muthos e logos no fédon de platão

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Mûthos e Logos no Fédon de Platão Expositor: Alexandre Jordão Baptista No âmbito das transformações semânticas sofridas pelos termos lógos e Mûthos, ao longo de suas evoluções históricas, não há dúvidas de que um papel de destaque é reservado à Platão. Nomes que, originalmente, se destinavam a nomear o discurso de um modo geral, isto é, o discurso entendido tão somente enquanto expressão do pensamento através da voz têm, com Platão, seus sentidos definitivamente fixados e se especializam, de um lado, como discurso verdadeiro, argumentativo, verificável e, de outro, aquilo que é fruto da ficção e da fantasia, o discurso falso, a mentira. No Livro II de A República, a propósito da educação dos guardiães de sua cidade ideal, Platão marca esta distinção de modo bastante significativo: SócratesNão convém começarmos a sua educação pela música em lugar da ginástica? AdimantoSem dúvida. Sócrates Tu admites que os discursos (lógos) fazem parte da música ou não? Adimanto Admito. Sócrates E existem dois tipos de discursos(lógos), os verdadeiros (alethés) e os falsos (pseudos)? Adimanto Sim, existem. Sócrates Ambos entrarão na nossa educação ou começaremos pelos falsos (pseudos)? Cadernos de Atas da ANPOF, n o 1, 2001.

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Mûthos e Logos no Fédon de Platão

Expositor: Alexandre Jordão Baptista

No âmbito das transformações semânticas sofridas pelos termos lógos e Mûthos, ao longo de suas evoluções históricas, não há dúvidas de que um papel de destaque é reservado à Platão. Nomes que, originalmente, se destinavam a nomear o discurso de um modo geral, isto é, o discurso entendido tão somente enquanto expressão do pensamento através da voz têm, com Platão, seus sentidos definitivamente fixados e se especializam, de um lado, como discurso verdadeiro, argumentativo, verificável e, de outro, aquilo que é fruto da ficção e da fantasia, o discurso falso, a mentira.

No Livro II de A República, a propósito da educação dos guardiães de sua cidade ideal, Platão marca esta distinção de modo bastante significativo:

Sócrates— Não convém começarmos a sua educação

pela música em lugar da ginástica? Adimanto— Sem dúvida. Sócrates — Tu admites que os discursos (lógos) fazem

parte da música ou não? Adimanto — Admito. Sócrates — E existem dois tipos de discursos(lógos), os

verdadeiros (alethés) e os falsos (pseudos)? Adimanto — Sim, existem. Sócrates — Ambos entrarão na nossa educação ou

começaremos pelos falsos (pseudos)?

Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001.

136 Alexandre Jordão Baptista

Adimanto — Não estou entendendo. Sócrates — Nós não começamos contando fábulas

(mûthos) às crianças? Geralmente são falsas (pseudos embora encerrem algumas verdades (alethés). Utilizamos essas fábulas para a educação das crianças antes de levá-las ao ginásio.

),

Adimanto — É verdade.(Rep. II 376e 377a)

Todos aqui conhecem o que veio depois. Até hoje, a maneira mais comum de se caracterizar a filosofia é justamente opô-la ao mito e a mitologia — às histórias da tradição grega que narram as origens do cosmos, dos deuses, dos heróis, dos homens e de suas práticas sociais de uma maneira, no mínimo, “fantasiosa”. Como apontou Platão, no Fédon, ao poeta cabe fabricar mitos, ao filósofo, lógos. Entre Lógos e Mûthos não há reconciliação possível: a investigação sobre o Ser deve excluir o mero contar de estórias.

O mais curioso é que o próprio Platão não se manteve nessas fronteiras, mas não só “fabricou” mitos, no mesmo sentido em que ele entendia que Homero e Hesíodo os “fabricavam”, como não se furtou a tomar alguns como verdadeiros. Nossas pesquisas sobre a questão nos chamaram a atenção para certos pontos que, mesmo que não tragam nada de novo ao que se estabeleceu tradicionalmente, revestem a mencionada ambigüidade de maior interesse ainda.

A passagem citada resume, de certa forma, o modo como Platão conduz o processo de especialização do sentido de mûthos tomando como referência um sentido já especializado de lógos. Num primeiro momento, Platão assimila mûthos e lógos. Se tomarmos lógos em seu sentido amplo, isto é, como o fato de “tornar claro o pensamento por meio da voz, com o emprego de verbos e substantivos” como aparece no Teeteto 206d1, então podemos considerar que todo mûthos é um lógos. Esta assimilação contudo não significa identificação. Sem que se perceba, Platão joga com o sentido de lógos; já não é mais aqui o discurso em geral mas o seu sentido especializado do qual pode-se dizer de um discurso que ele é verdadeiro (alethés) ou falso (pseudos). A partir daí, mûthos surge então como discurso falso. Mas o passo aqui parece incerto e mais uma

Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001.

Mûthos e Logos no Fédon de Platão 137 vez Platão embaralha as cartas: Nós não começamos contando (mûthos) às crianças? Geralmente são falsos, embora encerrem algumas verdades.

Uma das chaves para se entender a ambigüidade de Platão face ao discurso mítico está justamente neste processo de especialização. Seguindo o percurso sugerido pela passagem citada, nos propusemos, em nossa comunicação, a analisá-lo em três etapas:

Primeiro, o processo de especialização do sentido de lógos que encontramos no Sofista, onde lógos é definido como um discurso consistindo de um entrelaçamento de nome(s) e verbo(s) e que, enquanto discurso, é sempre discurso sobre alguma coisa, podendo, dessa forma, ser considerado verdadeiro ou falso, na medida em que expressa a realidade apontada de forma adequada ou não (262a-1 — 263b 2-8). No entanto, tal verificação e consequentemente tal juízo sobre a verdade e a falsidade contida no discurso só é possível se as realidades apontadas são de alguma forma acessíveis ao homem. Para Platão (A República VI), dois gêneros de realidades satisfazem esta exigência: as coisas sensíveis, apreendidas pelos sentidos, e as formas inteligíveis, apreendidas pelo intelecto. De maneira que, para além da acepção comum de lógos como performance, como discurso em geral, este termo adquire em Platão o sentido específico de discurso verificável.

Segundo, as conseqüências desta especialização na definição de mûthos estabelecida por Platão. É esta perspectiva que define a distinção entre lógos e mûthos, onde o segundo é caracterizado, em oposição ao primeiro, como discurso inverificável, uma vez que os objetos referidos neste gênero de relato são inacessíveis tanto ao intelecto quanto aos sentidos e portanto não passíveis de verificação. A questão aqui é que se um discurso é inverificável então não deve fazer sentido assumi-lo nem como verdadeiro ou nem como falso. Pois, se a verdade ou a falsidade de um discurso só pode ser inferida de um discurso que a priori se apresente como um discurso verificável, então, se ele não é verificável tampouco cabe assumi-lo como verdadeiro ou falso.

O que vai permitir Platão assumir o mito como discurso falso é uma mudança de perspectiva. Platão desloca a questão da verdade e falsidade de um discurso, no caso o mito, que deixa de se dar em termos de adequação entre Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001.

138 Alexandre Jordão Baptista discurso e a realidade a que este discurso se refere, e passa a se dar em termos da adequação desse discurso com um outro discurso tomado como norma.

Terceiro, confrontando estas duas definições tentamos explicar em que sentido podemos entender a afirmativa meio paradoxal de Platão de que o mûthos apesar de falso pode conter algumas verdades. No Livro II de A República (378e7 –379 a4), Platão esclarece a mudança de perspectiva: uma vez que são os filósofos que têm acesso às formas inteligíveis, é a filosofia que deve oferecer os moldes a partir dos quais os poetas fabricarão seus mitos.

É essa mudança de perspectiva que permite Platão assumir o mito como um discurso falso apesar de seu caráter de inverificabilidade imposto pela definição de lógos. A investigação empreendida pela razão apresenta os sujeitos míticos com uma natureza totalmente oposta àquela apresentada nos mitos. Ora, uma vez que algo não pode ao mesmo tempo ser e não ser o caso, se o discurso filosófico é o verdadeiro e se o mito apresenta estes sujeitos de forma oposta à filosofia, então o mito só pode ser falso; mas se, ao contrário, o que diz o mito concorda com o que diz a filosofia, então ele é verdadeiro. O critério, portanto, deixa de ser a adequação ao referente e passa a ser a adequação a outro discurso içado agora à categoria de norma. E o que faz com que este novo discurso possa ser tomado como tal? Simples, ele responde à exigência imposta a todo discurso para ser considerado como verdadeiro: pretende ser verificável, uma vez que é de natureza argumentativa. Ao contrário do mito, que relata os acontecimentos como se acredita terem ocorrido, um discurso argumentativo deve seguir um ordem racional onde o encadeamento de suas partes se faz segundo regras lógicas que têm como fim tornar necessária sua conclusão.

O curioso aqui, e essa foi a conclusão a que chegamos, é que a mudança de perspectiva indicada acima pode ser considerada não totalmente legítima uma vez que, quer se trate da definição inspirada na forma inteligível do deus ou das narrativas escandalosas de Homero, sobre estes sujeitos não poderá jamais haver verificação possível, de modo que, do ponto de vista apenas da definição de lógos, a pretensão da filosofia de ser tomada como norma talvez não se justifique mas que, ao contrário, o que realmente está em jogo não é nem o estatuto do mito, mas principalmente, o da própria verdade com a qual Platão se propôs medi-lo. Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001.

Mûthos e Logos no Fédon de Platão 139

Um dos pontos nevrálgicos do pensamento de Platão é a alma e tudo que ela tem de imortal. Correlato necessário da Teoria das Idéias, a alma é definida, por imposição de sua função cognitiva, como sendo de natureza dupla, mortal e imortal. A parte mortal se ligaria ao sensível e a imortal ao inteligível, razão pela qual ela estaria apta a conhecer tanto um domínio quanto o outro. Só que com isso coloca-se a alma, no que diz respeito ao horizonte de “apreensibilidade” do lógos, no mesmo nível que a classe de entes que pertencem ao domínio mítico, i.e., no nível intermediário entre o mundo das formas inteligíveis e aquele das coisas sensíveis. De forma que, uma vez que Platão reconhece que não pode haver descrição definida dos entes que pertencem ao domínio mítico, ele não pode se furtar de também reconhecer que tampouco esta descrição é possível no que concerne à parte imortal da alma humana:

No caso da alma esta questão talvez seja ainda mais complexa. Quando se tratava da natureza dos deuses a receita era tomar como modelo a forma inteligível da divindade e, por analogia, descrever seus traços essenciais. Mas será que isso é válido no que se refere a alma humana? Não se incorre em petição de princípio, isto é, ao recorremos à teoria das idéias não estamos já pressupondo a imortalidade da alma que precisa ser provada? Talvez não seja outra, a razão do fracasso de Sócrates em convencer seus interlocutores, no Fédon, de que eles não deviam temer a morte. E é significativo que, como último recurso, ele recorra a uma narrativa mítica para isso.

Bibliografia: BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, vol.I. Petrópolis: Ed. Vozes, 1998. BRISSON, Luc. Platon Les Mots et Les Mythes: comment et pourquoi Platon

nomma le mythe?. Paris: Éditions La Découvert, 1994. DETIENNE, Marcel. A Invenção da Mitologia. Trad. de André Telles e Gilza

Martins Saldanha da Gama. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, D.F.: UnB,1998.

Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001.

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DROZ, Geneviève. Os Mitos Platônicos. Trad. de Maria Auxiliadora Ribeiro Keneipp. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972. ( Série Debates).

IGLÉSIAS, M. “Platão: a descoberta da alma”, in Boletim do CPA, nº 5/6, janeiro/dezembro 1998.

JEANNIÈRE, Abel. Platão. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zanhar,1995.

PLATON. Oeuvres complètes. Trad. Emile Chambry, Auguste Diès, Alfred Croiset.Paris: Ed. Les Belles Letres, 1950.

RICOEUR, Paul. Grécia e Mito. Trad. Leonor Rocha Vieira. Lisboa: Ed. Gradiva, 1988.

VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1996.