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Texto publicado nos Anais do II Encontro de Pesquisadores em História em QuadrinhosTRANSCRIPT
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A presença feminina na caricatura e na charge política no século XX (1910 – 1960)
Natania Nogueira1
Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado
Colégio Imaculada Conceição
Na historiografia brasileira, as pesquisas sobre a produção imagética na imprensa periódica têm colocado
em segundo plano a produção feminina. Raros são os trabalhos que foram dedicados às mulheres que se
destacaram neste campo profissional e que tiveram a oportunidade de expor sua obra para o grande
público. Mais difícil ainda é efetuar um mapeamento destas personagens, ou uma análise crítica do papel
das mulheres e da sua produção na imprensa brasileira.
Este campo de produção artística e midiática foi por décadas, um espaço dominado pelos homens, até a
entrada em cena de Nair de Teffé (1886-1981), em 1910. Considerada por Herman Lima2 a primeira
mulher caricaturista do Brasil e do mundo a publicar e assinar seus trabalhos Nair atingiu círculos
culturais até então frequentados apenas por homens. Outra chargista/caricaturista iria se destacar na
década de 1930: Hilde Weber (1913-1994). Alemã de nascimento, Hilde foi um dos poucos profissionais
da época, entre homens e mulheres, com formação específica na área.
A vida e a obra destas duas mulheres oferecem um objeto de estudo valioso para se entender o sentido da
memória na construção da narrativa histórica e o papel da mulher nos meios de comunicação. Nair e
Hilde destacaram-se em contextos específico chegando, a certo momento, a serem contemporâneas. Para
poder melhor analisar detalhes da vida e obra dessas personagens, optamos pelo recorte temporal que se
inicia em 1910 e termina em 1960, levando em conta a necessidade de se estudar a totalidade da obra de
Nair e aproximá-la de Hilde. A primeira teve uma trajetória imprecisa, marcada por momentos de
reclusão, até que retorna na década de 1960. A segunda profissionalizou-se a tal ponto que produziu e
publicou ininterruptamente até a proximidade de sua morte, em 1994.
Recontar a história destas mulheres é preencher uma lacuna na história da imprensa periódica no Brasil. É
quebrar o silêncio sobre as mulheres, recuperando suas vozes por meio de sua obra e sua trajetória pessoal
e profissional. Não pode ser esquecida, ainda, a construção da memória da imprensa no Brasil. No seu
papel de relatar fatos, de formar opiniões, de se apresentar de certa forma como uma fonte inesgotável de
1 Graduada em História pela FAFIC/Cataguases, especializada em História do Brasil pela UFJF, professora do Ensino Fundamental nas redes pública e privada, coordenadora do projeto Gibiteca Escolar na Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado (vencedor do Prêmio Professores do Brasil de 2008), membro da Academia Leopoldinense de Letras e Artes, de Leopoldina.2 LIMA, Hérman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1963.
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informações, a imprensa também sofre com a perda de parte da sua memória, na forma do “silêncio” que
se impõe sobre personagens que tiveram importância reconhecida na construção da história nacional,
sejam eles homens ou mulheres.
A memória em si enfrenta uma série de percalços, de interrogações, presentes na historiografia em seu
todo. Seu estudo, seja a partir de testemunhos, seja a partir de relatos, apresenta questionamentos acerca
do valor da narrativa – seja ela oral ou escrita – a partir do “eu”, do sujeito histórico, da(s) forma(s) como
ele (a) constrói suas lembranças, interpreta passagens da sua vida e o próprio contexto em que vive: “...
não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que
declarássemos nos lembrar dela”. 3
Para Paul Ricoeur o que diferencia história e memória é o fato de a história ser a narrativa que se
preocupa com ações importantes, ao passo que a memória trata somente de coisas cotidianas. Para o
autor, toda narração é narração de uma ação e, portanto, narra ações dos protagonistas. A partir da
memória podemos, assim, adentrar à narrativa cotidiana de uma forma específica e própria, impossível de
ser obtida por meio da análise de um documento oficial, por exemplo.
Para levantar a memória destas autoras, partiremos de uma análise narrativa de sua escrita (memórias e
narrativas textuais), do olhar de outros autores sobre sua obra (biografias e dissertações) e sua produção
artística, na forma de charges, caricaturas, e ilustrações, partindo não de um olhar estético, mas das
representações nelas contidas.
1. Rian e a descoberta da caricatura
Nair de Teffé Von Hoonholtz nasceu na cidade do Rio de janeiro no ano de 1886, em plena crise do
Império e nos anos finais da escravidão. Filha de Antônio Luiz Von Hoonholtz, o Barão de Teffé, neta
do Conde prussiano Frederico Guilherme Von Hoonholtz 4, e de Maria Luiza Dootwoort.5 Nair passou
parte da infância e parte da juventude na Europa. O retorno definitivo para o Brasil aconteceria somente
em 1905. Era considerada uma menina prodígio e mimada pelo pai e pelos irmãos. Estudou nas melhores
3 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, p. 40.
4 Friedrich Wilhelm von Hoonholtz, nascido na Prússia em 1795, nobre, militar e engenheiro, imigrou para o Brasil em
1824, recrutado para vir para o Brasil como mercenário a serviço de D. Pedro I.( Frederico Guilherme von Hoonholtz. Capturado em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Frederico_Guilherme_von_Hoonholtz, acesso em 06/02/2011)5 Informações sobre a mãe de Nair são praticamente inexistentes. O único momento em que seu nome é citado é quando mencionado seu casamento com o Barão de Teffé.
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escolas do sul da França e lá descobriu seu talento para o desenho. Com nove anos, produziu a primeira
caricatura.
Nair era uma mulher culta e refinada, falava muitos idiomas, pintava, desenhava, tocava piano com
perfeição. Durante a juventude animou bailes e saraus no Rio de Janeiro e em Petrópolis, onde o Barão
fixou residência ao retornar ao Brasil. Lá começou a investir na carreira de caricaturista. Fez suas
primeiras exposições com caricaturas de amigas, moças da sociedade local. Em 1909 publicou a primeira
caricatura, que retratava a artista francesa Réjane, na Fon-Fon!6.
A caricatura da eminente artista francesa, obra do lápis fantasista de Rian, pseudônimo que mal encobre a personalidade de uma das mais distintas e espirituosas senhoritas da nossa elite, cuja fisionomia original já figurou na sessão Esbocetos de nosso colega Fiorelini. A reprodução dessa deliciosa charge foi autorizada gentilmente pela própria autora.7
Caricatura de Réjane, publicada na Fon-Fon! de 31 de julho de 1909. SANTOS, Paulo César dos. Nair de Teffé: Símbolo de uma época. 2ª ed. – Petrópolis, RJ: Sermograf, 1999, p. 116.
6 AMARAL, Solange Melo do. Discurso autobiográfico: o caso de Nair de Teffé. – Rio de Janeiro: Museu da República, 2007, p. 20.7 Fon-Fon!. Rio de Janeiro, n. 31, ano III 31 de julho de 1909, p. 27
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A partir da visibilidade conquistada por Nair com a caricatura de Rejáne, que ocupou quase terço do
espaço da página, abrem-se então as portas para o sucesso e Rian torna-se um nome comum no meio
artístico dentro e fora do Brasil.
Rian era o estereotipo da mulher moderna, que busca seu espaço na sociedade, que quer ter sua voz
ouvida, que deseja circular em ambientes antes restritos apenas ao público masculino. Rian desafia a
ordem estabelecida. Sua trajetória como artista e mulher foi marcada pelas dificuldades em se manter
numa num ofício tipicamente masculino e numa sociedade extremamente machista. Quando começou a se
profissionalizar como caricaturista, no Brasil, o faz sob o olhar vigilante e severo do pai. Suas primeiras
caricaturas foram de pessoas amigas, de conhecidos, que permitiam que ela as caricaturassem como uma
divertida brincadeira de salão.
Foi em Petrópolis, por volta de 1906-7, quer se iniciou a sua grande fase de caricaturista mundana. Na Pensão Central, que era o ponto chique da elegância serrana, a Senhora Laurinda Santos Lobo, já naquele tempo um dos pontos altas da sociedade carioca e que seria a primeira a figurar na sua galeria de dois anos mais tarde, na Fon-Fon!, descobre-lhe um dia a caricatura de certa dama e se extasia: “Mas Nair... está charmante...” A caricatura corre de mão em mão, faz furor, e o ponto de partida dum verdadeiro torneiro de graça e de buliçosa ironia, que seria o clou da estação8.
Rian, com autorização do pai, começa a expor suas caricaturas na Casa Davi e na Chapelaria Watson, no
Rio de Janeiro9 . Mas quando Rian publica sua primeira caricatura e seus desenhos ultrapassam os
espaços privados dos salões e das casas das elites de Petrópolis e do Rio de Janeiro surgem às primeiras
dificuldades. Ela passa a ser evitada pelas senhoras nas festas, que temiam ser retratadas por Rian e
aparecerem em uma das “Galerias” onde publicava semanalmente suas caricaturas. Rian publicou três
séries de portrait-charges : 1) “Galeria das Elegâncias”, na Fon-Fon!, de agosto a dezembro de 1910; 2)
Galeria das Damas Aristocráticas”, na Careta em outubro de 1910; 3) “Galeria dos Smarts”, Gazeta de
Notícias em julho de 1910.
A caricatura era sua forma de se tornar visível num mundo onde as mulheres tinham que permanecer
invisíveis. Ao caricaturar suas mulheres ela também lhes dá visibilidade. Era sua maneira particular de
retratar o ambiente em que vivia de expor a sua visão particular de mundo, sua forma de descrever a elite
- os políticos, empresários, suas esposas, enfim, os homens e mulheres de seu tempo. Rian se torna um
símbolo, uma inspiração para o universo feminino, pois é para ele que seu trabalho é direcionado.
8 Idem, p. 1270.9 SANTOS, Paulo César dos. Nair de Teffé: Símbolo de uma época. 2ª ed. – Petrópolis, RJ: Sermograf, 1999, p. 27.
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Galeria das Elegâncias. Fon Fon! Rio de Janeiro, n. 40, ano IV, 31 de setembro de 1910, p. 17.
A mulher da elite não pode ser totalmente exposta nem desnudada pelo olhar crítico da sociedade. Ela
deve ser tratada com reverência, com distinção. Assim, Rian poderia fazer e expor suas caricaturas, mas
ao mesmo tempo produzia-se uma estratégia de acobertamento da crítica feita pela caricaturista. A
legenda que enaltece a “vítima” retira parte do ridículo, mudando a mensagem, estabelecendo uma nova
interpretação, uma nova leitura.
Havia uma preocupação dos editores em amenizar o discurso contido na caricatura por meio de legendas
colocadas abaixo da imagem, onde se abreviava o nome da dama e lhe recitava algum elogio ou adjetivo
que aliviava o tom jocoso da caricatura.
A caricatura – forma gráfica do cômico – utiliza-se da ajuda da palavra, do texto, para um maior entendimento, mas será melhor caricaturada aquela que dispensa tal recurso. Contudo, o texto ou legenda constituem explicação necessária para clarear o sentido de uma caricatura; uma redundância, um reforço, por assim dizer.
Nas caricaturas de Rian, esse recurso é utilizado e, em grande maioria, são de autoria da editoração das revistas. No caso das series de portrait-charge, o texto parece amenizar o impacto da fisionomia carregada, do gesto deselegante. Dá-se uma qualidade para compensar a vítima caricaturada.10
10 CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque. Rian: a primeira caricaturista brasileira (primeira fase artística: 1909-1926). Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Comunicações Artes da Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, 1990, p. 86.
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No entanto, na sua “Galeria dos Smarts”, não existe a intenção de amenizar a crítica da caricatura. Ao
caricaturar uma jovem dama da sociedade Rian tem artística para se expressar por meio de sua arte. No
entanto, também se vê na obrigação de diminuir o impacto da mesma, por meio de legendas elogiosas.
Ministro da França, Mr. Gaillard Lacombe. Gazeta de Notícas, 1911. LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1963, 3 V, p. 1277
No mundo dos homens, as mulheres das famílias da elite figuram de forma discreta e são tidas como
excêntricas quando se destacam em uma ou outra área que antes era de domínio exclusivo masculino. No
caso específico de Nair, seus caprichos eram aceitos durante a juventude e acreditava-se que encontrariam
seu fim com o casamento.11
A mulher moderna das classes médias e altas funcionava na dinâmica das relações sociais como um verdadeiro objeto público familiar: ela era a mãe, reprodutora da família e dos bons costumes educando os filhos e filhas dentro dos padrões morais corretos; a esposa, vocação e destino fiel e dedicada ao marido e o estandarte da fortuna e do progresso.12
A mulher moderna seria, portanto, a mulher controlável. Assim, quando Rian começou a se
profissionalizar e a publicar suas caricaturas em revista e jornais foi sob a condição de que não receberia
por isso. O barão de Teffé não desejava que a filha tivesse independência econômica, que fizesse da
caricatura uma profissão geradora de renda. Sua educação teve como prioridade prepará-la para seu papel
11 RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. Nair de Teffé: vidas cruzadas.- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p.6012 SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Moda em Revista: mulheres na imprensa carioca do século XX. Historien – Revista de História. Petrolina, nº 02, jan./mar. 2010, p. 132.
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de mãe e esposa. 13. A independência financeira significaria maior liberdade e um possível afastamento da
família. O barão de Teffé neste e em outros sentidos exercia um grande controle sobre a filha.
As deliciosas criações do seu lápis limitavam-se, porém à circulação do restrita do grand monde, até que o Barão entrou para o rol dos admiradores da arte da filha. Já não se opunha mais a que os seus bonecos se tornassem a grande voga do momento, em exposições coletivas ou isoladas, como mais tarde não lhe impediria também a colaboração nos jornais e revistas, “embora sem remuneração, é claro.14
Ele lhe permita acesso a espaços considerados exclusivamente masculinos, em sua companhia, e ao
mesmo tempo a mantinha sob grande controle. Quando, por exemplo, Nair foi convidada por Pierre
Láfitte, diretor do jornal francês Excelsior para se tornar colaboradora permanente e morar em Paris, o
pai a convenceu a não ir, alegando que estava velho e doente e que necessitava de sua companhia. 15
O barão impede que a filha saia de perto do seu olhar vigilante e que conquiste sua independência
econômica, uma vez que o jornal pretendia contratá-la. Esta relação de domínio com a filha se mostra
forte e duradoura.
Em 1912, casa-se com o Marechal Hermes da Fonseca, então presidente da República. A partir de então,
a caricaturista vai aos poucos dando espaço para a primeira dama e, posteriormente, para a esposa do ex-
presidente. A política passa a envolver sua vida, que acaba sendo eclipsada pela imagem do Marechal e
pelas desventuras políticas pelas quais passa nos anos finais de seu governo até sua morte. Assim Nair é
apresentada nas biografias.
Ao se casar, a mulher trocava a autoridade do pai pela autoridade do marido, que passa a exercer sobre ela
a relação de poder que antes estava estabelecida com o pai. Mas no caso de Nair, o casamento não a
afastou do domínio paterno, visto que o barão interferia constantemente em sua vida. Na verdade, ele
estende essa relação de poder sobre o genro.
A proximidade entre Teffé e o pai atravessou sua infância, sua juventude, seu casamento e se perpetuou até sua viuvez. Quando o mandato do presidente Hermes acabou, o barão ofereceu o terreno de sua casa para que o Marechal e Teffé construíssem uma outra residência, exigindo, entretanto, que as casas fossem xifópagas: a casa de Teffé e do Marechal não poderia ter sala de jantar e cozinha para assegurar que estivessem constantemente juntos.16
Por estar em permanente vigilância do pai e à sombra de figuras masculinas fortes como o marido Hermes
da Fonseca, Nair foi protegida do mundo e permaneceu sempre dependente dos homens de sua família.
13 CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque, Op. Cit., p.62.14 LIMA, Hérman. Op. Cit. , p. 1272.15 RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins., Op. Cit., p. 32.16 AMARAL, Solange Melo do. Op. Cit., p. 78.
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Quando viúva, retornou para o lar paterno. Quando órfã não soube gerir os recursos herdados pelo pai e
passou por dificuldades financeiras durante anos, tendo morrido na pobreza.
Mas, mesmo sob todo esse controle, Rian sempre mostrou ter uma personalidade forte. Não foi para a
França, mas mesmo assim publicou vários de seus trabalhos lá. Mesmo depois do casamento continua a
fazer ilustrações. Na viuvez retornou a uma de suas grandes paixões, o teatro. Seu próprio casamento
poder ser visto como um ato de rebeldia, uma vez que o Marechal era um homem muito mais velho e
havia ficado viúvo recentemente.
Nair e o grotesco: Hermes da Fonseca nu (s/d). AMARAL, Solange Melo do. Discurso autobiográfico: o caso de Nair de Teffé. – Rio de Janeiro: Museu da
República, 2007, p.100
Rian não abandona sua arte, mas não consegue mais se separar da imagem de esposa de Hermes ao ponto
de ela mesma considerá-lo como o foco principal de sua história de vida, contada pela autora na
autobiografia “A verdade sobre a Revolução de 1922”. Infelizmente, dados sobre a caricaturista se tornam
raros a partir de 1926, quando abandona o cenário artístico. Em fins de 1959, retorna incentivada por
Herman Lima, que pediu à caricaturista que refizesse algumas de suas caricaturas cujos originais
encontravam-se impublicáveis. “Não escondo o pasmo, diante daquela verdadeira ressurreição de um
lápis endiabrado, que me parecia adormecido para sempre sob as cinzas do tempo, e o reparo me salta,
incontido e exato: - Mas, Dona Nair, isto é surpreendente! A senhora está recomeçando!”17 .
Nair sinaliza, em vários momentos, estar consciente da situação em que se encontrava, de dependência do
pai, algumas vezes de incapacidade de enfrentar alguns desafios cotidianos, para os quais não foi
preparada pela família. Por meio do sue trabalho, remunerada ou não, Rian expressa seu desejo de
17 LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1963, 3 V, p. 1288.
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liberdade, assim como muitas mulheres de sua época, mesmo que pertencentes a classes sociais
diferentes, como professoras e operárias, que estavam, aos poucos, conquistando respeitabilidade e
reconhecimento de sua competência profissional.
O espaço profissional limitado às mulheres se deve, segundo Bourdieu, a uma imposição social, à
dominação do homem sobre o mercado de trabalho, que estabelece critérios geralmente biológicos para
impor os limites profissionais entre homens e mulheres. Os argumentos se baseiam muitas vezes na
incapacidade da mulher em executar certas atividades, físicas ou intelectuais. A ordem social funciona
como uma imensa máquina simbólica tendendo a ratificar a dominação masculina sobre aquilo na qual
está fundamentada: na divisão sexual do trabalho, uma divisão mais estrita das atividades atribuídas a
cada um dos sexos.18
Sua condição feminina, assim, pesava sobre a qualidade da sua produção. Para muitos críticos, seu talento
era limitado. Resumia-se apenas a portrait-charges de personalidades da elite. No entanto, quando
analisamos a totalidade se sua obra, percebemos nela uma crítica sutil desta mesma sociedade. Suas
damas elegantes, seus smarts, suas ilustrações cotidianas realizadas para o livro de Otto Prazeres
“Petrópolis, a encantadora”, por exemplo, mostram um grande talento em retratar não apenas tipos
sociais, mas também aspectos inerentes do dito mundo moderno, da Belle-Époque, da maneira de viver a
agir da elite brasileira.
2. Hilde Weber e a charge política
Hilde Weber estudou e se formou na Escola de Artes Gráficas de Hamburgo. Com 17 anos, começa a
desenhar para os jornais Hamburger Anzeiger e Hamburger Fremdenblatt. Hilde foi um dos poucos
profissionais da época – entre homens e mulheres – com formação específica na área. Em 1933, veio para
o Brasil para encontrar o pai, Edmund Weber, oficial aviador, que havia mudado para cá após a I Guerra
Mundial. Tinha na época 20 anos de idade.
Especializou-se em charge política e contribuiu para revistas e jornais no Brasil durante muitos anos.
Começou trabalhado como chargista para os Diários Associados, ilustrando as reportagens de Rubem
Braga. Ainda na década de 1930 Hilde participou de um grupo de artistas paulistas denominados
“santelenistas”. Hilde também se especializou, mais tarde, na pintura de azulejos, geralmente usando
temas nacionais e populares. Na década de 40, participou de grupos de artistas e intelectuais com Mário
Pedrosa, Sérgio Milliet, Alfredo Volpi, Lívio Abramo, Zanini, Rebolo e Lasar Segall.
18 BOURDIEU. Pierre. La domination masculine. Paris - Éditions du Seuil, 1998, p. 15.
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Alfredo Volpi (à esq.), Paulo Rossi Osir (em pé) e Hilde Weber, em 1942Fonseca, Mariana. A alemã que desenhava a política do Brasil. Capturado em:
http://ladyscomics.com.br/tag/politica , acesso em 14/07/2012.
Na década de 50, Hilde naturalizou-se brasileira e mudou-se para o Rio de Janeiro. Trabalhou como
chargista na Tribuna da Imprensa até 1962. Mudou-se para São Paulo e passou a colaborar para o jornal
O Estado de S. Paulo, onde permaneceu até depois de se aposentar. Em 1960, recebeu o prêmio Seção
América Latina do Concurso de Caricaturas do World Newspaper Forum, pelas melhores charges
internacionais.
(...) a arte de Hilde distingue-se pela diversidade técnica, variação temática e experimentação de vanguarda, resultando numa dinâmica em nada trivial. Assim funde sensibilidade, rigor do traço, subjetividade lírica e consciência crítica – que é misto de ironia e de humor irreverente.”19
Hilde pertence a um universo diferente do de Nair. Sua infância foi marcada pela I Guerra Mundial e pela
separação dos pais. Criada por um casal de amigos da família e pela tia Claire, não teve uma vida de luxo,
não foi protegida, não teve uma vida familiar estável. Filha de pais separados possivelmente sofreu
discriminação e teve que buscar bem cedo sua independência.
Neste sentido teve como modelo feminino a tia, que era jornalista, artista plástica e crítica literária.
Incentivada pela tia Hilde dedicou-se bem cedo ao jornalismo e, aos 17 anos já publicava em revistas e
jornais. Aos 20 anos de idade já possuía uma independência e vivência de dar inveja a muitos homens
adultos de sua época (e mesmo da atualidade).
19 FONSECA, Maria Augusta. Hilde Weber: Lápis de Malícia Lírica . Disponível em http://www.museusegall.org.br/mlsItem.asp?sSume=21&sItem=233, acesso em 21/08/2011
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A jovem ilustradora trabalhava para a revista de uma grande companhia de navegação, que preferia pagar seus colaboradores com passagens em vez de dinheiro. Hilde conheceu desta maneira alguns países da Costa do Mediterrâneo e, aproveitando para deixar a Alemanha que assistia ascensão do Nazismo, veio para o Brasil.20
Versátil, Hilde era muito habilidosa com aquarela. Ficou conhecida pelas ilustrações que fez para revistas.
Entre os anos de 1933 e 1934 desenhou capas para a revista A Cigarra, revista publicada na cidade de São
Paulo entre 1914 e 1975, fundada por Gelásio Pimenta e em 1924 passou a fazer parte dos Diários
Associados, que também publicava o Cruzeiro, onde Hilde também trabalhou.
A Cigarra, 09/12/1933. Hilde Weber. Disponível em http://designgraficobrasileiro.wordpress.com/alema/hilde-weber/attachment/
1270031754/, acesso em 20/05/2012.
Mas foi na charge política que ela se destacou tornando-se uma referência na imprensa nacional. Seus
desenhos faziam uma leitura crítica da política brasileira e podem ser considerados um retrato bem
humorado de fatos importantes que nortearam a história do Brasil até o final da década de 1980.
Hilde começou a produzir caricaturas políticas para o Partido Constitucionalista, na campanha contra
Vargas. Até então, não tinha nenhum conhecimento sobre política apenas seguia as instruções do partido
que lhe encomendava os desenhos, a maioria deles de Getúlio Vargas. Mas foi na Tribuna da Imprensa,
20 COLLUCI, Arlene. No traço de Hilde, a vida política do Brasil. Mulherio. São Paulo, n. 30, jul. 1987, p. 12
12
com Carlos Lacerda que ela passa a se destacar neste tipo de produção. Seu alvo constante, claro, era
novamente Vargas.
Vargas e Lourival Fontes, chefe da censura do Estado Novo, nomeado para a Casa Civil em 1952.WEBER, Hilde. O Brasil em Charges (1950 – 1985). São Paulo: Circo Editorial, 1986, p. 11.
Hilde Weber pode ser considerada uma precursora do jornalismo ilustrado no Brasil. Suas charges não
eram apenas críticas, mas, também, relatos sobre acontecimentos políticos da época. O jornalismo
ilustrado ou desenhado antecedeu o jornalismo em quadrinhos. O jornalismo em quadrinhos surgiu como
uma forma diferente de comunicação. Ele ganhou destaque em 1992, quando Art Spiegelman recebeu o
prêmio Pulitzer por sua obra Maus, o livro ficou conhecido como uma das primeiras experiências de
reportagem em quadrinhos. Mas foi em 1996, com a publicação de Palestina, que Joe Sacco criou a
expressão “Jornalismo em Quadrinhos” (JQ).
Dum desenho extremamente sintético, despojado de todo de qualquer superfluidade, dum grafismo profundamente subjetivo, Hilde chamou logo a atenção do grande público para suas sátiras de tremenda virulência contra o governo, vincadas dum toque de acidez que vai fundo na sensibilidade do leitor, por mais que, em aparência, haja um pouco de riso em sua percepção.21
21 LIMA, Hérman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1963, 4 V.p 1601.
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LIMA, Hérman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1963, 4 V, p. 1602
O Jornalismo ilustrado, o foto jornalismo e o jornalismo em quadrinhos exigem do artista uma percepção
ampla da realidade e o compromisso com a veracidade da informação a ser divulgada pelo veículo de
comunicação a ser utilizado. Hilde possuía esta percepção. A chargista considerava-se acima de tudo uma
jornalista e era criteriosa na produção de seus desenhos que considerava um trabalho sério. “Um trabalho
de seleção e eliminação”.22
O que Hilde persegue é a verdade. E de há muito compreendeu que a verdade é simples. Daí a partir sempre do despojamento cada vez maior do desenho, estranho despojamento que pé realmente acrescentação. Seus primeiros esboços são aparentemente mais ricos que o trabalho definitivo, este surgido após uma série infindável de variações. Mas essa riqueza inicial é ilusória. Quanto mais Hilde despe o desenho, tanto mais, em verdade, o enriquece.23
Se uma das características de sua arte era a estabilidade esta não foi presente na sua vida pessoal. Casou-
se três vezes, teve um filho, mas não conseguia permanecer casada. Primava, acima de tudo pela sua
independência, nunca conseguiu viver à sombra de um homem ou submetida a ele. Uma mulher atípica
em sua época e que marcou a história da caricatura e da charge no Brasil. Hilde passou por duas guerras
mundiais. Sendo alemã é de acreditar que, mesmo não estando em sua nação de origem, tenha colhido
frutos amargos do nazismo e da II Guerra Mundial. De temperamento reservado era, à sua maneira, uma
22 LIMA, Hérman. Op. Cit. , p 1604.23 Idem.
14
desbravadora. Viajava sozinha, conhecia lugares novos e exóticos, não se intimidava pela presença
majoritariamente masculina no jornalismo.
Na sua profissão recebeu o reconhecimento e o respeito de seus pares e não teve muitas dificuldades em
se firmar na carreira por pertencer ao gênero feminino. Em entrevista afirmou que ser mulher nunca lhe
atrapalhou. “Muitas vezes, enquanto os jornalistas eram impedidos de circular nos plenários da Câmara e
do Senado, ainda na velha Capital, eu não era molestada: simplesmente me sentava ao lado dos políticos e
os desenhava." 24
Conclusão
De diferentes origens sociais, estas duas mulheres foram lembradas nas páginas da História da Caricatura
no Brasil, de Héman Lima. O pesquisador também cita outras “artistas do lápis” como Iolanda Pongetti,
Irene e Arteobela, cujas caricaturas e charges foram um grande sucesso na imprensa periódica brasileira.
Infelizmente sobre estas mulheres pouco se tem registrado. À exceção de Nair e Hilde, as demais artistas
possuem registros mínimos de seu trabalho e de sua passagem pela profissão, a maior parte deles no livro
de Hérman Lima. É possível afirmar, então, que estas mulheres têm em comum o silêncio que envolve
sua vida profissional e sua arte.
Semelhanças e diferenças marcam a trajetória de vida e profissional destas duas mulheres. Nair, dama da
sociedade teve um infância e juventude marcadas pela proximidade com o poder e pela superproteção de
um pai dominador. Wilde teve uma vida de privações e não pode contar com o apoio da família, dividida
após a I Guerra. Desde bem cedo teve que depender apenas de si mesma. Enquanto que na vida de Nair as
figuras fortes que influenciaram duas decisões pessoais e profissionais foram homens, Wilde teve na tia
Claire sua maior incentivadora, possivelmente responsável pelas suas escolhas profissionais.
Na história de vida das duas personagens, no entanto, nota-se a ausência da figura materna. Nair mal se
refere à mãe em sua biografia, nem mesmo seu nome cita. Hilde vem para o Brasil atrás do pai, mas não
há relatos sobre sua relação com a mãe apenas a tia, cujo sobrenome não é citado. O fato de ter sido
criada por amigos da família pode indicar para o fato da mãe ter falecido ou abandonado a família após o
divórcio.
Profissionalmente as duas mulheres tornaram-se notáveis, cada uma a sua forma. Nair não fazia charges
políticas mas não perdeu oportunidade de alfinetar com suas caricaturas desafetos do marido, Hermes da
Fonseca, como foi o caso de seus desenhos retratando Rui Barbosa. Suas caricaturas femininas, 24 COLLUCI, Arlene. Op. Cit., p. 13.
15
especialmente, nos permitem adentrar ao espaço reservado da elite. Mulher moderna dentro dos padrões
desejados pela aristocracia, Nair encontrou na arte uma forma de libertação mas não conseguiu se
profissionalizar o que a impediu de interagir mais intimamente com o meio jornalístico. No entanto,
entrou para vanguarda da caricatura como a primeira mulher a publicar seus desenhos.
Hilde viu na profissão de jornalista gráfica uma forma de conquistar sua emancipação. Circulou
abertamente entre os meios artísticos, aprimorou seu traço e se tornou uma profissional respeitada. Seu
trabalho é um registro da história politica brasileira, especialmente entre os anos de 1950 a 1960.
Enquanto Nair passa seus últimos anos de vivendo com dificuldade e privação, Hilde construiu uma
carreira sólida que a permitiu encerrar sua vida e sua carreira com relativo conforto.
Hilde e Nair são dois paradoxos da mulher moderna. Tão diferentes e com trajetórias tão distintas elas
tem em comum, principalmente, o amor pela arte e a coragem de levar a público seu talento e sua
genialidade.
REFEFERÊNCIAS
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