tambm ultrapassa o plano do mito, nem que fosse porquedescobre, dos mitos, algo que lhes universal: todas as coisas Luz e Noite esto deno-minadas (B 9,1). Cassirer notou que aquilo que denomina conscincia mtico-religiosa,em suas mais diversas manifestaes, comumente acompanhada e dominada pelas opo-sies entre dia e noite, entre luz e escurido. Ao tocar uma espcie de fundamentocomumdos mitos, cultos religiosos e especulaes cosmolgicas, o eleata pode fazer emer-gir a verdade do conhecimento losco atravs de um uso do mito que, veremos, j umuso reetido do mesmo.Nas pginas que se seguem, nos esforaremos por apreender alguns dos registros mo-Cf. KIRK, 1974, pp. 277-285CASSIRER, 2004, p. 172.37bilizados pelo poema, sem nenhuma pretenso de esgot-los. Se nossos argumentos foremsucientes para convencer o leitor da importncia de interrogar-se o poema enquanto obra,emsua signicao histrica, losca e mtica, pode-se considerar cumprida a meta destetrabalho.382 Os caminhos do poema2.1 A multiplicidade de caminhos e os caminhos como logosTendo-o recebido em sua morada, a deusa dirige-se ao jovem, diferenciando, de umlado, o mago inabalvel da Verdade e, de outro, as consideraes dos mortais, e armano haver nelas (B 1,30). No fragmento 2, que provavelmente gurava ape-nas algumas linhas adiante no poema, aparece novamente a Verdade, em associao a umcaminho (, B 2,2), e tambm Persuaso (): ( )que , e que no ser no possvel caminho de Persuaso (acompanha-o, pois, a Verdade) (B 2,3-4)Opromio sugerira uma diversidade de caminhos: caminho emque o jovem levadopelas guas, guiado pelas Filhas do Sol e chegando deusa (B 1,18 1,27: ); percursodas Filhas do Sol que encontram o jovem e o conduzem (vv. 8-10); trajetos de Noite e Diaonde encontram-se as portas a atravessar (, v.11); senda dos mortais, da qual opoeta est distante ( , v. 27). Em contraste, o fr. 2 inicia-se com uma restrio:h apenas dois caminhos de inqurito a pensar ( , B 2,2).At que ponto podemos sobrepor ou identicar esses dois caminhos queles do pro-mio, procurando correspondncias ou equivalncias diretas?O que est em questo noscaminhos de inqurito ou investigao que se anunciam, a distino ser/no-ser, per-tence a um registro diferente do que podemos formar como imagem ou o dos smbolos39mticos a que essas imagens corresponderiam. J no so caminhos dos quais seja possvel,propriamente, descrio ou narrao: sua apresentao se confunde com o que eles mes-mos so. Talvez se possa dizer que os dois caminhos a pensar, como smbolo, permitemuma dupla leitura: tautegoricamente, so aquilo mesmo que dito, e s existem na falada deusa, como seu mythos e seu logos. Alegoricamente, sinalizam para algo de univer-sal, o logos que diz o que ( ), excluindo o no-ser. Essa considerao, contudo,ainda pouco suciente: apenas comeamos a entrever o difcil problema da metalingua-gem instaurada pelo poema, que fala de si mesmo enquanto diferencia seu prprio dizer ea linguagem em geral de outra coisa que no dizer, mas pensar ( ).Seria preciso, ao menos, distinguir o que so os prprios caminhos de investigao doanncio que deles feito, da narrao que precede esse anncio e dos elementos mticosque a eles se associam. Chamamos ateno sobre esse ponto, pois o aparecimento das di-vindades e nos versos citados tem, como veremos, a funo precpua deevitar que esses caminhos sejam descritos, como por quem os olhasse de fora. Pois no setrata tanto de contempl-los, narr-los ou descrev-los, mas muito mais de segui-los. Emesmo com essa expresso j tramos a letra do poema, que rigorosamente no fala jamaisde uma direo a seguir ou de um ponto de chegada desses caminhos a deusa limita-se,pois, a afastar-nos de um deles (cf. , B 7,2).Se, como podemos aceitar, os so smbolo ou metfora para o logos (como argu-mento, proposio etc.), ou, como tambm se pretende (s vezes indistintamente), para oprocesso do conhecimento, uma possibilidade de leitura seria entender o caminho comodirigindo-se ou dirigindo-nos Verdade, tendo-a por meta, objetivo ou objeto. Nessesentido, Bywalters decidiu por corrigir os manuscritos, suprindo onde se l umnominativo. A palavra no dativo foi incorporada edio Diels-Kranz, e ainda reprodu-zida pela maioria dos intrpretes (de todas as tradues consultadas, apenas a de RobbianoDIELS, 1956, p. 231 n. 10. Cf. ROBBIANO, 2006, p. 55 e n. 152; MOURELATOS, 2008, p. 158 n. 64.40 uma exceo, tendo problematizado a estudiosa a correo de Bywalters). Cavalcante,por exemplo, assim traduz o verso B 2,4: de Persuaso caminho (pois verdade acom-panha).Mourelatos, em seu e Route of Parmenides, sem problematizar o estabelecimento detexto, entende que o objetivo ou a meta do caminho de investigao , e que estaseria, no poema, um sinnimo de : o trajeto da persuaso (B 2,4) e a rota ver-dica (, B 8, 18) seriam caminhos em direo (torwards) verdade, leitura que seassenta no entendimento de + dativo (B 2,4) como dizendo do caminho que atingea verdade (attends truth). Ao traduzir (B 2) por busca (quest), o intrprete en-contra paralelos com a Odissia. Prope-se que, se, no pico de Homero, Circe indica ossinais de volta taca ( , XII, 25-26), para a audincia familiarizada a re-velao anunciada pela deusa ter muito em comum com as revelaes de um guia divinoque fornece ao viajante as medidas ou os sinais da rota. E complementa: os sinais de B8 deveriam levar-nos terra rma do ser ou da verdade.A multiplicidade de caminhos oferecida pelo poema induz a comparaes entre eles,quando no leva tentao de estabelecer identidades, ou at a identidade de todos emum s. Mas no a narrativa do poema, congurada como o relato em primeira pessoade uma viagem celeste, apenas um desses caminhos, e se Parmnides os multiplica, no tambm para marcar a diferena que seria preciso ver a cada mudana de registro? Apartir de um caminho-zero, constitudo pela narrativa que conta da viagem do homemque sabe, desdobram-se percursos (das Filhas do Sol), trajetos (de Dia e Noite) e sen-das (a dos mortais em oposio morada da deusa). A fala da deusa, por vez, institui osdois caminhos de investigao. A idia de uma busca pela verdade (como na leitura deMourelatos) se introduz com a sobredeterminao desses dois caminhos (ou, mais espe-Assim prope a intrprete traduzir a passagem: it is the course of persuasion, for truth follows. Cf. notaanterior.MOURELATOS, 2008, p. 66.MOURELATOS, 2008, pp. 21, 23.MOURELATOS, 2008, p. 100.41cicamente, do primeiro deles) pela temporalidade da narrativa: apenas no caminho-zeroh a estrutura de um depois e um antes, de uma chegada seguida a um percurso (cujoponto de partida, alis, indeterminado).Estamos autorizados nessa sobredeterminao dos caminhos de investigao, que ostornaria anlogos a uma viagem ou a uma busca? Alm de no encontrarmos nenhumoutrosuporte para essa leitura, senona prpria narrativa comque se inicia opoema, outroselementos, pelo contrrio, a contradizem. Isso, a comear, j no promio, pelo nome dadoao protagonista da narrativa: ele chamado o homemque sabe ( , 1,26), noo homem que aspira ao conhecimento ou que busca a verdade. Ao encontrar-se com adeusa, o poeta j um iniciado, um discpulo que conquistou o direito de estar presentediante dela e de escut-la.Se nada aponta um vir-a-ser no homem do conhecimento, de outro lado tambm ne-nhuma indicao temos de um evento anterior que sinalizaria para sua iniciao, para umacontecimento prvio pelo qual esse direito de ser recebido na morada da deusa teria sidoadquirido. Em contraste, Hesodo conta que um dia as Musas lhe ensinaram, isto , a suarevelao deu-se no passado que antecede a narrativa da Teogonia ( ,22). Pela relao prvia estabelecida com elas, est ele habilitado a cantar a genealogia dosdeuses. As Musas entregam-lhe um ramo por cetro, inspiram-lhe o canto:a experinciaque o transforma em poeta um privilgio que restringe-se ordem do particular. Ele nosa descreve no passado, justicando por que capaz de falar da origemdos deuses, mas a ex-perincia mesma , para ns, inteiramente inacessvel. Tampouco saberia o pastor becioexplic-la:Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra? (Teogonia, 35)Compare-se ainda a passagemcomFedro, 275 b-c: as gentes daquele tempo, eles que no eramsbios() como vs outros os modernos, contentavam-se, em razo de sua simplicidade de esprito, em darouvidos a um carvalho ou a uma pedra, desde que dissessem a verdade. Mas para ti, o que sem dvidaimporta, saber quem fala e de que pas provm: no te satisfaz, com efeito, examinar se assim ou de outromodo. No se v a ironia de Plato, situado na tenso entre a incomunicabilidade ltima da verdade loscae a exigncia de comunicabilidade da racionalidade demonstrativa?42A comparao com Hesodo mostra a originalidade de Parmnides: se podemos dizerque h algo em seu poema de uma revelao ou de uma iniciao, destaca-se que, longede uma experincia privativa do poeta, ela se d contemporaneamente prpria narrativae, por assim dizer, desnuda-se aos nossos olhos.A revelao no descrita, mas de certomodo vivenciada pelo leitor, ao acolher ele tambmas palavras da deusa. Ainiciao torna-se acessvel atravs do dispositivo literrio que a obra de Parmnides: o poema apropria-seda imagem do poeta tradicional inspirado, aparentado ao vidente, mas para submet-la aum regime diverso, losco, que inaugura.Essa mudana de regime um efeito verdadeiramente literrio, que se produz com anarrativa e segundo a temporalidade que lhe prpria o caminho-zero da viagem no secongura como o relato de uma experincia passada, mas acontece no tempo presente emque narrado: as guas que me levam(no presente: ) onde o corao pedisse...(B 1,1).Ao tornarmo-nos contemporneos da experincia de revelao do protagonista,somos ns mesmos, ao ler, com ele transportados ao mundo invisvel, possumos a viso no presente dessa viso que era outrora apangio do poeta, destitudo que foi de suafuno mediadora, assim como as Musas do lugar a outras jovens (, B 1,9; cf.Teog., 25), as Filhas do Sol.Nesse mundo invisvel, todavia, no encontraremos os deuses do Olimpo, mas umadeusa que fala. E trata-se, na verdade, menos de v-la do que de ouvir o que ela tema dizer:no do poema, a viso comea a transformar-se em metfora para umconhecimento exclusivamente intelectual o que se d a ver nessa viso dependendo emi-nentemente do logos e de uma forma determinada de logos.Conforme os importantes estudos de von Fritz sobre o vocabulrio arcaico do qual seapropriar a losoa, , emHomero, o verbo que cobre os casos de algo que vemao co-nhecimento pela viso. e do a idia de umreconhecimento, diferencian-Este ponto foi bastante sublinhado por COULOUBARITSIS, 2008, destacando a diferena entre Hesodoe Parmnides.43do-se o ltimo termo por implicar a visualizao sbita de algo que no se reconhecia comotal: as intenes ms de algumque parecia umamigo, umdeus que se percebe sob a formade um mortal. O tambm a viso mental que vai alm do que os olhos vem notempo e no espao, como o viajante que visitou muitas cidades tem em seu as ter-ras por onde passou e que pode atravessar novamente no curso de sua jornada futura. Datambm a idia de plano, premeditao (plan, planning). Nada, porm, de uma visointelectual ligada estreitamente ao logos, e que no diz respeito a fatos passados, presen-tes ou futuros. A obra de Parmnides, por vez, traz a novidade que, mais tarde, servir debase elaborao de Plato e Aristteles: a idia de viso intelectual, notica.Mas isso , no poema, o que est por ser instauraurado: ele no pode dizer o que tema dizer sem o agenciamento das divindades que nele comparecem. E mais: no pode, semesse agenciamento de elementos mticos, dar linguagem o papel que ter na losoa,transformando-a a partir das condies histricas que o precedem. Trata-se, para ns, deprocurar apreender a especicidade histrico-losca do logos no poema de Parmnides.Aleitura que projeta, para a compreenso do argumento do poema, no apenas e nemtantoseu tema ou seu motivo, mas a estrutura de temporalidade da narrativa da viagem e de seu, implica j uma certa leitura desse logos, que procura aproxim-lo da racionalidadedemonstrativa que, como entendemos, s se desenvolver plenamente entre os sculos Ve IV a.C. Veremos melhor o problema mais frente, vericando que j nos testemunhosantigos encontramos reservas quanto a essa assimilao.Feitas essas consideraes, retornemos aos versos que abriram este captulo. Quemso as divindades ali presentes? Em uma obra do sculo I d. C., inuenciada pelo simbo-lismo neo-pitagrico, Pseudo-Cebes oferece um relato em que Altheia e Peith so lhase companheiras de Paideia. O recm-encarnado pode eventualmente encontr-la, apsFRITZ, 1943, pp. 88-91.Sobre a associao, em Parmnides, do ao logos (muito rapidamente identicado, todavia, ao raci-ocnio lgico-demonstrativo, ainda que no sem reservas), ver FRITZ, 1945, pp. 241-242.Cf. infra, 2.4, pp. 73 ss.44recuperar-se da bebida que lhe oferecida, antes de nascer, por Apat. Paideia lhe darento e , isto :saber para que em momento algum se padea do que perigoso ao longo da vida. Verdadeira Paideia auxiliada por suas lhas, que dispensam . notvel que a f verdadeira encontre-se tambm no poema de Parm-nides em oposio a (B 1,30; 8,52), e mesmo a associao desta com Phobos, outrodos Filhos da Noite, talvez no seja sem relevncia nessa trama. Se levarmos em conta orelato do Pnax, parece que nos encontramos, com Parmnides, em um registro que origi-nariamente nada tem a ver com o da retrica dos sculos seguintes: nada h em Apat dailuso produzida pelo discurso, e nem Peith a persuaso resultante da fora do logosque age sobre outrem.A , que para Grgias dir respeito estritamente s relaes inter-humanas, temno poema os traos de uma ddiva divina, como no mito de Paideia, e parece aproximar-setambm do papel que lhe conferido nas iniciaes das seitas de mistrios. Em um frag-mento atribudo ao De anima de Plutarco, l-se que o no-iniciado sofre, temendo a morte,por sua falta de f: .Vemos, portanto, que no apenas da imagemdo poeta tradicional que o poema de Parm-nides se apropria: tambmnele h algo dos cultos de mistrios, e a fala da deusa congura-se, efetivamente, como uma mensagem oracular ou proftica (implicando outros aspectosde temporalidade para alm da estrutura da narrativa da viagem celeste, como veremos).Mas, no contraste coma poesia de Hesodo, que nos fala sob inspirao das Musas, semquePS.-CEBES. Pnax, 294 307 Jerram: (traduonossa). Citado por BLANK, 1982, pp. 174-175. Segundo o autor, a despeito da data tardia, o papel de Peithno relato reete uma tradio anterior aos Sostas. Grgias, por exemplo, coloca Peith e a Verdade emladosopostos (Elog. de Hel., 13).Cf. Elogio de Helena, 6. AUBENQUE (1962, pp. 102-103) entende o logos, em Grgias, como sendopensado primariamente na relao de alteridade: o Tratado do No-ser visa, segundo ele, a estabelecer aespecicidade de seu domnio (do discurso), que o das relaes humanas, no o da comunicao do ser.Ver tambm CASSIN, 2005, pp. 57-63.Cf. Defesa de Palamedes, 8: .Fr. 178,16-20 Sandbach. Citado por BLANK (1982, p. 171), que chama a ateno ainda para que, norelato feito no Grgias de Plato a respeito de um sbio mitlogo, possivelmente siciliano ou italiano, osno-iniciados so chamados de (493 c 1-3).Cf. cap. 3.45dela participemos diretamente, vemos claramente a funo desempenhada pela deconotao religiosa: a obra de Parmnides se oferece como um instrumento de iniciao,o leitor torna-se um discpulo da deusa e, ouvindo suas palavras, recebe uma revelao.Como a remisso aos mistrios sugere, a revelao s se oferece quele que recebe odom da , acreditando nas palavras da deusa.Sua fala assim mythos, palavra auto-rizada, que estabelece uma relao de subordinao:o discpulo deve conar-se a ela. Adeusa no lhe aponta um caminho, como a direo correta de uma rota pela qual ele deve-ria adentrar e seguir, ela mesma e sua fala com o agenciamento mtico das divindades que encaminhamo discpulo, preservando-o dos perigos e dos desvios. No umcaminhoque vai em direo verdade, mas, como s l nos manuscritos, caminho de Persuaso,que a Verdade acompanha ( , B 2,4).Se o encontro com a deusa da ordem da iniciao nos mistrios, se sua fala iniciticapertence a um regime anterior ao da retrica da persuaso, o poema de Parmnides surge,por conta disso, tambm em tenso com seu tempo histrico presente. L-se que as He-lides persuadem Dik com brandas palavras a abrir as portas de Noite e Dia, frmulapica com paralelos tanto em Homero quanto em Hesodo. Insinua-se que, sem o poderdas palavras, do logos, no seria possvel chegar morada da deusa. Mas no aparece ologos, nessa passagem, como em uma transposio da experincia poltica da linguagem,da palavra-dilogo nascente, ao plano de divindades que precisariam persuadir-se umas soutras, assim como fazem os homens na cidade (cf. , B 1,15)? No momento em quea palavra torna-se progressivamente mais laicizada e instrumento poltico de ao, o logospercebe suas possibilidades prprias, sem o qu a losoa no viria luz. Parmnides, noobstante, resgata para ela os traos arcaicos da Verdade, solicitando elementos mticos aB 1,15: . Cf. Il., I, 582: ; Od.,I, 56: ; Trab., 90: .Em direo semelhante, cf. PIMENTA, 1990, p. 37, que todavia carrega nas tintas no tema da relaocom o divino, o qual nos parece mais cheio de problemas do que sugerem as colocaes do intrprete: Nalosoa de Parmnides[o] homem um ser ambguo, mistura de Althia e Lth, pois ele pode abrir-seou fechar-se ao divino. Pode lembrar-se ou esquecer-se do mundo, dos deuses e de si.46m de diz-la, em um registro que, outro que o do mito tradicional, no coincide com o davida na polis.Ora, se a Altheia mtica, na similitude de sua potncia, associa-se a Dik, que co-nhece em silncio o que vai acontecer e o que passou, como aquela sabe de todas as coisasdivinas, o presente e o porvir, na disposio das divindades no poema de Parmnidesesta aparece como uma das guras mais ambgas, mais polissmicas e, por isso, mais ricasdo poema. Mencionamos anteriormente que o adjetivo a associa a teogoniasrcas. Como ela guarda as portas de Noite e Dia, de se ver a tambm um aspecto cs-mico, como o que tema de Anaximandro. EmHesodo, que a apresenta como lha deZeus e emis, ela est ligada a uma forma pr-retrica de persuaso, que diz respeito aosreis de justia que so sustentados por Zeus ( , 81). Vejamos brevementeo contexto da Teogonia em que a passagem se insere.Aobra de Hesodo conta da ordeminstituda por Zeus ao derrotar os tits e garantir aosdeuses a proteo de suas , que no eramrespeitadas no reinado de Kronos. Ele paraisso auxiliado por Zlos, Nik, Kratos e Bi, lhos de Styx, que concede a Zeus o privilgiode sua companhia emtroca da promessa (392-396), aliana que ser mantida, assegurandoseu reinado, enquanto ele mantiver seu juramento (399-403). Estabelecendo uma ordemestvel, em que as honras dos deuses so respeitadas, Zeus corrige os abusos de Kronos, um defensor da (cf. 396: ). Faz de Styx o juramento dos deuses (400),mantendo ele prprio sua promessa, e seu reinado apoiado pelo juramento que resolve asdisputas entre os deuses (775-806).interessante constatar umtestemunho que coloca a losoa do eleata no mesmo plano que o das confra-rias pitagricas: fala-se de umhomemque seguiu ummodo de vida pitagrico e parmendeo ( . PS.-CEBES. tabula Cebetis, 2, 2 = 119 Coxon).DETIENNE, 2006, p. 91.A ponto de Mansfeld (1964) ter visto nela a principal divindade do poema, o que no necessariamenteo caso.Para essa leitura do juramento dos deuses, destacando que a preservao do poder de Zeus e de suaaliana com os lhos de Styx depende de no se violar o juramento que funda e justica seu reinado, verBLICKMAN, 1987. Cf. tb. CORNFORD (1989, p. 361): A alegoria do Juramento dos deuses, que traz aonovo rei a Vitria, o Domnio e a Fora, bastante transparente. Na sua coroao, Zeus jura conformar osdireitos e privilgios dos seus cortesos e o seu reinado durar enquanto ele for el a essa promessa. Sobre o47A passagem que nos interessa parte do Hino s Musas. Ao introduzi-la, Hesodofaz lembrar que Zeus reina no Olimpo, tendo vencido o pai Kronos e bem distribudo aosimortais suas (71-74). Aps apresentar as nove Musas, lhas de Zeus e Mnmosyne,assim diz Hesodo de Belavoz (Kalliop), que vai frente do cortejo:Ela que acompanha () os reis venerandos,A quem honram as virgens do grande Zeusde dentre reis sustentados por Zeus vem nascer,elas lhe vertem sobre a lngua o doce orvalhoe palavras de mel uem de sua boa. Todasas gentes o olham decidir as sentenascom reta justia e ele rme falando na goralogo grande discrdia cnscio pe m,pois os reis tm prudncia quanto s gentesvioladas na gora perfazem reparaesfacilmente, a persuadir com brandas palavras ( ).Indo assemblia, como a um Deus ( ) o propiciampelo doce honor ( ) e nas reunies se distingue.Tal das Musas o sagrado dom aos homens. (Teog., 80-93)Orei de justia que tem preserva entre os homens a paz, mantma ordem, tendopapel similar ao desempenhado por Zeus entre os deuses. Seu poder de reparar as discr-dias uma ddiva das Musas, sua fala inspirada, como a do poeta. AJustia se doa quelesque assentem justeza da palavra proferida. Nessa perspectiva, no h justia sem a faladivinamente inspirada que persuade: o bomrei aproximado a umdeus, pois reproduz, naordemda humana, o juramento e a de Zeus. Quando a gura do rei de justia de-saparecer, sua palavra ecaz ser substituda pela , pelo acordo atravs do qualtodos e cada um esto vinculados polis. A eccia da palavra, nesse contexto, poucotem a ver com o fundamento divino sobre o qual apoiava-se o soberano: o poder persua-sivo do discurso provm do que o logos, como argumento, capaz de mostrar, produzindoa aprovao ou a recusa, o assentimento ou a rejeio atravs do debate contraditrio.signicado do juramento () como instituio religiosa e social, cf. BURKERT, 1985, pp. 250-254.Traduo de Jaa Torrano.Esse acordo no pode ser entendido no sentido do Estado iluminista, como se a cidade fosse produtodo contrato social de indivduos racionais isolados:o prprio conceito de liberdade grego baseia-se noassentimento de cada um em submeter-se s leis da polis. disso que se recorda Scrates na famosa Proso-popia das Leis do Crton. Cf. BORNKAMM, 1936, pp. 377-380.48Quando diz de um caminho de Persuaso em que segue () a Verdade e pode-ramos ler que esta segue quela como sua causa, tal qual Belavoz que inspira, segundoHesodo, o rei de justia Parmnides ao mesmo tempo reconhece a fora prpria ao logos,como tambmsubmete-o a umregime mais almda controvrsia e do debate contraditrioque funda o agir na polis. Que esse mais alm parea, historicamente, um mais aqum,isso d o tom arcaizante de sua Verdade. De fato, aps atravessarmos a entrada vigiada porDik, o poema indica-nos o domnio de uma deusa cuja fala incontestada e incontest-vel: o trmite das Filhas do Sol com a guardi das portas de Noite e Dia marca a ltimafronteira j uma transposio da realidade humana para o plano divino onde a palavraargumentada pode ser aceita ou recusada.Compreendemos por que o poema precise marcar essa transio, que nos separa do re-gime da palavra contraditria, assim como a deusa afastar o pensamento do discpulo docaminho dos mortais, para os quais ser e no ser reputado o mesmo e no o mesmo (B6,8). Trata-se de dizer o que ( ): a instaurao do logos losco depende de ultra-passar o mundo do devir, dos eventos e das aes humanas, o universo poltico onde teve,historicamente, a sua origem. Aproxima-se comisso de uma gura arcaica, como a do logoshesodico que estabelece as relaes de liao e o cosmos dos deuses que so sempre (). Mas seu fundamento j no o das Musas que inspiram o poeta: bem sabe o l-sofo que aquilo que diz depende do pensar que enxerga uma Necessidade outra que a dodestino de toda e cada coisa que veio a ser. Apresentar esse logos losco nem discursocatalgico sobre os deuses, nem discurso persuasivo do debate poltico a tarefa levadaa cabo por Parmnides em seu poema. Ele se desenvolver como uma refutao (,B 7,5), que ambigamente superao tanto da palavra voltada ao, quanto da visotradicional de um cu povoado pelos deuses olmpicos: transformam-se, miticamente, osregistros de visvel e invisvel, ao mesmo tempo em que o logos adquire uma nova forma.Os agenciamentos mticos do poema, as suas mltiplas apropriaes (imagens do poetainspirado, da iniciao nos mistrios, dos mitos tradicionais), as diversas conguraes do49discurso (narrativa, argumento, fala oracular) operamnesses dois planos simultaneamente,o que requer especial cautela por parte do intrprete.Na trama histrico-losca-mtica em que nos enreda o poema, um ponto, porm, saliente: o que a deusa apresenta como os dois caminhos de investigao aparece comouma espcie de smbolo dessa nova gura do logos. Adeusa apresenta-o como ummythose, na verdade, o nico que deve conduzir o pensar daquele que sabe ( , B 8,1). Seu contedo fundamental resume-se em uma nica palavra: ( ,B 8,2). Atravs da na fala de revelao, conando-se a ela, o ouvinte solicitado aalgo que, na perspectiva mtica da verdade, soa todavia paradoxal: julga pelo logos, atravsdo logos, diz a deusa, os meus proferimentos (B 7,5-6). Conferindo-se credibilidade deusa, pela adeso sua fala como emanando de uma autoridade superior e seguindo-a emsuas proposies, toda autoridade como que dela retirada, pelo imperativo de sua prpriasentena, pa