monografia kierkegaard
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SEMINÁRIO MAIOR ARQUIDIOCESANO DE BRASÍLIA NOSSA SENHORA DE
FÁTIMA
NAILTON ALMEIDA DE ARAUJO CORREA
SUSPENSÃO TELEOLÓGICA DA MORAL EM TEMOR E TREMOR DE
SØREN KIERKEGAARD
BRASÍLIA
2012
NAILTON ALMEIDA DE ARAUJO CORREA
A SUSPENSÃO TELEOLÓGICA DA ÉTICA EM TEMOR E TREMOR DE
SOREN KIERKEGAARD
Monografia apresentada ao curso de Filosofia
do Seminário Maior de Brasília como
requisito parcial para a graduação da
disciplina de Filosofia.
BRASÍLIA
2012
NAILTON ALMEIDA DE ARAUJO CORREA
A SUSPENSÃO TELEOLÓGICA DA MORAL EM TEMOR E TREMOR DE SØREN
KIERKEGAARD
Trabalho de conclusão de curso
apresentado como requisito parcial para a
graduação em Filosofia no Seminário
Maior de Brasília.
APROVADO: _____/_____/_____
EXAMINADORES:
------------------------------------------------
Prof. Orientador: Olyver Tavares de Lemos
-------------------------------------------------
RESUMO
Este trabalho apresenta a suspensão teleológica da moralidade segundo Kierkegaard que ele
desenvolve em sua obra Temor e tremor. Por meio de pesquisa bibliográfica buscou-se refletir
e compreender como acontece essa suspensão. E a crítica que contém à filosofia puramente
racional e especulativa. Para tanto, colocou-se em destaque a interpretação que Kierkegaard
faz da existência em três estádios distintos: estético, ético e religioso. Ficou claro que para o
dinamarquês existe uma suspensão teleológica da moralidade. E tal processo só é possível
mediante o absurdo paradoxo da fé. O indivíduo descobre que o dever para com Deus supera
todo dever moral.
Palavras-chave: Estádios da existência. Indivíduo. Fé. Paradoxo. Absurdo. Suspensão
Teleológica.
RESUMEN
En este trabajo se presenta la suspensión teleológica de la moralidad de acuerdo con
Kierkegaard desarrollada en su libro Temor e temblor. A través de la investigación
bibliográfica se ha buscado reflejar y comprender cómo sucede esa suspensión. Y la crítica
que contiene a la filosofía puramente racional y especulativa. Por lo tanto, se hizo hincapié en
la interpretación que hace Kierkegaard de la existencia en tres etapas distintas: estético, ético
y religioso. Está evidente que para el danés existe una suspensión teleológica de la moralidad.
Y este proceso sólo es posible a través de lo absurdo paradoja de la fe. El individuo descubre
que el deber para con Dios sobrepasa todo deber moral.
Palabras-clave: Estadios de la existencia. Individuo. Fe. Paradoja. Absurdo. Suspensión
teleológica
.
Sumário
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8 1 A VIDA DE KIERKEGAARD E SUA RELAÇÃO COM OS TRÊS ESTÁDIOS DA
EXISTÊNCIA ........................................................................................................................... 12
1.1 Kierkegaard: O rigor moral do luteranismo dinamarquês e o pecado do pai ............. 12 1.2 A angústia da escolha de si mesmo no matrimônio e o rompimento do noivado ...... 14 1.3 Kierkegaard e a crítica ao sistema hegeliano .............................................................. 16 1.4 Comunicação indireta e pseudonímia ......................................................................... 18 1.5 Os estádios da existência ............................................................................................ 21
1.5.1 O Estágio estético .................................................................................................... 21 1.5.2 O estágio ético ......................................................................................................... 22 1.5.3 O Estágio Religioso ................................................................................................. 23
2 A SUSPENSÃO TELEOLÓGICA DA MORAL E SUAS IMPLICAÇÕES SEGUNDO
TEMOR E TREMOR ................................................................................................................. 27 2.1 Primeiras aproximações à obra Temor e tremor ........................................................ 27 2.2 Os dois movimentos da fé: a resignação infinita e o salto paradoxal ........................ 31
2.3 A suspensão teleológica da moral, segundo Kierkegaard ......................................... 35 CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 40
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .......................................................................................... 42
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INTRODUÇÃO
Acercar-se da filosofia de Kierkegaard já é por si mesmo, uma aventura que carece de
ousadia. Ele extrapola a esfera do comum e faz seu leitor admirá-lo sem reservas ou
experimentar aquela estranha sensação de quando se quer identificar um determinado objeto,
mas, dele só se pode ver, por hora, a informe penumbra. O modo como aborda a existência
humana coloca-o no rol dos grandes filósofos da humanidade. A tal ponto que seus escritos
são considerados preconizadores do que comumente veio ser denominado existencialismo: a
filosofia da existência.
Søren Aabye Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813 na cidade de Copenhague,
Dinamarca. Tanto seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1834), quanto sua mãe, Anne
Sorensdatter Lund (1768-1834), procediam do oeste da Jutlândia, interior da Dinamarca.
Antes de terminar o tempo de luto pela morte da primeira esposa, Michael já seduzira e
violara Anne que, então, era sua empregada. Ao nascer Søren – o último dos sete filhos –
eles já haviam se instalado em Copenhague, onde Michael Pedersen, após alcançado fortuna
no comércio de roupas, desfrutava dos benefícios oriundos do sucesso que obtivera com suas
rendas financeiras.
Quando criança, com doze anos de idade, o pai de Kierkegaard havia sido pastor de
ovelhas nas planícies da Jutlândia. Certa feita, por conta das condições precárias em que se
encontrava na ocasião, além do peso que lhe causava o cuidado do rebanho, oprimido pela dor
do frio, da fome e da solidão, amaldiçoou Deus. A lembrança de tal episódio ele o levará
consigo, lutando interiormente por obter o perdão Daquele a quem amaldiçoara. O sentimento
de culpa por conta de tal evento bem como a visão melancólica e trágica do cristianismo
luterano que esse homem possuía influenciou determinantemente a formação da
personalidade de Kierkegaard e do seu pensamento.
Esse cristianismo duro, sombrio e melancólico, pesado e tristonho, exigente ao máximo,
envolto numa atmosfera de maldição que Michael impunha aos seus forjou o ambiente
familiar onde Søren nasceu e foi educado. Tudo isso como fruto da atormentadora culpa
referente ao episódio ocorrido nos campos da Jutlândia. Aos oitenta e dois anos, esse homem
ainda não conseguia reconciliar-se com o passado e o Deus no qual cria.
Depois do pai, a outra grande influência na vida e pensamento de Kierkegaard é Regina
Olsen, a jovem com quem assumiu o compromisso do noivado rompido 11 meses depois. A
essas duas figuras, o dinamarquês faz constantes referências em seus escritos. E os escritos
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kierkegaardianos possuem uma característica impar. Falam da existência mesma dele. Suas
angústias, melancolias, decepções, esperanças, questionamentos que são fruto da formação
paterna e das impressões que lhe deixaram o rompimento do noivado. Sem levar em conta a
íntima relação que há entre a vida e o pensamento de Kierkegaard, correr-se-á o risco de
interpretar suas ideias de forma leviana e tendenciosa.
Na contramão das filosofias que elaboravam sistemas racionais que pretendiam explicar
todos os eventos da história e da vida humana de forma objetiva, Kierkegaard se posiciona
categoricamente contra, afirmando e reafirmando que me primeiro lugar vem o indivíduo em
sua existência particular e singular. A razão não tinha poder suficiente para explicar tudo
dentro de categorias lógicas. O indivíduo possui uma subjetividade que foge completamente
às determinações sistemáticas e metodológicas da racionalidade.
Sua inimizade declarada em relação a todo sistema filosófico ele nunca escondeu.
Preocupou-se em primeiro lugar com o indivíduo enquanto ser que existe e é possuidor duma
subjetividade maior do que as circunscrições objetivas dadas por qualquer teoria,
sistematizada em parâmetros puramente racionais e desvinculados da existência enquanto tal.
Seu grito existencial ecoa o seu “si mesmo” do qual ele se apropriou com tanta autoridade.
Evidencia seu itinerário de compreensão daquilo que compreendeu como sendo uma
existência autêntica.
Do púlpito de sua vida, esse enigmático pensador do “indivíduo singular”; da
“subjetividade”; da existência; do “instante”; da “escolha”; da angústia; do “tornar-se cristão”;
dos “estádios no caminho da vida”; do “salto da fé”; do “absurdo”; do “paradoxo”; da
“suspensão teleológica da moralidade” de “Deus” e outros variados temas tão candentes – daí,
ele pregou seus maiores sermões. Realizou o gesto do semeador. Lançou sementes. E até
previu que os frutos que adviriam das mesmas, só seriam colhidos mais tarde.
Kierkegaard escreveu abundantemente. Seus escritos contemplam dezenas de volumes e
milhares de páginas com denso teor filosófico, teológico, psicológico, radiografando de modo
único o contexto histórico em que viveu. Mas ao mesmo tempo, reflete e evidencia verdades
tangentes a todo indivíduo de todas as épocas. Por isso, no desenvolvimento do presente
trabalho, isso será levado em conta.
Nesse sentido, a intenção principal do presente trabalho é refletir a ideia da suspensão
teleológica da moralidade desenvolvida por Kierkegaard em sua obra pseudônima Temor e
tremor assinada por Johannes de Silentio. Por esse motivo, diante de um escrito
kierkegaardiano, além da ousadia, é preciso ter paciência, pois, Kierkegaard não filosofa em
sentido linear. O que é percebido pelo recurso à forma indireta que utiliza para escrever em
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determinadas obras. Sendo um filósofo assistemático ele se apresenta marcadamente como
um pensador emblemático. Importa sempre em primeiro lugar o indivíduo, a existência que,
segundo seu pensar, extrapola todo sistema filosófico elaborado com intuito de oferecer
respostas acabadas. De situar o humano dentro de categorias sitiantes e reducionistas.
Sua obra é semelhante a uma tela pintada que permanece sem moldura, cujo avesso
também possui status de arte e importância. Há que se ter prudência na tarefa de lê-lo. Ele
escreve, pisando o chão de sua época histórica, mas com o olhar na existência individual do
ser humano entendido e interpretado estética, ética e religiosamente, como foi exposto
anteriormente. Isto quer dizer que além do texto, do contexto e dos instrumentais
interpretativos disponíveis para analisar seu pensamento, é necessário, quanto possível,
raciocinar, duvidar, perguntar, crer com ele: “Kierkegaardear”. Ele expressa em seus escritos
não aquilo que supõe, mas, aquilo que vive e é enquanto indivíduo possuidor de existência e
as implicações advindas do fenômeno “existir”.
Kierkegaard é, sem dúvida, ametódico. Nunca teve pretensão de elaborar um sistema
filosófico que respondesse a inúmeros problemas e questões. Escreve narrando. A ‘existência
pessoal’ é a sua oficina de labor diário de onde ele extrai, mediante apurada reflexão, as
grandes conclusões a respeito do humano, do divino e do terreno.
Assemelha-se, na genialidade, aos grandes escritores e romancistas que o precederam.
Por isso, entrou em atrito com todos aqueles que não o identificavam como pensador
filosófico – o que não o afetava, pois negava ter o status de filósofo –, mas, apenas
reputavam-lhe o status de escritor literário. De fato, Kierkegaard, foi um incompreendido por
apresentar compreensões a cerca do homem, do mundo e de Deus que destoavam
escandalosamente do convencional.
Sua obra Temor e tremor foi publicada em 1843. O autor reconta um evento acontecido
na vida do personagem bíblico Abraão. E a partir daí desenvolve toda uma interpretação da
conduta ética do ser humano frente a si mesmo e principalmente em relação Deus,
descrevendo como se dá a passagem de um estádio para outro. Ele entende que há momentos
tão cruciais na história humana, que é preciso realizar uma suspensão teleológica da ética em
vista da realidade da fé. Que diante de tais eventos a fé assume surge como único recurso
plausível ainda que, permanecendo absurdo e paradoxo, pois, não pode ser explicada.
Assim, a proposta do presente trabalho não tem pretensão de esmiuçar em detalhes os
grandes eventos da vida de Kierkegaard que redundaram na produção da obra citada. Os
elementos de que se vale o dinamarquês para a elaboração de Temor e tremor, remontam a
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eventos de sua vida e a determinante relação – eivada de estranhamentos e proximidades –
tida com seu pai e Regina Olsen.
Dessa forma, o capítulo 1 abordará a figura de Kierkegaard a partir do esquema que
perpassa toda sua obra que é o dos estádios da existência: o estético, o ético e o religioso,
explicando o recurso da comunicação indireta de que se valia o dinamarquês para deixar
evidente tal esquema. Serão pontuadas a oposição ao sistema hegeliano e a Igreja Luterana da
Dinamarca e a apresentação dos três estádios com ênfase nos dois últimos que preparam a
abordagem capítulo final. O capítulo 2 que encerra o trabalho, abordará mais detidamente a
obra Temor e tremor em seus aspectos gerais apontando para a reflexão de Kierkegaard no
Problema 1 que trata da suspensão teleológica da moralidade.
Feitas essas primeiras aproximações – diga-se de passagem, bem simples – passar-se-á
para a questão fundamental desse trabalho: a suspensão teleológica da moralidade em Temor e
tremor. Mais esclarecimentos serão dados adiante, tendo em vista que algumas lacunas foram
deixadas a respeito da vida de Kierkegaard e as grandes influências afetivas que sofreu.
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1 A VIDA DE KIERKEGAARD E SUA RELAÇÃO COM OS TRÊS ESTÁDIOS DA
EXISTÊNCIA
Logo no início da edição Kierkegaard da coleção os pensadores, na parte intitulada
Vida e Obra, pode se ler o seguinte:
Régis Jolivet afirma que o pensamento de Kierkegaard formou-se, “não
tanto por assimilação de elementos estranhos, mas sobretudo através de
uma luta de consciência, cada vez mais intensa e cada vez mais exigente,
perante as condições, não já da existência em geral, mas do seu próprio
existir”. Ainda segundo Jolivet, a filosofia de Kierkegaard é precisamente
ele mesmo, e ele mesmo, não fortuitamente e, de certo modo contrariado,
mas ele mesmo voluntária e sistematicamente, a tal ponto que o “existir
como indivíduo” e a consciência desse existir chegaram, a ser, para ele,
condição absoluta da filosofia e até sua única razão de ser. (1979, p. 10)
As ideias e conceitos contidos na obra de Kierkegaard traduzem as experiências de seu
itinerário existencial. Por essa razão faz-se necessário conhecer mais detidamente, alguns
pontos capitais de sua história para, assim, adentrar-se com mais segurança e menos
desavisado em seu pensamento escrito.
Sua obra – que é sua existência mesma feita reflexão em busca da verdade – pode ser
abordada à luz daquilo que ele mesmo denominou ‘estádios no caminho da vida’. Ou seja, a
existência a seu ver acontece de três modos bem distintos interpretados como: estádio
estético, estádio ético e estádio religioso. Segundo Farago (2009 p. 120): o estádio estético em
que o homem se abandona a imediatidade, o estádio ético em que se submete à lei moral (o
geral, como se diz), e o estádio religioso em que o homem, abraçando a eternidade, se deixa
dirigir pelo amor, para além do bem e do mal.
Furtar-se dessa estrutura que perpassa toda a sua obra é negar a íntima conexão entre
sua vida e seus pensamentos sejam eles filosóficos, teológicos ou psicológicos.
1.1 Kierkegaard: O rigor moral do luteranismo dinamarquês e o pecado do pai
A primeira grande figura que está por trás desse esquema triádico da existência
elaborado por Kierkegaard é o seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard. Esse homem fora
doutrinado sob a batuta da Igreja luterana da Dinamarca, a igreja estatal, e, fortemente
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influenciado pela comunidade dos irmãos morávios, de acentuadas tendências pietistas. Desse
modo, toda a formação cristã exageradamente escrupulosa quanto ao pecado e, notadamente,
quanto à sexualidade que ele recebera, encontra no filho mais novo – Kierkegaard – seu
herdeiro e depositário exclusivo.
Não se pode negar que essa relação de Søren com o pai foi de fundamental importância
em sua vida espiritual e intelectual. A educação luterana severa e excêntrica recebida deste
iniciou-lhe na dialética da qual Kierkegaard valeu-se com tanta argúcia. Grande parte da
melancolia e do sentimento de culpa destilada nos escritos kierkegaardianos, é herança
inegável do temperamento paterno. Valls endossa e complementa isso ao dizer que: “Nas
viagens pelo mundo da fantasia, da dialética e da melancolia, deu-se a formação intelectual do
jovem Kierkegaard. Assistiu e, mais tarde, participou das discussões teológicas entre seu pai e
os poucos amigos que frequentavam a casa”.
Michael Pedersen representa a próprio luteranismo na vida de Søren. O pai o insere
nessa espécie de religiosidade punitiva, sentenciosa, mas que, apesar de tudo preconizava a
recompensa eterna.
Até os vinte anos, a vida de Kierkegaard não contava com nenhum grande evento que
lhe pudesse ter causado sérias mudanças. Seu pai era sua escola principal. Seu instigador da
imaginação. Seu referencial. Michael tinha pretensões – não poderia ser diferente – religiosas
para o filho, pois o queria ver formado para ser pastor luterano. Kierkegaard, indeciso quanto
à carreira que haveria de seguir, aplica-se, entretanto, com apatia aos estudos teológicos que o
orientavam para o futuro ministério pastoral.
É um período de crise interior para o jovem Søren. Começa a interessar-se mais por
outras disciplinas e estudos. Distancia-se do pai e do cristianismo de então. Por hora,
abandona as práticas religiosas, entregando-se a uma vida de esbanjamento e prazeres típica
do estádio estético onde o indivíduo busca somente viver do momento, fugindo de toda
responsabilidade que lhe acarrete realizar escolhas.
Desperta-lhe um desejo intenso de encontrar uma ideia, uma verdade pela qual pudesse
viver em absoluto e que ocupasse toda a sua vida. Grande parte do tempo que deveria
empregar nos estudos teológicos ele dedica à literatura, povoando assim, ao máximo o seu
gênio imaginário tão fértil e aguçado.
Moralmente, Kierkegaard apresentava um caráter difícil. Mesmo as relações parentais
não são fortes o bastante para estabelecer um sentimento verdadeiro de pertença e
responsabilidade. O pai, por sua vez, assistia consternado a essa mudança tão brusca do filho.
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A comunicação entre ambos ficou insustentável a ponto de em 1837 separarem-se
amistosamente. Søren sairia de casa para morar em domicilio próprio, porém, sustentado pelo
pai.
Mas, apesar da liberdade que desfrutava em decorrência dessa pretensa separação, o
jovem Søren continuava atormentado por dentro, sofrendo um sentimento de morte que ele
mesmo ao descrever em seu Diário – e repetidas vezes -, utilizava a expressão de São Paulo:
“um espinho na carne”. Não se sabe com exatidão o que ele queria dizer com isso. Contudo,
já era indício de tudo aquilo que ele iria desenvolver de maneira filosófica, teológica e
psicológica em seus escritos a respeito da existência, do indivíduo, da angústia, do desespero,
da morte, da fé, do cristianismo à luz dos estádios estético, ético e religioso que desenvolvera
e cujo esquema fundamenta toda a sua obra.
Em 1838, Kierkegaard reconcilia-se com seu pai. Foi nessa época que Michael revelou-
lhe as verdadeiras circunstâncias que deram origem à família numerosa. Revelou que
engravidara Anne antes de desposá-la. Tinha consigo que a família jazia sob um castigo de
Deus por conta de tais pecados cometidos no passado. A esse fato, Kierkegaard dá o nome de
“O grande terremoto”. E não é de estranhar, pois, para Søren, o pai representava o arquétipo
da moral e da pureza religiosa. “Descobriu, então, que sob a grande figura paterna, tão
imponente e tutelar, se ocultava uma pessoa frágil, um pecador. Compreendeu que a
penitência se havia obsessivamente apoderado da alma do pai, e que o remorso coloria com
essa luz trágica uma fé que, no entanto, prometia o júbilo”. (FARAGO, 2009, p. 27)
A esse acontecimento basilar da vida de Kierkegaard que está centralizado na figura do
pai, segue-se outro ainda mais intenso e decisivo do qual é impossível furtar-se. Na senda dos
estádios da existência essa é uma parada obrigatória visto que uma vez mais e sempre, o
dinamarquês se afigura como protagonista.
1.2 A angústia da escolha de si mesmo no matrimônio e o rompimento do noivado
Kierkegaard resolve por fim, colocar sua vida em ordem. A mãe, o pai, e vários irmãos
já haviam falecido. Resolve retomar os estudos teológicos e seguir o desejo do pai de que
fosse pastor. Em 1841 pronunciava seu primeiro sermão num igreja de Copenhague e no
mesmo ano apresentava sua tese doutoral Sobre o Conceito de Ironia.
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Nesse período de atenção mais voltada para a vida religiosa, Søren alenta em seu
coração o desejo pelo matrimônio. Eis que entra em cena agora a figura de Regina Olsen. Por
ela, Kierkegaard se apaixonou. Com ela firmou o compromisso do noivado – um ano antes de
defender sua tese na universidade. Tal compromisso para a época já era um grande prenúncio
do matrimônio. Entretanto, 11 meses depois, Kierkegaard rompe o noivado com Regina,
alegando que não seria capaz de levar adiante esse tipo de união, em vista de uma suposta
vocação filosófica e religiosa.
Na verdade, o que está no âmago dessa ruptura pode ser entendido a partir da maneira
como Kierkegaard sempre entendia a existência, ou seja, à luz dos três estádios existenciais.
Entendimento que era fruto de seu próprio existir. Casar-se com Regina seria assumir a
dimensão de permanência, de duração terrestre contida na dinâmica característica da
instituição matrimonial: existir eticamente. Assentar a vida em bases moralmente aceitas e
convencionadas pela vida na sociedade, fazendo disso um telos existencial. Porém,
Kierkegaard sabia-se estético o suficiente para não suportar algo de tal sorte, pois, estava para
o instante, o momentâneo, a dimensão temporal. Escolher a existência ética equivaleria a
fazer a escolha de si mesmo, como se explicará adiante. Coisa para a qual não estava
preparado. Por isso, rompe o noivado.
Regina torna-se, a partir de então, na vida do jovem Søren, uma presença indelével da
qual falará incansavelmente em seus escritos. Ela segue o curso de sua vida e acaba casando-
se posteriormente. Entretanto, Kierkegaard permanece só. E como entender tal decisão? O que
de fato o levou a romper seu noivado com Regina?
Após esse episódio, viaja em outubro desse mesmo ano para Berlim, mas, insatisfeito
com a experiência que lá tivera, retorna para Copenhague em março de 1842. Esse é o ano em
que escreve uma de suas mais importantes obras, A alternativa. Inicia-se assim a partir de
então, a produção escrita de Kierkegaard, por sinal, muito fecunda. As obras que seguirão:
Diário do Sedutor, Culpado? Não culpado?, Temor e tremor e a Repetição, todos de 1843,
ele atribui à influência recebida do seu pai e à experiência de seu noivado com Regina. Está
de posse, portanto, da consciência do seu gênio para a reflexão e as implicações advindas das
ideias que havia elaborado a respeito da existência humana. Levará adiante suas convicções
filosóficas e religiosas, defendendo a bandeira da primazia do “Indivíduo singular” com sua
inegável “subjetividade” e a necessidade absoluta que esse mesmo indivíduo tem de realizar a
“escolha” entre o mundo e Deus.
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Por conta disso, posicionou-se enfaticamente contra todo sistema filosófico. E aqui
entram em cena as oposições que Kierkegaard fez ao pensamento objetivamente racionalista
de Hegel que tanta influência havia causado.
1.3 Kierkegaard e a crítica ao sistema hegeliano
Na Europa de modo geral e inclusive na Dinamarca do tempo de Kierkegaard, as obras
de Hegel gozavam de grande prestígio. Esse filósofo alemão elaborou um grandioso sistema
filosófico cujas influências eram inegáveis. Opositor declarado da filosofia sistemática, Søren
manifestou sem reservas as suas opiniões principalmente em relação ao pensamento
hegeliano.
A grande distinção entre Kierkegaard e Hegel encontra-se no fato de que, para o
dinamarquês, o eixo condutor de todo o seu pensamento é o Indivíduo – que não cabe nas
categorias de nenhum sistema. Para o danês, fora da “existência” não há filosofia, pois é no
concreto do existir que o Indivíduo vive sua subjetividade mediante aquilo que para
Kierkegaard é de importância capital em sua reflexão, isto é, a “escolha”. Sobre esse tema da
escolha encontra-se o seguinte comentário na mesma edição Kierkegaard da coleção os
pensadores, na parte intitulada Vida e Obra:
A noção de “escolha” constitui uma das ideias fundamentais da filosofia de
Kierkegaard. Ela seria o próprio núcleo da existência humana. Para
Kierkegaard, o ponto de vista hegeliano, segundo o qual a existência humana
se desenvolve logicamente no interior de esquemas conceituais, não constitui
apenas um erro intelectual, mas, sobretudo, uma tentativa de dissimular os
verdadeiros fatos e rejeitar as responsabilidades implicadas pela escolha.
(1979, p. 16)
Sua querela com Hegel é enfática, visto que também os ensinamentos cristãos de sua
igreja estavam manifestamente influenciados pelas ideias filosóficas do alemão. Dai, então,
surge outro embate na vida de Kierkegaard. Giles pontua que:
“Hegel pretendia explicar racionalmente todos os mistérios do Cristianismo,
o que levaria a secularização total da fé. Contra essa tentativa Kierkegaard se
levanta, em nome da apropriação do Cristianismo pelo Individuo, numa
atitude de fé que só mediante aquela apropriação conseguirá realizar a
paixão do Infinito, que é a subjetividade”. (1975, p. 8)
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Diferente de Niestzche, que viu em Cristo o único e último “cristão” autêntico, mas,
fracassado na cruz, criticando negativamente o cristianismo de sua época, Kierkegaard, por
sua vez insurge-se positivamente contra o cristianismo que era ensinado na igreja luterana do
seu tempo, propondo o que acreditava ser o “cristianismo de fato”.
Kierkegaard ataca publicamente a igreja luterana da época por vê-la subvertida pelos
valores do mundo e não os do Reino de Cristo. Firmado em suas certezas do que acreditava
ser um cristão de verdade ele posiciona-se categoricamente contra uma igreja
institucionalizada cujo corpo eclesiástico – responsável pelo zelo da salvação das almas –
transformava-se em meros funcionários do sagrado. Contrapunha-se a uma igreja que
discursava sobre Cristo de uma maneira muito racional, deturpando o verdadeiro sentido da
mensagem deixado pelo mesmo Cristo. O modo como sua igreja comportava-se no mundo
estava em contraste com os autênticos ideais de seguimento radical propostos nos Evangelhos.
O luteranismo havia se distanciado acintosamente de suas intenções primeiras, assumindo
posições filosóficas e teológicas que o tornava cada vez menos capaz de anunciar as verdades
de Cristo. Ainda na mesma edição Kierkegaard da coleção os pensadores, se diz que:
Por essa razão, toda a filosofia de Kierkegaard centraliza-se no significado e
nas complexas implicações do fato de se ser cristão. Toda a sua vida
constituiu uma intensa experiência da contraposição entre aquilo que
considerava ser o cristianismo em seu significado mais profundo e as
roupagens exteriores com as quais se revestia a Igreja luterana de seu tempo.
Para Kierkegaard, a vivência mais profunda do cristianismo é a vivência e a
certeza da fé. (1979, p. 21)
Em vista de toda essa insatisfação com a Igreja Luterana e do cristianismo como um
todo, Kierkegaard tinha a seu favor o dom da escrita. Agudo pensador forjado na convivência
com o pai, ele lança mão desse recurso e opõe-se incansavelmente a tudo o que desvirtuava o
indivíduo da verdadeira religião cristã e da grande responsabilidade de tornar-se cristão de
fato e existir como tal.
Mas como Kierkegaard comunicava suas ideias às pessoas de seu tempo? Que recursos
utilizava para fazer chegar a seus leitores as conclusões a que havia chegado sobre o indivíduo
e a existência, sobre a fé e o cristianismo e tantos outros temas? Se ele se opunha a toda
sistematização filosófica que tentava explicar tudo dentro de uma racionalidade puramente
objetiva e que atingia até mesmo a religião cristã, então, deveria valer-se de uma linguagem
que valorizasse em primeiro lugar a subjetividade de quem lesse suas obras.
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1.4 Comunicação indireta e pseudonímia
Tudo que concerne às verdades da existência de cada indivíduo deve ser pensado na
dimensão subjetiva. Por isso, Kierkegaard afirma que a esse respeito não era possível uma
comunicação direta.
Kierkegaard não se propõe a ambiciosa missão de construir um sistema que
transmitisse o fundamento exclusivo da sabedoria. A sua tarefa e a sua
missão serão muito mais humildes: mostrar que uma vez um homem viu o
que significa existir. É nesse sentido que Kierkegaard tenta transmitir,
mediante diversas formas, o que significa existir. Não como aquele que, ele
próprio, já viveu tal existência, mas apenas como aquele que viu o que
significa existir. Dai o uso de pseudônimos, ou seja, da comunicação
indireta. (GILES, 1975, p.11-12)
Isso leva a inevitável abordagem de um elemento intrínseco à intensa e extensa
produção escrita de Kierkegaard: os estádios da existência. O esquema triádico: estético,
ético, religioso – que ele deixou bem delineado em Estádios no caminho da vida –
fundamenta toda a sua obra. Para tanto, ele utilizou uma linguagem de comunicação indireta,
criando pseudônimos cujos significados estavam intimamente ligados a obra assinada.
De tal modo elaborava seus escritos e criava personagens para suas reflexões, que o
leitor, deparando-se com as situações abordadas e apresentadas era levado a fazer sua escolha
particular, isto é, individual, subjetiva.
Kierkegaard parte de sua própria existência para realizar a identificação de cada estádio
e o desenvolvimento dos conteúdos de cada qual. Conclui, por sua vez, que, em algum
momento da existência, todo ser humano encontrar-se-á dentro da vivência de um desses três
estádios. E sempre haverá a possibilidade de “escolha” inerente a todo indivíduo de decidir
permanecer ou passar para o estádio posterior.
Preocupado com a Dinamarca do seu tempo que era predominantemente cristã;
insatisfeito com o cristianismo que via ser propagado de maneira tão superficial empregou
todas as suas potências intelectuais e religiosas para mostrar de maneira global através do seu
pensamento escrito, o que entendia ser uma existência autêntica e a grande tarefa do “tornar-
se cristão” incutida no fato de existir. É o que confirma Roos:
Para que essa preocupação pudesse atingir seus leitores e leitoras, nosso
autor não se preocupa apenas com o que escreve, mas também com o como
escreve, comunica e publica suas ideias. Assim, Kierkegaard desenvolve
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uma obra que é uma complexa trama de obras assinadas sob diferentes
pseudônimos e obras publicadas sob seu próprio nome. Neste
empreendimento são utilizados os artifícios da ironia e da comunicação
indireta que, mais do que transmitir conhecimentos, quer provocar
movimentos existenciais e atingir a subjetividade de seus leitores e leitoras. (
2007, p. 17)
Ele escreveu abundantemente. O conjunto da obra contempla dezenas de volumes e
milhares de páginas com denso teor filosófico, teológico, psicológico, radiografando de modo
único o contexto histórico em que viveu. Mas ao mesmo tempo, refletindo e evidenciando
verdades tangentes a todo indivíduo de todas as épocas.
Sua pseudonímia era sutilmente criativa e variada. Quando publicava algo sob os
pseudônimos de Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin Constantio, Johannes
Climacus, Nicolaus Notabene, Virgilius Haufniensis, Hilarius Bogbinder, Anti-Climacus
fazia-o com a intenção de comunicar indiretamente o que postulava como característico de
determinado estádio existencial. O que entendia sobre o existir de um indivíduo no mundo e
as implicações daí decorrentes. Pois, Kierkegaard não queria interferir nas compreensões
subjetivas de seus leitores.
Desde 1838 quando, muito jovem iniciou sua carreira de autor, até 1855, ano de sua
morte, Kierkegaard escreveu abundantemente sempre nesta perspectiva dos três estádios da
existência. Entendê-los em sua amplitude é uma tarefa deveras dantesca. Caberá aqui tão
somente apresentá-los e pontuar em cada um o que comumente é identificado e interpretado
pela maioria dos estudiosos de seu pensamento. Tal apresentação faz-se necessária, pois,
Kierkegaard assim estruturou sua obra escrita. Os pseudônimos que criou, colocando-os como
autores de muitos dos seus textos, representam e significam ora o esteta, ora o ético, ora o
religioso.
Sua estratégia, portanto, não é arbitrária. O dinamarquês transpõe para o papel suas
convicções derivadas de sua própria experiência existencial. Tem como ponto de partida a
existência mesma de Kierkegaard. Para tanto, escrevia em comunicação indireta afim de não
interferir na subjetividade dos seus leitores.
Não levar em conta tais dados é mutilar qualquer chance de sincera aproximação da sua
vida e do seu pensamento. Por isso, diz Valls a esse respeito quando afirma que:
Se existe chave hermenêutica para entender Kierkegaard, essa chave é ele
mesmo, e isso só é possível frequentando o labirinto de sua obra. Do
contrário, o risco de se enganar e de se iludir com a apresentação dos temas é
muito maior do que construir pouco a pouco o enorme quebra-cabeça
chamado Kierkegaard. A contradição existencial e o mostrar-se enigmático
20
pela pseudonímia constituem a estratégia fundamental e intencional para
demostrar a impotência da filosofia especulativa diante da realidade
concreta. (2007, p. 18)
Seguir-se-á, então, a uma sucinta apresentação dos estádios bem como a que cada um se
refere, levando em conta que ambos são modos de existir, nos quais o indivíduo permanece
sempre diante da possibilidade de realizar uma escolha. A partir desses estágios é possível
entrever não sem assombro uma realidade desnudada por Kierkegaard, a saber, que: “existir é
escolher”. “Existir é opção”. E eis aí uma prerrogativa do indivíduo que se lhe apresenta
como característica distintiva. Que o interpela a cada instante de sua existência singular em si
mesma e no entrerelacionar-se com outras existências singulares. Que constrange sua vontade
pessoal mediante os eventos nos quais se envolve ou provoca. Escolha que não obedece a um
método ou critério sistemático de decisão, mas se dá na dinâmica imprevisível do instante
existencial, concorrendo para passagem de um estádio à outro quando acolhida e realizada
concretamente.
A partir de agora já é possível ter em vista o fim a que se propõe o presente trabalho.
Entrever na perspectiva dos estádios da existência a consideração kierkegaardiana de haver
uma “suspensão teleológica da ética” como ele postulou em Temor e Tremor. Kierkegaard
fala diretamente ao indivíduo cristão de seu tempo. Os três estádios, embora sejam modos de
existência distintos, perfazem o itinerário existencial de todo e qualquer indivíduo. Para ele, o
estádio religioso é o cume a que se pode chegar. Mas para isso é preciso que aconteça o que
para Kierkegaard é essencial no processo: a escolha. Escolha que acontece na possibilidade de
cada instante da existência e que para tanto não pode ser controlada pela razão ou circunscrita
a um modelo de pensamento capaz de nortear as decisões individuais.
Isso se dá através de um salto qualitativo que só é possível no âmbito da fé. E das
características que serão apresentadas de cada um dos estádios ficará mais claro para onde se
endereça o pensamento kierkegaardiano.
Estético, ético e religioso são os ‘estádios no caminho da vida’ pelos quais todo
indivíduo deve passar em algum momento de sua existência. Permanecer como esteta,
pretendendo-se firmar a existência no prazer do momento e da fuga de ‘escolher’; chegar a ser
ético, onde se pode viver a vida pautada em preceitos morais norteadores que dão segurança
exterior, mas, carecendo de fazer-se a escolha de si mesmo e a descoberta da fé que dá sentido
a toda existência; realizar o salto da fé que desemboca no estádio religioso onde se vive
verdadeiramente uma existência cujo sentido é Deus somente e pelo qual se faz tudo. Eis a
21
aventura humana descrita por Kierkegaard em sua obra que, segundo ele, tem como fim a
descoberta da existência autentica.
1.5 Os estádios da existência
1.5.1 O Estágio estético
Para o indivíduo que vive nesse estágio, o prazer tem a primazia e constitui-se como que
o seu telos existencial. Nesse estádio, existe algo que o caracteriza bem, tornando-o imagem
da sede interior que habita o coração humano: “o desejo”. Desejo que se manifesta na busca
por saciar-se com coisas sentimentais, materiais, artísticas, intelectuais, mas, sobretudo, no
que diz respeito ao prazer na sua vertente erótica. E esse desejar não dá margem para
“esperas”, pois, tem pressa de que a satisfação pretendida se realize no tempo do “momento”.
Caso contrário não se contentará. Há um imediatismo da sensualidade, clamando no ser do
esteta por uma resposta rápida. Que ancorar sua existência em algo. Gouvêa assim se expressa
sobre o estádio estético, entendendo-o como uma estação existencial:
A estação estética está associada ao imediato, e não há aceitação consciente
de um ideal. O esteta evita compromisso a todo custo, encarando-o como
uma limitação. Ele vive para o momento, na busca sem descanso pelo prazer
imediato, mas ele nunca alcança a satisfação. Variedade, e não conexões, é o
mais importante. A possibilidade de algo é mais importante de que sua
realização. Como ele vive para o agora, sua vida torna-se uma série de
momentos desconexos, sem sentido de continuidade. (2006, p. 256)
Isso leva a perguntar: Onde está de fato a felicidade do homem? Onde encontra-la, se é
possível que algo no mundo seja capaz de comunica-la? Por que o ser humano é tão sedento e
faminto de realidades que lhe proporcione completude e inteireza? A busca do esteta é sempre
fora de si. Jamais sossega em seus desejos. Jamais se esgota seu querer de preenchimento.
Experimenta o goza dos prazeres que tanto busca, mas, por outro lado, experimenta o sabor
amargo e entediante que se seguem aos mesmos. Segundo Giles,
Falta a esse estádio qualquer distinção ética embora nele o indivíduo se sinta
numa liberdade total, perfeita. Porém, de fato, não passa de uma vítima e
escravo, pois a sua vida toma todo significado de acontecimentos e de forças
22
exteriores. Sem o saber, ele se submete ao simples azar e a sorte. É apenas
um joguete dos impulsos, sempre a procura do instante efêmero que passa,
pois não vive senão no instante que já é do passado. A realidade para ele
toma o seu valor a partir da recordação. Daí a tristeza do hedonismo. (1975,
p. 16)
Kierkegaard apresenta como esteta por excelência o personagem literário Dom Juan.
Em seu Diário do Sedutor essa figura surge como o retrato do indivíduo que está consciente
da escolha a ser feita, mas, não faz. Prefere ir de encontro ao próximo instante e sempre ávido
das possibilidades de prazer que isso poderá trazer-lhe. Gozar a vida é o imperativo que reina
no estádio estético. Se existir é opção, escolha, então, o esteta é um angustiado e fugitivo,
pois, escolhe não escolher. Contudo, para que o indivíduo caminhe para a realização de uma
existência autêntica, ele terá de passar pelo estádio ético. Caso contrário, permanecerá
prisioneiro de seus impulsos hedonistas, condenando-se a perda do verdadeiro existir.
1.5.2 O estágio ético
O personagem que representa com todos os matizes esse estádio é o juiz Wilhelmus em
A Alternativa e Etapas no Caminho da Vida.
Nesse estádio da existência, mais fácil de ser assimilado que o estético, há um dado
primeiro a ser salientado: é marcado pela vivência da vida pautada em regras, leis e\ou
condutas de caráter moral. Moralidade assentada em bases sólidas que salvaguardam a
tranquilidade exterior. Seu arquétipo é visivelmente encontrado naquelas pessoas que
assumiram algum compromisso conjugal. Aqueles que no correr de suas existências primam
pelo certo, pelo honesto, pela preservação de valores dentro de um contexto familiar conjugal.
As decisões são tomadas com toda seriedade. Há um senso de responsabilidade que
permeia a existência do indivíduo ético. Ele é capaz de fazer escolhas com discernimento e
sensatez. Ocupa-se consigo e com os outros na medida em que isso se lhe surge como tarefa a
ser executada bem como, reconhecida e aprovada pelos outros.
É o bom pai, a esposa dedicada, o cidadão responsável, o indivíduo justo e reto em seu
agir. Que procura manter a sobriedade no convívio social. No estético, prevalece o “desejo”
constante como fruto de um imediatismo. Porém, no ético há espaço para a escolha. E é a
escolha de si mesmo. Em outras palavras diz FARAGO (2009, p. 124): “O estádio ético, pelo
contrário, caracteriza-se pelo espirito de seriedade. Superior ao estádio estético, salva-lhe os
23
valores positivos que o esteta não era capaz de honrar na harmonia e na duração, integrando-
os em uma vida equilibrada”.
Mas o fato de pautar a vida em padrões morais de comportamento não garante ao ético
uma existência autêntica. Aí reside o perigo de acomodar-se numa estilo de vida
“politicamente correto”, fazendo de sua inserção e engajamento na sociedade o sentido último
de seu estar no mundo. Por isso que na sua relação com Deus, o ético permanece na periferia
do encontro e do diálogo, pois, já se considera comprometido com as coisas que entende
serem as mais importantes da vida. Escolhe ficar na imanência de seu existir, crendo bastar-se
a si mesmo. Imanência versus Transcendência. Temporalidade versus Eternidade. Finito
versus Infinito. Não quer se conhecer e por isso não quer se escolher, pois, assim, não
descobrirá o que é de fato diante si mesmo e de Deus e as transformantes implicações
advindas disso. Nesse sentido diz Dacoregio que:
Assim como no modo de vida estético, o ético liga-se ao que é temporal e o
indivíduo assim desesperado não sabe o que acontece com ele. Perde a
eternidade e a si mesmo e nem percebe. O modo de vida ético não possui
valores constantes, pois estes não são internos ao indivíduo e por isso tudo é
passageiro. Um homem nessas condições, nega seu desespero e não quer se
encontrar. E acaba com isso acomodando-se no seu papel social, onde é bem
julgado pelos demais e vive em situação confortável. (2007, p. 45)
Kierkegaard entende que a existência autêntica se dá no estádio posterior que é o
religioso. Todavia, ainda e mais uma vez o indivíduo é interpelado a realizar uma escolha.
Sem seguir parâmetros. Apenas lançando-se como num salto.
Já se pode divisar agora, por conta do estádio religioso, a figura ímpar de Abraão, o pai
da fé. Nele, Kierkegaard vê o indivíduo que encontrou o verdadeiro telos de sua existência e
realizou o salto mais ousado no caminho da vida. Surpreendentemente, o dinamarquês elabora
sua reflexão sobre a suspensão teleológica da moralidade, valendo-se do evento bíblico
registrado no livro do Genesis quando, a pedido de Deus, Abraão sobe o monte Moriá para
sacrificar o filho Isaac. Temor e tremor entra cena como uma das grandes obras de
Kierkegaard onde se pensa o indivíduo diante de Deus no silêncio inevitável de realizar a
maior das escolhas.
1.5.3 O Estágio Religioso
24
Esse é o estádio em que Kierkegaard se atém como sendo o cume para ao qual deveria
chegar todo ser humano. Especificamente reflete sobre o evento da Encarnação quando vai
falar desse modo de existência. Revela de maneira impar uma série de intuições e conclusões
do que supunha ser uma pessoa autenticamente religiosa. Entra em cena o “absurdo da fé” que
suscita a coragem de realizar o “salto no Abismo”. Nesse estádio se encontra o escândalo de
crer, a aventura de estar diante de Deus sempre como pecador reconhecido se sua culpa.
Evoca-se para modelo de tal instância o biblicamente denominado “pai da fé” Abraão como
foi mencionada anteriormente.
O estádio religioso só pode ser pensando dentro de uma consciência de fé. Fora disso,
ele perde todo sentido. Afinal, Kierkegaard o pensou em relação às circunstancias do
cristianismo do seu tempo. Uma vez mais ficará patente as profundas influências religiosas
que recebeu de seu pai na ambiente familiar onde fora educado.
Eis que agora o indivíduo depara-se sozinho diante de Deus, que se cala e com O qual
tem necessidade de relacionar-se. É o estádio que distingue-se pelo alto grau de interioridade.
Aqui, exige-se uma volta para si mesmo na fé. Para Kierkegaard, o estádio religioso é o passo
definitivo que se pode dar para o conhecimento de si mesmo e o encontro de um sentido para
a própria existência. Farago (2009, p. 126) ao explicar esse estádio esclarece uma crítica que
Kierkegaard faz ao cristianismo de sua época: “Existe, efetivamente, uma religião estética,
prisioneira das aparências e dos impulsos sentimentais. Existe uma religião moral, escrava do
mandamento. Mas o cristianismo real é o confronto que faz pesar sobre o eleito da graça o
peso mais grave”.
Tempo e eternidade, finito e infinito, criatura e Criador se deparam na dinâmica da
experiência desse estádio da existência entendido por Kierkegaard. O indivíduo descobre que
Deus chegou primeiro e O reconhece definitivamente como sua realidade última. A fonte de
alegria verdadeira que nenhum outro estádio poderia mediar.
A relação e o diálogo com Deus se manifesta como imperativo na existência do
indivíduo nesse estádio. Identifica-se assim, que há uma superação do ético pelo religioso sem
que isso seja em absoluto uma espécie de supressão. Tal superação só se dá mediante um salto
qualitativo. E somente a fé torna esse salto possível.
Abraão realizou esse salto. E Kierkegaard com isso, deixa bem claro em Temor e tremor
os limites da moralidade e da racionalidade, mostrando que nem tudo na existência humana
pode ser pautado por regras estabelecidas ou explicado pelas astúcias da razão. A
subjetividade do indivíduo fica expressamente evidente nesse estádio. Ele depara-se diante de
si e de Deus e precisa escolher.
25
A suspensão teleológica da ética já mencionada até aqui ficará mais elucidada no
próximo capitulo. Nos extremos do estádio ético está contida a busca do indivíduo pelo
sentido de sua existência. Quando escolhe por fim a Deus em absoluto, ele o faz, saltando na
fé e, sem suprimir sua eticidade, mas, superando-a por uma verdade pela qual se possa viver –
começa então, a existir autenticamente.
Tendo em vista tal apresentação sucinta dos estádios existências kierkegaardianos, vale
a pena salientar o modo como Valls sintetiza-os, à luz das perspectivas cristãs do
dinamarquês:
Kierkegaard desenvolve os estádios da existência como uma metáfora
escatológica. O estético representa a queda, o homem que vive o momento e
não tem consciência do télos último da existência. O ético caracteriza a
autossuficiência do homem que crê poder resolver os problemas e construir
seu paraíso na terra, o que o deixa frustrado e impotente. Enfim, no ético-
religioso, o indivíduo constata a insuficiência da existência centrada em si
mesma e a necessidade do reconhecimento da realidade de Deus como
realidade última. (2007, p. 35-36)
São esses os três modos de existência concebidos por Kierkegaard explicados de
maneira bem sucinta, apenas à guisa de elucidação. Pois, sem uma prévia inserção em tal
temática ficaria uma lacuna incomoda, carecendo de preenchimento.
Diante do que foi exposto a respeito dos estádios da existência e as implicações contidas
em cada um dos mesmos, é possível fazer agora vários questionamentos. Porém, à luz da obra
Temor e tremor datada de 1843, um grande questionamento levantado por Kierkegaard
através do pseudônimo Johannes de Silencio vem à tona: é possível haver uma suspensão
teleológica da moralidade?
Com Temor e tremor, o dinamarquês põe em cheque o racionalismo que imperava em
sua época. Ele demonstra com bastante perspicácia que a ética, assentada na razão, não é
capaz de dar respostas ou soluções a todos os eventos que ocorrem na existência do indivíduo.
Há respostas e soluções que só a fé em Deus e, prescindindo de toda moralidade poderá
oferecer.
Em oposição à ética como juíza de todas as ações humanas, Kierkegaard afirma o
primado da fé que faz com que o indivíduo descubra seu lugar na história e diante de Deus
principalmente a quem reconhece como a verdade última de todas as coisas.
Dos três estádios apresentados: estético, ético e religioso, os dois últimos ficarão bem
mais evidenciados com seus respectivos conteúdos e temáticas. A suspenção teleológica da
26
moralidade se dá como a passagem do estádio ético para o estádio religioso e isso será
apresentado em seguida.
27
2 A SUSPENSÃO TELEOLÓGICA DA MORAL E SUAS IMPLICAÇÕES SEGUNDO
TEMOR E TREMOR
A partir de agora serão feitas algumas observações quanto à obra Temor e tremor a
título de introdução, ressaltando seu conteúdo e a temática da fé cuja centralidade
Kierkegaard procura evidenciar. Breves explicações quanto ao significado de fé para o
dinamarquês serão dadas, bem como de outros termos e expressões que ele utiliza
reiteradamente em seu texto. Antecede a suspensão teleológica da moral o movimento da
resignação infinita e o movimento mesmo da fé que, no caso da história de Abraão, o faz ser
um Cavaleiro da fé. Por fim, a explicação para qual tende todo este trabalho que é a da
suspensão teleológica da moral.
2.1 Primeiras aproximações à obra Temor e tremor
A obra Temor e tremor de Kierkegaard é tida com uma de suas mais célebres produções
e trás à tona o episódio bíblico de Gêneses 22. Nesse trecho bíblico relata-se o pedido de Deus
a Abraão de sacrificar o seu filho único Isaac no monte Moriá. Filho que viera já no tempo da
velhice e que carregava em si toda uma esperança de posteridade. Ao voltar da experiência
angustiante no monte Moriá, Abraão, já não é mais o mesmo, recebe seu filho Isaac pela
segunda vez e tal fato apresentava-se sem explicação.
Kierkegaard retoma esse texto e prende toda sua reflexão na figura de Abraão, tecendo-
lhe um entusiasmado elogio, mas ao mesmo tempo, criticando uma vez mais o sistema
hegeliano e toda filosofia sistemática que tentava restringir tudo à esfera racional. A partir do
relato oficial, ele elabora outros quatro, procurando deixar claro quão complexo é entender o
comportamento e a decisão do patriarca. Pois a dimensão subjetiva do indivíduo em sua
existência prescinde da objetividade dos eventos concretos que se lhe apresentam, bem como
de todas as circunscrições lógicas da razão.
O grande tema do livro no seu plano geral é a fé. Com fina perspicácia, o dinamarquês
traça o perfil de Abraão na perspectiva ética e religiosa e aponta claramente seu parecer
quanto ao desfecho do episódio do sacrifício. Nesse sentido, fica mais evidente o significado
último do pseudônimo utilizado para assinar a obra: Johannes de Silentio (João do Silêncio).
28
Ou seja, diante do paradoxo da fé e o absurdo ao qual ela está ligada, resta apenas fazer
silêncio como o fez Abraão após o pedido que Deus lhe fizera.
De Paula pontua que:
As grandes perguntas feitas em Temor e tremor, baseadas na história de
Abraão, são: há uma suspensão teleológica da ética? Em outras palavras,
existe na história de Abraão algo maior do que a ética? Os homens e a
sociedade em geral sempre são pautados pela ética, ou seja, as ações são
sempre consideradas boas ou más. A ética é, nesse sentido, a juíza desse tipo
de relação entre os homens. Contudo, na história do patriarca israelita, a
ética parece ter sido suspensa; Abraão ultrapassa a ética e não pode ser
enquadrado dentro dela. Ele vai além daquilo que é o máximo na relação
entre os homens. Ele vai além da ética, mas não pode ser considerado um
simples infrator. Sua ação se baseia em outra coisa que não é a ética e nem a
legitimação do coletivo social. Sua base é a fé [...] (2008, p. 56)
Abraão é o indivíduo que, para Kierkegaard, possui uma singularidade tal que não
encontra paralelo algum. Ironicamente ele o considera um autêntico cristão, em vista da
escolha que fez de obedecer a Deus absolutamente, indo por isso, além dos ditames da
moralidade, além dos limites convencionados pela ética.
O tom de insistência que perpassa o texto kierkegaardiano é de que nem todas as ações
do indivíduo em sua existência podem ser guiadas pelos padrões éticos ou as leis morais.
Acima dessas instâncias está a fé. O paradoxo da fé como ele enfaticamente reitera. Fé que se
dá no absurdo e faz que o indivíduo seja capaz de realizar o salto do estádio ético para o
religioso. Fé que traduz a opção fundamental do indivíduo por Deus, numa relação de total
confiança, revelando-lhe o verdadeiro e absoluto telos de sua existência.
Para Kierkegaard, o patriarca é um indivíduo admirável. Quem pode entender Abraão?
Ele é o maior de todos. Merece o maior dos elogios e deve ser entendido como referencial
para a humanidade, pois, sua grandeza reside na fé e no amor incondicional a Deus. Em
Temor e tremor ele assim se expressa:
Os grandes homens hão de permanecer na memória dos pósteros, porém
cada qual deles foi grande pela importância do que combateu. Pois aquele
que combateu contra o mundo, foi grande no seu triunfo sobre o mundo, o
que lutou consigo mesmo foi grande pela vitória alcançada sobre si – porém
aquele que combateu contra Deus foi o maior de todos. Este é o resumo dos
combates feridos na Terra: homem contra homem, um contra mil; porém
aquele que combate contra Deus é o maior de todos. Tais são as lutas deste
mundo: um atinge o termo utilizando-se da força, o outro desarma a Deus
pela sua debilidade. Viu-se aqueles que em si mesmos se apoiaram de tudo
triunfarem e os demais, fortes em sua fortaleza, tudo sacrificarem – porém o
maior de todos foi aquele que creu em Deus. E existiram grandes homens
29
pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – porém Abraão foi o maior
de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo
segredo é loucura, pela esperança cuja forma é a demência, pelo amor que
ser resume em ódio a si mesmo. (2008, p. 12)
Abraão merece tal elogio porque na liberdade escolheu ir além da normalidade moral
das relações às quais estava habituado, por causa de uma relação maior com seu Deus e que se
dava no paradoxo da fé. Porque amou a Deus acima de tudo e foi por isso capaz de ter para
com Ele um dever de obediência absoluta. Escolheu ir além da razão através da fé. Sua
existência só tinha sentido, então, porque acreditava. Existir é crer. E a existência entendida e
vivida assim não questiona os pedidos que vem de Deus como o faria a razão.
A despeito das exigências lógicas que a razão impõe, como se fosse possível responder
a tudo que ocorre na história e principalmente na existência singular de cada indivíduo,
Kierkegaard apresenta a história de Abraão – marcada pelo sofrimento interior que causara o
pedido de Deus – e a própria fé do mesmo como divisor de águas na relação entre razão e fé.
O sistema hegeliano e as instancias por ele influenciadas tornavam-se impotentes diante das
questões suscitadas na reflexão feita em Temor e tremor.
Kierkegaard critica também, nesse sentido, a Igreja Luterana do seu tempo que
apresentava a história de Abraão de maneira superficial, como se fosse algo simples de se
compreender racionalmente, do modo como a filosofia sistemática de Hegel interpretava. O
cristianismo que predominava em seu tempo estava revestido de pressupostos filosóficos que
davam segurança à transmissão da doutrina como se isso facilitasse a inserção do indivíduo
no cerne da proposta de Cristo. Kierkegaard combateu esse tipo de cristianismo por julgá-lo
objetivo demais e afastado das verdadeiras questões existências as quais o indivíduo era
confrontado instantemente. Carvalhães diz que:
O ponto de vista de Kierkegaard sobre o cristianismo opunha-se ao ensino da
igreja. Criticava a religião fácil da igreja por ser mais intelectual do que
existencial. Para ele, esse tipo de filosofia corrompia o cristianismo e
afastava as pessoas da religião de Cristo. O hegelianismo deformava a fé
transformando-a em algo pobre e fácil. A fé cristã transformava-se numa
religião sem dificuldades, sem temor, sem mysterium, sem decisão -
constituía-se em sistema de crenças e em tipo de conhecimento em lugar de
peregrinação cuidadosa e cheia de riscos. A fé tornava-se num tipo de
viagem guiada sem qualquer relação com a existência real. (2008, p. 76)
A pregação que se fazia a respeito do pai da fé não levava em conta a sua angústia.
Baseava-se, contudo, em uma especulação racional como se fosse simples de entender. E essa
omissão era inaceitável para Kierkegaard. Existir implica escolher e a escolha embora não
30
siga ditames filosóficos algum, se dá de modo desafiador, implicando sofrimento. Abraão
estava sob a mira dessa exigência que contém toda escolha e o sofrimento advindo dela.
Sofria assim quando do pedido de Deus de que sacrificasse o filho tão amado, Isaac. A esse
respeito, Faria diz que:
A história de Abraão consegue se manter magnifica mesmo que dela se
compreenda pouca coisa. Contudo, para avaliarmos um pouco melhor a
dimensão do seu ato, é necessário que antes percebamos que o que Abraão
estava disposto a sacrificar não era aquilo que ele tinha de melhor. Não
devemos, aqui, identificar indistintamente Isaac com o “melhor”. Explica
Johannes que é certo que não nos tornamos como Abraão porque
sacrificamos a melhor coisa que possuímos. O seu caso é especial, porque
nele está envolvida uma angústia. Angústia de ter que sacrificar aquilo com
o que mais possuía obrigações morais últimas e inalienáveis: angústia de ter
que matar o próprio filho. (2009, p.74-75)
Tal pregação negava dessa forma o paradoxo que é a fé cristã, pretendendo apresentá-la
como algo inteligível. Com isso, negava também a subjetividade e a interiodade próprias do
indivíduo. Pregava-se sobre Abraão de maneira simplista. Mas, segundo Kierkegaard, a
história do pai da fé deveria causar insônia, pois, é a história de todo indivíduo que se
encontra aí. É a historia do tornar-se cristão contida no movimento da fé realizado pelo
patriarca. Entretanto, sua decisão contraria a ética estabelecida e Kierkegaard procura provar
que na esfera religiosa – pela fé – é possível justificar a atitude do pai da fé.
A moralidade de um modo geral julgaria a escolha de Abraão como sendo um crime.
Mas do ponto de vista religioso seria entendido como quem realiza um sacrifício.
Ao dar sua interpretação do relato bíblico do sacrifício de Abraão, procurando deixar
bem claro quão falha é a razão para fazê-lo e que somente à luz da fé é possível aceitar a
escolha do patriarca frente ao pedido de Deus, Kierkegaard retorna ao tema do herói grego,
relacionando-o ao pai da fé. Deixa claro que Abraão sobressai-se ao heroísmo grego e é maior
justamente porque creu e escolheu a Deus como sua realidade última. O telos divino acima do
telos humano. O eterno acima do temporal.
Para tanto, Abraão precisou realizar dois movimentos importantes que culminaram em
sua decisão final por sacrificar ao filho Isaac em atendimento ao pedido divino. Não abandona
suas responsabilidades morais para com o filho. Mas se lança ao absurdo de crer que Deus
solucionará toda a situação, pois, racionalmente era impossível pensar-se em algo que
justificasse eticamente o que estava decidido a fazer.
31
2.2 Os dois movimentos da fé: a resignação infinita e o salto paradoxal
Abraão representa o indivíduo desafiado pelo Eterno a fazer uma escolha no tempo.
Desafiado a transpor os limites de suas próprias convicções éticas a despeito de tudo e de
todos. Escolha que só pode ser compreendida subjetivamente, pois, toca a existência em sua
individualidade, impulsionando-o a uma tomada de decisão na fé. Por isso, em Temor e
tremor se falará de um salto na fé que pressupõe total confiança em Deus e sem a necessidade
de qualquer sorte de questionamentos. Sem reflexões lógicas que sirvam de intermediárias na
tomada de decisão.
Sacrificar Isaac fere a moralidade, sim. Mas se é por amor a Deus que Abraão decide-se
a fazê-lo, crendo na providência divina ainda para esta existência, então, ele se lança no
absurdo da fé, que é paradoxal, pois não pode ser explicada à luz da razão.
Kierkegaard, sob o pseudônimo Johannes de Silentio, quer levar o leitor a pensar sobre
a situação religiosa de seu tempo. Especificamente sobre a fé cristã que a seu ver estava
distanciada da sua verdadeira essência. Contudo, é preciso pontuar o que é a fé para
Kierkegaard. Segundo Carvalhães (2008, p.72): “A fé para Kierkegaard não era objetiva,
lógica, capaz de ser explicada. Por outro lado, também não era considerada ilógica ou
resultado de mero fideísmo”. Era, como já mencionado, uma opção fundamental que
comprometia toda a existência.
Aonde Kierkegaard quer chegar com todo o elogio que faz a Abraão, considerando-o o
pai da fé e o Cavaleiro da fé, deve ser entendido antes de passar para o tema da suspensão
propriamente dita. A suspensão teleológica da moralidade só pode ser assimilada tendo em
conta os pressupostos kierkegaardianos a respeito dos movimentos da fé e as implicações
contidas neles. E Abraão realizou esses movimentos.
Na Problemata de Temor e tremor, Kierkegaard pontua a postura de Abraão frente ao
pedido de Deus. O patriarca vai além da mera resignação. Poderia se conformar com o fato de
sacrificar Isaac como se nada mais pudesse ser feito. Como se não tivesse compromisso
algum com a vida do filho. Obedecendo ao pedido divino, ele lança-se no absurdo de crer que
tudo isso tem um sentido, mas que, por sua vez, não lhe compete indagar os porquês, pois,
ama e confia ainda que as circunstâncias clamem por uma resposta racional. Assim o
dinamarquês se expressa pelo olhar de Silentio:
A verdade é que, se, no momento em que montou o seu burro, Abraão
tivesse dito: já que estou perdido para mim tanto faz sacrificar Isaac aqui, em
32
casa, como realizar esta longa caminhada até Morija – se assim fosse não
teria nada com ele, ao passo que assim eu me inclino sete vezes diante de seu
nome e setenta e sete vezes diante de seu proceder. Que ele não esteve
entregue a dilações para se recolher do mundo finito e de seus prazeres. De
outra maneira, ele teria talvez amado a Deus, porém não seria o homem de fé
– pois amar a Deus sem a fé é refletir-se a respeito de si mesmo, porém amar
a Deus com fé é refletir-se no próprio Deus. Este é o cume onde se encontra
Abraão. A última etapa de que ele se afasta é a resignação infinita. Vai mais
distante verdadeiramente e chaga até a fé. (2009, p. 30)
Kierkegaard insiste em que o importante na história de Abraão é o sofrimento pelo qual
ele passou – sua angústia – para cumprir a vontade de Deus. Quer deixar bem claro que isso
só foi possível porque o patriarca fundamentou sua decisão tão somente na fé. Por isso fala de
um duplo movimento da fé. Carvalhães explicita isso com mais clareza ao dizer que:
Segundo Kierkegaard, a fé de Abraão teve dois movimentos o da resignação
infinita e o da fé. No primeiro caso, ele se rende totalmente a Deus. Buscou a
verdade não no mundo, mas em Deus. Abraão encontrou a verdade quando
se ofereceu correndo risco de tudo perder. Renunciou as exigências morais,
tudo abandonando. Nesse momento, sacrificou Isaque e também se
sacrificou. Nas palavras de Johannes de Silentio, esses atos foram cometidos
“em virtude do absurdo”. De Silentio chama esse fato de “coragem da fé”.
Ao se integrar plenamente com esse gesto de fé, Abraão torna-se o cavaleiro
da resignação infinita. (2008, p. 77-78)
A resignação infinita é uma tomada de consciência de que na dimensão do tempo –
temporal – no mundo finito, renuncia-se a alguma coisa ou a alguém sem esperar de volta o
que fora renunciado. Há uma aceitação das circunstâncias, mas que, permanece na
normalidade moral estabelecida e compreendida por todos. Significa também saber que
algumas coisas residem na esfera do impossível dentro do mundo finito e que, portanto, não
podem ser alcançadas. O indivíduo conforma-se com a situação na qual se encontra ou a qual
é confrontado, tendo a seu favor uma base moral que a razão explica.
O cavaleiro da resignação infinita abre mão de um bem precioso por acreditar que o
dever moral ao qual obedece é o que justifica seu ato, sua renúncia, ou o que quer que tenha
de fazer. No fim das contas será elogiado por sua conduta que se enquadra nos parâmetros
morais da normalidade. Permanecerá na esfera ética e sua ação ganhará status de heroísmo.
Mas, de acordo com Kierkegaard, o indivíduo que estaciona aí não chega a ser nunca
um Cavaleiro da fé. Pois não basta apenas essa tomada de consciência ou reconhecimento de
certas impossibilidades, é preciso ir, além disso.
Em Temor e tremor, Kierkegaard realiza uma apurada análise do drama interior, do
sofrimento pelo qual passa Abraão em virtude do pedido divino. Não há nada de fácil na
33
situação do patriarca. Por isso, dentre as escolhas que poderia ter feito em relação ao pedido
de Deus, ele resolve primeiro resignar-se mesmo sabendo do sofrimento decorrente disso. No
silêncio de si mesmo ele sofre a aceitação do pedido e a decisão de cumpri-lo e aí ele se
encontra sozinho diante de Deus que o assiste.
Mas a resignação não o salva do conflito interior e as questões decorrentes de estar
conformado em sacrificar o filho. Ele sabe das consequências morais do ato que decidiu
realizar. É preciso prescindir da simples resignação. É preciso a fé. E eis, então, o segundo
movimento que põe Abraão numa relação absoluta com o Absoluto. Movimento que o coloca
acima da moralidade e o torna, segundo Kierkegaard, o Cavaleiro da fé. Quanto ao segundo
movimento, Carvalhães diz:
O segundo movimento é o da fé quando Abraão recebe de volta das mãos de
Deus o seu filho Isaac. O anjo segura sua mão, surge o cordeiro e Abraão
volta para a casa com o filho. Aí está o paradoxo da fé: o cavaleiro da
resignação infinita encontra o cavaleiro da fé no mesmo momento. Abraão é
ao mesmo tempo o incrível cavaleiro da fé e o herói trágico, o assassino.
(2008, p. 78)
O cavaleiro da fé é posto em oposição ao herói trágico grego com o qual Kierkegaard
traça um paralelo, buscando esclarecer da comparação de ambos, Abraão merece o verdadeiro
reconhecimento. Toda sua luta interior de sacrificar a Isaac para cumprir um dever de amor e
fé para com Deus, o coloca na posição de cavaleiro, daquele que combate sem instrumental
lógico, racional, argumentativa, mas, unicamente com a fé, que, por si mesma já é um absurdo
e paradoxo, pois, não pode ser explicada. De Paula fala acrescenta que:
A fé do cavaleiro da fé se torna ainda mais absurda, pois o que a pratica faz
isso consciente do absurdo. Para Silentio, ela não é estética e nem um
instinto imediato do coração, mas paradoxo da vida. Visto dessa forma, a
resignação equivale à consciência eterna e não a fé. A fé é imprescindível
para obter a mínima coisa, mas ela não é indispensável para se resignar.
Segundo nosso autor, fé significa recebimento e não renúncia. (2008, p. 66)
Para resignar-se basta apenas coragem. E, segundo Kierkegaard, qualquer um está em
condições de fazer isso. O indivíduo que está no estádio ético pode muito bem ter uma fé.
Uma religiosidade, mas, que está conformada com suas condutas morais. Ao se ver
interpelado por Deus em certo momento de sua existência ele se defrontará com as
possibilidades de resignar-se ou realizar o salto da fé onde não restará ninguém mais que ele e
Deus numa relação absolutamente única.
34
Abraão não deve ser elogiado por ter renunciado ao filho Isaac em obediência a
divindade, mas, por ter decidido levar adiante o sacrifício crendo somente e, esperando
receber o filho de volta ainda nessa existência. Sabe dos deveres morais que o prendem a
Isaac e das grandes responsabilidades para com o mesmo. Contudo, acredita que acima de
tudo isso está a vontade de Deus. E qualquer pedido que venha de Deus deve ser realizado,
pois, para além de qualquer finalidade a que possa se assegurar a existência aqui na terra, o
telos absolutamente maior é Ele.
A crítica que Kierkegaard faz a igreja luterana de sua época concentra-se muito na
forma como se pregava a respeito do pai da fé, isto é, como mero exemplo de conduta
obediente e abnegada a vontade de Deus. Ele não acreditava encontrar em seu tempo ninguém
que fosse capaz de ir até onde chegou Abraão com sua fé absurda e paradoxal. Opunha-se a
qualquer tentativa racional de se explicar os complexos meandros da fé, pois, essa só se dá na
interioridade do indivíduo. Subjetivamente e no absurdo.
Abraão é o modelo de fé autêntica que dá sentido à vida. Representa o indivíduo que é
capaz de ir além das exigências da moral, porque se lança no absurdo. Silentio faz notar isso
quando interpela:
Que fez, porém, Abraão? Não chegou muito cedo, nem muito tarde. Selou o
burro seguindo, com lentidão, o rumo determinado. Durante todo esse
período manteve a fé, creu que Deus não desejava exigir-lhe Isaac, estando,
contudo. Disposto a sacrificá-lo se isso fosse absolutamente preciso. Creu no
absurdo, porque isso não faz parte do cálculo humano. O absurdo está em
que Deus, pedindo-lhe o sacrifício, devia revogar o seu pedido no momento
seguinte. Escalou a montanha e no momento em que a faca brilhava, creu
que Deus não lhe exigira Isaac. Então, com segurança, foi surpreendido pelo
desenlace, porém já nessa oportunidade recobrara por um movimento duplo
o seu primitivo estado, e foi por esse motivo que recebeu Isaac com a mesma
alegria que sentira pela vez primeira.(...) Creu pelo absurdo, porque todo
cálculo humano estava, desde há muito tempo, abandonado. (2009, p. 29)
O cavaleiro da fé abandona as certezas morais que se assentam na razão para aventurar-
se no absurdo da fé paradoxal. Paradoxal porque exatamente para ganhar deve perder; para
chegar à felicidade deve passar pelo sofrimento; para ter vida deve morrer; para expressar-se
deve silenciar.
Sem levar em conta esses detalhes que antecedem a decisão de ir além da esfera ética, a
suspensão teleológica torna-se incompreensível. Assim, o presente trabalho chega a seu
objetivo último que é explicar a suspensão teleológica da moral em Temor e tremor de
Kierkegaard.
35
2.3 A suspensão teleológica da moral, segundo Kierkegaard
Ao concentrar-se no relato bíblico que narra a história de Abraão em Genesis 22,
Kierkegaard faz três perguntas em seu livro Temor e tremor. A primeira delas será abordada a
partir de agora, a saber: Existe uma suspensão teleológica da moralidade?
Analisando o fato de Abraão receber de Deus o pedido de que sacrificasse a Isaac, seu filho,
no monte Moriá, Kierkegaard demonstra que o patriarca, pela fé, foi capaz de ir além das
determinações morais as quais estava obrigado. Assim, em Temor e tremor, Problema I que trata
da suspensão teleológica, começa a sendo exposto nos seguintes termos:
A moralidade, por si mesma, está no geral, e sob este aspecto aplica-se a
todos. O que pode, de outra parte, exprimir-se dizendo que se pode aplicar a
cada momento. Descansa imanente em si própria, sem ter nada exterior que
constitua o seu TELOS, sendo ela própria TELOS de tudo quanto lhe seja
exterior; e desde que se tenha integrado nesse exterior não vai mais além.
(2009, p. 48)
A moralidade de que fala Kierkegaard situa-se no estádio ético. Quando apresenta a
figura de Abraão e seu angustiante dilema de ter que sacrificar o filho a pedido de Deus, quer
com isso tecer uma crítica ao pensamento do seu tempo. Em Abraão se encontra a situação do
indivíduo que nas suas relações com o Absoluto, vê-se desafiado a responder somente com a
fé. Indo, por meio dela, para além da moral estabelecida. Da Silva ao elucidar isso diz:
Na filosofia de Kierkegaard a ética é um estádio na vida do indivíduo em
que se vive no geral, isto é, o geral é semelhante a uma sociedade em que as
normas e padrões da vida das pessoas são determinadas. A moralidade está
no geral e é aplicável a todos sem distinção e a cada instante. No geral o
indivíduo, para Kierkegaard, teria que despojar-se da sua individualidade
para poder alcançar a generalidade. Abraão é um indivíduo que está incluído
no geral, mas é um homem de fé que tem sua relação com Deus de forma
individual. Kierkegaard faz uma comparação entre o indivíduo e o geral –
através do ato de Abraão – e inicia uma crítica ao sistema hegeliano que
buscava uma unidade ética originária. (2009, p. 114)
Sob o pseudônimo Johannes de Silentio, Kierkegaard insiste em proclamar a primazia
do indivíduo frente ao geral. Combatia toda filosofia que se desse o luxo de interpretar tudo
de maneira totalizante, pondo a razão com detentora do poder de dar todas as respostas
possíveis para todas as questões. Como se a subjetividade do indivíduo em sua existência
particular pudesse se acessada objetivamente. Esquadrinhada até.
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A afirmação do indivíduo, segundo Kierkegaard, só se dá pelo paradoxo da fé. A fé dá
ao indivíduo a segurança de que precisa para abandonar seus lançar-se para além dos
princípios éticos. Concernente a isso o autor diz em Temor e tremor o seguinte:
Efetivamente, é a fé esse paradoxo conforme o qual o Indivíduo está acima
do geral, porém de tal modo que, e isso é importante, o movimento torne a
repetir-se e, consequentemente, o Indivíduo, após ter ficado no geral, esteja
isolado logo depois, como Indivíduo acima do geral. (2009, p. 49)
Embora as relações humanas devam seguir padrões éticos comuns ao geral, o
dinamarquês insiste em Temor e tremor que não é possível a alguém encontrar sentido pleno
para sua existência somente pautado na moralidade. Ou seja, o estádio ético por si mesmo não
tem respostas para todas as situações que acometem a existência do indivíduo. Para a
existência possuir sentido e ser vivida autenticamente é preciso a fé. Aí, a despeito de tudo o
que acontecer não se buscará explicações, pois, elas não são possíveis. A lógica puramente
racional é abandonada para dar lugar ao absurdo de crer tão somente e esperar contra toda
esperança como o fez Abraão, tornado, por isso, pai da fé e Cavaleiro da fé.
Eleger um texto bíblico do Antigo Testamento para defender a tese da existência de uma
suspensão teleológica da moral é no mínimo atípico. Todavia, Kierkegaard tinha plena
consciência do que tentava demonstrar, analisando a história do patriarca e o sacrifício que lhe
fora pedido. Inconformado com a maneira como a fé cristã na Dinamarca de seu tempo era
transmitida, ele busca expressar através de Temor e tremor as impressões e convicções que
havia adquirido a respeito do que acreditava ser verdadeiramente a fé.
E a fé, pensa Kierkegaard, é o movimento paradoxal a que está sujeito todo e qualquer
indivíduo. É aquela realidade que parte da interioridade subjetiva do indivíduo em sua
existência particular e singular. Só ocorre autenticamente na individualidade. Por isso ao
defender a possibilidade da suspensão teleológica da moral, ele tem sempre em vista o
indivíduo como seu protagonista. Individualidade que foge às categorias lógicas da razão.
Individualidade que é capaz de lançar-se no absurdo da fé paradoxal para encontrar
exatamente aí o telos que ultrapassa todos os outros telos. Sobre a individualidade, da Silva
diz que:
A individualidade não pode ser compreendida como um conceito lógico, mas
como uma relação absoluta do finito diante do infinito. Esse posicionamento
do Indivíduo diante do infinito está completamente fora do aparato lógico,
ou de qualquer sistema racional. Ele está diante de fatos que precisam de sua
decisão e sua decisão está fincada em base absurda, a saber, a fé. Para
37
Kierkegaard, as decisões humanas não são ordenadas por conceitos – pois
está fora de qualquer sistema lógico – por saltos e alternativas. (2009, p.
115)
Abraão obedece ao pedido de Deus. Decide cumprir a vontade divina. Sacrificar a Isaac,
o filho a quem tanto ama, é visto pela moral como um assassinato. Pelos cálculos humanos,
esse homem jamais cogitaria a possibilidade de realizar tal ação. Sabe que possui deveres
paternos para com o filho. Não nega em momento algum suas responsabilidades morais.
Contudo, escolhe atender ao pedido de Deus, crendo absurdamente que de alguma forma
obteria Isaac outra vez. Alicerça sua decisão unicamente na fé. No absurdo da fé. Ninguém
pode decidir no seu lugar. Ao lançar-se à tarefa de cumprir a vontade de Deus, qual seja,
sacrificar Isaac – o filho da promessa – sobre o monte Moriá, Abraão descobre-se
absolutamente sozinho com o Absoluto. Por isso, Carvalhães comenta:
A fé vive em virtude do absurdo, e o absurdo não tem explicação. Carrega
em si o irracional e a impossibilidade de ouvir. A partir de suas raízes, ab
surdus significa tornar-se surdo. A fé deixa de lado as explicações racionais.
Não as ouve. Vive pela capacidade de desafiar e de não entender. Vive de ter
esperança contra a esperança. (2008, p.88)
Em virtude desse absurdo ao qual Abraão se submete, Kierkegaard diz não ser capaz de
compreendê-lo completamente. Se o patriarca ficasse somente na esfera do estádio ético seria
possível entende-lo melhor, mas, contudo, qual cavaleiro pronto para a batalha, Abraão salta
do estádio ético para o estádio religioso quando escolhe, na fé, fazer o que Deus lhe pede:
sacrificar Isaac, o filho da promessa.
Como forma de dar sustentação a seus argumentos em favor da suspensão teleológica da
moral realizado por Abraão, Kierkegaard evoca três figuras do passado. Duas da cultura grega
e uma do Antigo Testamento. Retomando suas histórias, o dinamarquês busca fazer
compreender que esses personagens são heróis de fato, pois suas ações obedeceram a
necessidades morais que se harmonizavam ao pensamento geral dos demais. Ainda que
tivessem sofrido por causa da ação que praticaram, não haviam saído da esfera moral. O que
não é o caso de Abraão.
Traz primeiro o caso dos heróis trágico Agamenom que precisa sacrificar Ifigênia, sua
filha, para acalmar a ira dos deuses, pois, do contrário as condições climáticas não lhe seriam
favoráveis na guerra marítima que comandava contra Troia.
Depois relembra Jefté, figura do Antigo Testamento. Um dos doze juízes de Israel. Esse
prometera a Deus que sacrificaria a primeira pessoa que aparecesse em sua frente caso
38
conseguisse sair vitorioso do combate contra os amonitas. Para sua tristeza, a primeira pessoa
a lhe aparecer após voltar da guerra fora sua única filha.
Por último, Brutus, cônsule da República de Roma que, para cumprir com suas
obrigações militares teve de levar a cabo o julgamento dos próprios filhos que tinham se
rebelado contra a mesma República, condenando-os à morte.
Kierkegaard conclui desses casos, comparados com o de Abraão, que o patriarca fizera
algo muito maior, porque fugira a toda regra moral em virtude de um sentido acima de toda
moralidade. Ao subir o monte Moriá para sacrificar Isaac, ele não tem por motivo acalmar a
ira dos deuses como Agamenom; ou cumprir uma promessa feita pelo resultado favorável
obtido em campo de batalha; nem mesmo a defesa dos interesses dos políticos da república.
O herói trágico pode ser justificado, mas Abraão, não. É o que Kierkegaard faz notar em
Temor tremor:
A diferença que distancia o herói trágico de Abraão é evidente. O primeiro
prossegue ainda na esfera moral. Para ele toda a expressão da moralidade
possui o seu TELOS em uma expressão superior da moral; limita essa
relação entre pai e filho, ou filha e pai a um modo se sentir cuja dialética é
referente à ideia da moralidade. Consequentemente não temos aqui uma
suspensão teleológica da moralidade em si mesma. (2009, p. 53)
Abraão está só. O que não que dizer abandonado a si mesmo, mas, encontra na solidão
da escolha individual que foge a qualquer regra estabelecida racionalmente, pois, tem um
dever para com Deus. Precisa para isso adentrar numa esfera de relação a qual ninguém posse
acessar a não ser o próprio indivíduo Abraão. Ele soltou todas as rédeas de segurança da
existência ética para entrar na posse da existência autentica e plena de sentido que é o estádio
religioso mediante o movimento paradoxal da fé. É nesse sentido que Kierkegaard depois de
esclarecer quão diferente é Abraão do herói trágico, revela porque o pai da fé decidiu ir além
da moral e suas implicações, aceitando ser submetido à prova divina de sacrificar Isaac:
Muito outro é o caso de Abraão. Através de seu ato foi além de todo estágio
moral; tem para além disso um TELOS diante do qual suspende esse estágio.
[...] Então, por que motivo o fez Abraão? Por amor de Deus, como de modo
inteiramente idêntico, por amor a si próprio. Por amor de Deus porque exigia
este essa prova de fé; e amor a si próprio para realizar a prova. Esta
conformidade acha o seu termo apropriado na frase que sempre tem
designado esta situação: é uma prova, uma tentação. Contudo, que significa
isso de tentação? Em geral, pretende desviar o homem do dever; porém aqui
a tentação é a moral, zelosa de impedir Abraão de concretizar a vontade de
Deus. Que significa, então, o dever? A expressão da vontade de Deus. (2009,
p. 53-54)
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O amor de Abraão por Deus o faz ter para com o mesmo um confiança inabalável
originada na fé em que se baseia. Acima de todo dever moral, o patriarca descobre o dever
para com Deus como a primeira coisa a ser cumprida e isso implica em suspender
teleologicamente a esfera ética, a moralidade.
A suspensão teleológica da moralidade realizada por Abraão o coloca numa relação
absoluta com o absoluto onde ele é o único responsável pela escolha que faz, cujo movimento
exigido para que seja concretizada é tão somente o absurdo paradoxal da fé. Não há
mediações, há somente o indivíduo diante de Deus. Sem métodos, sem lógica alguma, sem
questionamentos racionais.
Kierkegaard, ao finalizar o problema levantado quanto a suspensão teleológica, deixa
claro que Abraão não pode ser entendido. Que pela fé – qual salto sem cálculos na relação
com Deus – o patriarca toma consciência do verdadeiro sentido, telos de sua existência. Eis o
que diz em Temor e tremor:
A história de Abraão implica uma suspensão teleológica da moral. Como
Indivíduo, foi além do geral. Este é o paradoxo que se recusa à mediação.
Não se pode explicar nem como aí entra nem como aí permanece. Se este
não é o caso de Abraão, nem mesmo ele consegue ser herói trágico, é um
assassino. E então é estulto persistir em chama-lo pai da fé, e conversar
sobre ele com pessoas que desejam escutar mais do que palavras. O homem
pode vir a ser um herói trágico, pelas suas mesmas forças, porém não um
cavaleiro da fé. Quando um homem se mete no caminho, doloroso em um
sentido, do herói trágico, muitos devem estar prontos a aconselhá-lo; porém
aquele que segue a estreita senda da fé, não há quem o possa auxiliar, nem
quem o possa entender. (2009, p. 60-61)
Abraão foi além da moral. Passou do estádio ético para o estádio religioso – que dentre
os três estádios existências sobressai como superior aos demais – e é aí que sua existência
acontece de maneira autêntica. Não suprime a moral, como a partir de então ela deixasse de
ter seu valor. Mas, o fato é que, encontra em Deus por meio da fé, o verdadeiro sentido último
de tudo. Sentido que ultrapassa qualquer outro sentido.
Em Abraão, Kierkegaard faz entrever o percurso e o processo a que deve se submeter
todo indivíduo que escolher fazer o mesmo: crer com uma fé que é absurdo e paradoxo. Fé
que leva a uma suspensão teleológica da moralidade. A uma superação do dever moral por
outro totalmente incompreensível racionalmente que é a vontade de Deus, sentido último de
toda existência.
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CONCLUSÃO
O presente trabalho procurou apresentar a partir da obra pseudônima Temor e tremor de
Kierkegaard, a sua concepção de fé e seu argumento de que há uma suspensão teleológica da
moral. Apresentando ideias centrais de seu pensamento à luz dos três estádios da existência
por ele elaborados, foi possível perceber como sua obra encontra-se fundamentada em tal
esquema de interpretação da existência: estádio estético, estádio ético e estádio religioso,
sendo este último o que supera os demais e onde o indivíduo pode viver autenticamente sua
existência. Em Temor e tremor ficam evidenciados os estádios ético e religioso e o processo
de passagem que se dá de um para o outro mediante o absurdo paradoxo da fé. Somente na
esfera religiosa onde todas as certezas racionais da ética são abandonadas para dar lugar à fé
que não busca explicações é que é possível realizar uma suspensão teleológica da moral.
Kierkegaard trás à tona a história de Abraão para desenvolver essa ideia da suspensão. Para
provar a fé do patriarca, Deus pede-lhe o sacrifício do filho que tanto amava Isaac, em quem
se encontrava a garantia de sua posteridade.
Abraão escolhe, contudo, cumprir a vontade de Deus, esperando contra toda esperança.
Admite não poder fazer nada diante de tal pedido: resignação infinita. Porém, acima de
qualquer cálculo humano, acredita na providência divina: torna-se o Cavaleiro da fé. Pela
moral, sua decisão de sacrificar o próprio filho é encarada como crime. Pela fé, sua decisão se
justifica como ação santa em obediência a um pedido de Deus. O dever religioso acima do
dever moral. Por isso, abandona todas as certezas do estádio ético, onde a razão determina os
limites das escolhas e ações morais, onde há uma lógica a ser respeitada para, baseado na fé
tão somente, que é absurdo e paradoxo, suspender toda moralidade, o geral, e ficar sozinho
diante de Deus numa relação absoluta com Ele. Crendo, amando a Deus e a si mesmo,
descobre-se autorizado a ir além da moralidade de sua relação paterna com Isaac e pronto a
realizar o pedido divino.
Temor e tremor ao trazer uma análise da história de Abraão, o pai da fé, foi desde sua
publicação uma crítica de Kierkegaard às pretensões filosóficas da época de sistematizar e
explicar tudo racionalmente. O sistema hegeliano havia imposto concepções extremamente
lógicas e racionais onde a existência individual era tida como elemento objetivo e possível de
ser explicado. Kierkegaard pela interpretação que faz do evento bíblico que narra a
angustiante situação de Abraão frente a um pedido divino de que sacrificasse o próprio filho,
demonstra que a lógica da razão não é capaz de responder e explicar tudo. Abraão não
41
encontrou amparo racional para sua escolha. Restou-lhe o absurdo paradoxal da fé como
única alternativa. Somente à luz da mesma fé é possível admitir a decisão do patriarca e
concluir com Kierkegaard que, existe uma suspensão teleológica da moralidade.
42
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