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INDAGAES SOBRE CURRCULO Currculo, Conhecimento e Cultura

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Ministrio da Educao Secretaria de Educao Bsica Diretoria de Concepes e Orientaes Curriculares para Educao Bsica

Ministrio da Educao Secretaria de Educao Bsica Esplanada dos Ministrios, Bloco L, sala 500 CEP: 70.047-900 Braslia-DF Tel. (061) 2104-8612/8613 Fax: (61) 2104-9269 http://www.mec.gov.br

Ficha catalogrfica

[Moreira, Antnio Flvio Barbosa] Indagaes sobre currculo : currculo, conhecimento e cultura / [Antnio Flvio Barbosa Moreira , Vera Maria Candau] ; organizao do documento Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Pagel, Ariclia Ribeiro do Nascimento. Braslia : Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica, 2008. 48 p.

1. Ensino Fundamental - Brasil. 2. Educao Bsica. 3. Currculo. 4. Conhecimento. 5. Cultura. I. Candau, Vera Maria. II. Beauchamp, Jeanete. III. Pagel, Sandra Denise. VI. Nascimento, Ariclia Ribeiro do. V. Brasil. Secretaria de Educao Bsica. VI. Ttulo. CDU 37.046.12Ficha Catalogrfica elaborada pela Bibliotecria Lcia Helena Alves de Figueiredo CRB 1/1.401

Impresso no Brasil

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Ministrio da Educao Secretaria de Educao Bsica

INDAGAES SOBRE CURRCULO Currculo, Conhecimento e Cultura

Braslia 2008

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Ministrio da Educao Secretaria de Educao Bsica Organizao do DocumentoJeanete Beauchamp Sandra Denise Pagel Ariclia Ribeiro do Nascimento

Equipe de ApoioCristiana Martins de Azevedo Lucineide Bezerra Dantas Marlene Matos de Oliveira Miriam Sampaio de Oliveira

Coordenadores do grupo de trabalho responsvel pela elaborao do documentoAntnio Flvio Moreira Miguel Gonzles Arroyo Jeanete Beauchamp Sandra Denise Pagel Ariclia Ribeiro do Nascimento

Reviso de textoMrcia Helena Lopes

Projeto Grfico e EditoraoFormatos design

Tiragem740 mil exemplares

Grupo de trabalhoAriclia Ribeiro do Nascimento Ceclia Correia Lima Sobreira de Sampaio Cleyde de Alencar Tormena Eliza Montrezol Jane Cristina da Silva Jeanete Beauchamp Karina Rizek Lopes Luciana Soares Sargio Lydia Bechara Mrcia Helena Lopes Maria Eneida Costa dos Santos Roberta de Oliveira Roseana Pereira Mendes Sandra Denise Pagel Stela Maris Lagos Oliveira Sueli Teixeira de Mello Telma Maria Moreira (in memoriam) Vitria Lbia Barreto de Faria

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ApRESENTAO

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publicao que a Diretoria de Concepes e Orientaes Curriculares para Educao Bsica - DCOCEB, vinculada Secretaria de Educao Bsica SEB, deste Ministrio da Educao MEC, ora apresenta, tem como objetivo principal deflagrar, em mbito nacional, um processo de debate, nas escolas e nos sistemas de ensino, sobre a concepo de currculo e seu processo de elaborao. No recente a abordagem curricular como objeto de ateno do MEC. Em cumprimento ao Artigo 210 da Constituio Federal de 1988, que determina como dever do Estado para com a educao fixar contedos mnimos para o Ensino Fundamental, de maneira a assegurar a formao bsica comum e respeito aos valores culturais e artsticos, nacionais e regionais, foram elaborados e distribudos pelo MEC, a partir de 1995, os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educao Infantil/RCNEI, os Parmetros Curriculares Nacionais/PCNs para o Ensino Fundamental, e os Referenciais Curriculares para o Ensino Mdio. Posteriormente, o Conselho Nacional de Educao definiu as Diretrizes Curriculares para a Educao Bsica. No momento, o que est em discusso a elaborao de um documento que, mais do que a distribuio de materiais, promova, por meio de uma estratgia dinmica, a reflexo, o questionamento e um processo de discusso em cada uma das escolas e Secretarias de Educao sobre a concepo de currculo e seus desdobramentos. Para tanto, sugerimos inicialmente alguns eixos que, do nosso do ponto de vista, so fundamentais para o debate sobre currculo com a finalidade de que professores, gestores e demais profissionais da rea educacional faam reflexes sobre concepo de currculo, relacionando-as a sua prtica. Nessa perspectiva, pretendemos subsidiar a anlise das propostas pedaggicas dos sistemas de ensino e dos projetos pedaggicos das unidades escolares, porque entendemos que esta uma discusso que precede a elaborao dos projetos polticos pedaggicos das escolas e dos sistemas. Dessa forma, elaboramos (5) cinco cadernos priorizando os seguintes eixos organizadores: Currculo e Desenvolvimento Humano; Educandos e Educadores: seus Direitos e o Currculo; Currculo, Conhecimento e Cultura; Diversidade e Currculo; Currculo e Avaliao. No momento em que ocorre a implementao do Ensino Fundamental de nove anos e a divulgao dos documentos consolidados da Poltica Nacional de Educao Infantil, necessrio retomar a reflexo sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil ao j desencadeada pelo Conselho Nacional de Educao.

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A liberdade de organizao conferida aos sistemas por meio da legislao vincula-se existncia de diretrizes que os orientem e lhes possibilitem a definio de contedos de conhecimento em conformidade base nacional comum do currculo, bem como parte diversificada, como estabelece o Artigo 26 da vigente Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional LDB n 9.394, de 20 de dezembro de 1996: Os currculos do ensino fundamental e mdio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas caractersticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. Com a perspectiva de atender aos desafios postos pelas orientaes e normas vigentes, preciso olhar de perto a escola, seus sujeitos, suas complexidades e rotinas e fazer as indagaes sobre suas condies concretas, sua histria, seu retorno e sua organizao interna. Torna-se fundamental, com essa discusso, permitir que todos os envolvidos se questionem e busquem novas possibilidades sobre currculo: o que ? Para que serve? A quem se destina? Como se constri? Como se implementa? Levando em considerao que o processo educativo complexo e fortemente marcado pelas variveis pedaggicas e sociais, entendemos que esse no pode ser analisado fora de interao dialgica entre escola e vida, considerando o desenvolvimento humano, o conhecimento e a cultura. Partindo dessa reflexo, convidamos gestores, professores e demais profissionais da educao para um debate sobre os eixos organizadores do documento sobre currculo. O fato de termos chamado estes estudiosos para elaborarem os textos significa haver entre eles pontos de aproximao como, por exemplo, escola inclusiva, valorizao dos sujeitos do processo educativo, cultura, conhecimento formal como eixo fundante, avaliao inclusiva. Por privilegiarmos o pensamento plural, reconhecemos nos textos tambm pontos de afastamento. Assim, ser possvel encontrar algumas concepes sobre currculo no necessariamente concordantes entre si. justamente divulgando parte dessa pluralidade que o MEC contribui com a discusso. H diversidade nas reflexes tericas, porque h diversidade de projetos curriculares nos sistemas, nas escolas. Esse movimento, do nosso ponto de vista, enriquece o debate. Em um primeiro momento, foi solicitado a profissionais, diretamente envolvidos com a questo curricular junto aos sistemas de ensino, indicados pelo/a UNDIME, CONSED, SEESP/MEC, SECAD/MEC, CONPEB/MEC, REDE/MEC, que respondessem seguinte questo: que interrogaes sobre currculo deveriam constar em um texto sobre esse tema? Posteriormente, esses profissionais efetuaram a leitura dos textos preliminares elaborados pelos autores do GT CURRCULO, visando a responder a uma segunda questo: como os textos respondem s interrogaes levantadas? Foi solicitado ainda que apresentassem lacunas detectadas nos textos e contribuies. Coube

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Apresentao

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equipe da SEB sistematizar e analisar as contribuies, apresentadas pelo grupo anteriormente citado em reunio de trabalho em Braslia, e elaborar um pr-texto para discusso em seminrios a partir da sistematizao das propostas apresentadas na consulta tcnica. Em um segundo momento, visando elaborao final deste documento, ocorreu em Braslia um seminrio denominado Currculo em Debate, organizado em duas edies (novembro e dezembro de 2006). Nessa ocasio, os textos, ainda em verso preliminar, foram socializados e passaram pela anlise reflexiva de secretrios municipais e estaduais de educao; de profissionais da educao representantes da UNDIME, do CONSED, do CNE e de entidades de carter nacional como CNTE, ANFOPE, ANPED; de professores de Universidades que procuraram apresentar as indagaes recorrentes de educadores, professores, gestores e pesquisadores sobre currculo e realizar um levantamento da potencialidade dos textos junto aos sistemas. Esse evento contou com a expressiva participao de representantes das secretarias estaduais e municipais de educao e da secretaria do Distrito Federal, em um total de aproximadamente 1500 participantes. Os textos chegam agora aos professores das escolas, dos sistemas. Apresentam indagaes para serem respondidas por esses coletivos de professores, uma vez que a proposta de discusso sobre concepo curricular passa pela necessidade de constituir a escola como espao e ambiente educativos que ampliem a aprendizagem, reafirmando-a como lugar do conhecimento, do convvio e da sensibilidade, condies imprescindveis para a constituio da cidadania. Entendemos, tambm, haver outras perspectivas, ainda no contempladas, a serem consideradas. O objetivo no , portanto, esgotar todas as possibilidades em uma nica publicao. Propomos uma reflexo para quem, o que, por que e como ensinar e aprender, reconhecendo interesses, diversidades, diferenas sociais e, ainda, a histria cultural e pedaggica de nossas escolas. Posicionamo-nos em defesa da escola democrtica que humanize e assegure a aprendizagem. Uma escola que veja o estudante em seu desenvolvimento criana, adolescente e jovem em crescimento biopsicossocial; que considere seus interesses e de seus pais, suas necessidades, potencialidades, seus conhecimentos e sua cultura. Desse modo comprometemo-nos com a construo de um projeto social que no somente oferea informaes, mas que, de fato, construa conhecimentos, elabore conceitos e possibilite a todos o aprender, descaracterizando, finalmente, os lugares perpetuados na educao brasileira de xito de uns e fracasso de muitos. Os eixos aqui apresentados so constitutivos do currculo, ao lado de outros. No pretenso deste documento abranger todas as demais dimenses. As aqui destacadas convergem, especialmente, para o desenvolvimento humano dos sujeitos no processo educativo e procuram dialogar com a prtica dos sujeitos desse processo.

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O MEC tem conscincia da pluralidade de possibilidades de implementao curricular nos sistemas de ensino, por isso insiste em estabelecer o debate dentro de cada escola. Assim, optou por discutir eixos organizadores do currculo e no por apresentar perspectiva unilateral que no d conta da diversidade que h nas escolas, da diversidade de concepes tericas defendidas por pesquisadores e estudiosos. Professores do Ensino Fundamental, professores da Educao Infantil, gestores constituem, inicialmente, o pblico a quem se dirige este documento. Com o objetivo de debater eixos organizativos do currculo, o Ministrio considera o texto destinado tambm a todos os envolvidos com o processo educativo. A discusso, portanto, extrapola a circunscrio do espao escolar. Ministrio da Educao Secretaria de Educao Bsica

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INTRODUO

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oletivos de educadores e educadoras de escolas e Redes vm expressando inquietaes sobre o que ensinar e aprender, sobre que prticas educativas privilegiar nas escolas, nos congressos de professores e nos dias de estudo e planejamento. Por seu lado, a teoria pedaggica tem dado relevncia a pesquisas e reflexo sobre o currculo: h teoria acumulada para reorientaes bem fundamentadas, teoria a que tm direito os profissionais da Educao Bsica. Que dilogo possvel entre a teoria acumulada e as propostas e prticas de reorientao curricular? A reflexo sobre o currculo est instalada como tema central nos projetos poltico-pedaggicos das escolas e nas propostas dos sistemas de ensino, assim como nas pesquisas, na teoria pedaggica e na formao inicial e permanente dos docentes. Neste perodo de ampliao da durao do ensino fundamental, em que so discutidas questes de tempo-espao, avaliao, metodologias, contedo, gesto, formao, no seria oportuno repensar os currculos na Educao Bsica? Que indagaes motivam esse repensar? As Secretarias de Educao Municipais, Estaduais e do DF, o MEC, por meio da Secretaria de Educao Bsica e da Diretoria de Concepes e Orientaes Curriculares para Educao Bsica, assim como os Conselhos de Educao, vm se mostrando sensveis aos projetos de reorientao curricular, s diretrizes e s indagaes que os inspiram. Os textos que compem o documento Indagaes sobre Currculo se propem a trabalhar concepes educacionais e a responder s questes postas pelos coletivos das escolas e das Redes, a refletir sobre elas, a buscar seus significados na perspectiva da reorientao do currculo e das prticas educativas. As indagaes sobre o currculo presentes nas escolas e na teoria pedaggica mostram um primeiro significado: a conscincia de que os currculos no so contedos prontos a serem passados aos alunos. So uma construo e seleo de conhecimentos e prticas produzidas em contextos concretos e em dinmicas sociais, polticas e culturais, intelectuais e pedaggicas. Conhecimentos e prticas expostos s novas dinmicas e reinterpretados em cada contexto histrico. As indagaes revelam que h entendimento de que os currculos so orientados pela dinmica da sociedade. Cabe a ns, como profissionais da Educao, encontrar respostas. A construo desses textos parte dessa viso dinmica do conhecimento e das prticas educativas, de sua condio contextualizada. Da que, quando os sistemas de ensino, as escolas e seus profissionais se indagam sobre o currculo e se propem a reorient-lo, a primeira tarefa ser perguntar-nos que aspectos da dinmica social, poltica e cultural trazem

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indagaes mais prementes para o conhecimento, para o currculo e para as prticas educativas. Esta foi a primeira preocupao da equipe do ento Departamento de Polticas de Educao Infantil e Ensino Fundamental e dos autores dos textos. Esta poder ser a preocupao dos coletivos profissionais das escolas e Redes: detectar aqueles plos, eixos ou campos mais dinmicos de onde vm as indagaes sobre o currculo e sobre as prticas pedaggicas. Cada um dos textos se aproxima de um eixo de indagaes: desenvolvimento humano, educandos e educadores: seus direitos e o currculo, conhecimento e cultura, diversidade e avaliao.

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Introduo

CADA TEXTO ApRESENTA SUAS ESpECIFICIDADES DE ACORDO COM O EIXO ABORDADO. O texto Currculo e Desenvolvimento Humano, de Elvira Souza Lima, apresenta reflexo sobre currculo e desenvolvimento humano, tendo como referncia conhecimentos de Psicologia, Neurocincias, Antropologia e Lingstica. Conceitua a cultura como constitutiva dos processos de desenvolvimento e de aprendizagem. Aborda questes como funo simblica, capacidade imaginativa da espcie humana e memria. Discute currculo e aquisio do conhecimento, informao e atividades de estudo e a capacidade do ser humano de constituir e ampliar conceitos. O texto faz uma abordagem sobre a questo do tempo da aprendizagem, apontando que a construo e o desenvolvimento dos conceitos se realizam progressivamente e de forma recorrente. Em Educandos e Educadores: seus Direitos e o Currculo, de Miguel Gonzles Arroyo, h uma abordagem sobre o currculo e os sujeitos da ao educativa: os educandos e os educadores, ressaltando a importncia do trabalho coletivo dos profissionais da Educao para a construo de parmetros de sua ao profissional. Os educandos so situados como sujeitos de direito ao conhecimento e ao conhecimento dos mundos do trabalho. H nfase quanto necessidade de se mapearem imagens e concepes dos alunos, para subsidiar o debate sobre os currculos. proposta do texto que se desconstruam vises mercantilizadas de currculo, do conhecimento e dos sujeitos do processo educativo. O texto traz crtica ao aprendizado desenvolvido por competncias e habilidades como balizadores da catalogao de alunos desejados e aponta o direito educao, entendido como o direito formao e ao desenvolvimento humano pleno. O texto Currculo, Conhecimento e Cultura, de Antnio Flvio Moreira e Vera Maria Candau, apresenta elementos para reflexo

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sobre questes consideradas significativas no desenvolvimento do currculo nas escolas. Analisa a estreita vinculao que h entre a concepo de currculo e as de Educao debatidas em um dado momento. Nessa perspectiva, aborda a passagem recente da preocupao dos pesquisadores sobre as relaes entre currculo e conhecimento escolar para as relaes entre currculo e cultura. Apresenta a construo do conhecimento escolar como caracterstica da escola democrtica que reconhece a multiculturalidade e a diversidade como elementos constitutivos do processo ensino-aprendizagem. No texto Diversidade e Currculo, de Nilma Lino Gomes, procurou-se discutir alguns questionamentos que esto colocados, hoje, pelos educadores e educadoras nas escolas e nos encontros da categoria docente: que indagaes a diversidade traz para o currculo? Como a questo da diversidade tem sido pensada nos diferentes espaos sociais, principalmente nos movimentos sociais? Como podemos lidar pedagogicamente com a diversidade? O que entendemos por diversidade? Que diversidade pretendemos que esteja contemplada no currculo das escolas e nas polticas de currculo? No texto possvel perceber a reflexo sobre a diversidade entendida como a construo histrica, cultural e social das diferenas. Assim, mapear o trato que j dado diversidade pode ser um ponto de partida para novos equacionamentos da relao entre diversidade e currculo. Para tanto preciso ter clareza sobre a concepo de educao, pois h uma relao estreita entre o olhar e o trato pedaggico da diversidade e a concepo de educao que informa as prticas educativas. Em Currculo e Avaliao, de Cludia de Oliveira Fernandes e Luiz Carlos de Freitas, a avaliao apresentada como uma das atividades do processo pedaggico necessariamente inserida no projeto pedaggico da escola, no podendo, portanto, ser considerada isoladamente. Deve ocorrer em consonncia com os princpios de aprendizagem adotados e com a funo que a educao escolar tenha na sociedade. A avaliao apresentada como responsabilidade coletiva e particular e h defesa da importncia de questionamentos a conceitos cristalizados de avaliao e sua superao. O texto faz consideraes no s sobre a avaliao da aprendizagem dos estudantes que ocorre na escola, mas a respeito da avaliao da instituio como um todo (protagonismo do coletivo de profissionais) e ainda sobre a avaliao do sistema escolar (responsabilidade do poder pblico).

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OS TEXTOS EM SEU CONJUNTO ApRESENTAM INDAGAES CONSTANTES. Todos constatam as mudanas que vm acontecendo na conscincia e identidade profissional dos(as) educadores(as). Todos coincidem ao destacar as mudanas nas formas de viver a infncia e a adolescncia, a juventude e a vida adulta. O que h de coincidente nessas mudanas? Educadores e educandos se vendo e sendo reconhecidos como sujeitos de direitos. Esse reconhecimento coloca os currculos, o conhecimento, a cultura, a formao, a diversidade, o processo de ensino-aprendizagem e a avaliao, os valores e a cultura escolar e docente, a organizao dos tempos e espaos em um novo referente de valor: o referente tico do direito. Reorientar o currculo buscar prticas mais conseqentes com a garantia do direito educao. Todos os textos recuperam o direito educao entendido como direito formao e ao desenvolvimento humano, como humanizao, como processo de apropriao das criaes, saberes, conhecimentos, sistemas de smbolos, cincias, artes, memria, identidades, valores, culturas... resultantes do desenvolvimento da humanidade em todos os seus aspectos. Todos os textos coincidem ao recuperar o direito ao conhecimento como o eixo estruturante do currculo e da docncia. O conhecimento visto como um campo dinmico de produo e crtica, de seleo e legitimao, de confronto e silenciamento de sua diversidade. Conseqentemente, todos os textos repem a centralidade para a docncia e para o currculo dos processos de apreenso do conhecimento, da possibilidade de aprendizagem de todo ser humano, da centralidade dos tempos de aprender, das tenses entre conhecimento, aprendizagem e diversidade etc. Todos os textos coincidem ao recuperar o direito cultura, o dever do currculo, da escola e da docncia de garantir a cultura acumulada, devida s novas geraes. O direito de se apropriarem das prticas e valores culturais, dos sistemas simblicos e do desenvolvimento da funo simblica to central na construo de significados, na apreenso do conhecimento e no desenvolvimento pleno do ser humano etc. Recuperar o direito cultura, to secundarizado nos currculos, uma das indagaes mais instigantes para a escola e a docncia. Recuperar os vnculos entre cultura, conhecimento e aprendizagem. Todos os textos tm como referente a diversidade, as diferenas e as desigualdades que configuram nossa formao social, poltica e cultural. Diversidades que os educadores e educandos levam para as escolas: scio-tnico-racial, de gnero, de territrio, de gerao

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etc. Ver a diversidade como um dado positivo, liber-la de olhares preconceituosos: superar prticas classificatrias uma indagao nuclear dos currculos. Reconhecer e respeitar a diversidade indaga concepes generalistas de conhecimento, de cultura, de saberes e valores, de processos de formao, socializao e aprendizagens. Todos os textos coincidem ao destacar os currculos como uma organizao temporal e espacial do conhecimento que se traduz na organizao dos tempos e espaos escolares e do trabalho dos professores e alunos. Por outro lado, todos os textos constatam as mudanas que vm ao longo dos tempos sociais, de trabalho, de vida e sobrevivncia dos educandos e educadores. Essas mudanas condicionam os tempos de socializao e formao, de aprendizagem. Conseqentemente interrogam as lgicas temporais e espaciais de organizao escolar e curricular. Ver o currculo como uma opo especfica por uma organizao temporal e espacial, que condiciona a organizao da escola, dos processos de ensinaraprender e do trabalho dos educadores e educandos, nos leva a repensar essa organizao nas propostas de reorientao curricular. Todos os textos, de alguma maneira, abordam a questo da avaliao. O que se avalia e como se avalia est condicionado pelas competncias, habilidades, conhecimentos que o currculo privilegia ou secundariza. Os valores e as lgicas de avaliao reproduzem os valores, lgicas e hierarquias que selecionam, organizam os conhecimentos nos currculos. Por sua vez, o que se privilegia nas avaliaes escolares e nacionais determina as competncias e conhecimentos privilegiados ou secundarizados no currculo. Reorientar processos e critrios de avaliao implica em reorientar a organizao curricular e vice-versa. Este conjunto de indagaes toca em preocupaes que ocupam os profissionais da educao bsica: qual o papel da docncia, da pedagogia e da escola? Que concepes de sociedade, de escola, de educao, de conhecimento, de cultura e de currculo orientaro a escolha das prticas educativas? Sabemos que esse conjunto de questes tem sido objeto de debate nas escolas e no cenrio educacional nas ltimas dcadas. A funo da escola, da docncia e da pedagogia vem se ampliando, medida que a sociedade e, sobretudo, os educandos mudam e o direito educao se alarga, incluindo o direito ao conhecimento, s cincias, aos avanos tecnolgicos e s novas tecnologias de informao. Mas tambm o direito cultura, s artes, diversidade de linguagens e formas de comunicao, aos sistemas simblicos e ao sistema de valores que regem o convvio social, formao como sujeitos ticos. Os textos coincidem ao pensar a educao, o conhecimento, a escola, o currculo a servio de um projeto de sociedade democrtica, justa e igualitria.

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Um ideal de sociedade que avana na cultura poltica, social e tambm pedaggica. Uma sociedade regida pelo imperativo tico da garantia dos direitos humanos para todos. Diante do ideal de construir essa sociedade, a escola, o currculo e a docncia so obrigados a se indagar e tentar superar toda prtica e toda cultura seletiva, excludente, segregadora e classificatria na organizao do conhecimento, dos tempos e espaos, dos agrupamentos dos educandos e tambm na organizao do convvio e do trabalho dos educadores e dos educandos. preciso superar processos de avaliao sentenciadora que impossibilitam que crianas, adolescentes, jovens e adultos sejam respeitados em seu direito a um percurso contnuo de aprendizagem, socializao e desenvolvimento humano. O sistema escolar, assim como a nossa sociedade, vai avanando para esse ideal democrtico de justia e igualdade, de garantia dos direitos sociais, culturais, humanos para todos. Mas ainda h indagaes que exigem respostas e propostas mais firmes para superar tratos desiguais, lgicas e culturas excludentes. Todos os textos, em seus vrios ngulos, destacam essas indagaes no apenas sobre o currculo, mas sobre a escola, a docncia e seus esforos por construir estruturas mais igualitrias, menos seletivas. A quem cabe a tarefa de captar essas indagaes e trabalh-las? A todo o coletivo de profissionais do sistema escolar, professores, coordenadores pedaggicos, diretores, dirigentes municipais e estaduais, profissionais das Secretarias e do MEC. Planejar encontros, espaos para estudo, debates, pesquisar prticas educativas que se indagam e buscam respostas fazem parte dessa tarefa. Em cada um dos textos e no seu conjunto, as indagaes apontam e sinalizam atividades que j acontecem em muitos coletivos, escolas e Redes tempos de estudo, organizao de oficinas, congressos, debates de reorientaes curriculares, de reinveno de processos de apreenso do conhecimento e de organizao de convvios; trato de dimenses da formao em projetos; reinveno das avaliaes por valores igualitrios e democrticos; respeito diversidade e superao das desigualdades etc. atividades que garantem o direito dos profissionais da Educao Bsica formao e a serem mais sujeitos de seu trabalho. As Indagaes sobre Currculo esperam contribuir com a dinmica promissora que vem da riqueza das teorias sobre o currculo e sobre a formao humana, e que vem das prticas pedaggicas das escolas e das Redes. Contribuir com o profissionalismo das professoras e dos professores da Educao Bsica.

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COMO LER E TRABALHAR OS TEXTOS?Na especificidade de cada coletivo, escola e sistema, esses eixos podero ser desdobrados, alguns sero mais enfatizados. Outras indagaes podero ser acrescentadas. Esse poder ser um exerccio dos coletivos. No conjunto de textos, prevalece um trato dialogal, aberto, buscando incentivar esse exerccio de cultivar sensibilidades tericas e pedaggicas para identificar e ouvir as indagaes que vm das teorias e prticas e para apontar reorientaes. Cada texto pode ser lido e trabalhado separadamente e sem uma ordem seqenciada. Cada eixo tem seus significados. Entretanto, ser fcil perceber que as indagaes dos diversos textos se reforam e se ampliam. Na leitura do conjunto, ser fcil perceber que h indagaes que so constantes, que fazem parte da dinmica de nosso tempo. Um exerccio coletivo poder ser perceber essas indagaes mais constantes e instigantes, ver como se articulam e se reforam entre si. Perceber essas articulaes ser importante para tratar o currculo e as prticas educativas das escolas como um todo e como propostas coesas de formao dos educandos e dos educadores. Captar o que h de mais articulado no conjunto de indagaes auxiliar a superar estilos recortados e fragmentados de propostas curriculares, de abordagens do conhecimento e dos processos de ensino-aprendizagem. Secretaria de Educao Bsica

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CURRCULO, CONHECIMENTO E CULTURAAntonio Flavio Barbosa Moreira1 Vera Maria Candau2 17

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ste texto tem por objetivo oferecer aos professores e professoras, assim como aos profissionais de educao em geral, alguns elementos que permitam a reflexo e a discusso de questes que consideramos significativas para o desenvolvimento do currculo em nossas escolas, na perspectiva da promoo de uma educao de qualidade para todos e todas, democrtica, relevante do ponto de vista da construo do conhecimento escolar e multiculturalmente orientada.

1. Os estudos de currculo: desenvolvimento e preocupaesQuestes referentes ao currculo tm-se constitudo em freqente alvo da ateno de autoridades, professores, gestores, pais, estudantes, membros da comunidade. Quais as razes dessa preocupao to ntida e to persistente? Ser mesmo importante que ns, profissionais da educao, acompanhemos toda essa discusso e nela nos envolvamos? No ser suficiente deixarmos que as autoridades competentes tomem as devidas decises sobre o que deve ser ensinado nas salas de aula? Para examinarmos possveis respostas a essas perguntas, talvez seja necessrio esclarecer o que estamos entendendo pela palavra currculo, to familiar a todos que trabalhamos nas escolas e nos sistemas educacionais. Por causa dessa familiaridade, talvez no dediquemos muito tempo a refletir sobre o sentido do termo, bastante freqente em conversas nas escolas, palestras a que assistimos, textos acadmicos, notcias em jornais, discursos de nossas autoridades e propostas curriculares oficiais. palavra currculo associam-se distintas concepes, que derivam dos diversos modos de como a educao concebida historicamente, bem como das influncias tericas que a afetam e se fazem hegemnicas em um dado momento. Diferentes fatores scio-econmicos, polticos e culturais contribuem, assim, para que currculo venha a ser entendido como:1 2

Doutor em Educao Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Catlica de Petrpolis. Doutora - Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

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(a) os contedos a serem ensinados e aprendidos; (b) as experincias de aprendizagem escolares a serem vividas pelos alunos; (c) os planos pedaggicos elaborados por professores, escolas e sistemas educacionais; (d) os objetivos a serem alcanados por meio do processo de ensino; (e) os processos de avaliao que terminam por influir nos contedos e nos procedimentos selecionados nos diferentes graus da escolarizao. Sem pretender considerar qualquer uma dessas ou de outras concepes como certa ou como errada, j que elas refletem variados posicionamentos, compromissos e pontos de vista tericos, podemos afirmar que as discusses sobre o currculo incorporam, com maior ou menor nfase, discusses sobre os conhecimentos escolares, sobre os procedimentos e as relaes sociais que conformam o cenrio em que os conhecimentos se ensinam e se aprendem, sobre as transformaes que desejamos efetuar nos alunos e alunas, sobre os valores que desejamos inculcar e sobre as identidades que pretendemos construir. Discusses sobre conhecimento, verdade, poder e identidade marcam, invariavelmente, as discusses sobre questes curriculares (Silva, 1999a). Como estamos concebendo, ento, a palavra currculo neste texto? Procurando resumir os aspectos acima mencionados, estamos entendendo currculo como as experincias escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relaes sociais, e que contribuem para a construo das identidades de nossos/as estudantes. Currculo associa-se, assim, ao conjunto de esforos pedaggicos desenvolvidos com intenes educativas. Por esse motivo, a palavra tem sido usada para todo e qualquer espao organizado para afetar e educar pessoas, o que explica o uso de expresses como o currculo da mdia, o currculo da priso etc. Ns, contudo, estamos empregando a palavra currculo apenas para nos referirmos s atividades organizadas por instituies escolares. Ou seja, para nos referirmos escola. Cabe destacar que a palavra currculo tem sido tambm utilizada para indicar efeitos alcanados na escola, que no esto explicitados nos planos e nas propostas, no sendo sempre, por isso, claramente percebidos pela comunidade escolar. Trata-se do chamado currculo oculto, que envolve, dominantemente, atitudes e valores transmitidos, subliminarmente, pelas relaes sociais e pelas rotinas do cotidiano escolar. Fazem parte do currculo oculto, assim, rituais e prticas, relaes hierrquicas, regras e procedimentos, modos de organizar o espao e o tempo na escola, modos de distribuir os alunos por grupamentos e turmas, mensagens implcitas nas falas dos(as) professores(as) e nos livros didticos. So exemplos de currculo oculto: a forma como a escola incentiva a criana a chamar a professora (tia, Fulana, Professora etc); a maneira como arrumamos as carteiras na sala de aula (em

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crculo ou alinhadas); as vises de famlia que ainda se encontram em certos livros didticos (restritas ou no famlia tradicional de classe mdia). Que conseqncias tais aspectos, sobre os quais muitas vezes no pensamos, podem estar provocando nos alunos? No seria importante identific-los e verificar como, nas prticas de nossa escola, poderamos estar contribuindo para um currculo oculto capaz de oprimir alguns de nossos(as) estudantes (por razes ligadas a classe social, gnero, raa, sexualidade)? Julgamos importante ressaltar que, qualquer que seja a concepo de currculo O papel do educador no que adotamos, no parece haver dvidas processo curricular , quanto sua importncia no processo assim, fundamental. Ele educativo escolar. Como essa importncia um dos grandes artfices, se evidencia? Pode-se afirmar que por queira ou no, da construo intermdio do currculo que as coisas acontecem na escola. No currculo se dos currculos que se sistematizam nossos esforos pedaggicos. materializam nas escolas e O currculo , em outras palavras, o corao nas salas de aula. da escola, o espao central em que todos atuamos, o que nos torna, nos diferentes nveis do processo educacional, responsveis por sua elaborao. O papel do educador no processo curricular , assim, fundamental. Ele um dos grandes artfices, queira ou no, da construo dos currculos que se materializam nas escolas e nas salas de aula. Da a necessidade de constantes discusses e reflexes, na escola, sobre o currculo, tanto o currculo formalmente planejado e desenvolvido quanto o currculo oculto. Da nossa obrigao, como profissionais da educao, de participar crtica e criativamente na elaborao de currculos mais atraentes, mais democrticos, mais fecundos. Nessas reflexes e discusses, podemos e devemos recorrer aos documentos oficiais, como a Lei de Diretrizes e Bases, as Diretrizes Curriculares Nacionais, as Propostas Curriculares Estaduais e Municipais. Neles encontraremos subsdios fundamentais para o nosso trabalho. Podemos e devemos tambm recorrer aos estudos que vm sendo feitos, em nosso pas, por pesquisadores e estudiosos do campo. Tais estudos tm-se intensificado, principalmente a partir da dcada de 1990, tm sido apresentados em inmeros congressos e seminrios, bem como publicados em peridicos de expressiva circulao nacional. Recentes anlises desses estudos destacam como as preocupaes dos pesquisadores tm-se deslocado das relaes entre currculo e conhecimento escolar para as relaes entre currculo e cultura (Moreira, 2002a). Que aspectos tm provocado essa virada? Por que o foco to forte em questes culturais? Resumidamente, cabe reconhecer, hoje, a preponderncia da esfera cultural na organizao de nossa vida social, bem como na teoria social contempornea.

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Stuart Hall (1997, p.97), conhecido intelectual caribenho radicado na Gr-Bretanha e um dos fundadores do centro de pesquisas que foi o bero dos Estudos Culturais, na Universidade de Birmingham (Inglaterra), especialmente incisivo nessa perspectiva. Por bem ou por mal, a cultura agora um dos elementos mais dinmicos e mais imprevisveis da mudana histrica no novo milnio. No deve nos surpreender, ento, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simblicas e discursivas, ao invs de tomar, simplesmente, uma forma fsica e compulsiva, e que as prprias polticas assumam progressivamente a feio de uma poltica cultural. Ainda, inegvel a pluralidade cultural do mundo em que vivemos e que se manifesta, de forma impetuosa, em todos os espaos sociais, inclusive nas escolas e nas salas de aula. Essa pluralidade freqentemente acarreta confrontos e conflitos, tornando cada vez mais agudos os desafios a serem enfrentados pelos profissionais da educao. No entanto, essa mesma pluralidade pode propiciar o enriquecimento e a renovao das possibilidades de atuao pedaggica. Antes, porm, de analisarmos as relaes ... A escola precisa entre currculo e cultura, examinaremos o outro preparar-se para tema central das discusses sobre currculo o conhecimento escolar. Procuraremos bem socializar os realar sua importncia para todos os conhecimentos escolares que se envolvem no processo curricular e e facilitar o acesso do(a) destacaremos o processo de sua elaborao estudante a outros em diferentes nveis do sistema educativo. saberes. Subjacente aos nossos comentrios est a crena de que a escola precisa preparar-se para bem socializar os conhecimentos escolares e facilitar o acesso do(a) estudante a outros saberes. Subjacente aos nossos comentrios est a crena de que os conhecimentos que se constroem e que circulam nos diferentes espaos sociais constituem direito de todos (Arroyo, 2006).

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2. Esclarecendo o que entendemos por conhecimento escolar

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ue devemos entender por conhecimento escolar? Reiteramos que ele

um dos elementos centrais do currculo e que sua aprendizagem constitui condio indispensvel para que os conhecimentos socialmente produzidos possam ser apreendidos, criticados e reconstrudos por todos/as os/as estudantes do pas. Da a necessidade de um ensino ativo e efetivo, com um/a professor/a comprometido(a), que conhea bem, escolha, organize e trabalhe os conhecimentos a serem aprendidos pelos(as) alunos(as). Da a importncia de selecionarmos, para incluso no currculo, conhecimentos relevantes e significativos. Mas, para que nossos pontos de vista sejam bem compreendidos, preciso esclarecer o que estamos considerando como qualidade e relevncia na educao e no currculo. A nosso ver, uma educao de qualidade deve Entendemos relevncia, ento, propiciar ao() estudante ir alm dos como o potencial que o currculo referentes presentes em seu mundo possui de tornar as pessoas cotidiano, assumindo-o e ampliandocapazes de compreender o papel o, transformando-se, assim, em um sujeito ativo na mudana de seu que devem ter na mudana contexto. Que se faz necessrio para de seus contextos imediatos e que esse movimento ocorra? A nosso da sociedade em geral, bem ver, so indispensveis conhecimentos como de ajud-las a adquirir os escolares que facilitem ao() aluno(a) conhecimentos e as habilidades uma compreenso acurada da realidade necessrias para que isso em que est inserido, que possibilitem acontea. uma ao consciente e segura no mundo imediato e que, alm disso, promovam a ampliao de seu universo cultural. Entendemos relevncia, ento, como o potencial que o currculo possui de tornar as pessoas capazes de compreender o papel que devem ter na mudana de seus contextos imediatos e da sociedade em geral, bem como de ajud-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades necessrias para que isso acontea. Relevncia sugere conhecimentos e experincias que contribuam para formar sujeitos autnomos, crticos e criativos que analisem como as coisas passaram a ser o que so e como fazer para que elas sejam diferentes do que hoje so (Avalos, 1992; Santos e Moreira, 1995). Que implicaes esses pontos de vistas tm para a prtica curricular? Julgamos que uma educao de qualidade, como a que defendemos, requer a seleo de conhecimentos relevantes, que incentivem mudanas individuais e sociais, assim como formas de organizao e de distribuio dos conhecimentos escolares que possibilitem sua apreenso e sua crtica. Tais

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processos necessariamente implicam o dilogo com os saberes disciplinares assim como com outros saberes socialmente produzidos. Referimo-nos a conhecimentos escolares relevantes e significativos. Mas talvez no tenhamos, at o momento, esclarecido suficientemente o que estamos denominando de conhecimento escolar. Que aspectos o caracterizam? Quem o constri? Onde? Inicialmente, cabe ressaltar que concebemos o ... concebemos o conhecimento conhecimento escolar como uma escolar como uma construo construo especfica da esfera educativa, especfica da esfera educativa, no como uma mera simplificao de no como uma mera conhecimentos produzidos fora da simplificao de conhecimentos escola. Consideramos, ainda, que o produzidos fora da escola. conhecimento escolar tem caractersticas prprias que o distinguem de outras Consideramos, ainda, que o formas de conhecimento. Ou seja, vemos conhecimento escolar tem o conhecimento escolar como um tipo caractersticas prprias que o de conhecimento produzido pelo sistema distinguem de outras formas de escolar e pelo contexto social e econmico conhecimento. mais amplo, produo essa que se d em meio a relaes de poder estabelecidas no aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedade (Santos, 1995). O currculo, nessa perspectiva, constitui um dispositivo em que se concentram as relaes entre a sociedade e a escola, entre os saberes e as prticas socialmente construdos e os conhecimentos escolares. Podemos dizer que os primeiros constituem as origens dos segundos. Em outras palavras, os conhecimentos escolares provm de saberes e conhecimentos socialmente produzidos nos chamados mbitos de referncia dos currculos. Que so esses mbitos de referncia? Podemos consider-los como correspondendo: (a) s instituies produtoras do conhecimento cientfico (universidades e centros de pesquisa); (b) ao mundo do trabalho; (c) aos desenvolvimentos tecnolgicos; (d) s atividades desportivas e corporais; (e) produo artstica; (f) ao campo da sade; (g) s formas diversas de exerccio da cidadania; (h) aos movimentos sociais (Terigi, 1999). Nesses espaos, produzem-se os diferentes saberes dos quais derivam os conhecimentos escolares. Os conhecimentos oriundos desses diferentes mbitos so, ento, selecionados e preparados para constituir o currculo formal, para constituir o conhecimento escolar que se ensina e se aprende nas salas de aula. Ressalte-se que, alm desses espaos, a prpria escola constitui local em que determinados saberes so tambm elaborados, ensinados e aprendidos. Exemplifique-se com a gramtica escolar, historicamente criada pela prpria escola, na escola e para a escola (Chervel, 1990). Que importncia tem para ns, professores e gestores, compreender o que se chama de conhecimento escolar? De que modo conhecer essa noo modifica nossa prtica? Cientificamo-nos de que os conhecimentos ensinados

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na escola no so cpias exatas de conhecimentos socialmente construdos. Assim, no h como inserir, nas salas de aula e nas escolas, os saberes e as prticas tal como funcionam em seus contextos de origem. Para se tornarem conhecimentos escolares, os conhecimentos de referncia sofrem uma descontextualizao e, a seguir, um processo de recontextualizao. A atividade escolar, portanto, supe uma certa ruptura com as atividades prprias dos campos de referncia. Essa constatao certamente afeta o trabalho pedaggico. Como? Cientes das transformaes por que passam os conhecimentos de referncia at se tornarem conhecimentos escolares, no iremos mais supor que a escola possa ser organizada, para o ensino de Cincias, por exemplo, como um pequeno laboratrio, similar aos que existem em outros locais. A investigao cientfica, tal como se desenvolve em um laboratrio de pesquisas, bem distinta da seqncia de passos estipulados em um manual didtico de experincias cientficas escolares. Outro exemplo pode ser encontrado no campo das atividades desportivas. A prtica do desporto apresenta, em locais de treinamento de atletas profissionais, caractersticas bem diferenciadas das experincias oferecidas ao() estudante nas aulas de Educao Fsica. Torna-se sem sentido, portanto, qualquer tentativa de transformar tais aulas em momentos de preparao de futuros atletas. Os dois exemplos citados permitem-nos perceber como a concepo de conhecimento escolar que propomos pode influir na seleo e na organizao das experincias de aprendizagem a serem vividas por estudantes e docentes. Em sntese, a viso de conhecimento escolar por ns adotada, bem como o reconhecimento de que devemos trabalhar com conhecimentos significativos e relevantes, tero certamente efeitos no processo de elaborao do projeto poltico-pedaggico da escola. Mas em que consistem os mencionados processos de descontextualizao e recontextualizao do conhecimento escolar? Que processos so empregados na fabricao dos conhecimentos escolares? Mencionaremos alguns deles, apoiando-nos em Terigi (1999). Em primeiro lugar, destacamos a descontextualizao dos saberes e das prticas, que costuma fazer com que o conhecimento escolar d a impresso de pronto,acabado, impermevel a crticas e discusses. O processo de produo, com todos os seus conflitos e interesses, tende a ser omitido. Qual a conseqncia dessa omisso? O estudante acaba aprendendo simplesmente o produto, o resultado de um longo trajeto, cuja complexidade tambm se perde. Ao observarmos com cuidado os livros didticos, podemos verificar que eles no costumam incluir, entre os contedos selecionados, os debates, as discordncias, os processos de reviso e de questionamento que marcam os conhecimentos e os saberes em muitos de seus contextos originais. Dificilmente encontramos, em programas e em materiais didticos, menes s disputas que se travam, por exemplo, no avano do prprio conhecimento cientfico.

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Devemos avaliar o processo de descontextualizao que vimos discutindo como totalmente nocivo ao processo curricular? A nosso ver, certo grau de descontextualizao se faz necessrio no ensino, j que os saberes e as prticas produzidos nos mbitos de referncia do currculo no podem ser ensinados tal como funcionam em seu contexto de origem. Todavia, precisamos estar atentos para o risco de perda de sentido dos conhecimentos, possvel de acontecer se trabalharmos com uma forte descontextualizao (Terigi, 1999). Conhecimentos totalmente descontextualizados, aparentemente puros, perdem suas inevitveis conexes com o mundo social em que so construdos e funcionam. Conhecimentos totalmente descontextualizados no permitem que se evidencie como os saberes e as prticas envolvem, necessariamente, questes de identidade social, interesses, relaes de poder e conflitos interpessoais. Conhecimentos totalmente descontextualizados desfavorecem, assim, um ensino mais reflexivo e uma aprendizagem mais significativa. No seria oportuno, ento, que buscssemos, na escola, verificar se e como tais questes se expressam nos livros didticos com que trabalhamos? Como, tendo em vista o que vimos apresentando, poderamos pensar em novas estratgias de crtica e de utilizao dos livros? Como poderamos preencher algumas das lacunas neles observadas? No seria pertinente procurarmos complementar os conhecimentos includos nos livros com informaes e discusses referentes aos processos de construo dos conhecimentos de referncia, tais como ocorrem em outros espaos sociais? Que interesses, conflitos e disputas os tm marcado? Como podemos nos informar melhor sobre tais processos? A quem podemos recorrer? Julgamos que o debate dessas e de outras questes similares pode, na escola, estimular novas e criativas formas de se trabalhar tanto o livro didtico quanto outros materiais e outras fontes que nos auxiliam no complexo processo de favorecer a aprendizagem de nossos(as) estudantes. Em segundo lugar, ressaltamos a subordinao dos conhecimentos escolares ao que conhecemos sobre o desenvolvimento humano. Ou seja, os conhecimentos escolares costumam ser selecionados e organizados com base nos ritmos e nas seqncias propostas pela psicologia do desenvolvimento. bastante comum, em nossas salas de aula, o esforo do(a) professor(a) por escolher atividades e contedos que se mostrem adequados etapa do desenvolvimento em que supostamente se encontra o(a) aluno(a). Em muitos casos, a conseqncia ignorarmos o quanto muitos(as) de nossos(as) estudantes conseguem queimar etapas e aprender, de modo que nos surpreende, conhecimentos que julgvamos acima de seu alcance. Para o adolescente familiarizado com as inmeras possibilidades oferecidas pela internet, o acesso a informaes e saberes se faz, freqentemente, de modo no linear e no gradativo. Ser que, na escola, estamos sabendo tirar suficiente proveito das vantagens resultantes do uso de novas tecnologias? Como poderamos aproveit-las melhor?

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Em terceiro lugar, os conhecimentos escolares tendem a se submeter aos ritmos e s rotinas que permitem sua avaliao. Ou seja, tendemos a ensinar conhecimentos que possam ser, de algum modo, avaliados. Mas, claro, nem todos os contedos so avaliados da mesma forma. Os que historicamente tm sido vistos como os mais importantes costumam ser avaliados segundo padres vistos como mais rigorosos, ainda que no se problematize quem ganha e quem perde com essa hierarquia. Chegase mesmo a aceitar, sem questionamentos, que as vozes de docentes de determinadas disciplinas sejam ouvidas, nos Conselhos de Classe, com mais intensidade que as de docentes de disciplinas em que o processo de avaliao no se centra em provas ou testes escritos. Em quarto lugar, o processo de construo do conhecimento escolar sofre, inegavelmente, efeitos de relaes de poder. Recorrendo mais uma vez ao Conselho de Classe: a hierarquia que se encontra no currculo, com base na qual se valorizam diferentemente os conhecimentos escolares e se justifica ... O processo de a prioridade concedida matemtica em construo do detrimento da lngua estrangeira ou da geografia, conhecimento escolar deriva, certamente, de relaes de poder. Nessa sofre, inegavelmente, hierarquia, se supervalorizam as chamadas efeitos de relaes de disciplinas cientficas, secundarizando-se os saberes referentes s artes e ao corpo. Nessa poder. hierarquia, separam-se a razo da emoo, a teoria da prtica, o conhecimento da cultura. Nessa hierarquia, legitimam-se saberes socialmente reconhecidos e estigmatizam-se saberes populares. Nessa hierarquia, silenciam-se as vozes de muitos indivduos e grupos sociais e classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de aula e de serem ensinados e aprendidos. Nessa hierarquia, reforam-se relaes de poder favorveis manuteno das desigualdades e das diferenas que caracterizam nossa estrutura social. De que modo a compreenso dos processos de construo do conhecimento escolar til ao() professor(a)? Se o(a) professor(a) entende como o conhecimento escolar se produz, saber melhor distinguir em que momento os mecanismos implicados nessa produo esto favorecendo ou atravancando o trabalho docente. Em outras palavras, a compreenso do processo de construo do conhecimento escolar facilita ao professor uma maior compreenso do prprio processo pedaggico, o que pode estimular novas abordagens, na tentativa tanto de bem selecionar e organizar os conhecimentos quanto de conferir uma orientao cultural ao currculo. Vejamos, ento, como abordar, nas decises curriculares, a diversidade cultural que marca nossa sociedade.

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3. Cultura, diversidade cultural e currculo

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ue entendemos pela palavra cultura? Talvez seja til esclarecermos, inicialmente, como a estamos concebendo, j que seus sentidos tm variado ao longo dos tempos, particularmente no perodo da transio de formaes sociais tradicionais para a modernidade (Bocock, 1995; Canen e Moreira, 2001). Acreditamos que tal esclarecimento pode subsidiar a discusso das relaes entre currculo e cultura. O primeiro e mais antigo significado de cultura encontra-se na literatura do sculo XV, em que a palavra se refere a cultivo da terra, de plantaes e de animais. nesse sentido que entendemos palavras como agricultura, floricultura, suinocultura. O segundo significado emerge no incio do sculo XVI, ampliando a idia de cultivo da terra e de animais para a mente humana. Ou seja, passa-se a falar em mente humana cultivada, afirmando-se mesmo que somente alguns indivduos, grupos ou classes sociais apresentam mentes e maneiras cultivadas e que somente algumas naes apresentam elevado padro de cultura ou civilizao. No sculo XVIII, consolida-se o carter classista da idia de cultura, evidente na idia de que somente as classes privilegiadas da sociedade europia atingiriam o nvel de refinamento que as caracterizaria como cultas. O sentido de cultura, que ainda hoje a associa s artes, tem suas origens nessa segunda concepo: cultura, tal como as elites a concebem, corresponde ao bem apreciar msica, literatura, cinema, teatro, pintura, escultura, filosofia. Ser que no encontramos vestgios dessa concepo tanto em alguns de nossos atuais currculos como em textos que se escrevem sobre currculo? Para alguns docentes, o estudo da literatura, por exemplo, ainda tende a se restringir a escritores e livros vistos como clssicos. Para alguns estudiosos da cultura e da educao, os grandes autores, as grandes obras e as grandes idias deveriam constituir o ncleo central dos currculos de nossas escolas. J no sculo XX, a noo de cultura passa a incluir a cultura popular, hoje penetrada pelos contedos dos meios de comunicao de massa. Diferenas e tenses entre os significados de cultura elevada e de cultura popular acentuam-se, levando a um uso do termo cultura que se marca por valorizaes e avaliaes. Ser que algumas de nossas escolas no continuam a fechar suas portas para as manifestaes culturais associadas cultura popular, contribuindo, assim, para que saberes e valores familiares a muitos(as) estudantes sejam desvalorizados e abandonados na entrada da sala de aula? Poderia ser diferente? Como? Um terceiro sentido da palavra cultura, originado no Iluminismo, a associa a um processo secular geral de desenvolvimento social. Esse significado comum nas cincias sociais, sugerindo a crena em um processo harmnico de desenvolvimento da humanidade, constitudo por etapas claramente definidas, pelo qual todas as sociedades inevitavelmente passam. Tal processo

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acaba equivalendo, por coincidncia, aos rumos seguidos pelas sociedades europias, as nicas a atingirem o grau mais elevado de desenvolvimento. H ainda reflexos dessa viso no currculo? Parece-nos que sim. Em alguns cursos de Histria, por exemplo, as referncias se fazem, dominantemente, s histrias dos povos desenvolvidos, o que nos aliena dos esforos e dos rumos seguidos na maioria dos pases que formam o chamado Terceiro Mundo Em um quarto sentido, a palavra culturas (no plural) corresponde aos diversos modos de vida, valores e significados compartilhados por diferentes grupos (naes, classes sociais, grupos tnicos, culturas regionais, geracionais, de gnero etc) e perodos histricos. Trata-se de uma viso antropolgica de cultura, em que se enfatizam os significados que os grupos compartilham, ou seja, os contedos culturais. Cultura identifica-se, assim, com a forma geral de vida de um dado grupo social, com as representaes da realidade e as vises de mundo adotadas por esse grupo. A expresso dessa concepo, no currculo, Quando um grupo compartilha poder evidenciar-se no respeito e uma cultura, compartilha no acolhimento das manifestaes um conjunto de significados, culturais dos(as) estudantes, por mais construdos, ensinados e desprestigiadas que sejam. Finalmente, um quinto aprendidos nas prticas de significado tem tido considervel utilizao da linguagem. impacto nas cincias sociais e nas A palavra cultura implica, humanidades em geral. Deriva da portanto, o conjunto de antropologia social e tambm se prticas por meio das quais refere a significados compartilhados. significados so produzidos e Diferentemente da concepo anterior, compartilhados em um grupo. porm, ressalta a dimenso simblica, o que a cultura faz, em vez de acentuar o que a cultura . Nessa mudana, efetuase um movimento do que para o como. Concebe-se, assim, a cultura como prtica social, no como coisa (artes) ou estado de ser (civilizao). Nesse enfoque, coisas e eventos do mundo natural existem, mas no apresentam sentidos intrnsecos: os significados so atribudos a partir da linguagem. Quando um grupo compartilha uma cultura, compartilha um conjunto de significados, construdos, ensinados e aprendidos nas prticas de utilizao da linguagem. A palavra cultura implica, portanto, o conjunto de prticas por meio das quais significados so produzidos e compartilhados em um grupo. So os arranjos e as relaes envolvidas em um evento que passam, dominantemente, a despertar a ateno dos que analisam a cultura com base nessa quinta perspectiva, passvel de ser resumida na idia de que cultura representa um conjunto de prticas significantes. No ser pertinente considerarmos tambm o currculo como um conjunto de prticas em que significados so construdos, disputados, rejeitados, compartilhados? Como entender, ento, as relaes entre currculo e cultura?

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Se entendermos o currculo, como prope Williams (1984), como escolhas que se fazem em vasto leque de possibilidades, ou seja, como uma seleo da cultura, podemos conceb-lo, tambm, como conjunto de prticas que produzem significados. Nesse sentido, consideraes de Silva (1999b) podem ser teis. Segundo o autor, o currculo o espao em que se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o poltico. por meio do currculo que certos grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua viso de mundo, seu projeto social, sua verdade. O currculo representa, assim, um conjunto de prticas que propiciam a produo, a circulao e o consumo de significados no espao social e que contribuem, intensamente, para a construo de identidades sociais e culturais. O currculo , por conseqncia, um dispositivo de grande efeito no processo de construo da identidade do(a) estudante. No se mostra, ento, evidente a ntima relao entre currculo e cultura? Se, em uma sociedade cindida, a cultura um terreno no qual se processam disputas pela preservao ou pela superao das divises sociais, o currculo um espao em que esse mesmo conflito se manifesta. O currculo um O currculo um campo em campo em que se tenta impor tanto a que se tenta impor tanto definio particular de cultura de um dado a definio particular de grupo quanto o contedo dessa cultura. cultura de um dado grupo O currculo um territrio em que se travam ferozes competies em torno dos quanto o contedo dessa significados. O currculo no um veculo cultura. O currculo um que transporta algo a ser transmitido e territrio em que se travam absorvido, mas sim um lugar em que, ferozes competies em ativamente, em meio a tenses, se produz torno dos significados. e se reproduz a cultura. Currculo refere-se, portanto, a criao, recriao, contestao e transgresso (Moreira e Silva, 1994). Como todos esses processos se concretizam no currculo? Pode-se dizer que no currculo se evidenciam esforos tanto por consolidar as situaes de opresso e discriminao a que certos grupos sociais tm sido submetidos, quanto por questionar os arranjos sociais em que essas situaes se sustentam. Isso se torna claro ao nos lembrarmos dos inmeros e expressivos relatos de prticas, em salas de aulas, que contribuem para cristalizar preconceitos e discriminaes, representaes estereotipadas e desrespeitosas de certos comportamentos, certos estudantes e certos grupos sociais. Em Conselhos de Classe, algumas dessas vises, lamentavelmente, se refletem em frases como: vindo de onde vem, ele no podia mesmo dar certo na escola!. Ao mesmo tempo, h inmeros e expressivos relatos de prticas alternativas em que professores(as) desafiam as relaes de poder que tm justificado e preservado privilgios e marginalizaes, procurando contribuir para elevar a auto-estima de estudantes associados a grupos subalternizados.

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Ou seja, no processo curricular, distintas e complexas tm sido as respostas dadas diversidade e pluralidade que marcam de modo to agudo o panorama cultural contemporneo. Cabe tambm ressaltar a significativa influncia exercida, junto s crianas e aos adolescentes que povoam nossas salas de aula, pelos currculos por eles vividos em outros espaos scio-educativos (shoppings, clubes, associaes, igrejas, meios de comunicao, grupos informais de convivncia etc), nos quais se fazem sentir com intensidade muitos dos complexos fenmenos associveis ao processo de globalizao que hoje vivenciamos. Nesses outros espaos extra-escolares, os currculos tendem a se organizar com objetivos distintos dos currculos escolares, o que faz com que valores como padronizao, consumismo, individualismo, sexismo e etnocentrismo possam entrar em acirrada competio com outras metas, visadas por escolas e famlias. Vale perguntar: como temos, nas salas de aula, reagido a esse confuso panorama em que a diversidade se faz to presente? Como temos nos esforado para desestabilizar privilgios e discriminaes? Como temos buscado neutralizar influncias indesejveis? Como temos, na escola, dialogado com os currculos desses outros espaos? Em resumo, o complexo, variado e conflituoso cenrio cultural em que estamos imersos se reflete no que ocorre em nossas salas de aula, afetando sensivelmente o trabalho pedaggico que nelas se processa. Voltamos a perguntar: como as diferenas derivadas de dinmicas sociais como classe social, Como temos considerado, no gnero, etnia, sexualidade, cultura currculo, essa pluralidade, e religio tm contaminado nosso esse carter multicultural currculo, tanto o currculo formal de nossa sociedade? quanto o currculo oculto? Como temos considerado, no currculo, essa Como articular currculo pluralidade, esse carter multicultural e multiculturalismo? Que de nossa sociedade? Como articular estratgias pedaggicas currculo e multiculturalismo? Que podem ser selecionadas? estratgias pedaggicas podem ser selecionadas? Temos, professores e gestores, reservado tempo e espao suficientes para que essas discusses aconteam nas escolas? Como nossos projetos poltico-pedaggicos tm incorporado tais preocupaes? Como temos atendido ao que determina a Lei n 10639/2003, que torna obrigatrio, nos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio, o ensino sobre Histria e Cultura afro-brasileira? De que modo os professores se tm inteirado das lutas e conquistas dos negros, das mulheres, dos homossexuais e de outros grupos minoritrios oprimidos? Sem pretender oferecer respostas prontas a serem aplicadas em quaisquer situaes, move-nos a inteno de apresentar alguns princpios que possam nortear a construo coletiva, em cada escola, de currculos que

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visem a enfrentar alguns dos desafios que a diversidade cultural nos tem trazido. Fundamentamo-nos, nesse propsito, em estudos, pesquisas, prticas e depoimentos de docentes comprometidos com uma escola cada vez mais democrtica. Nossa inteno convidar o profissional da educao a engajarse no instigante processo de pensar e desenvolver currculos para essa escola. Desejamos, com os princpios que vamos sugerir, intensificar a sensibilidade do(a) docente e do gestor para a pluralidade de valores e universos culturais, para a necessidade de um maior intercmbio cultural no interior de cada sociedade e entre diferentes sociedades, para a convenincia de resgatar manifestaes culturais de determinados grupos cujas identidades se encontram ameaadas, para a importncia da participao de todos no esforo por tornar o mundo menos opressivo e injusto, para a urgncia de se reduzirem discriminaes e preconceitos. O objetivo maior concentra-se, cabe destacar, na contextualizao e na compreenso do processo de construo das diferenas e das desigualdades. Nosso propsito que os currculos desenvolvidos tornem evidente que elas no so naturais; so, ao contrrio,invenes/construes histricas de homens e mulheres, sendo, portanto, passveis de serem desestabilizadas e mesmo transformadas. Ou seja, o existente nem pode ser aceito sem questionamento nem imutvel; constitui-se, sim, em estmulo para resistncias, para crticas e para a formulao e a promoo de novas situaes pedaggicas e novas relaes sociais.

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4. princpios para a construo de currculos multiculturalmente orientados

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assemos aos nossos princpios. Insistimos, inicialmente, na necessidade de uma nova postura, por parte do professorado e dos gestores, no esforo por construir currculos culturalmente orientados. Propomos, a seguir, que se reescrevam os conhecimentos escolares, que se evidencie a ancoragem social desses conhecimentos, bem como que se transforme a escola e o currculo em espaos de crtica cultural, de dilogo e de desenvolvimento de pesquisas. Esperamos que nossos princpios possam nortear a escolha de novos contedos, a adoo de novos procedimentos e o estabelecimento de novas relaes na escola e na sala de aula.

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4.1 A necessidade de uma nova posturaElaborar currculos culturalmente orientados demanda uma nova postura, por parte da comunidade escolar, de abertura s distintas manifestaes culturais. Faz-se indispensvel superar o daltonismo cultural, ainda bastante presente nas escolas. O professor daltnico cultural aquele que no valoriza o arco-ris de culturas que encontra nas salas de aulas e com que precisa trabalhar, no tirando, portanto, proveito da riqueza que marca esse panorama. aquele que v todos os estudantes como idnticos, no levando em conta a necessidade de estabelecer diferenas nas atividades pedaggicas que promove (Stoer e Corteso, 1999). O daltonismo cultural a que nos referimos expressa-se, por exemplo, na viso da professora de uma escola normal que desencoraja uma pesquisadora interessada em compreender o tratamento dado, na escola, a questes referentes a racismo na formao docente.Lamento, mas aqui voc no ter material para seu estudo. No temos problema nenhum de racismo aqui. Eu, por exemplo, ao entrar em sala, trato todos os meus alunos como se fossem brancos (Paraso, 1997). O daltonismo to intenso que chega a impedir que a professora reconhea a presena da diversidade (e de suas conseqncias) na escola. Em casos como esse, pode ser til, em um primeiro momento, buscarmos sensibilizar o corpo docente para a pluralidade e para a diversidade. Como faz-lo? Que estratgias empregar nessa tarefa, para que se possa ter a maior adeso possvel dos que ainda no perceberam a importncia de tais aspectos? Nessa perspectiva, importante articular o aprofundamento terico com vivncias de experincias em que os/as profissionais da educao so convidados/as a se colocar em situao e analisar as suas prprias reaes. Como se sentiriam e reagiriam, por exemplo, se, como algumas pessoas negras ainda tm sido, fossem impedidos(as) de entrar pela porta da frente em um edifcio residencial ou em um hotel de luxo?

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Outra estratgia possvel diz respeito ao resgate de histrias de vida e anlise de estudos de caso reais, trazidos pelos prprios educadores ou registrados em pesquisas realizadas sobre tal temtica. Talvez alguns docentes se estimulem a apresentar e a discutir situaes em que se viram, eles prprios, discriminados, ou em que presenciaram pessoas sendo depreciadas e desrespeitadas. Como se comportaram nesses momentos? Em resumo, a ruptura do daltonismo cultural e da viso monocultural da dinmica escolar um processo pessoal e coletivo que exige desconstruir e desnaturalizar esteretipos e verdades que impregnam e configuram a cultura escolar e a cultura da escola. Aps a adoo de uma nova postura frente pluralidade, outros princpios e propsitos podem mostrar-se teis na formulao dos currculos. Vejamos alguns deles.

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4.2 O currculo com um espao em que se reescreve o conhecimento escolarSugerimos que se procure, no currculo, reescrever o conhecimento escolar usual, tendo-se em mente as diferentes razes tnicas e os diferentes pontos de vista envolvidos em sua produo. No processo de construo do conhecimento escolar, que j abordamos, se retiram os interesses e os objetivos usualmente envolvidos na pesquisa e na produo do conhecimento de origem (Terigi, 1999). O conhecimento escolar tende a ficar, em decorrncia desse processo,assptico,neutro, despido de qualquer cor ou sabor. O que estamos desejando, em vez disso, que os interesses ocultados sejam identificados, evidenciados e subvertidos, para que possamos, ento, reescrever os conhecimentos. Desejamos que o aluno perceba o quanto, em Geografia, os conhecimentos referentes aos diversos continentes foram construdos em ntima associao com o interesse, de certos pases, em aumentar suas riquezas pela Sugerimos que se procure, conquista e colonizao de outros povos. no currculo, reescrever Em conformidade com essa o conhecimento escolar proposta, encontram-se j numerosos(as) professores(as) de Histria que no mais se usual, tendo-se em mente as diferentes razes tnicas contentam em ensinar aos(s) estudantes apenas a viso do dominante, do vencedor. J e os diferentes pontos de se fazem freqentes, em suas aulas na escola vista envolvidos em sua fundamental, discusses como: o Brasil foi produo. descoberto ou invadido pelos portugueses? A Lei urea, assinada pela Princesa Isabel, pretendeu de fato beneficiar os escravos? Domingos Fernandes Calabar deve ser mesmo considerado um traidor? Em 1964 houve uma revoluo ou um golpe? Esses e outros inmeros pontos controversos de nossa Histria so

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discutidos por docentes e alunos(as), o que faz brotar uma anlise bem mais lcida dos diferentes e conflitantes motivos implicados nos fatos histricos, antes vistos como objetivos e tratados com base em uma nica verso, aceita sem questionamento. A conseqncia que a anlise se amplia e se enriquece pelo confronto de pontos de vista. Alm dessa ampliao da anlise, muitos docentes tm tambm procurado incluir no currculo outras Histrias: a das mulheres, a dos povos indgenas, a dos negros, por exemplo. Tais incluses preenchem algumas das lacunas mais encontradas nas propostas curriculares oficiais, trazendo cena vozes e culturas negadas e silenciadas no currculo. Segundo Torres Santom (1995), as culturas ou vozes dos grupos sociais minoritrios e/ ou marginalizados que no dispem de estruturas de poder costumam ser excludas das salas de aula, chegando mesmo a ser deformadas ou estereotipadas, para que se dificultem (ou de fato se anulem) suas possibilidades de reao, de luta e de afirmao de direitos. Cabe evitar atribuir qualquer carter extico s manifestaes culturais de grupos minoritrios. Ademais, sua presena no currculo no deve assumir o tom fortuito,turstico, to criticado por Torres Santom (1995). preciso que os estudos desenvolvidos venham a catalisar, junto aos membros das culturas negadas e silenciadas, a formao de uma auto-imagem positiva. Para esse mesmo propsito, pode ser til a discusso, em diferentes disciplinas, dos rumos de diferentes movimentos sociais (negros, mulheres, indgenas, homossexuais), para que se compreendam e se acentuem avanos, dificuldades e desafios. Lderes desses grupos podem ser convidados a participar das atividades. Exposies e cartazes podem ilustrar trajetrias e conquistas. Cabe esclarecer que no estamos argumentando a favor do efeito Robin Hood (McCarthy, 1998), segundo o qual se tira de um para dar ao outro, ou seja, no estamos recomendando que simplesmente se substitua um conhecimento por outro. O que estamos sugerindo que se explorem e se confrontem perspectivas, enfoques e intenes, para que possam vir tona propsitos, escolhas, disputas, relaes de poder, represses, silenciamentos, excluses. O trabalho com notcias difundidas pela mdia, freqentemente derivadas de leituras distintas e at mesmo contraditrias dos fatos, assim como com msicas, vdeos e outras produes culturais, permite ilustrar com clareza os confrontos que pretendemos ver explicitados. Examinando diferentes interpretaes, os(as) alunos(as) podero melhor perceber, por exemplo, os objetivos e os jogos, por vezes escusos, implicados em muitas medidas de nossos polticos e governantes. Certamente a anlise atenta e a discusso crtica de notcias referentes deciso de invadir o Iraque, tomada pelo presidente George Bush, aps os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, podero ajudar o(a) aluno(a) a contrapor verso oficial norte-americana uma outra verso dos acontecimentos em pauta.

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A leitura crtica de jornais permite tambm verificar como, na Frana, se tenta impedir que meninas muulmanas freqentem as salas de aula usando seus vus. A justificativa que as escolas francesas so seculares e que os smbolos religiosos, portanto, devem ser banidos de suas prticas. Proibies similares tm ocorrido tambm na Alemanha, vetando-se s professoras o uso do vu. O que no se divulga como tal medida acaba por solapar importante elemento da identidade dessas jovens, desrespeitando o direito diferena que deve pautar toda sociedade que ... Trata-se de desafiar a tica se quer democrtica, plural e inclusiva. Ou seja, a compreenso dos diferentes do dominante e de promover o pontos de vista envolvidos na contenda atrito de diferentes abordagens, permite que o(a) aluno(a) desconstrua diferentes obras literrias, o olhar do poder hegemnico e infira diferentes interpretaes de que outros olhares descortinam outros eventos histricos, para que ngulos, outras razes, outros interesses. se favorea ao() aluno(a) Leva-o(a) a compreender melhor alguns dos elementos que promovem a entender como o conhecimento persistncia, no mundo de hoje, do dio, socialmente valorizado tem sido da violncia, do racismo, da xenofobia, do escrito de uma dada forma e fundamentalismo. No ser indispensvel como pode, ento, ser reescrito. que a escola procure denunciar e colocar em xeque essa persistncia? Professores dos primeiros anos do ensino fundamental podem tambm estimular o(a) aluno(a) a reescrever conhecimentos, saberes, mitos, costumes, lendas, contos. Inmeras histrias infantis, por exemplo, tm sido reescritas com base no emprego de pontos de vista distintos dos usuais. O caso dos Trs Porquinhos pode surpreender se a figura do Lobo representar o especulador imobilirio que to bem conhecemos. As atitudes da Cigarra e da Formiga podem ser reavaliadas, tendo-se em mente a forma como se concebem e se organizam trabalho e lazer na sociedade contempornea. O desfecho do passeio de Chapeuzinho Vermelho casa da av pode ser outro, caso imaginemos novos perfis e novas relaes para os personagens da histria (Garner, 1996, 1999). Ou seja, de novos patamares podemos perceber novos horizontes, novas trajetrias, novas possibilidades. O que estamos sugerindo que nos situemos, na prtica pedaggica culturalmente orientada, alm da viso das culturas como inter-relacionadas, como mutuamente geradas e influenciadas, e procuremos facilitar a compreenso do mundo pelo olhar do subalternizado. No currculo, trata-se de desestabilizar o modo como o outro mobilizado e representado.O olhar do poder, suas normas e pressupostos, precisa ser desconstrudo (McCarthy, 1998, p. 156). Ou seja, trata-se de desafiar a tica do dominante e de promover o atrito de diferentes abordagens, diferentes obras literrias, diferentes interpretaes de eventos histricos, para que se favorea ao() aluno(a)

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entender como o conhecimento socialmente valorizado tem sido escrito de uma dada forma e como pode, ento, ser reescrito. No se espera, cabe reiterar, substituir um conhecimento por outro, mas sim propiciar aos(s) estudantes a compreenso das relaes de poder envolvidas na hierarquizao das manifestaes culturais e dos saberes, assim como nas diversas imagens e leituras que resultam quando certos olhares so privilegiados em detrimento de outros. Nessa perspectiva, importante que consideremos a escola como um espao de cruzamento de culturas e saberes. A escola deve ser concebida como um espao ecolgico de cruzamento de culturas (Prez Gmez, 1998). A responsabilidade especfica que a distingue de outros espaos de socializao e lhe confere identidade e relativa autonomia exatamente a possibilidade de promover anlises e interaes das influncias plurais que as diferentes culturas exercem, de forma permanente, sobre as novas geraes. O responsvel definitivo da natureza, do sentido e da consistncia do que os alunos e as alunas aprendem em sua vida escolar este vivo, fluido e complexo cruzamento de culturas que se produz na escola, entre as propostas da cultura crtica, alojada nas disciplinas cientficas, artsticas e filosficas; as determinaes da cultura acadmica, refletidas nas definies que constituem o currculo; os influxos da cultura social, constituda pelos valores hegemnicos do cenrio social; as presses do cotidiano da cultura institucional, presente nos papis, nas normas, nas rotinas e nos ritos prprios da escola como instituio especfica; e as caractersticas da cultura experiencial, adquirida individualmente pelo aluno atravs da experincia nos intercmbios espontneos com seu meio (Prez Gmez, 1998, p.17). Conceber a dinmica escolar nesse enfoque supe repensar seus diferentes componentes e romper com a tendncia homogeneizadora e padronizadora que impregna suas prticas. Para Moreira e Candau (2003, p.161), a escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferena. Tende a silenci-las e neutraliz-las. Sente-se mais confortvel com a homogeneizao e a padronizao. No entanto, abrir espaos para a diversidade, a diferena e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que est chamada a enfrentar. A escola precisa, assim, acolher, criticar e colocar em contato diferentes saberes, diferentes manifestaes culturais e diferentes ticas. A contemporaneidade requer culturas que se misturem e ressoem mutuamente,

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que convivam e se modifiquem. Que se modifiquem modificando outras culturas pela convivncia ressonante. Ou seja, um processo contnuo, que no pare nunca, por no se limitar a um dar ou receber, mas por ser contaminao, ressonncia (Pretto, 2005).

4.3 O currculo como um espao em que se explicita a ancoragem social dos contedos36Sugerimos, como outra estratgia (intimamente relacionada anterior), que se desenvolva nos(as) estudantes a capacidade de perceber o que tem sido denominado de ancoragem social dos contedos (Moreira, 2002b). Pretendemos que se propicie uma maior compreenso de como e em que contexto social um dado conhecimento surge e se difunde. Nesse sentido, vale examinar como um determinado conceito foi proposto historicamente, por que se tornou ou no aceito, por que permaneceu ou foi substitudo, que tipos de discusses provocou, de que forma promoveu o avano do conhecimento na rea em pauta e, ainda, como esse avano propiciou benefcios (ou no) humanidade (ou a certos grupos da humanidade). No seria estimulante envolvermos nossos(as) estudantes nas lutas travadas em torno da aceitao do modelo heliocntrico do universo? No seria enriquecedor acompanharmos e situarmos na histria o surgimento e as transformaes dos modelos de tomo, discutindo suas contribuies para o avano da cincia e da tecnologia? O que estamos propondo que se evidenciem, no currculo, a construo social e os rumos subseqentes dos conhecimentos, cujas razes histricas e culturais tendem a ser usualmente esquecidas, o que faz com que costumem ser vistos como indiscutveis, neutros, universais, intemporais. Tratase de questionar a pretensa estabilidade e o carter aistrico do conhecimento produzido no mundo ocidental, cuja hegemonia tem sido incontestvel. Tratase, mais uma vez, de caminhar na contramo do processo de transposio didtica, durante o qual usualmente se costumam eliminar os vestgios da construo histrica dos saberes. Procurando ilustrar nosso ponto de vista com outros exemplos, sugerimos perguntas que, no ensino das Cincias Naturais, podem se revelar bastante pertinentes. Eis algumas delas: (a) onde situar as origens da cincia: em culturas europias ou culturas no europias?; (b) em que medida a cincia moderna pode ser considerada ocidental?; (c) existem ou podem vir a existir cincias, elaboradas em outras culturas, que tambm funcionem, que tambm expliquem a realidade?; (d) por que a escola insiste em apresentar a cincia ocidental como a nica possibilidade?; (e) que conflitos se encontram subjacentes aos processos de construo e de difuso do conhecimento cientfico?; (f) que debates tm sido gerados pela introduo, na comunidade cientfica, de novas teorias?; (g) por que a escola insiste em apresentar uma teoria consensual da cincia, subestimando as divergncias referentes a

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temticas priorizadas, metodologias, fundamentos tericos, objetivos? (Apple, 1982; Harding, 1996). Acreditamos que a explorao de questes como essas, em um curso de Cincias Naturais, tanto ajuda a desafiar a suposta neutralidade cultural da cincia quanto a iluminar perspectivas e possibilidades insuspeitadas de desenvolvimento cientfico. O princpio que estamos defendendo nos instiga tambm a relacionar os contedos curriculares s experincias culturais dos(as) estudantes e ao mundo concreto, o que permite analisar quem lucra e quem perde com as formas de emprego desses conhecimentos. Experincia desenvolvida por um pesquisador canadense, John Willinsky (2004), pode ser associada a esse enfoque. Bastante crtico da forma como habitualmente se analisam obras poticas nas salas de aula, despindo-as de seus propsitos culturais e estticos, o autor, ao ser desafiado por um estudante para dar uma unidade de Literatura em uma turma de ensino mdio, abandonou a antologia tradicionalmente empregada. Optou, ento, por formular, com os(as) alunos(as), uma antologia alternativa que abrigasse as diferentes vozes e identidades que hoje povoam o Canad e que pudesse trazer cena cultura, vida, dor, sangue, paixo, sensibilidade, assim como desafiar relaes de poder que garantem a continuidade de diferenas e desigualdades no mundo contemporneo (Moreira, 2004). O que os(as) estudantes escolheram para compor a nova antologia abriu as portas da sala de aula para suas posies histricas, experincias, vises de mundo. Ainda: denunciou a persistente hegemonia da cultura de origem europia, claramente expressa na herana colonial que continua a se infiltrar no currculo. No se est diante de uma confirmao de que vises da cultura como mente cultivada ou como desenvolvimento social atrelado aos padres europeus continuam presentes nos currculos escolares? O mesmo autor (Willinsky, 2002) nos oferece outro exemplo que tambm se harmoniza com o princpio que estamos defendendo. Perguntanos se possvel dividirmos a realidade humana em culturas, raas, histrias, tradies e sociedades claramente diferentes e conseguirmos suportar, com dignidade, as conseqncias dessas classificaes. Insiste, ento, no questionamento do carter aparentemente natural, cientfico mesmo, dessas divises. Para isso, acrescenta, h que se compreender a dinmica histrica das categorias por meio das quais temos sido rotulados, identificados, definidos e situados na estrutura social. Para isso, h que se focalizar, no currculo, a construo dessas categorias. Somente assim iremos desafiar seus significados e abrir espao, na escola e na sala de aula, para a diversidade. Ou seja, Willinsky rejeita a idia de que existe uma verdade, uma essncia ou um ncleo em qualquer categoria. Incentiva-nos, nas diferentes disciplinas curriculares, a tornar evidente e a desestabilizar a construo histrica de categorias que nos tm marcado, tais como raa, nao, sexualidade, masculinidade, feminilidade, idade, religio etc. Com essa estratgia, pretende explicitar como o mundo tem sido dividido.

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Aceitando e seguindo a orientao de Willinsky, poderamos planejar coletivamente, na escola, nas distintas disciplinas, a anlise, durante determinado perodo de tempo, de como a idia de raa, por exemplo, vem sendo empregada para garantir privilgios e legitimar atos de opresso. Exemplifiquemos. Em Cincias, poderamos problematizar o carter supostamente cientfico da categoria, at hoje evocado em muitos textos. Em Histria, poderamos examinar como a categoria tem justificado processos de colonizao, de rotulao, de hierarquizao de grupos e culturas, de escravido, de restrio a migraes. Em Geografia, poderamos explicitar como a categoria raa se tem acrescentado, de modo harmnico, s razes apresentadas para conquistas, novas distribuies de espaos, novos mapas. Em Literatura, a discusso de representaes das raas em diferentes textos literrios propiciaria verificar o que essas representaes tm valorizado, distinguido, includo e excludo. Em Educao Fsica, poderamos desmistificar a imagem do negro como o atleta perfeito, como o corpo que melhor se presta para o salto, a corrida, o jogo, a dana, o movimento.

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4.4 O currculo como espao de reconhecimento de nossas identidades culturaisUm aspecto a ser trabalhado, que consideramos de especial relevncia, diz respeito a se procurar, na escola, promover ocasies que favoream a tomada de conscincia da construo da identidade cultural de cada um de ns, docentes e gestores, relacionando-a aos processos scio-culturais do contexto em que vivemos e histria de nosso pas. O que temos constatado a pouca conscincia que, em geral, temos desses processos e do cruzamento de Constitui um exerccio culturas neles presente. Tendemos a uma viso homogeneizadora e estereotipada fundamental tornarmode ns mesmos e de nossos alunos e nos conscientes de nossos alunas, em que a identidade cultural enraizamentos culturais, dos muitas vezes vista como um dado, como processos em que misturam algo que nos impresso e que perdura ao longo de toda nossa vida. Desvelar essa ou se silenciam determinados pertencimentos culturais, realidade e favorecer uma viso dinmica, contextualizada e plural das identidades bem como sermos capazes culturais fundamental, articulandode reconhec-los, nome-los e se as dimenses pessoal e coletiva trabalh-los. desses processos. Constitui um exerccio fundamental tornarmo-nos conscientes de nossos enraizamentos culturais, dos processos em que misturam ou se silenciam determinados pertencimentos culturais, bem como sermos capazes de reconhec-los, nome-los e trabalh-los.

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Como favorecer essa tomada de conscincia? Alguns exerccios podem ser propostos, buscando-se criar oportunidades em que o profissional da educao se estimule a falar sobre como percebe a construo de sua identidade. Como vm sendo criadas nossas identidades de gnero, raa, sexualidade, classe social, idade, profisso? Como temos aprendido a ser quem somos, como profissionais da educao, brasileiros(as), homens, mulheres, casados(as), solteiros(as), negros(as), brancos(as), jovens ou idosos(as)? Nesses momentos, tem sido bastante freqente a afirmao nunca pensei na formao da minha identidade cultural, ou ento me considero uma rf do ponto de vista cultural, expresso usada por uma professora jovem, querendo se referir dificuldade de nomear os referentes culturais co