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MITOS RELACIONADOS AO FRACASSO: RELAÇÕES ENTRE SAÚDE E

ESCOLA DENTRO DE UM AMBULATÓRIO EM CABO FRIO.

ROSANE BARBOSA MARENDINO

Mestre em Educação pela UFF e psicóloga do Centro de Saúde Osvaldo Cruz

[email protected]

Resumo:

Em linhas gerais essa pesquisa buscou compreender aspectos das relações

vivenciadas no espaço de um posto de saúde municipal (mais especificamente no

ambulatório de psicologia) dentro de uma abordagem do cotidiano. A perspectiva sócio-

antropológica serviu como base teórica para a compreensão desse cotidiano e de suas

formas simbólicas. Baseada na Sócio-Antropologia de Michel Maffesoli e no paradigma

da Complexidade de Edgar Morin, foi-se tecendo a rede de diálogos em busca de um

novo repensar dessas relações.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, etnográfica e narrativa, onde casos foram

trazidos para estudo, imagens e cenas do cotidiano foram ressaltadas, relatórios e

discursos de professores foram analisados e cenas de interstício foram captadas.

Partindo de um espaço de exclusão - detectado através das extensas listas de

encaminhamento de alunos ao ambulatório médico - abordamos questões ligadas à

formação do profissional da saúde (mais especificamente, o psicólogo), à biologização

das questões educacionais e à incorporação de um discurso técnico pelas professoras,

até chegarmos ao ambulatório, onde as famílias e alunos foram observados na

construção do seu imaginário.

É importante ressaltar que dentro de uma perspectiva do universo simbólico,

portas devem ser abertas e a afetividade resgatada dentro do espaço-escola. Diálogos

devem ser estabelecidos entre profissionais da saúde e educação. Entendemos que essa

tomada de consciência pode levar a uma compreensão mais profunda dessa relação,

tornando o fracasso uma porta a ser fechada.

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A pesquisa buscou, ainda, investigar projetos educacionais, expressos tanto na

política oficial como nos movimentos de resistência, visando valorizar formas

instituintes da formação de profissionais da educação; dedicou-se a uma breve análise

institucional através de Pagés, Kaës e Lapassade; fez um breve relato do nascimento da

Psicologia Científica e seu papel no contexto da Educação; observou aspectos da

biologização no binômio saúde-escola e penetrou na complexidade da dimensão

institucional mediante o lugar do afeto.

Histórias e relatos que traçam o imaginário na relação pedagógica foram

apresentados através das narrativas de casos de alunos - encaminhados pelas professoras

da rede municipal de Cabo Frio ao posto de saúde ambulatorial - alunos estes que

chegam ao ambulatório de psicologia com o estigma do “fracasso”. São apresentadas

quatro narrativas, nas quais aspectos dos desenhos dos alunos foram utilizados como

instrumento de avaliação e interpretação, interpretações essas que tiveram como base

teórica o estudo de Marcel Postic. Na análise feita através dos desenhos colhidos e cujo

tema seria “Desenhe a sua escola”, um aspecto perseverante chamou a atenção, pois,

em aproximadamente 80% dos desenhos feitos haveria a representação de “portas”

sempre numa dimensão ou foco destacado. Utilizando o “Dicionário de Símbolos” de

Chevalier e Gheerbrant, percebe-se que o símbolo “porta” evoca a idéia de

transcendência, acessível ou proibida, dependendo se a porta estiver aberta ou fechada,

se tiver sido transposta ou simplesmente vista. Portanto, a pesquisa buscou, através do

símbolo, analisar uma coletânea de desenhos de alunos onde pudemos ver grades,

portões, números enormes de portas, sempre parecendo representar “acesso”. Nesse

ponto coube à pesquisa perguntar: Como é o acesso à escola? Por que, geralmente,

essas portas estão fechadas? Por que a representação de muros e grades como se fossem

obstáculos a serem vencidos? O símbolo saltou rompante através dos desenhos,

expressando riquezas emocionais muitas vezes desprezadas pela insensibilidade,

perdida entre os conteúdos das matérias, misturadas às atividades dirigidas em cima das

mesas.

A escola, espaço de entrelaçamento de grupos diversos, parece ser representada

como um mundo fechado. Uma rede social é formada e dentro dela, normas, regras, leis.

Dentro desse mundo pode-se sentir protegido, mas também se pode sentir oprimido.

Alguns encontram abrigo, outros querem sair a qualquer custo. A função psicossocial

vai sendo construída, conflitos surgem e novas exigências também. O confronto com o

mundo social se estabelece.

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A criança passa a observar os outros, reconhece os comportamentos, os valores,

as normas, deseja ter o papel de certos colegas, experimenta tornar-se parecida com

eles, busca sustentação nos professores, idealiza-os, enfim, constrói experiências e a

imagem de si mesma. Na escola, ela sente vontade de vencer, mas, às vezes isso traz

amargas desilusões.

Quanto ao professor é atribuído o conhecimento da existência, no plano pessoal

e social. Para tudo o aluno pensa que o professor pode dar respostas. Sendo assim, o

professor passa a ser um elemento de identificação. Ao ocorrer essa identificação, vêm

juntos movimentos pulsionais que tanto podem ser libidinais como também agressivos.

Portanto, desejos de ser como um professor, funciona, muitas vezes, como estímulo para

a progressão pessoal da criança.

Se a escola forma um sistema de vida, devemos considerar que a família também

forma. Um jogo é estabelecido entre os dois sistemas, num contexto inter-relacional. As

diferenças culturais entre escola e família e entre família e famílias, leva ao

questionamento de regras, a referências, a descobertas, a comparações. Cada criança

traz consigo uma história de vida, uma história de relação com seus pais, de suas

maneiras de reagir, de sua conduta. E é com essa história que ela chega à escola. Muitos

conflitos trazidos serão revelados no espaço escolar, principalmente na relação aluno-

professor. Quando o professor é objeto de amor, o aluno quer chamar a sua atenção

mudando comportamentos antes negativos por novas condutas aplicáveis. Porém,

quando o professor torna-se figura de rejeição, manifestações como desordem, agressão

e revolta são observadas. Nesses conflitos, levantamos a importância do diálogo entre

família-professor, buscando, juntos, a origem das dificuldades existentes, ao contrário

de logo enviar o aluno e as famílias a buscarem respostas nos especialistas, nos

médicos, nos técnicos. Quanto mais as relações entre pais e professores se passarem

num ambiente de compreensão e quanto mais as representações recíprocas evoluírem,

tanto mais a criança se sentirá apoiada.

Diante de todos estes aspectos levantados, conclui-se que há um murmúrio

cotidiano que, a todo tempo, aponta a necessidade de resgatar uma sensibilidade

escondida e necessária. Há um clamor constante pelo afeto autêntico como possibilidade

de superar as dificuldades. E o afeto autêntico exige amadurecimento. É óbvio que há de

se considerar que valores, preconceitos, leis e costumes são internalizados pelo

professor sem que ele tenha consciência disso e que tal fato interfere nas suas relações

cotidianas com a criança. Mas, quando a relação professor-aluno é autenticamente

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afetiva, essas dificuldades são superadas. É importante ressaltar que, ao identificarmos

este processo, não estamos pretendendo colocar mais uma culpa sobre o professor que,

na verdade, é agente e vítima dessa situação. Mas, faz-se necessário o resgate da

sensibilidade, além da formação adequada.

Essa questão da formação podemos ver, também, dentro da situação do médico

ou do especialista que recebe a criança encaminhada pelo professor. A formação do

médico e dos especialistas brasileiros geralmente não inclui o conhecimento das

características das crianças e dos aspectos do seu desenvolvimento nas questões que

envolvem a escolaridade, além da falta de discussões sistematizadas sobre o papel social

da medicina na sociedade, o que acaba levando até a medicalização do fracasso escolar.

Essas mentes profissionais, formadas pela tendência às disciplinas isoladas, deixam de

contextualizar questões e saberes. Cada qual tende a ser responsável apenas por sua

tarefa especializada, fato esse que vem a impedir a percepção global, tornando-a

fragmentada em parcelas.

Ao finalizar gostaríamos de ressaltar que a pesquisa focou seu olhar a todo esse

contexto, estabelecendo suas conclusões voltada para o paradigma da Complexidade

que, ao citar Edgar Morin, esse nos diz ser preciso recriar uma ética da compreensão,

compreendendo a incompreensão para, então, fazer disso uma arte de viver. É preciso

argumentar ao invés de excomungar. É preciso refutar ao invés de anatematizar. É

preciso evitar a condenação irremediável como se nós nunca tivéssemos cometido um

erro, afirmando, ainda que a ética não pode reduzir-se ao político, do mesmo modo que

o político não pode reduzir-se à ética. É necessária a dialógica entre esses dois aspectos.

A partir do estabelecimento desse diálogo poderíamos fazer da política uma grande arte

a serviço do ser.

E é esse o convite que deveríamos ver nas “portas”: um convite que propõe vê-

las jamais como um obstáculo, mas sim como diferentes passagens, de forma que a

interdisciplinaridade venha a se constituir como um possível caminho.

Eixo temático no XIV Encontro da ABRAPSO: Educação.

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Em 1994 fui convidada a integrar , na função de psicóloga, a equipe técnica da

Divisão de Educação Especial (DEPED) ligada à Secretaria Municipal de Educação de

Cabo Frio (SEMEC). Essa equipe, composta de psicólogas, fonoaudiólogas, pedagogas

e assistentes sociais, tinha a função de avaliar os alunos considerados "problema" e que

chegavam até a equipe através de uma queixa escolar. No procedimento utilizado, o

professor que considerasse seu aluno como candidato a uma avaliação, encaminharia

para a avaliação da equipe e lá passaria por uma série de exames e encaminhamentos

necessários.

O resultado disso é que, em apenas um ano de criação do DEPED, chegavam

listas diárias com, aproximadamente, 5 alunos encaminhados (o que perfazia um total de

130 alunos avaliados por mês). Ao final de um ano chegamos a avaliar cerca de 1500

alunos da Rede Municipal de Ensino em Cabo Frio.

Foi então que comecei a me deparar com a tarefa de atestar, fornecer laudos e

oficializar, com o aval de especialista, a exclusão desses alunos ou o encaminhamento

deles para Centros de Educação Especial - verdadeiros depósitos de crianças julgadas

incompetentes - onde "competência” estaria ligada a um conceito de normalidade, a um

padrão, a um modelo.

Eu começava a sentir um certo incômodo de estar ali, servindo de técnica, com o

poder de decisão sobre a vida escolar daqueles alunos. Os conhecimentos adquiridos em

minha formação acadêmica na Psicologia estavam distantes desse movimento da

prática. Naquele momento eu questionava: Que instrumentos o curso de formação me

oferecia para enfrentar esse desafio que se colocava em minha prática? Como a

utilização da Psicologia pela Educação vinha se dando? Comecei a perceber a

perspectiva da Psicologia restringindo as questões da Educação apenas à dimensão

psicológica com evidente influência escolanovista. Essa perspectiva reducionista e

fragmentada dissocia o indivíduo das influências histórico-sociais do seu cotidiano e o

descontextualiza. E, por sua vez, o contexto da Educação Brasileira acabaria por criar

uma máquina de exclusão poderosa que ainda hoje vemos se alastrar.

Tal temática provocou-me a buscar por estudos e pesquisas de autores brasileiros

que tratam dessa questão e, que acabaram por me mostrar, a necessidade de construir

novos caminhos. Dentre esses autores, considero importante ressaltar estudos e

pesquisas de:

. Patto (1987) que analisou como os psicólogos escolares têm sido veículos da

visão de mundo dominante, contribuindo, portanto, para a manutenção de um sistema

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social. A autora aponta, ainda, a tradição positivista dos cursos brasileiros de formação

de psicólogos que, embora se digam imparciais e neutros, na verdade estão

comprometidos com uma ideologia, tornando-se aliados de um pesado sistema de

conformismo social.

. Coimbra (1995) que desvela o lado da profissão do psicólogo formada na

ditadura; mostra o uso da ameaça como um modelo paradigmático; “desnaturaliza”

verdades que aprisionam e alerta os psicólogos para a dimensão histórica e social de

idéias e técnicas que aparecem como isentas sem realmente o serem.

. Ferreira (1987) que analisa os manuais de Psicologia da Educação utilizados

nos cursos de Pedagogia e mostra como essa disciplina direciona-se para um modelo de

criança distantes das crianças reais que o futuro professor irá encontrar na sala de aula.

Essa difusão da Psicologia distante da realidade dos futuros professores e de seus

alunos, acaba por não fornecer instrumentos eficazes que possa orientar a prática

pedagógica.

. Moysés e Collares (1992) que falam sobre o processo de biologização da

sociedade, revelando a necessidade de explicar e reduzir os conflitos a questões

individuais, diminuindo as circunstâncias sociais e isentando o sistema sócio-político ao

passar para o indivíduo a responsabilidade pelo seu destino e sua condição de vida, ou

seja, demonstrando uma tendência a tornar patológico aquilo que é social.

Ao tomar consciência dessas questões instalou-se, em mim, uma crise.

Paradigmas em contradição me mostravam que mudanças conceituais estavam sendo

necessárias. Essa patologização do espaço escolar dificultando transformações, crianças

rotuladas e introjetando doenças inexistentes, com graves repercussões em suas auto-

imagens, estava causando-me um profundo incômodo. Entendi que uma das possíveis

resoluções desse conflito seria a busca de uma fundamentação epistemológica, partindo

de uma posição crítica sobre os paradigmas clássicos e a busca de novas possibilidades

de comunicação e de reflexão.

Esse momento coincidia com uma nova mudança que acabava de acontecer em

minha vida profissional: a equipe do DEPED estava sendo desfeita por questões de

mudanças na política do município. E, ao sair da equipe técnica, optei pelo trabalho na

área clínica, pensando que poderia, assim, discutir questões que estivessem mais

especificamente ligadas à saúde. Sendo assim, em 1999 fui encaminhada para

atendimentos na área ambulatorial de um Posto de Saúde Municipal (o Centro de Saúde

Osvaldo Cruz – C.S.O.C.) no qual a clientela caracterizava-se por mulheres e crianças.

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A princípio não imaginava que nessa nova atividade estaria cruzando, novamente, com

a questão do fracasso escolar. Supunha que as clientes seriam mulheres com

dificuldades emocionais ou gestantes necessitando de apoio. E qual foi a minha surpresa

quando me deparei, mais uma vez, com os "listões" de crianças com queixas escolares!

As escolas, cientes da presença do psicólogo no Posto de Saúde, começaram a

encaminhar seus "alunos-problema" para tratamento.

Aquele meu desconforto permanecia...Não cessou quando foi desfeita a equipe

do DEPED. Por "ironia do destino" estava eu lá de novo, computando o número enorme

de crianças chegando em busca de um diagnóstico. E não somente do diagnóstico, mas

também do tratamento, da "cura", do laudo atestador.

A partir de então, decidi buscar nos estudos acadêmicos, alguns subsídios que

pudessem dar conta das incertezas e angústias que novamente surgiam. Apresentei-me

ao concurso de Mestrado na Universidade Federal Fluminense e comecei a desenvolver

meu projeto com questões que, inicialmente, nortearam a minha pesquisa.

1 De que forma compreender o fracasso escolar e as condições sociais que o

determinam?

2 Como a escola incorpora a questão da legitimação desse fracasso em busca

de uma explicação científica?

3 Até que ponto o especialista (mais especificamente o psicólogo) passa a ser

um álibi na exclusão dos alunos?

4 Como esses alunos e suas famílias sentem, percebem e apreendem a situação

de "fracassados"?

5 Quais os sentimentos do professor perante o aluno que ele considera um

"fracasso"?

Desfeito o paradigma da ciência clássica – que controla, mede e quantifica – e

identificadas as marcas deixadas pelo mesmo na Psicologia e Educação, dei partida a

novos paradigmas passando pela análise crítica da macroestrutura até mergulhar na

perspectiva da complexidade. As leituras de alguns textos de Edgar Morin alargaram,

ainda mais, as minhas fronteiras. Ia fazendo sentido a Sociologia do Cotidiano de

Maffesoli, juntamente com os esclarecimentos trazidos por Morin nos quais a palavra

Complexidade me empurraria para que explorasse tudo, considerando que o pensamento

complexo é o pensamento que, armado dos princípios de ordem, leis, algoritmos,

certezas, idéias claras, “patrulha no nevoeiro do incerto, do confuso, do indizível, do

indecisível” (apud, Mont´Alverne Chaves, 2000, p. 31).

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A relação entre ordem-desordem-organização me levava a pensar no paradigma

recursivo: complementaridade, concorrência e antagonismo. Passear por essa proposta

oferecia uma rica caminhada. A trajetividade – trajeto e movimento entre o concreto e o

subjetivo – chegava até o imaginário. Surgiu, assim, a minha proposta de estudo e

pesquisa em direção a um novo paradigma acolhedor de pensadores de vários campos.

Portanto, a proposta desse estudo incluiu a reflexão não só sobre os aspectos

econômicos, mas também, sobre os aspectos bio-sócio-político-culturais que envolvem

a questão do dito fracasso escolar, analisando-o dentro das instituições escolares, na

observação do cotidiano e junto aos mitos que envolvem essa questão.

De natureza qualitativa e de cunho etnográfico1, a pesquisa teve como

perspectiva metodológica as narrativas - no sentido em que Mont'Alverne Chaves

(2000) descreve – ou seja, a análise das falas, do cotidiano, o estudo das imagens e das

estruturas antropológicas, assim como do levantamento de fatores, agentes, mecanismos

e processos que interferem numa instituição.

Fundada nesse olhar, a pesquisa adentrou as teias entremeadas pelo visível e

pelo invisível que tecem o cotidiano do Centro de Saúde Osvaldo Cruz. Na observação

desse cotidiano, de pacientes e suas famílias no banco de espera do ambulatório, pôde-

se perceber a riqueza contida nas conversas informais, nos contatos e trocas

estabelecidas entre eles no momento da espera do atendimento e, também, nos tempos

de entrevistas. Além disso, o diálogo mantido com as professoras através dos relatórios

enviados apontou questões do dia-a-dia que viriam a ter um significado.

Ao perguntar-me como e por quê os indivíduos deixam as organizações

resolverem por eles, por quê trocam benefícios, por quê se destituem de poder, por quê

aceitam perambular perdidamente pelos corredores, por quê insistem em buscar um

diagnóstico que lhes forneça uma identidade, senti a necessidade de identificar a visão

pelos olhos dos “fracassados” : como tomam consciência, como lidam com a exclusão

e quais os sentimentos envolvidos nessa questão.

Considerou-se importante, a partir de então, apontar aspectos do nascimento da

psicologia como ciência e as implicações desse fato no cenário educacional. As leituras

da autora Maria Helena Souza Patto e Cecília Coimbra muito contribuíram nesse

1 Para tal busquei subsídios em Pierre Erny (1982) que define etnografia como o levantamento de fatores, agentes, mecanismos e processos que interferem na socialização dos grupos bem como na constituição de seu imaginário, levando em conta questões do meio físico, social e cultural; mecanismos psicológicos e comportamentais; atos pedagógicos; processos de comunicação; agentes da socialização, dentre outros fatores relevantes.

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sentido e foram enriquecidas de observações colhidas através de apontamentos do artigo

“O papel do psicólogo hoje” (Lobo, 1988). O que pudemos perceber é que os custos que

o século XIX teve que pagar, para construir a condição de ciência, foram altos. E a

prática que saiu desse arcabouço foi a de medir, prever e controlar para depois

selecionar e emitir pareceres. A Psicologia nasce já calcada em métodos baseados nas

técnicas de laboratório, analítico-sintéticos, com o intuito de construir uma ciência

experimental que mensurasse fatos da consciência. Assumindo a tarefa de “despolitizar

os fenômenos sociais da delinqüência, da repetência escolar, dos acidentes de trabalho

e da loucura” (Lobo, 1988), a profissão do psicólogo instaura-se no Brasil dos anos

60/70. E um dos campos prósperos onde a psicologia pôde crescer e multiplicar-se foi o

da educação. Ao psicólogo tem cabido diagnosticar as supostas deficiências

psicológicas dos marginalizados para, posteriormente, procurar os meios

psicopedagógicos para promover a integração destes à cultura da classe média. Com tal

cunho ideológico inegável, Moysés e Collares (1992) também contribuem, de forma

crítica, com tal análise ao olhar aos aspectos da biologização, ressaltando o fato do

patológico passar a ser resposta ao social. Dentre as manifestações clínicas e

sintomáticas de “doenças” ligadas às queixas escolares, estariam a hiperatividade, a

agressividade, os distúrbios de linguagem e atenção, os transtornos de humor, as

dificuldades de aprendizagem, dentre outras. Sem a padronização de qualquer critério

ou objetividade, o diagnóstico acaba sendo construído com a combinação de sintomas,

onde qualquer combinação é suficiente. Assim, abre-se um leque para que uma mesma

criança possa receber o título de portadora de várias síndromes, disfunções ou

distúrbios, comprometendo a imagem dessa criança e garantindo um álibi para o próprio

processo escolar.

Na análise da instituição, baseada nos estudos de Pagés, Kaës, Enriquez e

Lapassade, a pesquisa volta-se para o local onde “tudo acontece”: o ambulatório de

psicologia do C.S.O.C. e a escola trazida até ele. Nos números coletados, pode-se

constatar que, nos anos de 2002 e 2003, de 265 crianças e adolescentes atendidas no

ambulatório de psicologia – de 1 a 12 anos de idade – 162 deles foram encaminhados

pelas escolas.

A pesquisa buscou, então, estudar as relações estabelecidas dentro do espaço

ambulatório-escola através dos relatos de mães, crianças e professoras que puderam

apontar, como nos diz Pagés (1990), para o fato de que as organizações alcançam parte

de seu poder por trazerem respostas às contradições psicológicas e interindividuais. Nos

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relatos das mães e pais pudemos observar, constantemente, um misto de pequena

esperança com uma parcela de desconfiança pelos encaminhamentos feitos. O

sentimento expresso por uma grande parte das famílias seria o de que não terem certeza

exata do que o tratamento com o especialista significaria: um alívio?; uma constatação

diagnóstica?; mais um problema?; uma possibilidade não encontrada na escola?; a

terapia medicamentosa que pudesse curar?

Quanto aos professores que encaminham seus alunos ao ambulatório pudemos

perceber – através dos vários relatórios analisados - as estratégias mediante uma

situação pedagógica; a esperança na possibilidade técnica da qual a escola não

conseguiu dar conta; a insegurança ao lidar com determinadas questões que as suas

formações não permitiram aprofundarem-se; a apropriação indevida de termos médicos

para referirem-se aos sintomas apresentados pelos alunos.

Já os alunos - crianças e adolescentes em idade escolar - pudemos analisar falas,

momentos, gestos e desenhos. Nesse último recurso metodológico citado, foi pedido às

crianças que desenhassem as suas escolas. Nesses desenhos, um aspecto perseverante

chamou-nos a atenção: as portas. Em aproximadamente 80% dos desenhos analisados

haveria a representação de portas sempre de forma e dimensões destacadas. Chevalier e

Gheerbrant (1999) descrevem o símbolo da porta evocando a idéia da transcendência,

acessível ou proibida, dependendo dos aspectos representados. Portas a serem

ultrapassadas. Portas de chegada, mas também de saída. Entrar por uma porta pode ser

um desafio muitas vezes doloroso. E, sair por elas, talvez represente a única solução,

uma passagem entre dois mundos, entre a luz e as trevas, entre a morte e ressurreição. O

símbolo salta rompante através dos desenhos, expressando riquezas emocionais muitas

vezes desprezadas pela insensibilidade, perdida entre os conteúdos das matérias,

misturadas às atividades dirigidas em cima das mesas. E a escola, espaço de

entrelaçamento de grupos diversos, parece estar representada como um mundo fechado

por grades e portões imaginários.

O ser humano é uma unidade complexa da natureza. É, a um só tempo, físico,

biológico, psíquico, cultural, social, histórico. Essa estrutura tem sido desintegrada na

educação. Portanto, é preciso restaurá-la, tornando a condição humana objeto essencial

de todo o ensino. E dentre os sete saberes necessários à educação, citados por Morin

(2001), um deles refere-se ao ensino da compreensão como meio e fim da comunicação

humana. Para tal, a reforma das mentalidades faz-se necessária dentro das relações

humanas, fazendo surgir uma etnodidática, na qual o estudo da incompreensão deverá ir

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até as suas raízes, como, por exemplo, as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo,

da exclusão. O problema da compreensão tornou-se crucial para o ser humano, pois não

guarda em si apenas a dimensão quantificada, mas sim a missão espiritual de ensinar

compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e

moral da humanidade. Compreender inclui empatia, identificação, projeção. Sempre

intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade. As idéias

preconcebidas, as racionalizações, a autojustificação, a incapacidade para a autocrítica,

a arrogância, a recusa, o desprezo, a fabricação de culpados são conseqüências das

piores incompreensões, produzindo embrutecimento.

“ A incapacidade de conceber um complexo e a

redução dos conhecimentos de um conjunto ao

conhecimento de uma de suas partes provocam

conseqüências ainda mais funestas no mundo

das relações humanas que no do conhecimento

do mundo físico”. (Morin, 2000, p. 98).

Durante o século XX, a tendência científica em excluir tudo o que não fosse

quantificável e mensurável, acabou por eliminar o elemento humano do humano, ou

seja, as paixões, as dores, as alegrias: as emoções. Nesse espaço compartimentalizado,

onde tudo é separado e isolado, coube a tendência da não-valorização do contexto, da

interação e do complexo. O desafio, o descaminho, a utopia, a desordem, a compaixão, a

beleza, o amor tem que estar fundamentados numa ética da compreensão, do debate, da

magnanimidade, da resistência. Mais do que palavras estes são sentimentos em busca

de uma cumplicidade, em busca da complexidade.

Toda obsessão pelo controle, pela técnica, pela medição que durante tanto tempo

permeou as idéias e as relações entre os homens, fixados numa racionalidade fechada,

deve abrir-se hoje a uma nova obsessão: a da compreensão. As teorias científicas não

são a resolução dos problemas. A ciência não pode ser um manual de respostas frias. Ela

deve ser dialógica, interativa. A escola não contém as respostas sobre o “fracasso” de

alguns alunos. O psicólogo também não. Mas, se ampliarmos, atualizarmos e

formatamos essa situação é possível entender que há um novo homem que quer correr o

risco de pensar complexo e há um projeto de sociedade mais justa.

O pensamento tecnocrático é incapaz de compreender o vivo, o humano. Mas,

em contrapartida, uma ética compreensiva estimula a busca do novo, do

aperfeiçoamento, da revisão do que já foi feito e do construir novamente. Isso é um

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convite. E é esse o convite que deveríamos ver nas portas. Esse convite propõe vê-las

jamais como um obstáculo, mas sim como diferentes passagens.

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