livro: ubes - uma rebeldia consequente
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Capa
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André Cintra • Raisa Marques
UBES Uma Rebeldia Consequente
A História do Movimento Estudantil Secundarista do Brasil
Realização Patrocínio
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Sempre Jovem e SexagenáriaFicha TécnicaPatrocínio: Ministério da Cultura
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBESPresidente: Ismael CardosoVice-Presidente: Ana Letícia
Primeiro Vice-Presidente: Gregório GouldSegunda Vice-Presidente: Camila Moreno
Tesoureiro Geral: Elton GutembergPrimeiro Tesoureiro: Guilherme da Silva
Secretario Geral: Pedro MouraPrimeiro Secretário: André Monteiro Lopes
Diretora de Comunicação: Aline LopesDiretor de Relações Internacionais: Osvaldo Lemos
Diretora de Esportes: Thiara MilhomenDiretor de Grêmios: Samuel Martins
Diretora de Políticas Educacionais: Ana Paula
União Nacional dos Estudantes – UNEPresidente: Augusto Chagas
Vice-Presidente: Tiago Ventura
UBES, Uma Rebeldia Consequente — A História do Movimento Estudantil Secundarista do Brasil
Autores: André Cintra e Raisa MarquesCoordenadora do Projeto de Pesquisa: Raisa Marques
Pesquisadores: Gabriela Azevedo Chaves, Júlio Barnez Pignata Cattai, Luiz G. Ribas, Vanessa Bivar e Victor Raoni de Assis Marques.
Projeto Gráfico, Diagramação e Revisão: W3OL Comunicação Ltda.Gerência de Projetos: Rodrigo Ferreira, Fábio Almeida e Angélica Dias
A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES)
completou 60 anos — uma data das mais relevantes e simbólicas
para o movimento estudantil brasileiro. Em momentos assim, sente-se,
cada vez mais, a necessidade de iniciativas de recuperação da história
do movimento secundarista em geral e de sua principal entidade em
particular. Tais iniciativas são compreendidas como elemento fundamental
para entender as características e as singularidades de uma trajetória
tão rica de experiências.
A preservação da memória do movimento estudantil
secundarista se enquadra nesse objetivo. A história da organização
e das lutas empreendidas pelos estudantes é parte fundamental da
história do Brasil, uma vez que esse movimento influencia decisivamente
importantes mudanças políticas. Para além de conhecer mais do passado
da UBES, é preciso ter consciência do imenso patrimônio construído
pelos estudantes.
É nesse sentido que a UBES promove o resgate de sua memória
— das experiências vividas por sucessivas gerações de secundaristas,
lideranças e dirigentes estudantis. Uma longa história repleta de
fatos marcantes e inúmeras lutas na busca de um país soberano e da
educação de qualidade.
Chegou a hora de registrar um número incontável de heróis
anônimos, de acontecimentos que marcaram a vida do povo brasileiro,
sempre cumprindo o papel designado aos jovens — que é questionar
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Dops-SP – Boletim Informativo
Serviço Secreto
“Nenhuma única oportunidade de agitação e consequente
organização pode ser perdida. O hábil agitador secundarista, José Slinger,
por exemplo: conseguiu organizar uma greve na classe ‘Y’ do Instituto
de Educação Caetano de Campos, aproveitando-se do fato de estar frio e
um dos vidros da janela estar partido. Ganhou com isso rápido prestígio,
consolidando com a fundação do jornal ‘Estudantes Unidos’ por ele
dirigido e organizando o movimento estudantil secundário na escola.”
São Paulo, julho de 1953
sempre, buscar respostas e soluções.
O projeto “UBES: Sempre Jovem e Sexagenária” visa recuperar e
organizar as informações sobre essa história, através do levantamento
de dados, organização de um acervo de documentos e coleta de
depoimentos orais de ex-militantes envolvidos na atuação da entidade.
O ponto culminante do projeto é a publicação deste livro, uma importante
contribuição para as futuras gerações de lutadores e pesquisadores.
UBES, Uma Rebeldia Consequente — A História do Movimento
Estudantil Secundarista do Brasil não pretende, de maneira alguma,
esgotar o tema. É apenas o primeiro passo para desbravar a trajetória
dos estudantes secundaristas. Muito ainda há de ser pesquisado,
ouvido, escrito e registrado — tudo para que essa memória não se
apague. A UBES deseja, sinceramente, que fatos e personagens pouco
aprofundados ou debatidos neste projeto sejam mais estudados
futuramente.
Desfrutem, enfim, desta gloriosa história — e boa leitura para
todos.
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Agradecimentos
Quem escreve um livro tem sempre uma dívida de gratidão com
um grande número de pessoas. Com UBES, Uma Rebeldia Consequente,
não poderia ter sido diferente. Dezenas de pessoas tornaram este
projeto possível, contribuindo voluntariamente com seu tempo e
conhecimento.
Ao longo de dois anos, os colaboradores ajudaram desde a
elaboração e a captação de recursos do projeto “UBES: Sempre Jovem e
Sexagenária” até a publicação deste livro — passando pela assistência
em pesquisas, ideias, sugestões de arquivos e entrevistados, revisão,
edição, etc.
Expressamos aqui nossa gratidão para as pessoas que
prestaram informações sobre uma vasta gama de temas que foram
de extrema utilidade. É o caso do pessoal da captação e da gestão do
projeto, Márvia Scardua e Rodrigo Ferreira. Das prestativas historiadoras
do Projeto Memória do Movimento Estudantil (MME), Angélica Muller
e Tatiana Resende, responsáveis por um dos mais monumentais
trabalhos de pesquisa sobre as lutas dos estudantes. Da equipe do
Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ) — Fabiana Costa
(Bia), Fernando Garcia, Brenda Espindula e Rovilson Sanches Portela —,
que não só abriram seus arquivos como também deram grandes dicas
para as pesquisas. Da equipe do portal Vermelho, especialmente Cláudio
Gonzales e Bernardo Joffily, pela generosa cessão de fotos e conteúdos.
Dos funcionários da sede da UBES, sempre tão esforçados e solícitos,
como Sulivan Grechi, Fábio Gregio, Flávio Gonçalves, Maria Gracineide,
Ronaldo Batista e Márcio Tito.
Agradecemos a todos os nossos familiares pela compreensão
nas intensas horas dedicadas ao projeto e pelo grande incentivo para
que este livro fosse plenamente viabilizado. Temos, de um lado, o
exemplo militante de Lenilda de Assis e Epaminondas Araújo Marques —
e, de outro lado, a imensa dedicação de Nivaldo Santana, Julia Delibero
e Talitha Ferraz de Souza.
Isso sem contar as inúmeras pessoas que, mesmo sem saber,
nos ajudavam muito, passando tranquilidade, calma e enorme afeto —
exemplos de amizade e companheirismo.
Nossos agradecimentos finais a todos que, de uma forma ou
de outra, ajudaram a compor UBES, Uma Rebeldia Consequente. A todos
eles, um forte abraço dos autores.
Dedicamos este livro a todos os jovens secundaristas que
deram a própria vida para fazer do Brasil um país mais justo, livre e
soberano.
São Paulo, dezembro de 2009
André Cintra e Raisa Marques
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Apresentação
Uma história que merece (e precisa) ser contada
Numa de suas crônicas mais famosas, o escritor uruguaio
Eduardo Galeano relata que, em Chicago, não encontrou referência
alguma ao massacre de operários que deu origem ao Dia Internacional
do Trabalhador. Ainda que “o único dia verdadeiramente universal da
humanidade inteira” seja justamente 1º de Maio, “não foi erguida
nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade de
Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada”.
A crônica termina com um provérbio africano: “Até que os leões tenham
seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão
glorificando o caçador”.
A UBES não apenas compartilha do protesto de Galeano como
também se lançou a um desafio: passar a limpo sua trajetória de lutas
— a história viva dos secundaristas brasileiros. Afinal de contas, não é
qualquer entidade que, em pouco mais de 60 anos, consegue superar
tantas adversidades e ostentar um retrospecto tão coerente, repleto de
conquistas e marcos. Fundada em 1948 com o nome de União Nacional
dos Estudantes Secundários (UNES), liderou de cara lutas como a
campanha “O Petróleo É Nosso”. No calor da Greve dos Bondes de 1956,
superou divisões internas e se forjou como uma entidade de orientação
progressista.
As décadas de 1960-70 foram as mais duras. Da Campanha
da Legalidade em 1961 aos “anos de chumbo” do regime militar
(1964-1985), o movimento estudantil foi alvo de uma perseguição
permanente e cruel. A sede histórica das entidades, na Praia do
Flamengo, foi metralhada, incendiada, depredada e, por fim, usurpada.
Por desafiarem uma ditadura impopular e reacionária, jovens estudantes
— alguns de apenas 15 anos — foram presos, expulsos de suas
escolas ou universidades, submetidos à tortura e mortos. Suas famílias,
invariavelmente, eram violentadas também.
Foi por causa desse regime criminoso que uma geração inteira
de estudantes cresceu num Brasil sem entidades estudantis nem
democracia — mas com censura, repressão e outras ilegalidades. A
UBES, clandestina desde 1964, ainda realizou congressos, encontros
e manifestações até 1971 — até que a mão pesada de um regime à
margem da lei usasse a força e tornasse a entidade inativa por dez
anos. Nesse período, várias ex-lideranças secundaristas deram a vida
contra o regime, como Antonio Ribas, que foi morto e decepado na
Guerrilha do Araguaia. Mais que secundaristas e universitários, mais do
que líderes estudantis, esses jovens já foram reconhecidos pelo Estado
como “heróis do povo brasileiro”.
Quando ocorreu, em 1981, o Congresso de Reconstrução
da UBES, a ditadura já não tinha mais condições de deter o espírito
aguerrido, pulsante e irreverente dos secundaristas. A UBES reafirmou a
vocação do movimento estudantil de “brilhar para sempre, brilhar como
um farol, brilhar com brilho eterno”, fazendo jus aos versos de Vladimir
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Maiakóvski.
A UBES, de tantas causas em favor dos secundaristas,
jamais deixou de ser também um protagonista político do Brasil. Foi
intransigente na defesa dos direitos dos estudantes e da educação de
qualidade — mas tampouco se furtou a mobilizar os estudantes para
as grandes lutas nacionais. Sempre ao lado do povo e da democracia, os
secundaristas se fizeram presentes — quando não majoritários — no
Comício da Central (1964), nas passeatas e protestos do inesquecível
1968, na campanha pelas Diretas Já (1984) e pelo Fora Collor (1992),
entre outras lutas memoráveis.
Nos momentos de instabilidade e ascensão golpista, a UBES
foi às ruas e lutou pela legalidade. Por um lado, não alcançou a vitória
decisiva ao apoiar o presidente João Goulart contra as elites nos
anos 60. Por outro, somou-se às entidades da CMS (Coordenação dos
Movimentos Sociais) que, em 2005, desafiaram a escalada conservadora
e rechaçaram o golpe para derrubar o governo Lula. Quando perdeu e
quando ganhou, a UBES manteve a coerência e não cedeu às tentações
destiladas pelos inimigos da pátria.
Não é à toa que Antônio Houaiss, numa das apresentações de
O Poder Jovem, de Artur José Poerner, resume o posicionamento dos
estudantes e de suas entidades a um único dilema: “Ou me realizo com
o meu povo, ou me realizo contra o meu povo. Ou me identifico com o
destino do meu povo, com ele sofrendo a mesma luta, até sairmos todos
vencedores, luta em que muitos sofrimentos e dor haveremos de juntos
de sofrer; ou me dissocio do destino do meu povo, juntando-me (como
aliado, preposto, lacaio, servidor, títere, fantoche ou joguete) aos que
exploram esse povo”.
A UBES pode se orgulhar de ter caminhado, desde o começo,
sob a inspiração dos interesses nacionais e populares. Com mais de
60 anos, a entidade maior dos secundaristas brasileiros é uma jovem
sexagenária, uma obra em constante progresso, engajada nas batalhas
por um Brasil justo e soberano, edificado na educação e na cultura, no
trabalho e no esporte. As lutas — e as caçadas — continuam. Centenas
de outras páginas ainda hão de ser vividas e então narradas por seus
mais legítimos representantes.
Que todos os atuais e antigos estudantes secundaristas não
tenham dúvida de que, desde 1948, a história do Brasil é um pouco
nossa também. Não a história oficial, duvidosa e hipócrita, contada por
“caçadores”, oportunistas, espoliadores da pátria. Somos parte ativa de
uma história que precisa ser contada por quem de fato esteve nas lutas,
foi às ruas e caminhou do lado certo. É o que este livro pretende.
Ismael Cardoso, presidente da UBES (2007-2009)
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ÍNDICECAPÍTULO 1 (1930-1948): Começa a organização secundarista nacional ................19Os secundaristas em ação ..................................................................................... 23Enfrentando a ditadura ........................................................................................... 26Na era das reformas educacionais ........................................................................ 29
CAPITULO ESPECIAL 1 (1948): Nasce a UBES ..........................................................31O despertar da UBES .............................................................................................. 36Uma mobilização histórica ...................................................................................... 38A fundação ................................................................................................................ 41As finalidades ............................................................................................................ 43O ensino secundário nos anos 40 ....................................................................... 45
CAPÍTULO 2 (1948-1951): Anos de Afirmação .......................................................47Na batalha de idéias ................................................................................................ 50Disputas acirradas ................................................................................................... 54A direita racha a UBES ............................................................................................. 55
CAPÍTULO 3 (1951-1956): O movimento dividido ...................................................59Caminhos diferentes surgem duas UBES .............................................................. 61Primeira mulher presidente da entidade nacional_............................................ 71Greve dos Bondes gera a unificação ..................................................................... 74Enfim, a reunificação ................................................................................................ 76
CAPITULO 4 (1956-1964): A grande ascensão do movimento estudantil ...............79Secundaristas e universitários vão à luta ........................................................... 81Os congressos .......................................................................................................... 84Jânio, o breve ............................................................................................................ 88
A Campanha da Legalidade ..................................................................................... 89Os estudantes ganham força ................................................................................. 91Lutas por todos os cantos ..................................................................................... 94Golpe Militar ............................................................................................................... 96
CAPITULO 5 (1964-1968): Os estudantes no fio da na baioneta ..........................101A Lei Suplicy de Lacerda ......................................................................................104A UBES sufocada ...................................................................................................106A luta prossegue ..................................................................................................108Os estudantes na vanguarda ...............................................................................110A sucessão ..............................................................................................................113
CAPITULO ESPECIAL 2 (1968): De cara com a utopia .............................................1151967, a preparação ...............................................................................................117Uma morte, o estopim ..........................................................................................121O Rio vela Edson Luís .............................................................................................126Da missa à “Sexta-Feira Sangrenta” ...................................................................129A Passeata dos 100 Mil ........................................................................................134Os universitários na berlinda ..............................................................................138O “maio francês” .....................................................................................................141
CAPITULO 6 (1968-1971): A ditadura destrói a UBES ..........................................143A polêmica secundarista .....................................................................................146A versão de Juca Ferreira ....................................................................................148A versão de Bernardo Joffily ...............................................................................150Depois do ato ..........................................................................................................151A luta armada .........................................................................................................153Na era dos sequestros revolucionários ..............................................................155Os estudantes em situação-limite ......................................................................158
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CAPÍTULO 7 (1972-1975): Os estudantes contabilizam seus mortos ...................163Prisão e morte de Ribas ........................................................................................167“Brutalmente desfigurados”, “muito massacrados” .........................................170Os universitários na hora da morte ....................................................................173A guerrilha no campo ............................................................................................175Secundaristas vão à luta ......................................................................................178O início da reação ...................................................................................................183Do movimento secundarista ao Araguaia ..........................................................185
CAPÍTULO 8 (1975-1979): A caminho da reconstrução ........................................187Mais e mais mortes ...............................................................................................189A UNE ressurge, a UBES também ........................................................................192Leia o Manifesto da 1ª Reunião dos Secundaristas ........................................198
CAPITULO ESPECIAL 3 (1979-1981): A UBES renasce ...........................................201De volta aos encontros nacionais........................................................................204Preparando o congresso........................................................................................205Enfim, o Congresso .................................................................................................207A eleição ______________________________________________________210
CAPÍTULO 9 (1981-1987): A conquista da democracia .........................................213Nova eleição ............................................................................................................217Diretas Já .................................................................................................................221Novas batalhas .......................................................................................................228 A lei que resgatou os grêmios ............................................................................232
CAPÍTULO 10 (1987-1992): Em busca da unidade ................................................235Geração-mochila ....................................................................................................238A “crise da comida” ...............................................................................................240O voto aos 16 .........................................................................................................244
Uma disputa espetacular ......................................................................................245Um governo desastroso ........................................................................................247Contra Collor, a união .............................................................................................250
CAPÍTULO EPECIAL 4 (1992) Os caras-pintadas derrubam o presidente ..............255A sociedade reage ................................................................................................258A vez dos estudantes ...........................................................................................260O Brasil de luto .......................................................................................................263As maiores mobilizações.......................................................................................266Collor cai .................................................................................................................267
CAPÍTULO: 11 (1992-2002): Cara a cara com o neoliberalismo ............................271Itamar e o movimento estudantil ......................................................................275A conquista do terreno ........................................................................................277A longa noite neoliberal ........................................................................................282O segundo governo FHC .......................................................................................286Meia-entrada para democratizar o acesso à cultura ......................................291A eleição de Lula e o fim de um ciclo .................................................................294
CAPITULO 12 (2003-2009): A cara do novo Brasil ................................................297“Caras-Pintadas” garantindo direitos .................................................................301A luta pelo passe livre ..........................................................................................304Mudanças Educacionais .........................................................................................307Voltando pra Casa ..................................................................................................309Fim do vestibular – o livre acesso ......................................................................314Oclae, a integração do movimento estudantil ..................................................317Pronta para muitos anos de luta ........................................................................320
AUTORES ................................................................................................................322BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................323
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
Capítulo 1.(1930-1948)
Começa a Organização Secundarista Nacional
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
A ascensão do movimento estudantil no Brasil dos anos 30
ocorreu num cenário complexo, de grandes transformações. O marco
inaugural do período foi a Revolução de 1930 — que, para muitos
historiadores, pode ser considerado também o fato histórico brasileiro
mais importante do século 20. Havia mais de três décadas que os dois
partidos republicanos mais antigos do país — o de São Paulo e o de
Minas Gerais — se revezavam no poder. O pacto entre as elites rurais
desses dois estados garantiu a longevidade da República do Café com
Leite e a hegemonia das oligarquias rurais.
Mas a mamata das elites estava com os dias contados. O Brasil
se via às voltas com uma crise econômica, causada pela superprodução
do café e seriamente agravada com a quebra da Bolsa de Valores de
Nova Iorque em 1929, que levou à queda da exportação desse principal
produto da economia brasileira. A burguesia cafeeira pressionou em
busca de socorro financeiro junto ao governo federal. Em meio a isso, o
paulista Júlio Prestes se candidatou a presidente, nas eleições de 1930,
para suceder outro paulista, Washington Luís. Foi um duro golpe contra
a República Velha. Pelo rodízio que vigorava até então, era a vez de o
Polarização do ambiente nacional leva os estudantes a tomarem posições mais fortes — e os secundaristas a perceberem a necessidade da união nacional.
Partido Republicano Mineiro indicar o próximo presidente.
A surpreendente indicação de Júlio Prestes levou os mineiros
a romperam com São Paulo e apoiarem a Aliança Liberal, maior partido
de oposição ao Partido Republicano Paulista. A Aliança era liderada pelo
governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, que ia à disputa com
uma plataforma eleitoral de novo tipo. Mesmo sendo apoiado por muitos
políticos conservadores influentes na Primeira República, o programa
varguista propunha certos avanços progressistas, como jornada de
trabalho de oito horas, voto feminino e apoio às classes trabalhadoras.
Nas urnas, Vargas perdeu para Júlio Prestes. Mas a Aliança
Liberal declarou ilegítimo o resultado, derrubou a força Washington Luís
e tomou posse na Presidência em 3 de novembro. A ascensão de Vargas
e seus partidários assinalava o fim da hegemonia dos fazendeiros rurais,
da República Velha e da Política de Estados (na verdade, de apenas dois
estados — São Paulo e Minas Gerais). A partir de 1930, acelerou-se
o processo de urbanização e industrialização. A população começou a
participar cada vez mais na vida política, e a crescente classe operária
se organizava em partidos e entidades sindicais. Várias leis trabalhistas
foram aprovadas depois da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio. Parte delas visava ampliar direitos e garantias do trabalhador,
como a lei de férias e regulamentação do trabalho de mulheres e
crianças.
Todo esse processo de desenvolvimento, no Brasil, foi
acompanhado por uma verdadeira revolução educacional, que acabou
por garantir o sucesso de Vargas na tentativa de transformar a
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
sociedade. A medida para a criação de um sistema educacional público
foi controlada oficialmente pelo governo. Para centralizar a formação e
torná-la acessível aos mais pobres, Vargas criou o Ministério da Educação
e Saúde em novembro de 1930, logo nos primeiros dias de governo. O
primeiro ministro nomeado foi Francisco Campos.
O novo modelo de governar o país também inaugurou um tipo
de relação entre o Poder Público e o movimento estudantil. Ao governo,
interessava um diálogo direto. Em depoimento ao projeto Memória do
Movimento Estudantil (MME), José Gomes Talarico, líder do movimento
estudantil da década de 1930, afirma que Vargas demonstrava uma
tolerância atípica com as entidades. “Evidentemente, quando os
estudantes tinham possibilidade de se aproximar, ele (Vargas) recebia
muito bem, cordialmente, tanto que tolerou, ou consentiu, por exemplo,
durante o período de 1938 a 1942-43, o movimento estudantil que
tinha grande influência da esquerda e do PC (Partido Comunista). Ele
pessoalmente nunca teve uma atitude pessoal contra esse ou aquele
estudante. Ao contrário, nós sabíamos exatamente... apelávamos para
sua compreensão... não havia dúvida nenhuma”.
A nova Constituição estabeleceu o ensino primário obrigatório,
com a perspectiva de estender essa universalidade a outros graus do
ensino. Com a difusão da instrução básica, Vargas acreditava poder
formar um povo mais consciente e apto às exigências democráticas,
como o voto, além de uma elite de futuros políticos, pensadores e
técnicos. As mudanças foram sentidas aos poucos, no dia a dia das
escolas brasileiras. “Em 1929-1930, começava a se desenvolver o ensino
no Brasil”, diz Talarico, que na época era secundarista. “Havia falta de
professores e, quase sempre, os professores de História, Português,
Geografia eram alunos das escolas superiores - por exemplo, da
Faculdade de Direito, da Escola Politécnica ou da Faculdade de Medicina.
Muitos dos meus professores eram alunos de Direito e influíam seus
alunos”. No ensino superior, o governo procurou estabelecer as bases do
sistema universitário, investindo nas áreas de ensino e pesquisa.
Os secundaristas em ação É verdade que a UBES foi fundada em 1948, mas os estudantes
do ensino secundário, sempre foram movidos pelo desejo de mudar as
coisas, nunca ficaram parados. De acordo com o jornalista Apolinário
Rebelo, presidente da UBES na gestão 1983-85 e pesquisador do
movimento estudantil, há indícios de que os secundaristas já se
organizavam minimamente desde o começo do século 20. “Em 1902,
surge o primeiro grêmio estudantil em São Paulo, que vai se fortalecendo.
Mas eram grêmios recreativos, culturais, de lazer, de cultura”, declarou
Apolinário ao MME. Essa forma de organização perdurou por muitos anos,
sendo atestada também por José Gomes Talarico, “o maior movimento
estudantil antes foi através do esporte, inclusive o futebol, atletismo,
natação”.
Sempre presente nos jovens, a expressão da rebeldia das
décadas de 30 e de 40 começou a tomar a forma de organizações mais
sólidas e politizadas, em diversas regiões do país, com a formação de
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
grêmios escolares, entidades municipais e, principalmente, estaduais.
Se uma rede estudantil já existia e passava a funcionar de maneira
articulada, o passo à frente era o movimento criar unidade em entidades
unificadas, para fortalecer a representação e a luta estudantil. No Rio de
Janeiro, capital federal, essa demanda ganhava força. “Não havia AMES
(Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários), que foi criada
depois, mas havia sempre um movimento espontâneo”, resume ao MME
Fernando Pamplona, líder estudantil secundarista na década de 1940.
Vários fatores estão ligados à percepção dessa importância
de mais organização secundarista, mas poucos tiveram tanto impacto
quanto a implementação das taxas de anuidades. A campanha contra
as taxas mobilizou estudantes pelo Brasil afora. Além de haver poucas
escolas que ofereciam o curso colegial e uma pequena oferta de vagas,
a anuidade restringiria ainda mais o acesso à escola. “De 1929 para
1930, pela primeira vez, se criou a taxa de matrícula e houve um
movimento dos alunos contra o ‘Chico Taxa’”, recorda Talarico, fazendo
alusão ao apelido jocoso do ministro Francisco Campos, um dos alvos
dos estudantes. Apesar da mobilização, a taxa foi implantada - mas a
luta contra seu aumento e até mesmo pela derrubada da anuidade foi
permanente para os secundaristas.
A unidade do movimento se consolidava, e a necessidade de mais
organização ficava cada vez mais clara. Experiências se multiplicavam
por várias cidades, como na Salvador de 1933. “Tive contato com um
grupo, no Ginásio da Bahia, que era do Partido Comunista, e entrei nessa
célula”, afirma o ex-líder estudantil Fernando Sant’Anna. “As discussões
eram coisas como, por exemplo, um programa que tentamos fazer logo
no início da década de 30, que era ampliar o movimento estudantil
no Ginásio, fundarmos grêmios. Lá no Ginásio da Bahia, fundamos o
Grêmio do Ginásio da Bahia, o Ernesto Carneiro Ribeiro, um ginásio muito
importante ali na Liberdade. Os outros ginásios também fundaram essas
organizações, os grêmios, no sentido de criarem uma estrutura mais
ampla possível”.
A fundação da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1937,
ajudou a impulsionar esse processo. Embora tenha sido criada para
representar os estudantes universitários, a UNE nunca negou espaço
aos secundaristas. Uma prova dessa interlocução está no livro Memórias
Estudantis - Da Fundação da UNE aos nossos Dias, da historiadora Maria
Paula Araujo. De acordo com ela, “o II Congresso Nacional de Estudantes
foi aberto solenemente no dia 5 de dezembro de 1938. Dele participavam
cerca de oitenta associações universitárias e secundárias”.
A abertura desse Congresso que aconteceu no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro, foi uma atividade de muita representatividade
entre os muitos oradores, um em especial deixa claro a ligação entre
universitários e secundaristas, era Bercelino Maia que representava
todas as organizações secundarias presentes no plenário.
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
Os estudantes e o povo brasileiro já viviam sob o Estado Novo
(1937-1945). No plano internacional, um conflito imperialista levou
as grandes potências mundiais a entraram em confronto na Segunda
Guerra Mundial, que opôs os países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália)
e as nações aliadas (Estados Unidos União Soviética e Inglaterra). Ao
longo do conflito, cada um desses grupos buscou apoio político-militar
de outras nações. Inicialmente simpático ao nazismo, Vargas cedeu
às pressões dos Estados Unidos e mudou de lado. O afundamento de
Enfrentando a ditadura embarcações brasileiras por submarinos alemães serviu para afastar o
Estado Novo das forças nazistas.
Porém a pressão popular sobre a posição do Brasil no conflito
estava cada vez mais forte. Os estudantes, em particular, começaram a
ir às ruas, em protesto contra a escalada de Adolf Hitler e a postura do
governo brasileira. Fernando Pamplona, um dos líderes estudantis que
se manifestaram no período pela paz mundial, lembra a influência de
um de seus professores do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. “Uma vez,
(o professor) fechou o colégio para participar da passeata antinazista,
pedindo a entrada do Brasil na guerra: a UNE na ocasião programou. Ele
arregimentou todos os alunos, que eram só 300 ou 400 no Pedro II, não
tinham mais que isso. E arregimentou para, em frente ao externato do
Pedro II, na Praça Marechal Floriano, iniciar a grande passeata estudantil
pedindo a guerra contra a Alemanha. Havia até carro alegórico com (o
Protesto contra a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, Rio de Janeiro, 1942. (Acervo MME)
Manifestação estudantil pela
entrada do Brasil na Se-
gunda Guerra Mundial, Rio de Janeiro, 1942. (Acervo MME)
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
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Capítulo 1 (1930-1948) Começa a Organização Secundarista Nacional
imperador japonês) Hiroíto, com Hitler e com Mussolini fantasiados e o
povo jogando coisas neles”.
O movimento secundarista se nutriu das experiências e lições
desse período. “A minha geração é filha da guerra. Tudo o que a gente
fez foi conseqüência dos efeitos da guerra aqui no Brasil”, disse ao
MME Fernando Pedreira, fundador da AMES (Associação Metropolitana
dos Estudantes Secundaristas) do Rio de Janeiro e depois da UBES. “A
primeira coisa de que tenho uma vaga memória foi ainda na época em
que os alemães afundavam navios brasileiros. Houve movimentação de
rua, protestos, aquela coisa, toda porque o governo, na verdade, apoiava
os alemães ainda. Não só o governo, mas a igreja católica e os militares
também. Então saímos e apedrejamos restaurantes alemães: o Zepelim,
o Bar Lagoa”.
Sofrendo com a hostilidade popular, Getúlio Vargas terminou
declarando guerra contra os italianos e alemães em agosto de 1942.
Politicamente, o país buscava ampliar seu prestígio junto aos Estados
Unidos e reforçar sua aliança política com os militares. A isso se somam
os impactos da repercussão nacional
Foram muitas as mobilizações estudantis, as passeatas e
os manifestos deixando claro o posicionamento da juventude: todos
queriam que o Brasil se posicionasse perante a Segunda Guerra. “Então,
veio o discurso de Vargas no encouraçado Minas Gerais que quase
dava o apoio aos países do Eixo, culminando com a presença da UNE
nas ruas, chamando a atenção que a luta nossa seria pelo Brasil ao
lado dos Aliados, dos países chamados ‘democráticos’, para combater o
nazifascismo”, lembrou ao MME Genival Barbosa Guimarães, presidente
da UNE. “Não existia televisão, e as estações de rádio daquela época
não apresentavam noticiários, não havia entrevistas (elas eram mais
pra divertimento), somente apresentações de cantores, essas coisas”.A
formação da opinião pública contra a guerra, portanto, dependeu
decisivamente das mobilizações populares. Os estudantes já estavam
no centro da luta política. A criação de uma entidade para o movimento
secundarista era questão de tempo.
Na era das reformas educacionais
A década de 1920 foi um período de grandes iniciativas para a educação brasileira. Foram os anos, sobretudo, das reformas educacionais. Não havia ainda um sistema público organizado, como é hoje a rede de ensino controlada pelo Ministério da Educação. Abriu-se assim um grande espaço para debates e propostas em prol da educação. Um dos movimentos mais importantes da época ficou conhecido com o nome de Escola Nova, que projetou diversos temas e grandes figuras. O ensino, de acordo com essa visão, deveria ser leigo - ou seja, sem a influência e a orientação religiosa que tinham marcado os processos educacionais até então.
A função da educação era formar um cidadão livre e consciente que pudesse incorporar-se ao grande Estado Nacional em que o Brasil estava se transformando. A defesa de uma escola pública, universal e gratuita se tornou sua principal bandeira: a educação deveria ser garantida a todos, e todos deveriam receber o mesmo tipo de educação. Para os adeptos da Escola Nova - como os educadores Anísio Teixeira, da Bahia, e Fernando de Azevedo e Manuel Lourenço Filho, de São Paulo -, a igualdade de oportunidades e condições permitia que as diferenças naturais florescessem.
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Capítulo Especial 1.(1948)
Nasce a UBES
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Capítulo Especial 1 (1948) Nasce a UBES
Quem acompanha as atividades da UBES nos últimos anos,
com suas centenas — às vezes, milhares — de participantes, talvez
não consiga imaginar as origens mais modestas da maior entidade
estudantil do país. Foi no mês de julho de 1948, em meio à chamada
Era Dutra, que aconteceu no Rio de Janeiro o 1 - Congresso Nacional dos
Estudantes Secundários. Apesar da grande agitação social e estudantil
da época, a conjuntura política era adversa, de resistência. Empossado
em janeiro de 1946, o marechal Eurico Gaspar Dutra, um dos raros
militares eleitos presidente da República diretamente pelo povo, não
correspondia às aspirações democráticas que o levaram ao poder com
quase 55% dos votos.
Uma vez encerrada a Segunda Guerra Mundial em 1945, viviam-
se os primeiros anos de Guerra Fria — que dividiu o mundo em duas
áreas claramente distintas e rivais: o bloco capitalista, sob liderança
norte-americana, e o bloco socialista, comandado pela União Soviética.
Dutra levou o Brasil ao alinhamento praticamente incondicional com
os Estados Unidos. A aliança acentuava a feição liberal-conservadora
do governo e se refletia em diversas medidas autoritárias. Depois de
pôr na ilegalidade o Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1947, o
No rastro da campanha “O Petróleo é Nosso”, secundaristas se reúnem no Rio para fundar sua própria entidade
marechal-presidente cassou, oito meses depois, o mandato de todos os
parlamentares da legenda. Greves pipocavam Brasil afora, em protesto
contra o arrocho salarial — o valor do salário mínimo se mantinha
congelado. As eleições sindicais estavam proibidas. Num único ano de
gestão, o governo Dutra interveio em 143 sindicatos.
Para o movimento estudantil, organizado nacionalmente pela
UNE a partir de 1937, a situação não era das melhores. Embora tivesse
ganhado mais projeção política devido à sua posição contra o Estado
Novo (1937-1945) e às passeatas contra o nazifascismo e pela entrada
do Brasil na Segunda Guerra, a UNE sofria pressões constantes desde
a Era Vargas. A batalha pelo prédio da Praia do Flamengo demonstrava
a polarização. O imóvel era ocupado pelo Clube Germânia até 1942,
quando foi fechado pelo governo e ocupado por estudantes. “Houve
Ministro Gus-tavo Capanema entrega a posse da sede da Praia do Flamengo para a diretoria da UNE, 1942. (Acervo MME)
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uma luta”, relembra o ex-líder estudantil paraense e presidente da UBES
em 1950-51, Lúcio Abreu, em entrevista ao projeto MME. De acordo
com Lúcio, “parte do governo queria usar a Juventude Brasileira, uma
organização de juventude patrocinada pelo Estado Novo, e de outro,
havia a União Nacional dos Estudantes, que começava a mobilizar um
apoio muito grande que ia até os estudantes secundários”.
Depois da guerra, a radicalização do confronto “esquerda
x direta” levava os estudantes a apoiar causas progressistas e
nacionalistas. As mobilizações, mais do que nunca, não ficavam restritas
aos universitários — que, de resto, somavam apenas 27 mil em 1945.
Era crescente a adesão de secundaristas. Com tantas divergências,
o governo Dutra passou a reprimir o movimento, perseguindo suas
entidades. A UNE, além do mais, viveu sob hegemonia socialista a partir
de 1947. No ano seguinte, quando a entidade promoveu o Congresso
da Paz e chamou manifestações contra o aumento das passagens de
bondes, forças policiais invadiram a sede da Praia do Flamengo, para
intimidar os estudantes.
A despeito da repressão, o movimento crescia no pós-guerra.
“Em 1945, terminou a guerra com a vitória dos aliados na Europa, e
chegou ao fim à ditadura do Getúlio Vargas. De repente nos confrontamos
com a liberdade. Os jornais passaram a publicar tudo”, declara ao MME
Fernando Pedreira, que foi fundador da AMES e da UBES. “Acabou a
ditadura, acabou a guerra. Então fomos para as ruas, queríamos
alguma coisa. Naquele tempo havia bonde, interrompíamos os trilhos,
parávamos os bondes. Fazíamos toda a sorte de coisas desse tipo”,
agrega Pedreira.
Sede fechada pelo governo
durante Congresso pela
Paz, 1948. (Acervo MME)
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Embora não tivessem uma entidade nacional própria, os
secundaristas já se articulavam pelo Brasil em entidades desde os
anos 30. Os encontros organizados pela UNE eram os principais pontos
de aglutinação troca de experiências e atualização das bandeiras de
lutas.
Dez anos depois, os estudantes secundaristas logo
compreenderam a necessidade de ter a sua legítima entidade nacional,
que os representasse, unificasse suas lutas e fosse porta-voz de
seu movimento. Base para isso já se acumulava. De canto a canto do
Brasil, entidades municipais e estaduais de estudantes secundaristas
ganhavam forma. Já existiam, por exemplo, a União Colegial de Minas,
o Centro Potiguar dos Estudantes, a União Fluminense dos Estudantes
Secundários, a União Carioca dos Estudantes de Comércio, a União dos
Estudantes dos Cursos Secundários do Pará, a Associação dos Estudantes
Secundários da Bahia, a União Paulista dos Estudantes Secundários e a
União Paranaense dos Estudantes Secundários, além da já citada AMES.
E todas essas entidades articularam a fundação da entidade nacional.
Suas articulações tinham como ponto de partida os grêmios
estudantis dos liceus (escolas de ensino secundário e profissionalizante),
mas logo extrapolavam as paredes desses grêmios. “Em vários estados,
o movimento estudantil secundário era muito forte, ou estava crescendo,
eu diria até que mais do que no Rio de Janeiro”, atesta Lúcio Abreu,
O despertar da UBES
que começava a sobressair no período como presidente da União dos
Estudantes Secundários do Pará (UESP). “Víamos pelo Norte e Nordeste
que o movimento estudantil secundarista estava maduro. No Pará, por
exemplo, fazíamos assembléia com 800, mil, mil e tantas pessoas.
Nossas assembléias já eram em ginásios de colégios porque não cabia
tanta gente em pequenos espaços”.
No final dos anos 40, as manifestações mais freqüentes
levavam os secundaristas às ruas em virtude de transporte. Ora se
combatia a alta do preço da passagem de bondes, ora se proclamava
a defesa do passe-livre para os estudantes ou ainda pelos 50% de
desconto nos cinemas. Se eram massivas por um lado, essas ações
também tinham uma contrapartida: seu raio de ação e seus impactos
eram localizados, quase sempre pontuais, o que não estimulava tanto
a unificação do movimento nacionalmente. Eis que novas bandeiras de
lutas, invariavelmente patrióticas, trataram de dar um sentido maior
de pertencimento e brasilidade à estudantada. Foi o caso das lutas
contra a alta do custo de vida e pela indústria siderúrgica nacional.
Nenhuma delas, porém, teve mais visibilidade e tamanho protagonismo
dos secundaristas do que a campanha “O Petróleo É nosso”, um dos
maiores movimentos de massas da história do Brasil.
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A campanha foi decisiva para garantir o monopólio estatal do
petróleo — sua principal reivindicação. E isso numa época de economia
liberalizante, que acentuava a dependência do Brasil, sobretudo aos
Estados Unidos. Conforme escrevem em artigo as historiadoras Angélica
Müller e Tatiana Rezende, “a campanha pela autonomia brasileira na área
petrolífera foi uma das mais polêmicas da história do Brasil republicano.
De 1947 a 1953 o país dividiu-se entre os ‘nacionalistas’, que achavam
que o petróleo deveria ser explorado exclusivamente por uma empresa
estatal brasileira, e os chamados ‘entreguistas’, aqueles que defendiam
que a prospecção, refino e distribuição deveriam ser atividades
exploradas por empresas privadas, estrangeiras que dominavam
tecnologias mais modernas. Estes últimos tinham forte representação
na grande imprensa”.
Uma mobilização histórica
A participação maciça de secundaristas em todo o Brasil
era um fator de popularização da campanha — e um marco para o
movimento estudantil. O engajamento de jovens estudantes de ensino
secundário é atestado pela médica e escritora Maria Augusta Tibiriçá,
autora do clássico O Petróleo É nosso — A Luta contra o Entreguismo pelo Monopólio Estatal. Com duas palestras eloqüentes e memoráveis no
Clube Militar (uma em julho, outra em agosto de 1947), o general Júlio
Caetano Horta Barbosa talvez tenha sido o precursor da iniciativa. Mas,
de acordo com Maria Augusta, o lema “O Petróleo É nosso” ganharia eco
depois de ter sido gritada, escrita e consolidada por secundaristas do
colégio Vasco da Gama, no Rio de Janeiro. Segundo a autora, o diretor
da escola e da turma dos escoteiros, Otacílio Raínhom, dava guarida
aos “ginasianos”. Quando os alunos lhe pediram uma caixa de giz para
escrever palavras-de-ordem nas paredes do colégio, Raínhom sugeriu:
“Por que vocês não escrevem ‘O petróleo é nosso’?”.
A proposta seria incorporada em seguida pela UNE e pelo
Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional, criado
Foto da Iª Convenção do Petróleo em 1948. (Acervo MME/ Doação Maria Augusta Tibiriçá)
Flâmula da campanha “O
Petróleo é nos-so”. (Acervo MME/ doada
por Terezinha Val)
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em 4 de fevereiro de 1948, no auditório da Associação Brasileira de
Imprensa. No Dia de Tiradentes do mesmo ano, 21 de abril, a campanha
era oficialmente lançada, no Automóvel Clube do Brasil, de onde se
irradiaria posteriormente para outros estados. “Por onde você passasse,
no Brasil, lá estavam os cartazes, dizendo: ‘o petróleo é nosso, o petróleo
é nosso’, espalhados pelo mundo inteirinho. Isso foi uma marca. Tinha
mais propaganda do que tem hoje a Coca-cola ou o Mcdonald. Foi uma
coisa que pegou”, registra ao MME o ex-líder estudantil Dyneas Aguiar,
presidente da UBES, 1953-55. “Nessa questão do petróleo não houve
uma unidade, mas uma grande maioria do movimento estudantil, tanto
universitário quanto o secundarista, apoiou.”
Além de pôr a UNE na vanguarda dos movimentos organizados,
a batalha pela soberania do petróleo ajudou a conscientizar o movimento
secundarista. Se nos anos anteriores a idéia de criar a tal entidade
nacional dos secundaristas era por várias vezes proposta, mas nunca
viabilizada, a campanha “O Petróleo É nosso” deu densidade e coesão ao
movimento. Quando um encontro nacional de estudantes secundários
foi anunciado, no Rio de Janeiro, em 1948, a semente do que viria a ser
a UBES estava depositada em solo fecundo.
O local do 1º Congresso Nacional dos Estudantes Secundários
não poderia ter sido outro, a não ser a mais famosa casa dos estudantes
brasileiros, no número 132 da Praia do Flamengo. Pode-se dizer que o
empréstimo do espaço, de 21 a 25 de julho de 1948, não foi à única
contribuição decisiva da UNE para a formação da nova entidade. “A UNE
era uma organização que estava no nosso imaginário, de tudo que a
gente estava vivendo de transformações no mundo e no país num curto
espaço de tempo”, analisa Lúcio Abreu.
A efervescência das lutas sociais em geral e do movimento
estudantil em particular, marca o Congresso de 1948, a fundação.
Dezenas de secundaristas tiveram condições de se locomover à capital
federal e lá ficar durante os cinco dias previstos de programação. A
viagem naquela época era algo cansativo e caro, mas vieram de
várias partes e de diversas formas, navio, ônibus e avião. Porém, só
foram registrados em ata os organizadores do congresso que são os
fundadores da entidade numa lista anexada aos primeiros estatutos.
Fundadores: José Fagundas de Menezes (RN), Luiz Bezerra de
Oliveira Lima (RN), Aderbal Morelli Jucary Costa (RN), Adalberto Veras
(RN), Moroveu Dantas (RN), Willian Colbert (RN), Arthur Fagundas de
Oliveira (MG), Carlos Rubens Ferreira de Oliveira (MG), Antonio Carlos
Ribeiro de Andrade (MG), Silras Augusto da Costa (MG), Sebastião Vieira
(MG), Delveud Vieira (GO), Haroldo Costa (RJ), Martiniano Barboza (RJ),
A fundação
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Jacob Samuel Bonder (RJ), Artur Seixas (RJ), Ino Matos (RJ), Francisco
Cortez Fortes (RJ), Honório Campos Perez (RS), Paulo Ferreira (RS),
Marina Mattla (PA), Antonio Holanda Castro (PA), Augusto Perreira (PA)
Abílio Cerqueira Perreira (AM) e Gemeniano Moura (BA).
Em 25 de julho, um domingo ensolarado, último dia do
congresso, os participantes aprovavam os estatutos e elegiam a
primeira direção da entidade — que, sob inspiração da UNE, foi batizada
como União Nacional dos Estudantes Secundários (UNES), com sede na
capital federal. De acordo com seus estatutos, a UNES se inspirava e
fundamentava “em princípios democráticos”, para se constituir como “a
entidade máxima de representação e coordenação dos corpos discentes
dos estabelecimentos de ensino secundário do país”. Suas entidades
membros se dividiam em três grupos: as estaduais (união de estudantes
ou associação metropolitana); as municipais; e os grêmios de colégio.
Declarando-se apartidária em questões políticas, religiosos e raciais, a
UNES deveria se basear “na íntima cooperação e no entrosamento de
seus órgãos membros”.
As finalidades No congresso de fundação, os debates sobre o papel da
UNES chegaram a oito finalidades básicas, claramente definidas
pelos estatutos: 1) “manter a unidade estudantil em torno de deis
problemas”; 2) “desenvolver relações amistosas entre as unidades
estudantis membros de sua organização”; 3) “cooperar com atividades
representativas dos estudantes universitários e também de todas
as organizações juvenis nacionais ou internacionais”; 4) “dispensar
(...) assistência cultural, médica, jurídica, econômica e desportiva aos
estudantes de todo o Brasil”; 5) “trabalhar pela solução dos problemas
educacionais, econômicos, sociais, culturais e humanitários de estudante
e do povo em geral”; 6) “bater-se, especialmente, em favor da elevação
do nível do ensino secundário”. 7) “pugnar pela democracia e pelas
liberdades fundamentais sem distinção de raça, sexo, posição social,
credo político e religioso”; e 8) “promover e estimular as relações entre
as organizações de jovens e particularmente os estudantes de todo o
mundo”.
Secundaristas do Rio de Janeiro dominaram a composição da
primeira diretoria da UNES, ocupando quatro dos 11 cargos — como os
de secretário-geral e tesoureiro. Mas a presidência coube a um paraibano
radicado no Rio Grande do Norte. Em 2005, na comemoração dos 20
anos da Lei do Grêmio Livre, esse ex-líder estudantil se apresentou
assim às atuais gerações: “Eu, Luiz Bezerra de Oliveira Lima, natural
de Araruna, Paraíba, ex-aluno do Colégio Ateneu Norte Rio-Grandense,
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assumi a presidência da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas,
no ano de 1948, no Rio de Janeiro, tendo exercido anteriormente a
presidência do Centro Estudantil Potiguar durante 1948-49”.
Luiz recordou, ainda, que a posse da direção teve a participação
de quatro deputados federais: Benjamim Farak (RJ), Eusébio da Costa (SP),
João Café Filho (RN) — que se tornaria presidente da República — e José
Augusto Bezerra de Menezes (RN). O presidente da UNE, Genival Barbosa
Guimarães, também compareceu à solenidade. As duas entidades, de
nomes parecidos, mas com representações agora diferentes, iniciavam
ali uma parceria que elevaria o movimento estudantil ao primeiro plano
das lutas por um Brasil mais justo e soberano.
O ensino secundário nos anos 40Conhecida como Reforma Capanema, a Lei Orgânica do Ensino Secundário (LOES) foi promulgada
em 1942, durante a gestão de Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação. Por meio dessa medida, o ensino secundário foi dividido em duas etapas: um primeiro ciclo, o ginasial, de quatro anos; e um segundo ciclo, o ginasial, de três anos, em que o estudante podia optar entre o curso clássico e o científico. O ensino religioso era facultativo, ao contrário da educação moral e cívica, que se tornou obrigatória. A LOES vigorou até a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961.
As inúmeras limitações da Reforma Capanema foram apontadas por especialistas como Otaíza Romanelli. Conforme ela escreve em História da Educação no Brasil, o ensino secundário nos anos 40, com a nova lei, “deveria: a) proporcionar cultura geral e humanística; b) alimentar uma ideologia política definida em termos de patriotismo e nacionalismo de caráter fascista; c) proporcionar condições para o ingresso no curso superior; d) possibilitar a formação de lideranças. Na verdade, com a exceção do item b, constituído de um objetivo novo e bem característico do momento histórico em que vivíamos, a lei nada mais fazia do que acentuar a velha tradição do ensino secundário acadêmico, propedêutico e aristocrático”.
Veja quem integrou a primeira direção da UBESPresidente: Luis Bezerra de Oliveira (RN)Primeiro Vice-Presidente: Sebastião Vieira dos Santos (MG)Segundo Vice-Presidente: Paulo Ferreira (RS)Terceiro Vice-Presidente: Delveaud Vieira (GO)Quarto Vice-Presidente: Marina Matta (PA)Secretário Geral: Jacob Bonder (RJ)Primeiro Secretário: Lincoln Allison Pope (RJ)Segundo Secretário: Martiniano Moreira (RJ)Tesoureiro Geral: Manoel Exelrud (RJ)Primeiro Tesoureiro: Juracy Costa (RN)Segundo Tesoureiro: Augusto Pereira (PA)
Registro da UNESEleito em 25 de julho de 1948 com o primeiro presidente da UNES, Luiz Bezerra de Oliveira Lima vai, no dia 3 de setembro do mesmo ano, pessoalmente, no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, à Avenida Presidente Roosevelt, 176/2º andar, no Centro do Rio de Janeiro, registrar o estatuto da UNES. Lá, entre muitos selos, carimbos e rubricas, ele assinala: “inspirada e fundamentada em princípios democráticos, a UNES será a entidade máxima de representação e coordenação dos corpos dos estabelecimentos de ensino secundários do país”.
Luiz Bezerra de Oliveira,
primeiro presi-dente da UBES
1948-1949. (Acervo UBES/ Foto: Isadora Pisoni 2005)
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Capítulo 2 (1948-1951) Anos de Afirmação
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Apesar das dificuldades e de suas próprias limitações iniciais,
os primeiros anos foram ricos e agitados para a entidade máxima dos
secundaristas brasileiros. Fundada em 1948 ― a princípio com o nome
de União Nacional dos Estudantes Secundários (UNES) ―, a UBES ficou
abrigada na Praia do Flamengo, ao lado de outras entidades já existentes,
como a UNE e a AMES. Naquele período, vivia-se a célebre campanha “O
Petróleo É nosso”. Já fazia meses que setores organizados da sociedade
e diversos movimentos saíam às ruas, em defesa do monopólio estatal
Mudança de nome, troca de presidente em meio à gestão e uma inesperada divisão: os primeiros anos da UBES foram recheados de história.
do petróleo. Os estudantes secundaristas compareciam em massa às
manifestações, liderados até então por grêmios livres, uniões municipais
e entidades estaduais. O surgimento da UNES fortaleceu ainda mais
a campanha, já que o movimento estudantil secundarista, sempre
massivo, agora contava uma entidade para unificar suas bandeiras e
ações em nível nacional.
“Era um período muito intenso e uma das primeiras campanhas
em que atuamos foi na criação da Petrobras, a aprovação da lei que
criou o monopólio estatal do petróleo. Fizemos uma pressão muito
grande junto com todo o movimento”, recorda ao MME o ex-presidente
da UBES, Dyneas Aguiar. “Não houve unidade, mas uma grande maioria
do movimento estudantil, tanto universitário quanto secundarista,
apoiou”.
Além da marcante mobilização popular, uma das razões para
o êxito dessa luta foi o retorno de Getúlio Vargas à Presidência da
República. Uma empresa como a Petrobras não seria jamais obra do
governo entreguista de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), de incomum
subserviência aos Estados Unidos. Nas eleições de 1950, Vargas se
sensibilizou não só para o clamor da campanha “O Petróleo É Nosso”
como também abraçou de vez o discurso nacionalista. De volta ao poder
― agora “nos braços do povo” ―, liderou pessoalmente o processo
que culminou com a criação, em 3 de outubro de 1953, de uma empresa
estatal para explorar o petróleo brasileiro.“No dia em que foi a votação
da lei, tínhamos uma concentração no Palácio Tiradentes, no Rio de
Janeiro. E veio a famosa PE, que era uma polícia especial que havia no
Manifestação de estudantes
nos anos 1950. (Acervo
Correio da Manhã/Arquivo
Nacional)
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Rio... Essa foi uma das grandes batalhas que travamos”, avalia Dyneas.
A vitória estava consumada. Sem dúvida nenhuma, a Petrobras deve boa
parte de sua existência aos secundaristas.
Em meio à campanha e à consolidação da UBES, também eram
crescentes as disputas dentro do movimento entre ideias marxistas
e concepções mais conservadoras. Num dos depoimentos ao MME,
Lúcio Abreu, presidente da entidade em 1950-1951, afirma que em
Minas Gerais a articulação “vinha bem pela direita. Havia pessoas muito
ligadas à Ação Integralista, por exemplo, pessoas que, depois, fizeram
política. Há uma pessoa (Aníbal Teixeira) que fez carreira no movimento
estudantil de Minas e depois foi parlamentar”. Ainda ao MME, Dyneas
Aguiar acrescenta que “existia, naquele período, particularmente entre
1950 e 1956, forças mais reacionárias do movimento estudantil, tanto
na União Nacional dos Estudantes como na UBES. Elas se articularam
para poder ver se tiravam os comunistas e os aliados comunistas do
movimento estudantil, da estrutura do movimento estudantil”.
O primeiro presidente da entidade principal dos secundaristas
vinha do Nordeste ― Luis Bezerra de Oliveira era paraibano e militava no
Rio Grande do Norte. Ele próprio não tinha vinculação mais explícita com
uma ou outra orientação político-ideológica, mas um dado marcante de
sua gestão foi a ascensão, dentro da UNES, da influência do movimento
Na batalha de ideias
no Rio de Janeiro. Era na capital do Brasil que ficava a sede da entidade
― e também era lá que se intensificavam várias lutas estudantis de
grande repercussão. Foi o caso de uma das primeiras manifestações da
entidade, poucos meses após sua fundação. Em 6 de janeiro de 1949,
estudantes cariocas realizaram um breve comício, em protesto contra o
aumento de tarifas nos ônibus. Um bonde chegou a ser incendiado, e
alguns estudantes também passaram sabão nos trilhos, para impedir
sua operação. A repressão foi criminosa: policiais invadiram a sede das
entidades, na Praia do Flamengo, prenderam os 22 estudantes presentes
e bloquearam a entrada ao prédio.
Em julho de 1949, durante o 2º Congresso Nacional dos
Estudantes Secundários, a eleição para a nova diretoria da UNES também
refletiu mais a força do ativismo carioca. O estudante Carlos Cesar
Castelar Pinto, do Rio de Janeiro, foi eleito presidente. Nesse congresso,
os secundaristas discutiram a mudança do nome da entidade ― de UNES
para UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). Segundo
Lúcio Abreu, a principal razão dessa iniciativa foi que a semelhança entre
as siglas UNE e UNES “criava muita confusão”. Dyneas Aguiar confirma:
“A mudança para o nome UBES tinha sido uma solicitação do pessoal
da UNE, porque se confundia muito UNES com a UNE, ambas tinham o
mesmo endereço”.
A inspiração é que continuava. “A UNE era constituída de
entidades em todos os estados ― naquela época, da maioria dos estados.
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E a UBES também pretendia fazer o mesmo”, lembra Lúcio. “Precisava
haver uma diferenciação do movimento estudantil secundarista para o
movimento universitário. Mas a UNE apoiou o tempo todo”.
A segunda gestão teve de passar, ainda, por uma inusitada troca
de presidentes. O mandato de Carlos Cesar Castelar foi interrompido em
janeiro de 1950 ― o presidente da UBES havia passado no vestibular
e entrado para a universidade. Acabou por renunciar a seu cargo, dando
lugar ao vice - presidente, José Teotônio Padilha de Sodré, da Bahia.
Passeata pela Greve contra
o aumento das taxas
escolares, Rio de Janeiro,
1950.(Arquivo do Estado de
São Paulo/Última Hora)
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Além da continuidade da campanha “O Petróleo é Nosso” e da luta
contra as altas tarifas dos bondes, uma das marcas da breve gestão de
Sodré foi a batalha dos secundaristas para derrubar as perversas taxas
escolares. Em 3 de abril de 1950, ocorre uma Convenção Nacional Contra
o Aumento das Taxas Escolares , que convoca uma greve para todo o
Brasil ― a AMES vinha liderando as manifestações no Rio de Janeiro. Em
São Paulo, que já irradiava como maior centro urbano do Brasil, o início
da greve se deu em 20 de abril.
Disputas acirradasPara o Brasil, o ano de 1950 é marcado por três acontecimentos
históricos: a Copa do Mundo, realizada no país; a inauguração da TV
Tupi, que faz as primeiras transmissões televisivas brasileiras; e as
eleições presidenciais, que possibilitam a volta de Vargas ao poder. Já
no 3º Congresso Nacional dos Secundaristas, em julho daquele ano, o
paraense Lúcio Abreu se consagra presidente da UBES. Segundo Lúcio
― que havia sido presidente da União Estadual dos Secundaristas do
Pará em 1948 ―, seu nome “foi proposto como conciliação” e ajudou a
evitar uma divisão da entidade “num momento de racha”.
As disputas começavam a se acirrar. “Ocorreu algum fato que
não percebi (ou que vinha crescendo), que levou algumas bancadas a
divergirem da eleição do Sodré, o candidato natural à presidência da
UBES. Ele era o vice-presidente que assumiu a presidência”, recorda
A direita racha a UBES
Lúcio ao MME. “Ele (Sodré) só terminaria o curso secundário no final
do ano, portanto, podia ser eleito e ficar na presidência uns seis, sete
meses, no mínimo”. As diferenças forçaram, enfim, uma chapa única,
encabeçada pelo líder estudantil paraense. “Lembro que também tinha
uma pessoa, meu amigo-irmão até hoje, o Murilo Vaz, que foi eleito
secretário geral. Ele era de Alagoas e nessa época já, apesar de ainda
muito jovem, era chefe da redação de um jornal importante de lá ― era
editor de política desse jornal”.
O período é emancipação para os secundaristas. “Éramos
poucos, mas tentávamos fazer alguma coisa; tínhamos noção de diversas
coisas que eram legais. Naquela época, 1950/51, uma coisa que se
colocava era a questão da democracia, da liberdade, da justiça”, diz ao
MME o vice — presidente da UNES 1953-1954 Gianfracesco Guarnieri.
“Era muito gostoso o movimento estudantil, mas claro, nós éramos
poucos. O cotidiano era esse: tirar os caras das aulas à noite, levá-los
pra rua”.
A UBES, valorizada por forças políticas das mais variadas
vertentes, mas liderada por estudantes progressistas, ganhava projeção.
O que não estava consolidada, porém, era a unidade no interior da
entidade. “Existiam, naquele período, particularmente entre 1950 e
1956, forças mais reacionárias do movimento estudantil, tanto na União
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Capítulo 2 (1948-1951) Anos de Afirmação
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Capítulo 2 (1948-1951) Anos de Afirmação
Nacional dos Estudantes como na UBES. Elas se articularam para poder
ver se tiravam os comunistas e os aliados comunistas do movimento
estudantil, da estrutura do movimento estudantil”, explica Dyneas
Aguiar. “Em cada local, eventualmente, havia organizações estruturadas,
que atuavam no movimento estudantil, mas não tinham coordenação
nacional. O único que tinha era mesmo a União da Juventude Comunista
(UJC), que tinha uma estrutura, inclusive, nacional. Isso garantia a
hegemonia da direção do movimento secundarista”.
A hegemonia foi quebrada após o traumático 4º Congresso
Nacional dos Estudantes Secundários, em Salvador, no dia 25 de julho
de 1951. Em meio à programação, setores de direita, sob a liderança
de Paulo Barbalho, de Pernambuco, partiram para o golpe. De acordo
com Dyneas, “houve um confronto com o pessoal que acompanhava a
UJC e os que se opuseram, coordenados e organizados pelo pessoal
de Pernambuco e outros estados do Nordeste. Mas eles eram minoria”.
Pouco antes do término da programação, Barbalho e seus seguidores
abandonaram o congresso. Na eleição da nova diretoria da UBES, uma
chapa única, de situação, não teve trabalho nenhum para vencer a
disputa. O baiano Tibério César Gadelha foi eleito presidente.
Apesar de o resultado ter sido legítimo, os estudantes
desertores, ligados à UDN (União Democrática Nacional), encamparam
uma manobra que rachou a entidade maior dos estudantes
secundaristas. A ação é detalhada, no MME, por Dyneas: “As diretorias
da UBES, tanto a que encerrou o mandato, quanto a que foi eleita,
ficaram sem dinheiro para nada... O grupo, esse da direita, foi para o Rio
de Janeiro. Seus integrantes sabiam em qual cartório estava registrada
a UBES e forjaram um livro ata, redigiram a ata e registraram a diretoria,
com o Paulo Barbalho na presidência. Quando o Tibério chegou, o Lúcio
e outros foram para o cartório registrar a chapa vencedora, ouviram do
cartório: ‘Isso já está registrado, já tem uma diretoria registrada. Para
nós está legal, o livro ata, as assinaturas’”.
Oficialmente, a UBES estava registrada com uma direção
golpista, composta por Paulo Barbalho (PE), Rodolfo Gonçalves (RJ),
Hermano Gouveia Neto (BA), Luis Carlos Alencar (SE), Joaquim Santos
Filho (PI), Genival Herculano de Souto (RJ), Antonio Padua Ramos (RJ),
Gin Eurípides Cabral (GO), Edson Ferreira (RJ), e Durval Magalhães (RJ).
Já a diretoria eleita pelo voto no congresso, além do presidente: Tibério
César Gadelha (BA), Alberto Ferreira da Rocha, Américo Fernandes de
Souza Marques e Neiva Aguiar Mafra (SP), José Teotonio Padilha Sodré,
Neiva de Aguiar Mafra e Fernando de Assis.
Nos anos seguintes ― começo da década de 1950 ―, os
secundaristas viram sua entidade nacional dividida. A direita fez jus à
sua tradição golpista e com seguiu manchar a história do movimento.
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Capítulo 3 (1951-1956) O movimento dividido
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Capítulo 3 (1951-1956) O movimento dividido
A volta de Getúlio Vargas à Presidência da República, em 1951,
depois de cinco anos de governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra, mudou
para sempre a história do Brasil - mas os estudantes secundaristas
tiveram pouco a comemorar. Não houve reformas educacionais nem
políticas públicas comprometidas em melhorar a qualidade do ensino
secundário. A mudança mais marcante ocorreu em julho de 1953:
o ministro da Educação, Ernesto Simões Filho, foi substituído pelo
deputado Antônio Balbino - ambos do Partido Social Democrático (PSD),
que compunha a base aliada do governo. Poucos dias depois, o Ministério
da Educação e Saúde foi desmembrado em duas pastas, dando origem
ao Ministério da Educação e Cultura (MEC) e ao Ministério da Saúde.
Para os secundaristas, porém, tais alterações não resultaram
em progresso, já que os principais investimentos ficavam com o ensino
superior. “O segundo governo Vargas, conhecido pelo impulso nacionalista
ao desenvolvimento, ficou devendo muito, se o que estiver em pauta
for educação”, resume a pesquisadora Helena Bomeny, em artigo para
o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC-FGV). “São tão silenciosas as
fontes que, se quiséssemos, poderíamos resumir estas notas à criação
O movimento dividido Lideranças secundaristas passam a primeira metade dos anos 50 em luta para reunificar o movimento estudantil
de institutos e instituições de administração superior que, de fato,
impulsionaram o projeto institucional do país.”
O movimento estudantil também sofria com divisões internas.
Um golpe promovido por lideranças estudantis de direita em junho de
1951, no 4º Congresso Nacional dos Estudantes Secundários, dividiu
a UBES. Liderados pelo pernambucano Paulo Barbalho e o mineiro
Aníbal Teixeira, os golpistas conheciam o cartório onde a entidade
estava registrada, no Rio de Janeiro. Sem pestanejar, correram até lá
e registraram atas falsas, tomando de assalto o movimento. Além da
infraestrutura da sede na Praia do Flamengo, os golpistas receberam
o apoio das diversas entidades estaduais em que a direita já vinha
exercendo sua hegemonia.
Já a diretoria legítima, encabeçada pelo baiano Tibério César
Gadelha e eleita no 4º Congresso, em Salvador, iniciaram a luta para
restabelecer a legalidade. Pela primeira vez, duas entidades nacionais
secundaristas passaram a co-existir - a legítima, composta por lideranças
de tendências de esquerda, especialmente o Partido Comunista do
Brasil (PCB); e a golpista, sob a influência integralista do Movimento dos
Águias Brancas. Em outras palavras, era o “grupo do Tibério” lutando
para denunciar o golpe do “grupo do Paulo Barbalho”.
“Começou a briga das diretorias. Foi-se à Justiça, e essa
Caminhos diferentes,surgem duas UBES
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Capítulo 3 (1951-1956) O movimento dividido
coisa de Justiça leva é tempo! A disputa começou, evidentemente,
forçando cada entidade estadual tomar posição sobre qual diretoria
apoiar”, lembra o ex-presidente da UBES Dyneas Aguiar, em depoimento
ao MME. Logo o embate chegou também aos meios de comunicação.
Os golpistas, mais ágeis, correram para emplacar a versão de que o
congresso não tinha legitimidade nem representatividade. Segundo a
versão da direita, delegações de diversos estados haviam se retirado do
encontro, em protesto contra supostas manobras da diretoria cessante,
que coordenava os trabalhos. A ausência dessas delegações - diziam
os golpistas - punha sob suspeita o resultado das votações e os
encaminhamentos dos debates.
A resposta foi rápida. Em 19 de julho de 1951, jornais como
O Popular publicaram o manifesto “Mistificação em torno do Congresso
dos Estudantes Secundários”, assinado pela “mesa diretiva” do encontro
e por “líderes de diversas bancadas”. Com o texto, o objetivo da diretoria
legítima e seus aliados era “desmentir energicamente sucessivas
notas divulgadas por uma pseudodiretoria” que estava “utilizando
indebitamente o nome de nossa gloriosa entidade”. O manifesto
esclarecia que, durante o 4º Congresso, uma “comissão de inquérito”
impugnou apenas as delegações de Pernambuco e do Estado do Rio. Já
as bancadas do Paraná, do Piauí e de Minas Gerais deixaram o encontro
em solidariedade aos delegados impugnados.
No mês seguinte, a diretoria legítima divulgou uma nota oficial
com o título “Desfazendo o embuste de falsos diretores da UBES”.
Conforme o texto, “qualquer nota ou entrevista dada pelos srs. Paulo
Barbalho e Genival Souto em nome da UBES não passam de manobra
divisionista para enfraquecer o movimento dos secundaristas brasileiros
em prol de suas reivindicações”. Os verdadeiros dirigentes, eleitos no
4º Congresso, “oportunamente” desmentiam o “pequeno grupo” que não
poupava esforços para “usurpar o título de uma entidade representativa
de 300 mil estudantes, utilizando-se mesmo da chantagem de fundar
em 1951 uma entidade que já existe desde 1948”.
A princípio, as duas diretorias usavam o nome da UBES, tinham
sede na Praia do Flamengo e atuavam paralelamente. Cada uma procurava
formular programas e ações à sua maneira para ganhar projeção. A
diretoria legítima, por exemplo, liderou a campanha contra a Circular da
Educação, que obrigava estudantes a frequentarem pelo menos 75%
das aulas. Em 22 de agosto de 1951, Tibério dirigiu a reunião que
convocou, para o mês seguinte, a Quinzena Nacional contra a Circular.
O combate ao aumento de taxas e mensalidades foi outra marca da
gestão.
Os golpistas, no entanto, aproveitavam-se das melhores
condições para continuar a manobra. Uma das medidas mais autoritárias
foi a expulsão da UNES e junto com ela a AMES, da sede da Praia do
Flamengo - a diretoria legítima, dessa forma, ficou sem endereço fixo.
Em meados de 1952, com o movimento dividido, a UNES realizou o
Congresso Nacional dos Estudantes Secundários e elegeu Edson Fontoura
seu presidente. Com a intenção de se diferenciar dos golpistas, o “grupo
do Tibério” resolveu atuar sob o primeiro nome da entidade - UNES
(União Nacional dos Estudantes Secundários) - e também recorreu a
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registro em cartório.
Já os golpistas promoveram, em Belo Horizonte (MG), o
Congresso Brasileiro dos Estudantes Secundários. Na opinião de Dyneas,
as diferenças entre os dois grupos começavam a ficar nítidas. “Quando
chegou no congresso seguinte, viu-se que o Ministério da Educação
estava dando todo o suporte à diretoria do Paulo Barbalho. Eles tinham
passagem de avião para rodar o Brasil inteirinho, tinham toda uma
estrutura montada no prédio da UNE. Ficava bastante desigual”.O
Congresso de Belo Horizonte sofreu críticas abertas. “Tivemos a
desagradável surpresa de saber que aquele congresso iniciava-se
com mau agouro, pois fora convocado por uma diretoria divisionista”,
registrou Jacob Pinheiro Goldberg, em 29 de julho de 1952, no jornal
Folha Mineira.O artigo dava voz a Tibério Gadelha, que acusava os golpistas
de conseguirem “iludir varias entidades estaduais”. Mas a diretoria
legítima tinha o apoio das maiores entidades - a União Paulista de
Estudantes Secundários (UPES) e a Associação Metropolitana dos
Estudantes Secundários (AMES) -, que, juntas, respondiam por 52% dos
secundaristas no Brasil. As duas mandaram delegadas ao Congresso
dos golpistas e, segundo Tibério, “viram seus passos tolhidos pela
ação de uma diretoria exótica. Várias vezes foi cassada a palavra de
João Gimenez, líder da bancada paulista, e outros colegas”. Havia um
claro “ambiente de coação, anarquia e falta de interesse na discussão
dos problemas estudantis” - o que levou as bancadas pró-Tibério a
abandonarem o congresso chamado pelos golpistas.
A UNES, herdeira legítima da entidade nacional dos secundários
fundada em 1948, continuava a liderar as lutas estudantis, sobretudo
contra a cobrança de taxas e mensalidades. Lideranças de São Paulo
começavam a se destacar cada vez mais. Tanto que o 6º Congresso
Nacional, em 1953, aconteceu na capital paulista, junto ao 4º Congresso
da UPES. A disputa pela hegemonia do movimento prosseguia acirrada.
“Tínhamos a maioria das entidades estaduais sob a nossa direção,
levando em conta que a briga era bastante grande. Resolvemos fazer uma
mudança no estatuto da UNES para ampliar a participação no congresso”,
explica Dyneas, citando a abertura do congresso para representantes
de entidades municipais. “Havia cinco delegados da entidade estadual
e dois delegados por entidade municipal. As delegações aumentaram
muito. Os congressos que eram feitos com 100, 130 estudantes,
passaram a ter 500, 600 participantes. Houve uma ampliação e um
fortalecimento também da base do movimento estudantil”.
Ao final do 6º Congresso, o próprio Dyneas foi eleito presidente,
tendo ninguém menos que Gianfrancesco Guarnieri como primeiro
vice. O artista, falecido em 2007, recordou sua atuação secundarista
em depoimento ao MME. “A gente aprendeu a levar em conta o que
sentia, achávamos que ia dar pra resolver tudo. Nós íamos resolver,
não importa como, porque tínhamos firmeza em conseguir solução para
os grandes problemas de nosso país. E isso foi para as ruas: fazíamos
passeatas, campanhas pela questão das mensalidades estudantis, todo
um roteiro de lutas, que misturava as lutas anti-imperialistas com a
necessidade de um trabalho cultural... escrevemos toda a tática de
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convencimento dos grêmios secundários para que eles aprendessem a
se comunicar com os outros estudantes e pudessem desenvolver nosso
movimento. Fiz um programa de como lidar com nossos companheiros,
que ainda não tinham o conhecimento necessário para se comunicar
convenientemente.” diz Guarnieri.
Essa diretoria ainda contava Ivan Matos Paiva como Segundo
Vice, Pedro Signado Leite (CE) como terceiro Vice, Deolindo Dantas (MA)
como Quarto Vice, Walter Valadares de Castro (GO) como Secretario
Geral, Fernandes da Silva (RJ) como Primeiro Tesoureiro e Julio Batista
Neves como Segundo Tesoureiro (BA), lideranças estudantis de várias
partes do Brasil, representando a diversidade nela contida.
No mesmo mês a UBES em Curitiba realiza mais um suposto
Congresso Brasileiro, dessa vez patrocinado pelo governo do estado do
Paraná, onde elegeram para presidente o mineiro Aníbal Teixeira e o
paranaense Luiz Pimpão da Silva como primeiro vice-presidente.
A gestão de Dyneas coincidiu com o enfraquecimento político
de Vargas. O governo federal, às voltas com sua sustentação, se
despreocupou de vez com a educação. Os estudantes, ao contrário,
não perderam as perspectivas. “No período em que eu entrei na UBES,
especificamente, no movimento estudantil, além daquelas lutas que
eram regionais, localizadas, em defesa do restaurante estudantil, da
meia passagem no ônibus, do meio ingresso no cinema, houve a batalha
nacional que travamos pela reforma do ensino”, lembra o ex-presidente
da UBES. “O ensino era assim: o ginasial preparava para o colegial e o
colegial preparava para a universidade, pura e simplesmente. Uma das
nossas batalhas foi pelo reconhecimento da Escola Normal, que formava
as professoras primárias, como curso secundário que não era reconhecido
como tal. As escolas técnicas também não eram reconhecidos como tal.
Então, queríamos uma reforma no ensino, que abrangesse o conjunto e
não ficasse só no ginásio, clássico e científico.”
As relações entre movimento e governo não eram complicadas
na época. “Vargas fazia a relação por intermédio do ministro da Educação,
Antonio Balbino de Carvalho, que era baiano. Esse ministro da Educação
era uma pessoa bastante aberta, democrática, recebia bastante o
movimento estudantil. Fomos a muitas reuniões no Ministério da
Educação para discutir as campanhas, a questão da reforma do ensino”,
enfatiza Dyneas. “Então, nós, secundaristas, tínhamos uma relação boa
com ele. Já os universitários, pelo menos no Rio de Janeiro, estavam
com a UNE, que, naquele período, tinha uma diretoria à direita. Esses
universitários tinham uma relação com ele de outro tipo. Paulo Barbalho,
no nosso caso, que acompanhou tudo direitinho, também tinha uma
relação com ele; ele atendia de um lado e de outro, não tinha uma
atitude discriminatória, do tipo: ‘Não converso com vocês, eu não os
atendo’”.
Na opinião de Dyneas, o legado dessa gestão foi o início de uma
batalha em defesa do ensino de qualidade, atualizado e consistente. “Nós,
de uma certa maneira, iniciamos essa batalha pelas transformações,
pelas mudanças no ensino. E com isso nós conseguimos levar a
discussão para outros segmentos da sociedade. Tiramos o movimento
secundarista só daquele específico e passamos a discutir a reforma
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do ensino, inclusive numa aproximação com o movimento universitário,
porque os universitários se ressentiam muito disso. Quando os alunos
chegavam à universidade, o que eles tinham que estudar não tinha nada
a ver com aquilo que eles estudaram no colegial ou no científico. E a Lei
de Diretrizes e Bases acabou atendendo a algumas reivindicações. Mas,
em grande parte, foi um progresso”.
Em São Paulo, durante os anos de 1950 a 1953 (final governo
Dutra e inicio do segundo mandato de Vargas), foi muito intenso para os
jovens secundaristas de 18 e 19 anos, pois tiveram de enfrentar uma
grande batalha ligada às questões nacionais. O envio de tropas da a
Guerra da Correia era um acordo firmado por Dutra com o governo norte-
americano e Vargas não conseguiu se desvencilhar. Dynéas Aguiar sentiu
na pele esse movimento e relata em seu depoimento. “O movimento
contra o envio de tropas foi algo que ganhou a juventude. Em todos os
congressos e reuniões sem re havia manifestações a respeito. Fazia-se
muita manifestação na Praça da Sé, na Praça do Patriarca, na Rua Direita
(no centro de São Paulo). Volta e meia agente estava fazendo passeata,
no Braz, fazíamos concentrações. Nesse período, eu servi ao Exército,
de 1951 a 1952 e senti dentro do quartel a repercussão do
movimento que existia fora”. Foi um grande movimento e afetou
os secundaristas, pois eram eles que estavam na idade de servir ao
exército, pois os universitários ainda tinha a válvula de escape do curso
universitário.
Então um mês antes do suicídio de Vargas, Dyneas foi reeleito
presidente da UNES, durante o 7º Congresso, realizado em Salvador. No
Rio de Janeiro, enquanto isso, discípulos dos golpistas da direita elegiam
o gaúcho Carlos Salzano Vieira Cunha como seu líder maior. O Brasil
pós-Vargas era outro. Em ensaio para o CPDOC-GV, Maria Celina D’Araujo
assinala que “Juscelino Kubitschek chegou ao poder em uma democracia
de massas regida por uma Constituição liberal, por um sistema partidário
de âmbito nacional, por um Congresso valorizado, por eleições livres e
periódicas e pela liberdade de imprensa. As liberdades políticas eram,
no entanto, limitadas quando se tratava das organizações sindicais e
de esquerda”. Segundo Maria Celina, “o novo presidente soube aproveitar
esse clima de liberdades públicas para propor uma agenda otimista de
governo, com o seu Plano de Metas, e cativar a opinião pública em torno
de seu programa”.
O sucessor de Dyneas na liderança da UNES é Nissin Castiel,
egresso do movimento estudantil gaúcho e eleito no 7º Congresso
Nacional dos Estudantes Secundários, também em São Paulo, em julho de
1955. Esse foi o Congresso onde a disputa entre UBES e UNES apareceu
mais claramente. Quando anunciado a data e local do Congresso da UNES,
que seria realizado na Biblioteca Municipal e no Centro do Professorado
Paulista a diretoria da UBES, comandada por Aníbal Teixeira, fez um
pedido para a policia política que não deixassem a UNES realizar seu
Congresso em São Paulo. De fato o Congresso foi suspenso por quase
dez dias, a desculpa era “estudantes subversivos”, mas a pressão nas
autoridades foi muito grande que acabaram liberando a realização.
Portanto além de Nissin, foram eleitos Ruy Garcia Primeiro-vice, Jarbas
Holanda Segundo-vice, Marcio Gurgel de Amaral Terceiro-vice, Zita Marli
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Quarto Vice, Jehova de Carvalho Secretario Geral, Roubien Rodrigues
Primeiro-secretario, Washington Oliveira Neto Segundo-secretario,
Ednalva Matos tesoureira-geral, Namir Fialte Primeiro-tesoureiro e Helga
Hoffman Segunda-tesoureira.
Já a UBES, aparelhada pelos golpistas, reelege em seu
congresso Carlos Salzano Vieira Cunha, em uma atividade no Rio de
Janeiro. Os dois congressos ocorrem durante a campanha presidencial,
em que JK vence, em 3 de outubro, com apenas 33, 82% dos votos - a
eleição era disputada em um único turno. Juscelino só tomaria posse
após uma longa batalha pela legalidade, assumindo o poder em 31 de
janeiro de 1956.
A gestão de
Nissin Castiel na UNES, por
motivos pessoais, é breve.
Também em janeiro de 1956,
uma mulher assume pela
primeira vez a presidência
da legítima entidade nacional
dos secundaristas. O 8º Congresso Nacional dos
Estudantes Secundários,
realizado em São Paulo, aclama
o nome de Helga Hofman para
a liderança da UNES, primeira
mulher a dirigir uma entidade nacional de estudantes, algo tão raro. “A
minha eleição foi uma coisa organizada de alguma forma, e eu não sei
exatamente os detalhes, pelo Partido Comunista. Eu tinha 17 anos”,
declara Helga ao MME. Sua gestão foi igualmente curta. “Articulamos
para que fosse uma espécie de mandato-tampão, só de seis meses”, diz
Dyneas Aguiar. O motivo: o movimento secundarista estava a caminho
Primeira mulher presidente da entidade nacional
Helga Hoffman, presidente da UNES, janeiro 1956. (Acervo UBES
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da unificação. A UBES também passou por mudanças na presidente, saiu
Carlos Salzano e em uma reunião de diretoria assumiu o tesoureiro José
Luis Clerot, um dos responsáveis pela unificação das duas entidades.
Delegações de vários estados participavam de atividades das
duas entidades paralelas - a UNES e a UBES -, o que ajudou a pacificar
os ânimos. Dyneas afirma que, em uma de suas gestões, a UNES já
havia aprovado uma proposta pró-unificação. Ele começou a se reunir
com Aníbal Teixeira, em buscas de saídas. “A gente sentava, discutia,
marcávamos primeiro todas as diferenças, depois víamos o que era
possível fazer, o que era possível discutir”, diz Dyneas. “Ele participava
da luta pela reforma do ensino, tinha as teses que eles também
defendiam. Ele participava de muitas coisas e começávamos a ver se a
gente marchava junto, cada um na sua esfera de influência, mas pelo
menos com uma certa unidade”.
A UNES passou também a apoiar entidades estaduais que não
estavam vinculadas nem à direita nem à esquerda - caso da União
Colegial de Minas Gerais e da União Gaúcha de Estudantes Secundários.
Na opinião de Dyneas, “o trabalho de reunificação do movimento
secundarista era muito importante, porque só tínhamos a perder com a
divisão. Enquanto corrente que atuava com estudantes secundaristas,
éramos a corrente hegemônica mais forte”.
Os meses que antecederam a unificação coincidem com o
começo do governo JK, que se revela um fiasco na área educacional.
Conforme Helena Bomeny, “é intrigante que um governo com esses
compromissos - democracia e desenvolvimento - tenha desenhado um
grandioso Plano de Metas em que a educação ocupava um lugar tão
subalterno. O setor de educação foi contemplado com apenas 3,4%
dos investimentos inicialmente previstos e abrangia uma única meta.
Formação de pessoal técnico era a meta 30, que prescrevia a orientação
da educação para o desenvolvimento e não falava em ensino básico”.
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Se faltava um pretexto para articular primeiro uma pauta comum para as entidades e levar depois à unificação do movimento, esse pretexto apareceu com a Greve dos Bondes de 1956. A Light, empresa responsável pelas
linhas de transporte coletivo no Rio de Janeiro, inesperadamente dobrou a tarifa de um para dois cruzeiros e passou a ser alvo de inúmeros protestos. “O Rio de Janeiro parou porque o bonde parou e as pessoas não conseguiam passar. Os estudantes juntavam em volta dos bondes. Eu me lembro que estava encarregada de uma esquina lá e, para preparar essa campanha contra o aumento das passagens dos bondes, a gente andou pelo Rio de Janeiro fazendo campanha”, fala a então presidente da UNES, Helga Hoffman.
O presidente da UNE na ocasião das greves, José Batista de Oliveira Junior, relata em seu depoimento ao MME, revelando a ousadia do movimento secundarista “A greve dos bondes, em maio de 1956, foi um episódio forte... O preço havia dobrado... O movimento pegou, porque nós tínhamos, digamos, um governo democrático. Naquele dia, o Juscelino chegou ao aeroporto Santos Dumont e teve que seguir de helicóptero para o Catete, porque o trânsito estava interrompido. Ele ficou apavorado e a segurança preocupadíssima. Eu me lembro que foi
Greve dos Bondes gera a unificaçãoReunião do
comando da Greve dos
Bondes, maio 1956. (Acervo
UBES)
manchete nos jornais do tipo. Paralisação de bondes ameaça a cidade... Aliás, os alunos secundaristas nos davam muito trabalho. Eles eram muito afoitos. Foram eles que começaram o movimento”.
Mas existem outras versões para o inicio da Greve dos Bondes, segundo Artur Poerner, autor de O Poder Jovem, as primeiras manifestações foram convocadas pelas lideranças universitárias da UME (União Metropolitana dos Estudantes), que desde outubro de 1955 já estava livre da influência direitista. “A campanha paralisou o Rio, nos dias 30 e 31 de maio de 1956, e acarretou enorme prestígio aos estudantes progressistas, que, por causa disso, reconquistaram também a UNE, em julho”, escreve Poerner. As historiadoras Angélica Müllerm - e Tatiana Rezende sustentam que a greve começou com um ato em frente à sede das entidades na Praia do Flamengo, onde “os estudantes deitaram-se nos trilhos, impedindo que o trem que ali passava prosseguisse”. A polícia foi chamada, e o pau comeu solto. “O local foi cercado então pela Polícia Militar e os estudantes ficaram dentro do prédio (...). Resultado: a UNE ficou interditada e, no dia seguinte, a imprensa na primeira página registrou o fato”, disse ao MME Genival Barbosa Guimarães, que militou nos movimentos secundarista e universitário. Já o ex-líder estudantil Edson Vidigal, ao comentar a Greve dos Bondes ao MME, diz que “a coisa mais fácil era parar o sistema de transporte porque tinha aquele pau do bonde que ligava no cabo elétrico e cria uma corda. Todo mundo vinha, puxava, esticava e desligava o bonde que ficava parado. Então, parava-se todo o transporte coletivo”.
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Capítulo 3 (1951-1956) O movimento dividido
A Greve dos Bondes estava em pleno vapor quando os presidentes da UBES, José Luis Clerot, e da UNES, Helga Hoffman, decidiram abraçar de vez a causa da unificação. Helga explica: “Quando cheguei, achava até que eles tinham mais organização, mais visibilidade, mas logo achei aquilo esquisito: ‘Como que tem duas?’. E a sorte que o Clerot
também achava: ‘Que esquisito, para que ter duas entidades?’. Nós dois achamos que a nossa grande glória, se é que tem alguma, seria unir as entidades”, Segundo a ex-líder estudantil, as negociações avançaram bem. “Começamos a conversar nesse sentido: ‘Vamos organizar um congresso para unificar’. Aí, eu fui levar para o Partido, porque essas decisões eram conversadas com o Partido. Não é que o Partido controlava e podia impor. Eu tinha as minhas opiniões, e fui levar para o Partido. Aí eles disseram: ‘Vamos levar para a direção do Partido’. Essa parte eu não sei. Eu só sei que depois o Partido apoiou dizendo: ‘Vamos unificar’”.
Dessa maneira, os esforços iniciados por Dyneas Aguiar e Aníbal Teixeira pela unificação foram consolidados por seus sucessores. Em 24 de julho de 1956, o 9º Congresso Nacional dos Estudantes Secundários - também chamado de Congresso da Unificação - acabou com a divisão do movimento secundarista. Com forte presença de delegações
Enfim, a reunificaçãoExemplar do
Jornal “O Estudante”
de Petrópolis: n. 5, maio e junho de
1956, (Acervo MME/ doado por José Ro-
berto Whitaker Penteado).
de entidades de todo país como a União Paulista dos Estudantes Secundários, Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários, União Gaúcha dos Estudantes Secundários, União Catarinense dos Estudantes Secundários, Casa do Estudante Acreano, União Fluminense dos Estudantes Secundários, Centro de Estudantes Cearenses, Federação dos Estudantes Secundários de Niterói, Associação Gonçalense de Estudantes, Associação Petropolitana de Estudantes, Grêmio Ary Barreiras de Niterói, Grêmio Estudantil Rui Barbosa do Distrito Federal, Diretório dos Estudantes Secundários ainda estudantes dos estados de Minas Gerais, Pernanbuco, Manaus e Paraná.
O encontro ocorreu no Instituto Parobé, em Porto Alegre (RS). As duas entidades resolveram se fundir numa só e concordaram que o nome UBES prevaleceria. O plenário elegeu José Luis Clerot para presidir, por dois anos, o primeiro mandato pós-unificação. O fantasma do
Manifestação contra o au-mento do preço da passagem dos bondes, Rio de Janeiro, 1956. (Arquivo Nacional/ Acervo Correio da Manhã).
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Capítulo 4 (1956-1964) A grande ascensão do movimento estudantil
O Golpe de 1964 interrompeu um dos mais prósperos e
vibrantes períodos da história do movimento estudantil. O Brasil, em
termos político-econômicos, vivia uma fase igualmente agitada — do
desenvolvimentismo do governo de Juscelino Kubitschek (1955-1961)
às reformas implantadas pelo presidente João Goulart (1961-1964),
passando pelo brevíssimo mandato de Jânio Quadros (1961). A Guerra
Fria ganhava episódios de maior tensão — a ocupação da Hungria pelo
Exército Vermelho soviético, a Guerra de Suez, a Revolução Cubana, a
crise dos mísseis, a Guerra do Vietnã.
Se na política e na cultura predominava a polarização entre
socialismo e capitalismo, esquerda e direita, o movimento estudantil
ganhava unidade em torno de ideais progressistas, nacionalistas e
ligeiramente esquerdistas. Encarnando o espírito de seu tempo, os
estudantes souberam capitalizar sua atuação, até serem violentamente
reprimidos pelos militares que usurparam o poder. Dá para dizer que,
de meados da década de 1950 até 1964, entidades como UBES e UNE
tiveram “anos dourados”.
O movimento estudantil secundarista, após cinco anos de
divisão, tinha recuperado a unidade em 1956, no 9º Congresso Nacional
Antes do Golpe de 1964, o movimento e as entidades estudantis alcançam uma projeção sem precedentes. Mas os militares...
dos Estudantes Secundários, em Porto Alegre. Ao mesmo tempo, conforme
escreve Artur José Poerner no clássico O Poder Jovem, encerrava-se “a
fase de domínio direitista no movimento estudantil, também conhecida
como Período Negro ou Policial da UNE, ou, ainda, simplesmente, ‘o tempo
de Paulo Egydio’”. Quem passava a assumir a UNE era João Batista de
Oliveira Júnior — que, segundo Poerner, “promoveu um amplo movimento
de politização estudantil, abalando, assim, o controle que o Ministério
da Educação e Cultura exercia, no que diz respeito a esse aspecto.
Sua gestão assinalou, também, formação da primeira frente única de
católicos e comunistas no movimento estudantil, autêntica precursora
do pensamento ecumênico em nosso país”.
A projeção e o prestígio do movimento cresciam — mas a
entidade que mais ganhou visibilidade foi a UNE. “Os secundaristas eram
um pouco auxiliares dos universitários, não tinham uma autonomia e
tal”, chega a dizer ao MME Helga Hoffman, a última presidente da UNES
(1956), antes da unificação. Já o jornalista Bernardo Joffily, que foi
vice-presidente da UBES em 1968-69 e um dos entrevistados do MME,
pondera: “Nós, secundaristas, sempre achamos que os universitários
nos usavam para bucha de canhão, porque nas passeatas nós sempre
éramos a imensa maioria, mas, na hora de levar a fama, de aparecer no
jornal, na televisão, eram sempre os universitários”.
Secundaristas e universitários vão à luta
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Exemplo até involuntário disso é dado, também ao MME, por
João Manoel Conrado Ribeiro, que presidiu a UNE entre 1959 e 1960.
Ele recorda — e critica — uma greve promovida por estudantes em
frente à sede das entidades, na Praia do Flamengo. “Tomei uma surra
na porta do prédio por causa de uma manifestação secundarista”, diz o
ex-presidente da UNE. Para Conrado Ribeiro, “é muita pretensão querer
uma greve de apoio ao presidente da UNE. Devia ser de trabalho, para
que o presidente da UNE fosse mais respeitado pelos poderes públicos.
Juscelino, por exemplo, não nos deu o apoio que queríamos e isso era
motivo da briga. Levei pancada lá que não era pra mim, era pra era pra
estudante secundarista. No entanto, só porque eu estava na porta do
prédio e, é claro, era responsável pelo prédio, levei pancada”. A UNE,
como se vê, estava cada vez mais na mira das autoridades.
Manifestação estudantil con-tra o ministro
da Fazenda Ro-berto Campos. (Acervo MME)
Há outro exemplo da década de 1950, quando um dos alvos
preferido dos estudantes era o economista Roberto Campos. Apelidado
impiedosamente de “Bob Fields” — por conta de sua submissão aos
interesses americanos e por defender a adoção de contratos de risco
com os Estados Undios —, Campos ajudou a criar a Petrobras, mas era
contrário ao monopólio estatal do petróleo. Em 1952, ainda no governo
Vargas, assumiu a presidência do recém-criado BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico, hoje BNDES). Depois, no governo JK, chegou
a ocupar a superintendência do órgão, contra a vontade popular.
“Montamos uma campanha de rua, movimento de rua, para
forçar a demissão do Roberto Campos, que tinha acabado de ser
nomeado por Juscelino. Aquilo foi crescendo, pancadaria, polícia em cima,
gás lacrimogêneo, prisões”, declara ao MME o sociólogo Carlos Estevam
Martins, um dos líderes do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE,
fundado em 1961. “É uma coisa interessante o fato de bloquearmos
a entrada do banco, não deixar ninguém entrar nem sair do BNDES”,
acrescenta Elyseo Medeiros Pires Filho, ex-líder secundarista nos anos
50. Apesar da maciça participação da UBES nos protestos, Roberto
Campos os associou diretamente à entidade dos universitários. “A UNE
fez passeatas com o meu caixão. Foi muito mortificante”, relatou certa
vez o economista a Hugo Studart.
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Nem a falta de justo reconhecimento abateria a UBES ao longo
dos anos. O primeiro congresso após a unificação ocorreu de 20 a 27
de julho de 1957, no Instituo de Educação de Fortaleza. Reportagem
publicada 41 anos depois, na Revista do Instituto do Ceará, registra que,
nesse 10º Encontro dos Estudantes Secundários, os principais temas
debatidos foram “Reforma do Ensino Secundário, Restaurantes e Casas
de Estudantes; o Movimento Nacionalista e a Petrobras; Cooperativas
Estudantis”, entre outros. Os cerca de 400 delegados do congresso
elegeram Celso Saleh para presidente da UBES. Depois de Clerot (1958-
59) e até o Golpe de 1964, ocuparam ainda a presidência da entidade,
Raimundo Nonato Cruz, Afonso Celso Guimarães Lopes, Jarbas Santana,
Alcino Pinheiro Rego, Polibio Braga e Olimpio Mendes.
Os congressos
Congresso da UBES, Rio de
Janeiro, 1958. (Acervo UBES)
A eleição de Nonato Cruz, em julho de 1959, é lembrada
em detalhes por Pedro Porfírio, que integrou a direção eleita. “O 12―
Congresso Nacional dos Estudantes Secundários foi realizado no Rio de
Janeiro, em julho de 1959. Naquela época, cada estado era representado
por uma bancada de cinco secundaristas. Embora o União da Juventude
Comunista e as ‘bancadas católicas’ fossem atuantes, a disputa se deu
sem conotação político-partidária. O maranhense Raimundo Nonato Cruz,
simpatizante do PC, não seguiu a orientação da “fração” partidária entre
os secundaristas e montou uma aliança de bancadas do Norte-Nordeste.
O PC, que ainda não havia rachado, apoiava Jarbas Santana, da Bahia,
sobrinho do deputado comunista Fernando Santana. Curiosamente, as
três bancadas mais à direita — Rio Grande do Sul, Paraná e Santa
Catarina — fecharam com Jarbas”. Uma vez eleitos, Porfírio participou, ao
lado de Nonato Cruz, do 1º Congresso Latino-Americano de Juventudes,
em julho de 1960, em Havana.
Os integrantes dessa diretoria encabeçada pelo maranhense
Raimundo Nonato Cruz, ainda contava primeiro-vice José Dantas da Costa
(PA), segundo-vice Argemiro Cardoso, terceiro-vice Vicente Sobreira Goes
(CE), quarto-vice Darci Fontenele Castro (GO), secretario-geral Clovis
Assunção Melo (PE), primeiro-secretario Thomaz Meireles Netto (AM),
tesoureiro-geral Marcolino Martins Costa (PI), primeiro-tesoureiro Luis
Marilac Toscano (AL), secretario de intercambio Pedro Porfirio (CE) e João
Bosco Evangelista.
A unidade do movimento estudantil se expressava na presença
de tantas entidades na mesma sede, no Rio de Janeiro. De acordo com
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Conrado Ribeiro, em 1959 o prédio das entidades reunia UNE, UBES, CBDU
(Confederação Brasileira do Desporto Universitário), AMES (Associação
Metropolitana dos Estudantes Secundários) e Diretório Central dos
Estudantes da Universidade do Brasil, além do Teatro Universitário.
Ainda que, segundo Conrado, a relação entre o movimento estudantil
e o governo JK fosse “muito fraca”, as entidades recebiam subsídios,
especialmente a UNE. “Tínhamos, assim, um apoio do Juscelino muito
vago. Não por ele, mas por alguns elementos do governo que nos
apoiavam”, aponta Conrado Ribeiro.
Reunião presidente da
UBES, José Luiz Clerot, com
o presidente da República
Juscelino Kubitschek,
1956 (Acervo UBES)
Já Pedro Porfírio recorda que, no caso da UBES, “alguns diretores
— presidente, secretário-geral e tesoureiro-geral — tinha uma ajuda
de custo de um salário mínimo. A UBES recebia uma subvenção do
governo federal. Os diretores que ficavam no Rio dormiam num quarto
do terceiro andar do prédio, em beliches e no sistema de ‘valete’ — dois
no mesmo colchão. Nossos seminários eram feitos com participação de
representações de todo o país. As passagens aéreas eram fornecidas
pelo Ministério da Educação”.
Em 1958, surgiu a Uneti (União Nacional dos Estudantes
Técnicos Industriais). Um documento intitulado “Informe secundarista” e
escrito em 1967 pelo Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCB)
indica que os primeiros dirigentes da entidade eram “inexperientes”. No
lugar deles, apareceu “uma diretoria a serviço do ‘rearmamento moral’, e
outra de carreiristas”. Em 1961, forças progressistas ganham a direção
da Uneti e lhe dão, segundo o PCB, “orientação progressista” e “crescente
fortalecimento”. No mesmo ano, o cancelamento do Conselho Nacional
dos Estudantes Secundaristas do Brasil, marcado para Campina Grande
(PB), irrita lideranças direitistas, que lançam, em vão, protestos contra
a UBES. No ano anterior, 1960, o 13º Congresso da UBES elege uma
chapa única para a diretoria, e Jarbas Santana, derrotado no congresso
anterior, elege-se enfim presidente.
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O fim do governo de Juscelino Kubitschek é marcado pela espetacular ascensão do político sul-mato-grossense e ex-governador paulista Jânio Quadros à Presidência da República. Pela primeira vez, um candidato apoiado pela nefasta UDN (União Democrática Nacional) chegava ao topo do poder — e com expressivos 5,6 milhões de votos. Eleito em 3 de outubro de 1960 e empossado em 31 de janeiro do ano seguinte, Jânio exerceu apenas sete meses dos cinco anos de mandato a que tinha direito. Com o fortalecimento dos sindicatos e das ligas camponesas, o coro por reformas de base ganhava eco. Embora fosse economicamente alinhado aos Estados Unidos, seu governo dizia seguir uma “política externa independente”. Com isso, praticava acenos ao bloco socialista, como condecorar o ministro de Economia de Cuba, Ernesto “Che” Guevara, com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Na condição de vice-presidente, João Goulart, o Jango, liderou uma viagem oficial do Brasil à China.
Abandonado pela UDN, malsucedido na política inflacionária e hostilizado por diversos setores, Jânio renunciou ao cargo, surpreendentemente, em 25 de agosto de 1961. Um dia antes, o jornalista Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara e principal líder udenista, apareceu em cadeia nacional de rádio e televisão para denunciar um suposto golpe tramado pelo próprio presidente. Nunca houve detalhamento do tal golpe nem dos motivos da renúncia. Se Getúlio Vargas evocava “forças ocultas” na justificativa de seu suicídio sete anos antes, Jânio falava agora em “forças terríveis”.
Jânio, o breve A Campanha da Legalidade O acidentado e breve governo Jânio não redundaram em
mudanças de peso para a educação, mas 1961 é marcante para os
estudantes brasileiros. Além da criação do CPC e da UNE Volante, foi
naquele mesmo ano que, pela primeira vez, uma liderança forjada na
Igreja Católica chegava à presidência da União Nacional dos Estudantes.
O feito coube a Aldo Arantes, da JUC (Juventude Universitária Católica)
— grupo que depois ajudaria a criar a AP (Ação Popular), também ligada
a setores católicos progressistas.
Ainda assim, o principal legado do movimento estudantil de 1961
foi seu apoio à Campanha da Legalidade, que exigia a posse imediata de
Jango na Presidência. Os militares, avesso ao vice “comunista” de Jânio
Quadros, se preparavam para rasgar a Constituição e tomar o poder. A
“crise da sucessão” deu origem à Campanha da Legalidade, liderada por
Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul. Em discursos feitos
no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, e espalhados por mais de
cem emissoras de rádio — a chamada “Rede Radiofônica Nacional da
Legalidade” —, Brizola clamava pela normalização do país e comunicava
as decisões de seu governo.
“Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto
Alegre. Fechem todas as escolas. Se alguma estiver aberta, fechem e
mandem as crianças para junto de seus pais. Tudo em ordem. Tudo em
calma. Tudo com serenidade e frieza. Mas mandem as crianças para
casa”, disse o governador, em um dos discursos. “Não pretendemos nos
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submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem,
neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura
contra a vontade de seu povo.”
Sem pensar duas vezes, os estudantes aderiram à campanha.
Secundaristas do tradicional Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto
Alegre, saíram em passeata. “Participei disto com o maior entusiasmo.
Fomos até em direção ao Palácio Piratini e aquilo foi ganhando um
corpo muito intenso em todo o estado do Rio Grande do Sul”, afirma
ao MME o ex-líder secundarista Fernando Barros. “Passei a participar da
Rede Radiofônica Nacional da Legalidade. E ali é que começou a minha
participação já no movimento estudantil, mas com uma visão política
engajada na defesa da democracia.”
Intelectuais, escritores, trabalhadores e até os dois maiores
times gaúchos — Internacional e Grêmio — somavam vozes favoráveis à
manutenção da ordem. Em parceria com a União Estadual dos Estudantes
do Rio Grande do Sul (UEE-RS), a UNE transferia temporariamente sua
sede para o Rio Grande do Sul e convocava mais manifestações. “Nós
montamos em um porão de uma casa uma espécie de uma imprensa
clandestina”, declara Carlos Estevam Martins. “Nós movíamos essa rádio
do Brizola. Tínhamos um rádio, captávamos e passávamos isso para o
papel. Tinha um mimeógrafo, nós rodávamos isso nele e tinham equipes
que saíram pelos bairros da cidade distribuindo essa panfletagem,
dando essas notícias dos últimos acontecimentos.”
A pressão surtiu efeito. Numa solução mediada, o Congresso
aprovou, em 2 de setembro, uma emenda que instalou o sistema
parlamentarista no Brasil. Apesar de ver reduzidos os poderes da
Presidência, João Goulart, afinal, tomou posse no feriado de 7 de
setembro. “Pelos dados do IBGE, quando Jango assume a presidência,
em setembro de 1961, encontra um Brasil com 70.779.352 habitantes,
39,5% de analfabetos, distribuídos nas faixas de 15 a 69 anos. Da
população estudantil, 5.775.246 alunos estavam matriculados na
rede do ensino primário, 868.178 no ensino médio, 93.202 no ensino
superior e 2.489 nos cursos de pós-graduação”, escreve a historiadora
Helena Bomeny, em artigo para o site do CPDoc-FGV.
Os estudantes ganham força Segundo Helena, a educação no governo Jango se debruça sobre
três pontos: “a discussão apaixonada com relação à escola pública; os
programas de alfabetização de adultos pelos movimentos sociais; e a
questão dos ‘excedentes’ — o grande problema do ingresso ao ensino
superior”. Sob esses marcos, é aprovada em dezembro de 1961 a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Jango também dá amplo espaço
à “pedagogia da libertação”, idealizada pelo educador pernambucano
Paulo Freire. Apesar dos avanços, a batalha da UBES ganha caráter de
urgência. No começo dos anos 60, o sistema matriculava apenas 9%
dos jovens com idade apta para o ensino secundarista.
O protagonismo estudantil, no entanto, não se resume às
lutas do movimento. Em artigo, a historiadora Célia Maria Leite Costa
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assinala que, no governo Jango, “os estudantes estiveram sempre muito
presentes no cenário político nacional, participando de campanhas e
manifestações populares em prol da resolução de problemas econômicos,
políticos e sociais do país, além de lutarem por suas reivindicações
específicas”. Segundo Célia, as entidades estudantis “integraram uma
ampla frente antilatifúndio e anti-imperialismo, que incluía também a
Frente de Mobilização Popular (FMP), a Frente Parlamentar Nacionalista
(FPN), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), as Ligas Camponesas,
entre outros”.
Também no começo dos anos 60, uma mudança de destaque no
movimento estudantil foi o surgimento da AP, que deteve a hegemonia
da UNE até o Golpe de 1964. No livro A Primavera dos Anos 60 — A Geração de Betinho, o filósofo e teólogo Giovanni Semeraro defende que
a AP buscava “deixar de ser um partido universitário e de intelectuais
e construir mais sua base nos movimentos operário, camponês e
bancário”. Sua principal base, de todo modo, era o movimento estudantil.
Além da Ação Popular, forças de esquerda permaneciam em evidência,
como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) e a Política Operária (Polop).
Em 1962, o MAC (Movimento Anticomunista) promove um
atentado à sede das entidades — o prédio na Praia do Flamengo foi alvo
de metralhadas. Para a UBES, o ano é marcado por mais um Congresso
Nacional dos Estudantes Secundários, desta vez em Pelotas (RS). A
diretoria eleita é encabeçada pelo catarinense Polibio Braga. “Eu era
da esquerda independente e fui eleito com o apoio do Partidão. Meu
adversário foi Aloísio Paraguassu, da JEC, mais tarde deputado do MDB”,
lembra Polibio. “Internamente, levantei intervenções nas entidades
de São Paulo e do Amazonas, entre outras, tornando o movimento
mais organizado e coeso com a realização, também, de seminários e
congressos”.
O goiano Olimpio Mendes assumiria no ano seguinte a
presidência da UBES, em um congresso realizado em Curitiba (PR), o
último antes do golpe militar. “Tentei um acórdão para eleger alguém da
JEC, que ali já era AP, mas ainda dominada totalmente pelos católicos,
mas de esquerda. Não consegui êxito”, admite Polibio. “Meu secretário-
geral, Olimpio Mendes, ligado a movimentos camponeses, bem de
esquerda, mais do que eu na época, impôs-se e eu o apoiei, levando os
outros a sufragá-lo. Foi meu candidato e candidato único, algo inédito.
Ali estavam a AP, o PCB, a esquerda independente.”
Enquanto isso, na luta para implantar as “reformas de base”,
Jango comemorava o plebiscito de 6 de janeiro de 1963, que restaura o
presidencialismo. A crise político-econômica ficava aguda. Ao arrepio das
elites, o presidente se aproximava dos movimentos sindical e camponês.
As reformas visavam à melhor distribuição de renda, mas a inflação
disparava. Para Adriano Diogo, então estudante secundarista da Escola
Antônio Firmino de Proença e o atual deputado estadual (PT-SP), um dos
momentos mais marcantes do períodos veio do esporte. “Em 1963, aqui
em São Paulo, houve os Jogos Pan Americanos. A UNE e os estudantes
secundaristas trabalharam muito para que isso acontecesse, porque era
a primeira vez que a delegação cubana, depois da revolução, participava.
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Fizemos a festa da recepção da delegação cubana no estádio do
Pacaembu. Foi uma coisa belíssima! A delegação americana foi objeto de
uma vaia impressionante”, diz Diogo ao MME.
De acordo com ele, tratava-se de um período especial para os
secundaristas. “Era uma época em que a gente se mobilizava muito.
Éramos muito jovens sim, mas já havia um movimento estudantil voltado
para a cultura, o esporte. O nosso colégio teve destacada atuação ao
receber a delegação cubana. Foi muito interessante e foi aí que a gente
começou. Quando veio o Golpe de 64, a repressão foi muito braba,
nosso grêmio foi dissolvido e comecei a perceber o peso da repressão.”
Seu colégio, na Mooca, “representou uma forte corrente cultural para o
movimento secundarista”.
Em Brasília, o clima era de igual efervescência secundarista. O
Centro de Ensino Médio Elefante Branco, por exemplo, era conhecido como
“Elefante Vermelho”, dada a influência das ideias de esquerda. Uma das
maiores lutas ocorreu em 1963, em protesto contra o aumento da tarifa
de ônibus na recém-inaugurada capital federal. Conforme depoimento
do historiador e ex-líder estudantil Daniel Aarão Reis ao MME, “era um
motivo permanente de luta dos estudantes nos anos 1950 e 1960.
Era-se contra o aumento das tarifas de ônibus, de cinema, de bonde, e
havia muito quebra-quebra. Em Brasília, havia certa revolta estudantil
contra o aumento de ônibus. Houve grande alarido, muitos ônibus foram
virados, houve grandes manifestações”.
Aarão Reis agrega que, no período, prevalecia “um programa
muito enraizado nos interesses imediatos”. Foi o caso de articulações
dos estudantes por “verbas para bibliotecas, verbas para melhorar
as instalações e outras reivindicações tradicionais corporativas dos
estudantes, como transporte público... Não havia transporte público,
e isso era uma coisa muito ressentida, assim como outros tipos de
assistência social como restaurantes”.
Já no Maranhão, diversas lideranças estudantis se arriscaram
desde cedo na carreira política. Em Caxias (MA), quando se elegeu
vereador às vésperas do Golpe de 1964, Edson Vidigal já tinha sido
presidente do grêmio do Colégio Ateneu e do Conselho Estadual dos
Estudantes. Tornou-se parlamentar com menos de 20 anos de idade e
muita experiência de luta. “Os reajustes das anuidades escolares eram
motivo para o movimento estudantil organizar semanas de passeatas,
piquetes nas portas das escolas e cada um se afirmando”, declara
Vidigal ao MME. “Naquele tempo existia bonde e quando aumentava um
centavo na passagem já era greve. O bonde era elétrico e a coisa mais
fácil era parar o sistema de transporte”, acrescenta.
Vidigal afirma que, num congresso de estudantes maranhenses,
foi aprovada uma decisão ousada: “que, em cada município, o movimento
estudantil lançaria um candidato a vereador. Isso foi para as eleições
de 1962. Então, lançaram, em São Luís, o Luís Rocha, que era o
presidente da União Maranhense dos Estudantes. Em Barra do Corda, foi
Lutas por todos os cantos
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Capítulo 4 (1956-1964) A grande ascensão do movimento estudantil
lançado o Nonato Cruz, presidente da União Brasileira dos Estudantes
e famosíssimo na época lá no Rio de Janeiro. Parava o Rio com a greve
dos estudantes (...). Em Caxias o indicado para ser candidato a vereador
fui eu. Vale registrar que esses três foram eleitos, o Luís Rocha, em
São Luís, o Nonato Cruz, em Barra do Corda e eu, em Caxias. Todos pela
oposição e apoiados pelo movimento estudantil”.
Para Luís Raul Machado, ex-presidente do grêmio estudantil do
Colégio Santo Inácio e da AMES, as lembranças dos anos pré-Golpe são
muito boas. “A novidade desse período, de 1962 e 1963, foi a criação
de grêmios em colégios onde eles não existiam e a boa participação de
colégios religiosos. Havia um movimento muito grande da Igreja junto
aos estudantes nessa época. Era a chamada Ação Católica. A Juventude
Estudantil Católica era forte e uma presença que se espalhava muito
pelos colégios do Rio de Janeiro e no Brasil todo, acredito. Mas aqui
houve esse salto de 1962 para 1963, com um número muito maior de
estudantes participando.”
Golpe Militar O fortalecimento do movimento estudantil e do sindicalismo
não impediu a contraofensiva direitista. O governo de João Goulart ruiu
no primeiro trimestre de 1964. Em 13 de março, Jango promoveu um
mega-ato na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Entidades
estudantis, camponesas e sindicais compareceram em peso ao Comício
da Central, ou Comício das Reformas, que reuniu cerca de 300 mil
pessoas. As medidas anunciadas por Jango eram um tiro no coração
das elites, um ataque à propriedade privada, que impunha tamanhas
exclusão e injustiça aos brasileiros.
O governo falava em nacionalização das refinarias de petróleo
estrangeiras. Planejava uma ampla reforma agrária, com desapropriação
de terras improdutivas ao redor de rodovias, ferrovias e zonas de
irrigação de açudes públicos federais. Também haveria as reformas fiscal,
bancária e administrativa. Os aluguéis seriam tabelados, e os imóveis
ociosos, desapropriados por utilidade social. Analfabetos e militares de
baixa patente passariam a ter direito ao voto. Jango parecia estar no
Comício Central do Brasil, 1964 (Arquivo Nacional)
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Capítulo 4 (1956-1964) A grande ascensão do movimento estudantil
braço dos povos.
Menos de uma semana depois, porém, uma grande passeata
anticomunista levou 300 mil pessoas às ruas do centro de São Paulo
e pediu a cabeça do presidente “socialista”. Era a Marcha da Família
com Deus pela Liberdade, promovida pela Campanha da Mulher pela
Democracia (Camde) e pela Sociedade Rural Brasileira (SRB), com o apoio
do governador de São Paulo, Adhemar de Barros. Compareceram também
o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, e o governador da
Guanabara, Carlos Lacerda.
Em 1º de abril, no Dia da Mentira de 1964, os militares,
apoiados pelas elites e pela CIA (Central de Inteligência Americana),
tomaram o poder e minaram as esparsas manifestações pró-Jango de
estudantes e trabalhadores. “Tentaram reagir de alguma maneira. Houve
a tentativa de uma greve geral dos estudantes. O presidente da UNE era
o José Serra. Os estudantes e todos os manifestante que iam às ruas,
acostumados a ter o Exército sempre garantindo as manifestações, ao
chegarem, viram que exército tinha mudado de lado”, depõe Artur José
Poerner ao MME. Temendo “derramamento de sangue”, o presidente não
resistiu e, poucos dias depois, exilou-se no Uruguai. Sua base política
estava à míngua.
O Congresso, aliado aos golpistas, deu sustentação ao golpe e
indicou, em 2 de abril, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri
Mazzilli, para assumir interinamente a vaga de Jango. No mesmo dia,
o general Costa e Silva declarou aos comandos militares que assumia
o cargo de Comandante-em-Chefe do Exército, autonomeando-se
presidente do Brasil. Com o Ato Institucional Número 1 (AI-1), de 10
de abril, os militares cassaram direitos políticos de João Goulart por
dez anos.
Ao reconstituir, em 1967, a trajetória do movimento estudantil
secundarista, o Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCB) escreve
que “os estudantes de nível médio foram tendo relativa participação na
vida política do país e em defesa dos interesses do nosso povo. Lutaram
pela criação do monopólio estatal do petróleo e sua manutenção, pelo
desenvolvimento da siderurgia brasileira, contra o envio de soldados à
Guerra da Coreia. Participaram das agitações antigolpistas de 55 e as
sucessivas crises que eclodiram desde 1960”. Grandes e memoráveis
lutas já faziam parte da história da UBES, com algumas derrotas dolorosas.
Nenhuma delas foi pior do que o Golpe de 1964.
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Capítulo 5.(1964-1968)
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Não era difícil prever que as entidades estudantis estariam,
desde o princípio, na “lista de morte” do regime militar (1964-1985).
Uma vez derrubado o governo reformista de João Goulart com o golpe de
1º de abril de 1964, os militares intensificaram a perseguição às forças
progressistas e democráticas. Conforme assinala Artur José Poerner, em
O Poder Jovem: os estudantes “passaram, automaticamente, à condição
de elementos de alta periculosidade para a segurança nacional, aos
olhares ‘eternamente vigilantes’ das novas autoridades. Ser estudante
equivalia a ser ‘subversivo’”.
Na noite que antecedeu o Golpe de 1964, a sede histórica das
entidades estudantis na Praia do Flamengo foi mais uma vez metralhada.
“Havia um movimento policial, um movimento, enfim, alguma coisa
cheirava mal no ar. Quando eu chego lá, as pessoas estão conversando
na porta da UNE, e eu falei: ‘Escuta, o MAC já nos metralhou antes, acho
melhor a gente não ficar aqui na porta, vamos lá para dentro, ficar lá
dentro’”, declara ao MME o músico Carlos Lyra, um dos líderes do Centro
Popular de Cultura (CPC) da UNE. “No momento que nós entramos, nós
começamos a ouvir as rajadas de metralhadora. Os caras estavam
chegando e metralhavam. E como havia um vão na parede do prédio da
Militares perseguem estudantes, põem o movimento na ilegalidade e destroem a sede na Praia do Flamengo. Era o começo dos “anos de chumbo”
UNE, eles atiravam pelo vão para que as balas ricocheteassem e nos
atingissem lá dentro. Então, foi uma noite muito angustiante, muito
angustiante mesmo.”
Com Jango já exilado no Uruguai, os militares começavam a
escancarar o autoritarismo. Uma semana após a consumação do golpe,
a ditadura editou o Ato Institucional Número 1 (AI-1), que deu início
a cassação dos direitos políticos de opositores do regime. A sede das
entidades foi criminosamente incendiada e saqueada. “De repente
ficamos parados em frente à sede da UNE, e, em volta de nós, uma
multidão furiosa, com bombas molotov e com revólveres, dando tiros
e jogando bombas molotov na sede”, evoca ao MME o artista plástico
Ferreira Gullar, ex-integrante do CPC. Nas palavras das historiadoras
Angélica Müller e Tatiana Rezende, “o regime assim, momentaneamente,
Incêndio na sede da Praia do Flamengo, 1º de abril de 1964 (Acervo UBES)
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ganhava uma batalha. O prédio da UNE depois de incendiado, foi fechado.
Em 1966 o governo decreta a Instalação do Centro de Artes da FEFIERJ
(Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro)
que passava a funcionar na Praia do Flamengo, 132”.
O primeiro dos cinco generais-presidentes do regime foi
Humberto de Alencar Castelo Branco, que assumiu o cargo em 15
de abril de 1964. Logo o Legislativo e o Judiciário se tornaram dois
poderes figurativos, a reboque da Presidência. Castelo governava à
base, sobretudo, de decretos-leis e atos institucionais. Embora ele não
representasse a chamada “linha-dura” do Exército, foi sua gestão que
inaugurou a “longa noite” de cassações, censura, prisões políticas,
tortura e exílios. Autoridades experientes caíram no ostracismo — mas
também a juventude esteve sob a mira do regime. “A repressão policial-
militar, sofrida pelos estudantes sob o governo do Marechal Castello
Branco, além de tornar difícil a recapitulação de todas as violências
contra eles cometidas, produziu um estado de perplexidade numa
geração que só conhecia a ditadura de ouvir falar ou de ler nos livros”,
escreve Artur Poerner.
Não por acaso, o regime tratou de nomear para o Ministério
da Educação o engenheiro Flávio Suplicy de Lacerda, ex-reitor da
Universidade Federal do Paraná. Dono de opiniões conservadoras e
atrasadas, Lacerda era um dos ministros mais alinhados aos militares.
A Lei Suplicy de Lacerda
Durante sua breve gestão (1964-1966), o MEC foi transformado num
dos principais modelos do anacronismo da ditadura. Sua missão era
clara: dilapidar o movimento estudantil e instrumentalizar a educação
em todos os níveis, combatendo o pensamento crítico.
Lacerda contou, nesse sentido, com o apoio do Congresso
Nacional, que, em 27 de outubro de 1964, aprovou a extinção da
UNE e a criação, em seu lugar, do Diretório Nacional dos Estudantes
(DNE). A nova entidade, sediada em Brasília, ficava diretamente sob
intervenção do Ministério da Educação e não podia se reunir durante o
período letivo. Apesar de a UNE ter sido o alvo mais visado, o projeto se
estendia às demais entidades, uma vez que proibia que os estudantes
de promoverem todo tipo de greve ou manifestação político-partidária.
Apenas 13 dias depois, a ditadura soltava uma nova medida
arbitrária. A Lei nº 4.464, de 9 de novembro de 1964, pôs na
ilegalidade as principais entidades estudantis do país. Com a medida,
até mesmo um grêmio escolar só poderia ser criado mediante o aval
do MEC. “A Lei Suplicy de Lacerda visou, especialmente, à extinção
do movimento estudantil brasileiro”, diz Poerner em O Poder Jovem.
“Para acabar com a participação política dos estudantes, a lei procurou
destruir a autonomia e a representatividade do movimento, deformando
as entidades estudantis, em todos os escalões, ao transformá-las
em meros apêndices do Ministério da Educação, dele dependentes em
verbas e orientação.”
Diversos depoimentos ao MME dão conta do trauma que a lei
provocou na vida dos estudantes. “No primeiro momento, as entidades
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foram decepadas. A UNE acabou, a UBES acabou, a Ames acabou”, resume
o jornalista e ex-dirigente da AMES Franklin Martins. “Esse homem
(Lacerda) era reacionário, no sentido próprio da palavra, uma pessoa
obscurantista”, diz o historiador e ex-líder estudantil Daniel Aarão Reis,
que acusa o ex-ministro de ter ferido “profundamente as tradições dos
estudantes”.
Antes mesmo da Lei Suplicy, o movimento secundarista, liderado
pela UBES, já se encontrava fragilizado diante da ofensiva dos militares
golpistas. “O movimento estudantil de grau médio está entre os que
mais sofreram com a ação da ditadura; seus líderes foram presos e
perseguidos, suas sedes invadidas e em muitos casos depredadas, as
entidades envolvidas em IPMs (Inquéritos Policiais Militares). O movimento
dos estudantes de nível médio foi desarticulado e teve a maioria de
suas conquistas liquidada”, aponta o Informe Secundarista elaborado
na época pela direção do PCB, a pretexto de “examinar criticamente as
atividades dos comunistas no seio do movimento”.
Na opinião do PCB, a Lei Suplicy era um “instrumento legal de
repressão ao movimento estudantil”. Aos estudantes secundarista, o
ministro Suplicy de Lacerda direcionou especialmente um parágrafo da
lei: “Nos estabelecimentos de ensino de grau médio, somente poderão
constituir-se grêmios com finalidades cívicas, sociais e desportivas,
cuja atividade restringiria aos limites estabelecidos no regimento
A UBES sufocada
escolar devendo sempre ser assistido por um professor”. O governo
Castello Branco criou ainda os “ginásios para o trabalho” e limitava
as manifestações culturais. “Há completa falta de bibliotecas, de
publicações, exposições, de materiais esportivos. Não há estímulo à
organização de bandas musicais, corais, teatros, programas culturais
no rádio e TV, seminários e um verdadeiro mundo de outras coisas”,
denunciava o Informe Secundarista.A UBES tinha extrema dificuldade de sobreviver. “A Lei Suplicy,
que criou o Diretório Nacional Estudantil (DNE), tentou também criar
algo similar no movimento secundarista. A nossa tarefa, então, era
a mesma: resistir e manter a UBES funcionando. Tanto no movimento
secundarista como no dos universitários, se criou uma certa legalidade
de fato. As entidades eram ilegais, mas atuavam abertamente”, explica
ao MME o jornalista Bernardo Joffily, que foi vice-presidente da UBES em
1968-1969. Apesar do desprendimento e da coragem de centenas de
lideranças secundaristas, a UBES não conseguiu realizar seus congressos
nacionais por três anos seguidos (1964, 1965 e 1966).
Nos níveis estaduais e municipais, havia um cenário semelhante
de resistência. Segundo o Informe Secundarista do PCB, o movimento
“esforçou-se para que suas entidades se mantivessem abertas,
desencadeou algumas lutas reivindicatórias em defesa das conquistas
obtidas”. O Partidão assegura que “nem todas as entidades estaduais
dos estudantes de grau médio foram fechadas. Muitas conseguiram
manter-se até mesmo nos dias mais difíceis. Posteriormente, as
outras foram rearticulando-se”. Os “poucos grêmios organizados e em
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funcionamento” se concentravam “nas escolas de maior porte”, e muitos
deles estavam sob domínio das “autoridades educacionais, não gozando
de independência”.
Para os estudantes secundaristas e universitários, não havia
alternativa — a não ser a união contra a ditadura militar. O cenário era
dos mais adversos, mas, segundo Poerner, a Lei Suplicy de Lacerda,
involuntariamente, tinha “um grande mérito: o de aglutinar, na luta pela
sua revogação, o movimento estudantil, que atravessava, naturalmente,
uma fase de reorganização, como consequência da perseguição aos
seus líderes.”
Para Luis Raul Machado, ex-presidente da Associação
Metropolitana dos Estudantes Secundários (Ames), “a luta contra a
Lei Suplicy de Lacerda, que proibia a organização livre dos estudantes,
A luta prosseguePasseata con-
tra o acordo MEC-Usaid
(Acervo MME)
foi uma coisa fundamental nessa época, porque era uma questão de
sobrevivência do movimento”. Em 1965, as entidades lançam uma
campanha mais ousada contra a lei e pela legalização das entidades.
“Lembro que foi feito, nesse ano, um plebiscito estudantil coordenado
pela UNE para derrubar a Lei Suplicy. O movimento foi feito na prática;
fizemos eleições para os centros acadêmicos tradicionalmente e
boicotamos as eleições oficiais para o DNE, que o era o nome da entidade
do Suplicy”, diz Machado ao MME.
Outra causa que mobilizou os estudantes foi a batalha contra
os acordos entre o Ministério da Educação e a United States Agency
for International Development. A parceria, conhecida como MEC-Usaid
e firmada também pelo ministro Suplicy de Lacerda, consistia numa
num projeto tecnocrático, de desnacionalização do ensino no Brasil.
Em outras palavras, os militares entregaram a educação brasileira aos
interesses americanos.
Em História da Educação e da Pedagogia, Maria Lúcia de
Arruda Aranha explica que, através desses acordos, “o Brasil receberia
assistência técnica e cooperação financeira para implantar” uma
reforma educacional “autoritária, vertical, domesticadora”. O objetivo
central, segundo a autora, “era atrelar o sistema educacional ao modelo
econômico dependente, imposto pela política norte-americana para a
América Latina”. O ensino superior, por exemplo, tinha como função
capacitar o estudante de modo de modo exclusivamente técnico-
profissional.
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Em meio aos protestos — que se avolumavam —, o regime
endurecia. Além das entidades estudantis, o governo Castello Branco
dissolveu o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e as ligas camponesas.
Centenas de lideranças sociais foram perseguidas e enquadradas na
Lei de Segurança Nacional. O AI-2 (outubro de 1965) detonou novas
cassações, extinguiu os partidos e decretou eleições indiretas para
presidente. Com o AI-3 (fevereiro de 1966), as disputas para os
governos estaduais também ficaram indiretas, e os prefeitos passaram
a ser nomeados. O descontentamento com o regime se alastrava a mais
setores da sociedade.
Ao MME, Poerner diz que “os estudantes passaram a ocupar
essa lacuna deixada pelos demais movimentos sociais. É isso que vai
causar, depois, o protagonismo do movimento estudantil, que assume
essas causas deixadas pelos demais movimentos. Era uma situação
anormal. Uma deformação provocada pela ditadura”. Segundo Aarão
Reis, os estudantes começavam a ganhar, aos poucos, a simpatia de
parte da grande mídia no Rio e em São Paulo. “Às vezes, a gente ia fazer
comícios relâmpagos na Av. Rio Branco. Eu subia no poste e fazia um
comício para dez ou 15 pessoas, nossos amigos que estavam ali. Eram
discursos radicais, rápidos, depois a gente se mandava correndo, meio
excitados, mas tristes de ter tão pouca coisa. No outro dia, aparecia
na primeira parte do JB (Jornal do Brasil): ‘Estudantes protestam...’, e a
gente se enchia de moral. Quer dizer, a imprensa repercutia nossa ação
Os estudantes na vanguarda e nos apresentava com uma força que nós não tínhamos, na verdade,
mas aquilo nos alentava.”
A UBES, sem diretoria desde 1964, tentava se rearticular no
final do ano seguinte. A retomada foi liderada “pelos quadros do PCB”,
primeiramente em grêmios estudantis do Rio de Janeiro. “Era uma
porção de secundaristas, como eu, que queriam lutar contra a ditadura
e que mantinham contato com um certo número de colégios — não
todos, certamente nem a maioria, mas os grandes colégios do Rio. O
André Maurois era um grande colégio, o Pedro II, o Colégio de Aplicação,
a Escola Técnica Federal. Os colégios maiores sempre tinham uma turma
que agitava e levantava essas bandeiras de luta e que, acredito, gozava
pelo menos da simpatia da grande massa de estudantes e do povo da
cidade, em geral”, diz Bernardo Joffily ao MME. Com a convocação do
congresso da Ames em 1966, no entanto, a ditadura reagiu. Marcado
para o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, o encontro é invadido
por agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), e não
chega ao fim — mas uma direção assume provisoriamente a entidade.
Reunião das diretorias da UBES e da AMES, 1967 (Acervo UBES)
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Em compensação, a UBES consegue realizar em 1967, depois
de quatro anos, o Congresso Nacional dos Estudantes Secundários. Para
despistar os órgãos da repressão, as lideranças divulgam o restaurante
Calabouço como sede do encontro. Na realidade, os debates ocorreram
na chácara de um dirigente da AMES, Marcos de Queiroz Grilo, no bairro
de Campo Grande, no Rio. A maior liderança secundarista da época era
Fernando Sarmento, do PCB, mais até do que o paulista Antônio Ribas.
Só que, às vésperas do congresso, Sarmento foi preso — o que levou
à eleição do pernambucano Tibério Canuto de Queiroz Portela para a
presidência da UBES.
Na História do Marxismo no Brasil, 5 — Partidos e Organizações dos Anos 20 aos 60, Tibério é descrito como “um exemplo de militante
da AP que nunca foi católico”. Segundo a publicação, “ele declarou que
teve ‘formação atéia’ e, quando entrou na AP, em 1966, ficou surpreso
ao ‘descobrir que a maioria ainda era cristã’”. A direção encabeçada por
Tibério na UBES contava também com Nei do Vale, Fernando Parrera,
Jarbas Pereira Marques, Gustavo Tapioca, Antonio Guilherme Ribeiro Ribas,
José Louguecio, Euler Ivo Vieira, Aide Yurika Oda e Fernando Sarmento.
A sucessão No plano federal, uma sucessão de fatos inusitados mudava
os rumos do Brasil. Em 25 de julho de 1966, um atentado contra o
ministro da Guerra, marechal Arthur da Costa e Silva, acirrou os ânimos
dos militares. O mais ousado protesto contra o regime se deu com a
explosão de uma bomba em pleno Aeroporto de Guararapes, no Recife.
Três pessoas morreram. A Constituição de 1967, promulgada em 24
de janeiro, refletia a preocupação em combater mais vigorosamente o
“perigo comunista”. No mesmo ano, em 9 de fevereiro, surge a Lei de
Imprensa.
Um setor das Forças Armadas, no entanto, defendia a escalada
da repressão. Na sucessão de Castello Branco, os militares se viam
divididos entre duas tendências. De um lado, a facção “castellista”,
moderada, sob hegemonia da Escola Superior de Guerra (o denominado
“grupo Sorbonne”). No outro extremo, a “linha dura”, inspirada nos ideais
da Escola de Guerra do Fort Leavenworth. Venceu esta segunda: Costa e
Silva, o novo general-presidente, tomou posse em 15 de março de 1967.
Castello Branco morreria misteriosamente, quatro meses depois, vítima
de um acidente aéreo. As relações entre o regime militar e o movimento
estudantil estavam definitivamente depauperadas.
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Em seus célebres
Cadernos do Cárcere, Antonio Gramsci (1891-
1937) estabeleceu uma
definição clássica sobre a
“crise de autoridade”. De
acordo com o revolucionário
italiano, “a crise consiste
precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda
não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas
mórbidos aparece”.
Poucos anos traduziram tão fielmente a dramática tensão
entre o “o velho” e “o novo” como 1968. “As pessoas se deram conta
de que estavam vivas, de que não precisavam mais se conformar com
os papéis predeterminados que lhes queriam impor”, comentou o
dramaturgo José Celso Martinez Correa, do Teatro Oficina. “Foi quando
as pessoas perceberam que poderiam sair desses túmulos para viver
em liberdade”.
De uma hora para outra, houve uma explosão de protestos em
todos os cantos do mundo — no Brasil e nos Estados Unidos, na Europa
Ocidental e no Leste Europeu, no Japão e na Nigéria. Para o jornalista
Com a morte de um estudante secundarista, o povo sai às ruas e manifesta seu repúdio à ditadura
e escritor Zuenir Ventura, 1968 foi o prenúncio da globalização, “o ano
que não terminou”. Mark Kurlansky — que, como Ventura, se aventurou
a escrever um livro sobre o tema — foi igualmente taxativo: “Nunca
houve um ano como 1968 e é improvável que volte a haver”.
Um período histórico de poucos meses produziu um conjunto
de transformações estéticas, comportamentais e artísticas que, até
hoje, são incontáveis. Para os estudantes, era o auge. “Não surpreende
que a década de 60 tenha se tornado a década da agitação estudantil”,
resume o historiador angloegípcio Eric Hobsbawm em A Era dos Extremos. “O efeito mais imediato da rebelião estudantil foi uma onda de greves
operárias por maiores salários e melhores condições de trabalho.”
No entanto, a luta por uma nova sociedade não resultou
apenas em vitórias. A democracia e o socialismo saíram feridos de
1968 — nenhum dos povos que foram às ruas conseguiu derrubar
efetivamente o status quo, a sociedade de consumo, a velha ordem. Ao
contrário: na maioria dos países em ebulição, o autoritarismo ganhou
impulso. Segundo Olgária Mattos, “o desejo revolucionário era maior que
a situação revolucionária”. Ou, voltando a Gramsci, o novo não estava
mesmo em plenas condições de nascer.
1967, a preparação O “1968 brasileiro” foi também de utopias e frustrações. O
presidente da República era o “linha-dura” Arthur da Costa e Silva, que
Velório do estudante
Edson Luis, 1968 (Acervo
MME)
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tinha assumido o poder em 15 de março de 1967, em substituição a
Castello Branco. Nos primeiros meses do novo governo, o movimento
estudantil, ainda que clandestino e fragilizado, conseguiu realizar
encontros, debates e manifestações. Os universitários promoveram
o 29º Congresso da UNE, renovando sua direção e elegendo Luís
Travassos para presidente. Já a UBES, como vimos no capítulo anterior,
conseguiu finalmente realizar mais um Congresso Nacional de Estudantes
Secundários, após três anos de espera.
Os secundaristas, na realidade, já davam algum sinal de
fortalecimento antes de 1968. Protestos contra o ensino imposto pelos
militares e o acordo MEC-Usaid pipocavam em vários estados do Brasil,
como a Bahia. “Tinham, assim, manifestações com 10 mil, 15 mil pessoas.
Tinha manifestação de manhã, de tarde e de noite”, lembra o ministro
da Cultura do governo Lula e ex-presidente da UBES, Juca Ferreira.
Segundo ele, “1967 foi um ano de intensa manifestação do movimento
secundarista na Bahia, tudo girava em torno dos secundaristas, porque
eram os que seriam afetados por aquela reforma do ensino”.
“O ano de 1967 foi um ano importantíssimo para o movimento
estudantil em nível nacional”, afirma o jornalista, ex-líder estudantil e
ex-guerrilheiro Franklin Martins ao MME. Foi um ano antes de 1968 que
ele percebeu a importância de associar estudantes e trabalhadores nas
lutas de contestação à ditadura. “Podemos fazer movimento estudantil,
é importante e positivo, uma contribuição extraordinária, mas sem os
trabalhadores não vamos conseguir virar isso que está aí. Então, esse
ano de 1967 é um ano de afirmação dessa linha”, opina Franklin. De
acordo com ele, “o movimento em 1967 é um movimento de ganhar
raiz, ganhar profundidade e maturidade para poder decolar. Quando
chega 1968, o movimento estudantil — não sabíamos disso, estou
falando retrospectivamente — está pronto para se tornar um grande
movimento de massas, de peso, de influência nacional, e de colocar em
xeque aquela ditadura que estava ali. Não era capaz de substituí-la,
mas ao menos de mostrar que aquela ditadura não se sustentava mais.
E foi o que ele fez”.
Ainda assim, o período pré-1968 teve uma série de debilidades
para o movimento. “De setembro de 1966 até meados de 1968, as lutas
estudantis, a despeito de seu prosseguimento, não assumiram mais
Pixações contra anuidades escolares, Rio de Janeiro (Arquivo do Estado de São Paulo/Ultima Hora)
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caráter nacional”, escreve Artur José Poerner no livro O Poder Jovem. De
acordo com o escritor, outra novidade das manifestações, sobretudo
as passeatas, era a “participação maciça — e mesmo majoritária — de
estudantes secundaristas”, o que refletia a composição do corpo discente
no Brasil. Segundo o Censo Escolar de 1964, havia na época pouco mais
de 1,8 milhão de secundaristas e apenas 137 mil universitários.
Os estudantes se juntavam, ainda, ao público dos grandes
festivais de música — outro polo de rebeldia que fez história. A moda
começou com o 1º Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela
TV Excelsior em abril de 1965. A canção vencedora foi Arrastão, de Edu
Lobo e Vinicius de Moraes. No ano seguinte, o festival foi realizado pela
TV Record, que consagrou como campeãs A Banda, de Chico Buarque, e
Disparada, composta por Geraldo Vandré e Teo de Barros. É provável que
a melhor de todas as disputas tenha ocorrido no 3º Festival de Música
Popular Brasileira, o “festival da virada”, de 1967. Várias composições
que concorreram ao Prêmio Sabiá de Ouro se tornaram clássicos da MPB,
como Domingo no Parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque) e
Alegria, Alegria (Caetano Veloso). Com o tempo, as três músicas ficaram
mais famosas até do que a vencedora, Ponteio, de Edu Lobo e Capinam.
Foi entre um e outro festival que, em 1967, o governo acusou
derrotas, como a extinção do Diretório Nacional dos Estudantes, criado
dois antes para substituir a UNE. Com o Decreto-Lei 288, o regime
revogou a Lei Suplicy, mas piorou ainda mais a situação do movimento,
ao proibir oficialmente a organização de quaisquer entidades estudantis
— até mesmo as governistas — em nível nacional e estadual. A decisão
foi tomada ainda no governo Castello Branco. Dessa forma, ele deixou o
poder com uma legislação já lapidada aos interesses do regime — o que
facilitava a vida de seu sucessor.
Curiosamente, num depoimento dado ao Jornal do Brasil em
8 de setembro de 1965, o então ministro de Guerra Costa e Silva fez
uma promessa ao povo: ao chegar à Presidência da República, ele não
pretendia “alijar os estudantes da vida pública”. Seu governo, porém,
não só deu sequencia às arbitrariedades da era Castello Branco como
também, diante das manifestações de 1968, inaugurou a fase mais
sombria do regime militar. Já havia perseguições, prisões políticas e
tortura desde o Golpe de 1964, inclusive para estudantes — mas foi a
gestão de Costa e Silva que intensificou a repressão.
Uma morte, o estopimOs grandes conflitos entre a ditadura militar e o movimento
estudantil em 1968 têm como estopim a morte de um secundarista,
Edson Luís de Lima Souto, no Rio de Janeiro. “A reação à morte do
Edson Luís foi de uma amplitude, de uma radicalidade que ninguém
imaginava, mesmo os que achavam que o ano seria de mobilizações.
Mas rapidamente a gente percebeu o potencial de mobilização para além
da universidade — até porque o Edson Luís não era universitário, mas
secundarista”, recorda-se o economista Jean Marc von der Weid, que foi
eleito presidente da UNE em 1969.
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Edson Luís foi assassinado durante uma manifestação em
frente ao Restaurante Central dos Estudantes, num prédio do centro
do Rio de Janeiro. Conhecido como Calabouço, por ter abrigado escravos
presos no Império, o enorme restaurante era uma espécie de patrimônio
dos estudantes, custeado pelo Ministério da Educação. “Posso dizer que
aquela comida de bandejão era muito ruim. Mas havia uma coisa boa:
aquela garotada pobre que circulava por ali, perto do Centro da cidade,
podia almoçar por um preço muito baixo, como se fosse um restaurante
universitário, só que fora da universidade”, lembra o jornalista e ex-
vice-presidente da UBES (1968), Bernardo, em entrevista ao MME. “Uma
pessoa se inscrevia lá, ganhava uma carteirinha e podia almoçar no
Calabouço. Como juntava 10 mil estudantes por dia, inevitavelmente, se
transformou num centro de efervescência estudantil.”
De fato, o restaurante tinha fama de servir refeições horríveis,
mas a preços extremamente baixos, “qualquer coisa assim como
centavos”, segundo Bernardo Joffily. “Eram milhares de estudantes
naquele galpão enorme — e, de repente, um estudante subia na cadeira
e dizia: ‘Companheiros, acabo de descobrir uma barata aqui na sopa, no
meu feijão, na minha bandeja’. E aí todo mundo batia com os garfos. Já
era combinado, todo mundo já sabia, não precisava ninguém explicar.
Todos batiam com os garfos nas bandejas, faziam aquela barulhada
imensa em protesto contra a barata descoberta”, diz Bernardo.
O Calabouço, de qualquer maneira, foi adotado pela estudantada.
Para se ter uma ideia de sua importância, um grupo de frequentadores,
liderado por Elianor Brito, criou a Feuc (Frente Unida dos Estudantes do
Calabouço), com o objetivo de melhorar as condições de funcionamento
do restaurante. No governo Costa e Silva, os subsídios do Ministério da
Educação para o projeto minguaram, a tal ponto que, em setembro de
1967, uma ampla reforma do Calabouço foi interrompida sem anúncio
nem explicações. Além disso, os militares ameaçavam demolir o prédio
para a construção de um viaduto. Em resposta, os estudantes a
realizarem vários protestos durante meses.
Uma dessas manifestações ocorreu na noite de 28 de março de
1968, uma quinta-feira. Cerca de 600 estudantes discutiam os detalhes
de uma passeata agendada para o dia seguinte, que reivindicaria melhorias
para o Calabouço e o fim da ditadura. Mas a Polícia Militar, avisada de
antemão, cercou o restaurante em clima de guerra, imaginando que
Manifes-tação pela manutenção do Restaurante Calabouço, Rio de Janeiro, 1968 (Arquivo Nacional/Acervo MME)
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os manifestantes tacariam pedras na embaixada americana. Com seis
carros ao redor do local, os policiais já chegaram com cassetetes em
mãos. “Vão lá e quebrem tudo”, tinha ordenado o tenente Alcindo Costa.
De repente, começaram os tiros — o Calabouço era metralhado sem
parar. “Ao lado do galpão do restaurante funciona o Instituto Cooperativa
de Ensino, onde é ministrado um curso do artigo 99 (Madureza). No
momento da invasão estava sendo dada aula de Geografia. O professor
protestou e foi espancado pelos policiais”, registrou a Folha de S.Paulo.Uma bala perdida atingiu o comerciário Telmo Matos Henrique,
que estava num prédio vizinho. Dois estudantes também foram atingidos
— o próprio Edson Luís, no peito, e também Benedito Frasão Dutra, no
braço e na cabeça. Dezenas de pessoas estavam feridas. Quando o
massacre policial acabou, Edson Luís e Benedito foram levados à Santa
Casa de Misericórdia, que ficava a três quarteirões de distância. Nenhum
sobreviveu. Benedito foi internado em estado grave, permaneceu em
coma na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e morreu no dia seguinte, aos
20 anos. Edson Luís chegou ao hospital já sem vida, vítima de um tiro
à queima-roupa, no peito, que saiu da arma calibre 45 do comandante
da tropa, aspirante a PM Aloísio Raposo. Um assassinato, enfim, com a
marca da covardia contra um jovem e indefeso estudante.
Em O Poder Jovem, Poerner descreveu o secundarista morto,
filho de uma lavadeira, como “um menino ainda — completara 18 anos
em 20 de fevereiro —, parecia baixinho, a pele morena e os cabelos bem
pretos e lisos de caboclo nortista. Os dentes — tinha-os estragado,
como a maioria dos jovens do nosso país. órfão de pai, viera, havia
três meses, de Belém do Pará, para cursar o artigo 99 do 1º ciclo
(uma espécie de supletivo) no Instituto Cooperativo de Ensino, anexo do
Calabouço, onde passava a maior parte do dia, inclusive auxiliando em
serviços burocráticos de secretaria e de limpeza do estabelecimento,
pois não conseguira emprego”. Edson, segundo Bernardo, “era uma
pessoa meio que adotada pelo movimento. Não era uma liderança, mas
uma pessoa muito querida. Foi morto porque estava numa passeata
contra o fechamento de um restaurante estudantil — essa é a moral
da história”.
Velório de Edson Luis (Arquivo Nacional/Acervo MME)
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O Rio vela Edson Luís Os estudantes que esperavam na Santa Casa decidiram sair
com o corpo de Edson Luís pelas ruas e denunciar o crime — mais um
— cometido pela ditadura contra o movimento estudantil. O povo se
sensibilizou de imediato, segundo Jean Marc von der Weid. “A mobilização
que se fez em torno disso, se fez dirigida para a classe média da Zona
Sul. Fui eu que inventei a fórmula de parar os espetáculos em todos
os teatros da Zona Sul para fazer a denúncia do assassinato do Edson
Luís. Parei pessoalmente seis teatros e alguns cinemas. No começo,
fazíamos com certa hesitação, mas depois fomos adquirindo confiança
e as pessoas aderiam. Claro, havia sempre um sujeito que exigia o seu
dinheiro de volta, brigava. Uma vez, quando a gente paralisou o Teatro
Princesa Isabel, um coronel se levantou e disse que prenderia a gente.
O público vaiou. A peça Roda Viva estava sendo apresentada nesse dia,
e eu comecei a fazer uma denúncia dramática do assassinato do Edson
Luís. De repente, Marieta Severo explode em soluços ao meu lado.”
O corpo do estudante morto foi conduzido até a antiga sede
da Assembleia Legislativa da Guanabara, na Cinelândia. Impedidos pela
multidão de entrarem, agentes da PM e do Dops ameaçavam lançar
bombas de gás. Faltou-lhes coragem. Nas ruas, a mobilização e os
protestos continuavam. O governador Negrão de Lima mandou soltar os
14 estudantes presos na passeata e suspendeu as aulas em todos os
estabelecimentos de ensino. A essa altura, as inúmeras faculdades do
Rio já estavam em greve.
“As pessoas começaram a entrar noite adentro. Circulavam em
bares da Zona Sul, faziam discurso e passavam o chapéu para recolher
dinheiro para fazer o enterro do Edson Luís. Foi um agito generalizado”,
diz Jean Marc. Segundo Bernardo, “a escadaria (da Assembleia) se
transformou num palanque. As pessoas chegando, as escolas e
faculdades fechando espontaneamente, e toda aquela massa de gente
indo para a Cinelândia se somar ao velório”.
Dentro da Assembleia, o corpo de Edson foi posto sobre a Mesa
Diretora e coberto pela bandeira nacional, por cartazes de protesto e
por um caderno do próprio estudante. Dois médicos fizeram então a
autópsia, acompanhados do secretário estadual de Saúde. Lideranças
de diversas entidades clandestinas discursavam. Ao lado do caixão,
proliferavam faixas com palavras-de-ordem, como “Assassinaram um
estudante. Poderia ser seu filho” e “Brasil, seus filhos morrem por você”.
Segundo o jornal O Dia, “até às 15 horas, os estudantes haviam recebido,
de donativos, três mil cruzeiros novos, que se destinarão à construção
de uma estátua, em homenagem ao morto, em frente ao Restaurante
Central dos Estudantes. O restante, segundo ficou deliberado, seria
enviado à família do estudante, em Belém do Pará e custearia os
funerais, pois foi recusado o oferecimento do governo estadual”.
Ao fim da tarde de 29 de março, assistiu-se a uma das maiores
mobilizações da história do Brasil até então. Milhares de pessoas faziam
fila para velar o corpo de Edson Luís. Artistas, sindicalistas e intelectuais
compareciam. Na presença de 60 mil pessoas, o corpo de Edson Luís fez
seu último trajeto. “Coberto pela bandeira nacional, o caixão desceu as
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escadarias da Assembleia sob os acenos de milhares de lenços. O povo
entoava o Hino Nacional. Do alto dos edifícios caíam pétalas de flores
e papéis picados. A multidão gritava ‘Desce! Desce’ para que os que,
nas janelas, se limitavam a içar bandeiras negras. Muitos desciam e se
integravam ao acompanhamento”.
Foram mais de três horas de um cortejo inesquecível até o
Cemitério São João Batista. Anoitecia e, para ofuscar o protesto, autoridades
deixaram de acionar parte da iluminação pública. De nada adiantou. Velas
e lanternas carregadas pelas pessoas iluminavam a passeata. “A gente
parou em frente ao prédio da UNE para fazer uma reverência. O prédio da
UNE, que tinha sido fechado pela ditadura e não estava funcionando. Foi
um dos momentos mais emocionantes. Lembro também que já estava
escurecendo e algum dono de mercearia teve a ideia de doar todo o
estoque de velas que ele tinha”, afirma Bernardo.
Jean Marc agrega: “A manifestação no enterro do estudante foi
absolutamente monumental. Há quem fale de cem mil na manifestação
posterior. Certamente não havia cem mil. Mas no enterro, sim. Foi uma
imensa manifestação, com um itinerário enorme, do centro da cidade até o
Cemitério São João Batista, com muita mobilização de gente. Foi um marco.
O ano político começou com esse fato”. Edson Luís, segundo Bernardo
Joffily, “não foi o primeiro morto da ditadura militar, mas foi, digamos assim,
o primeiro morto público da ditadura militar. Eu acredito que, naquele dia,
o Brasil aprendeu melhor o que era o regime”. Para Artur Poerner, “foi
o momento de apogeu do movimento estudantil. Os estudantes eram,
naquele momento, a vanguarda da resistência à ditadura militar”.
O impacto do cruel assassinato de Edson Luís se estendeu
e irritou os militares. Manifestações contra a ditadura se alastraram,
culminando com os protestos de 1º de abril, no aniversário de quatro
anos do Golpe de 1964. A polícia, orientada a descer o pau, foi ao
ataque e deixou dois mortos (sendo um estudante), 60 feridos e
321 presos só no Rio de Janeiro. Tropas do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica ocuparam a cidade. A Universidade de Brasília foi ocupada
por estudantes. Houve atos também em Goiás e em São Paulo, onde 4
mil estudantes se reuniram na Faculdade de Medicina da USP.
Em 4 de abril, o Exército escalou seus milicos em vários cantos
do Rio de Janeiro para “prevenir distúrbios”. Mesmo assim, centenas
Missa de Sétimo Dia do estudante Edson Luis, 1968 (Acervo UBES)
Da missa à “Sexta-Feira Sangrenta”
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de pessoas se achegaram pela manhã à Igreja de Nossa Senhora da
Candelária, no centro carioca, para celebrar a missa de sétimo dia de
Edson Luís. Foi outro pretexto para a violência do regime se deitar sobre
uma massa indefesa de pessoas. A cavalaria da PM invadiu a igreja, e os
agentes encheram estudantes e religiosos de golpes de sabre.
Chocado com a perversidade do regime, o vigário-geral dom
José de Castro Pinto desobedece às ordens dos militares. No mesmo
dia, à noite, ele realiza outra missa, desta vez para 600 pessoas. Na
saída, os padres escoltaram os presentes até a Avenida Rio Branco. Foi
depois desse ponto que a truculência da manhã ressurgiu, ainda mais
grave, com direito a rajadas de metralhadora e bombas de gás. Até os
fuzileiros navais foram convocados para liquidar a celebração a Edson
Luís. Por sorte, não houve mortes — apenas feridos. Duas semanas
depois, os militares proibiram eleições em 68 municípios, considerados
“áreas de segurança nacional”.
É no “calor da hora”, portanto, que a UBES realiza, de 21 a 24 de
abril de 1968, o 20º Congresso Nacional dos Estudantes Secundários,
em Belo Horizonte. O local era mais do que apropriado. “Lembro que,
em Belo Horizonte, havia uma pequena tropa de 400, 500 estudantes
que, todos os dias, fazia o que nós chamávamos de comício-relâmpago.
Comício-relâmpago é o seguinte: você não combina nada, vai chegando a
um lugar de aglomeração de gente, sobe num caixote, faz um discurso de
quatro, cinco minutos, pega o caixote e vai embora, se der sorte. Então,
quando não havia manifestações, havia esses comícios relâmpagos. Era
uma época de agitação muito grande”, diz Bernardo Joffily.
Cerca de 140 delegados compareceram ao congresso, que
prestou homenagem ao guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara, líder da
Revolução Cubana (1959), morto pelo Exército boliviano em outubro
de 1967. A nova diretoria foi encabeçada pelo pernambucano Marcos
Antonio Machado de Mello. Seu vice foi o próprio Bernardo , que ocupava
o mesmo cargo na AMES. A diretoria contava ainda com Emiliano José da
Bahia e Célio Turino, do Rio de Janeiro, entre outros membros. Além de
líder estudantil, Emiliano era bancário desde os 15 anos.
Protestos de sobra ocorreram também em 1º de maio, na
comemoração do Dia do Trabalhador. Trabalhadores e policiais entraram
em confronto na Praça da Sé, em São Paulo. A mobilização estava
reforçada por entidades sindicais da região metropolitana do estado,
com destaque para o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco. Depois de
receberem o governador Abreu Sodré com ovadas, os manifestantes
incendiaram o palco e marcharam até a Praça da República. Lá, José
Campos Barreto, metalúrgico da Cobrasma (Companhia Brasileira de
Material Ferroviário), conclamou os trabalhadores a apoiarem tanto a
“guerra revolucionária” quanto a “guerra de guerrilhas”.
No Rio, eram os universitários que sentiam na pele a mão
pesada do regime. Durante três dias seguidos, houve confrontos
prolongados entre estudantes e agentes da repressão. Começou em
19 de junho, quarta-feira, durante um ato em frente ao Ministério da
Educação. No dia seguinte, centenas de estudantes ocuparam o prédio
do Conselho da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha.
Aproximadamente 400 deles foram presos na Faculdade de Economia,
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levados até o campo do Botafogo e humilhados.
Em crônica para o Jornal do Brasil, o jornalista José Carlos
Oliveira relata casos de “moças e rapazes deitados de bruços, com
a cara enfiada na grama; moças forçadas a andar de quatro diante
de insolentes soldados da PM; dezenas de estudantes encostados a
um muro e com as mãos segurando a nuca, ou na mesma atitude,
mas deitados de bruços”. Soldados urinavam sobre os estudantes e
passavam seus cassetetes entre as pernas das universitárias.
Revoltados com a insolência criminosa dos agentes, os
estudantes voltaram às ruas em 21 de junho, a “Sexta-Feira Sangrenta”.
A manifestação, marcada para a Praça Tiradentes, se converteu numa
batalha campal de quase dez horas. Mais uma vez, Dops e Polícia Militar
se uniram para reprimir a toda força. Não contavam, porém, com o
apoio maciço da população, que se posicionou ao lado dos estudantes
em uma batalha tão desigual. Quatro pessoas morreram e mais de mil
foram presas pelo Dops. Pelo país afora, os secundaristas ajudavam
a denunciar as arbitrariedades. “O diretor da UBES, na época, era um
cavaleiro andante do movimento estudantil. Nós andávamos de ônibus
para cima e para baixo, pelo Brasil inteiro. Logo depois da Sexta-Feira
Sangrenta, fui para Goiás. Houve manifestações também em Goiás, no
Brasil inteiro”, afirma Bernardo.
Sexta feira Sangrenta, Rio
de Janeiro, 1968 (Arquivo Nacional/Acer-
vo MME).
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O grande feito dos estudantes, até aquele momento, foi ter despertado o povo para o fiasco do regime militar. Os brasileiros — que já não demonstravam mais tanta simpatia pelos militares no poder— estavam engasgados com o assassinato de Edson Luís e a “Sexta-Feira Sangrenta”. Foi sob esse clamor que, em 26 de junho, o centro carioca abrigou a célebre Passeata dos 100 Mil. Apesar do nome, a maior de todas as manifestações contra a ditadura (até então) levou muito mais do que 100 mil pessoas às ruas do Rio de Janeiro, para pedir o fim do regime de forma explícita, em alto e bom som. Da concentração na antiga Esplanada do Castelo, a marcha percorreu a Cinelândia e a Avenida Rio Branco, encerrando-se na Uruguaiana. “Foi mesmo um momento de grande exaltação da liberdade, parecia que tudo era possível, que a ditadura era capaz de desistir.”, afirma ao MME Alfredo Sirkis, que foi
A Passeata dos 100 Mil dirigente da AMES no períodoO povo, evocando os versos do Hino da Independência, mandava
um recado direto aos militares. “Aos gritos de ‘liberdade, liberdade’, os estudantes deram início aos discursos inflamados, clamando por mais verbas para as universidades, ensino gratuito, contra a tentativa de transformação das universidades em fundações e em protesto contra a prisão dos líderes estudantis”, assinalou o carioca O Jornal. Vladimir Palmeira garantiu que a morte de Edson Luís seria vingada. Pelos secundaristas, quem falou foi presidente da AMES, que classificou como “empulhação” o pronunciamento feito um dia antes pelo ministro Tarso Dutra, em cadeia nacional TV e rádio. Em protesto contra o acordo MEC-Usaid, uma bandeira americana foi queimada. Cinco estudantes foram detidos pelo Dops por distribuir panfletos “subversivos”, mas a manifestação transcorreu sem maiores incidentes. Mesmo se houvesse percalços, a Polícia Federal já havia orientado a proibição de filmes ou reportagens sobre “tumultos em que se envolveram os estudantes”.
“Por todo o trajeto, enquanto as moças pintavam inscrições com ‘spray’ nas paredes, toneladas de papel picado brotavam do alto dos edifícios, emprestando à manifestação um colorido festivo. Correspondentes estrangeiros comentavam a facilidade com que o povo debate os seus problemas mais sérios e profundos”, captou O Jornal. Além de estudantes, participaram sindicalistas, líderes comunitários, artistas, religiosos, intelectuais, setores do empresariado. Paulo Autran, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Edu Lobo e Norma Benguel estavam lá. O Correio da Manhã registrou a presença de pelo menos 150 padres, e um representante dos favelados, muito aplaudido, afirmou que “eles
Passeata dos 100 Mil, Rio
de Janeiro junho de 1968
(Arquivo do Estado de São Paulo/Ultima
Hora)
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também estavam na luta”. Rubens Corrêa Magalhães, de apenas 14 anos, apoiou-se sobre uma banda de jornal e gritou: “O povo armado derruba a ditadura!”.
A passeata elegeu uma comissão, formada por cinco pessoas — um médico, um padre, uma mãe e dois estudantes —, que levariam até Costa e Silva as reivindicações do povo brasileiro. Exigia-se liberdade para os presos políticos, a reabertura do restaurante Calabouço, mais verbas para as universidades, o fim de censura às artes, defesa dos interesses nacionais e melhores condições de vida para os trabalhadores. Mais do que dar um “não” a cada pedido, o Costa e Silva voltou a radicalizar: em 17 de julho, proibiu definitivamente todas as manifestações públicas. Ainda assim, o estado de São Paulo é palco de duas ocupações. Numa delas, estudantes tomam a Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia. Na outra, operários ocuparam uma das maiores fábricas metalúrgicas paulistas, a Cobrasma, de Osasco.
Em Salvador, foram os secundaristas que deram início a uma das manifestações que mais mobilizaram os soteropolitanos. “Aconteceu uma das maiores conflagrações populares que já vi. Começou com o movimento secundarista por conta de aumento da passagem de ônibus e aquilo foi indo que nem uma bola de neve, até que a universidade entrou”, afirma ao MME o ex-líder estudantil Luís Raul Machado. “O governador foi para a televisão dizer que, assim como os estudantes tinham tido uma sensação de liberdade porque ele tinha deixado as passeatas acontecerem, do dia seguinte em diante eles iam sentir o peso da mão da autoridade. Era o Antônio Carlos Magalhães. E eram levas de estudantes e populares, porque ali já não era mais só movimento
estudantil. Pela rua, você não tinha mais controle.” Na noite de 18 de julho, o terror saiu das ruas e invadiu o
ambiente teatral. Integrantes do grupo parapolicial CCC (Comando de Caça aos Comunistas) depredaram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, e promoveram um atentado contra a produção e o elenco da peça Roda Viva, que estava em cartaz desde janeiro. Todos saíram muito feridos, como a atriz Marília Pêra, que foi espancada nua, e o contrarregra José Araújo, que teve a bacia quebrada. Para os anticomunistas doentios do grupo, Roda Viva era “subversiva”. Escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Correa, a obra girava em torno da ascensão e queda do músico Benedito Silva, numa denúncia da indústria cultural.
Mais famosa e mais oportuna também a música foi Prá não Dizer que não Falei das Flores, lançada por Geraldo Vandré no mês de setembro, durante o 3º Festival Internacional da Canção, e transformada em hino de uma geração. O público do festival, repleto de jovens, aclamou os versos de Vandré e fez ecoar o refrão “Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer”. O júri, no entanto, deu o 1º lugar para a melancólica Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, que tomaram “a maior vaia do mundo”.
No final desse mesmo festival, em 15 de setembro, no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca), Caetano Veloso foi desancado por incluir guitarras elétricas em É Proibido Proibir. Aos berros, os espectadores atiravam ovos e tomates no palco. Como não conseguia cantar, o tropicalista Caetano acusou o público de “policiar a música brasileira”, qualificou o júri de “muito simpático, mas incompetente” e criticou “a juventude que diz que quer tomar o poder”. De quebra,
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emendou: “Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores”. E concluiu: “Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos”.
Parte dessa juventude que queria tomar o poder enfrentou uma parte da juventude reacionária, na “Batalha da Maria Antônia”. O confronto envolveu estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e da Universidade Mackenzie — instituições que se localizavam em calçadas opostas da Rua Maria Antonia, em Higienópolis, em São Paulo. Na época, o prédio da USP abrigava a União Estadual dos Estudantes (UEE), que tentava organizar o Congresso da UNE. O Mackenzie, por sua vez, dava guarida ao CCC e a outras entidades anticomunistas. O clima começou a ficar pesado na manhã de 2 de outubro, quando estudantes de lado a lado se estranharam. Enquanto faziam “pedágio” para arrecadar verbas à UNE, vários “uspianos” foram atingidos por ovos e pedras que vinham do Mackenzie. Depois de horas de troca de insultos entre os estudantes, a reitora do Mackenzie, Esther Figueiredo Ferraz, chamou a Tropa de Choque e consegui esvaziar o local.
Mas, no dia seguinte, o clima esquentou de vez. Estudantes do Mackenzie atravessaram a rua para arrancar uma faixa de protesto contra a ditadura. O pau comeu solto. Munidos de armas, paus, pedras e rojões, os estudantes transformaram a Maria Antônia numa praça de guerra. Calcula-se que, durante quatro horas, cerca de 5.500 jovens se digladiaram. O prédio da USP foi incendiado, e vários imóveis foram danificados. Chamada para conter os estudantes, a polícia atirava para
Os universitários na berlinda
o alto — em vão. Já os reacionários do Mackenzie lançavam bombas e coquetéis molotov. Entre as dezenas de feridos estavam quatro estudantes baleados, sendo três universitários.
O outro era o secundarista, José Carlos Guimarães, de 20 anos. Sangrando sem parar depois de levar um tiro na cabeça, ele morreu a caminho do Hospital das Clínicas, nos braços de estudantes da USP. Segundo a autópsia, “havia seis ou sete pedaços de chumbo no cérebro” do jovem mártir. José Dirceu, um dos principais líderes estudantis da época, subiu sobre escombros da batalha e, empunhando a camisa de Guimarães, convocou os estudantes progressistas a se manterem firmes contra a ditadura. Cerca de 4 mil pessoas saíram em passeata até Faculdade de Direito da USP, perto dali, no Largo São Francisco.
“Em solidariedade aos estudantes paulistas massacrados pelo CCC”, três passeatas agitam o Rio de Janeiro na semana seguinte, tarde de 9 de outubro. Uma das marchas, com mais de mil manifestantes, era dominada por secundaristas. O fato é que os estudantes foram duramente reprimidos pelas forças policiais, e as três manifestações terminaram com sete pessoas baleadas, dezenas intoxicadas por gás lacrimogêneo e mais de 130 presos. As autoridades divulgaram que os tiros foram dados pelos próprios estudantes. Não colou, mas esse procedimento — de falsificar as versões oficiais — já ia virando regra e contaminava a imprensa. No mesmo dia, estudantes da USP quebraram as barricadas do CRUSP (Conjunto Residencial da USP), que estava sob ameaça de invasão policial. Os corajosos universitários foram criminalizados até mesmo por Abreu Sodré, que os chamou de “agitadores e extremistas”.
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“Mais para o final do ano, ainda houve umas passeatas lá em Vila Isabel, em que morreram dois estudantes e uma manifestação que tentou se aproximar do jornal O Globo, que, para nós era o símbolo do imperialismo, mas a polícia não deixou e teve também mortes, tiros. O movimento estudantil começou, realmente, a ser reprimido a bala, no segundo semestre de 68”, diz o jornalista e escritor Alfredo Sirkis, que foi dirigente da AMES no período.
Na manhã de 12 de outubro, os universitários sofreram um novo revés. Agentes da Força Publica e do Dops invadem o sítio Muduru, em Ibiúna (SP) onde se realizava, clandestinamente, o 30º Congresso da UNE. Foram presos 1.240 estudantes — entre eles, Antonio Guilherme Ribeiro Ribas, que presidia a União Paulista de Estudantes Secundários (UPES). Presidentes de outras entidades — como Luís Travassos (UNE), Vladimir Palmeira (UME) e José Dirceu (UEE-SP) foram encaminhados ao Dops. A nata do movimento estudantil estava controlada, para a alegria das autoridades autoritárias. “Agi com energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei, após horas de angústia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que participavam do congresso da UNE”, tagarelou Abreu Sodré.
Ao ser descoberto pela ditadura, o Congresso de Ibiúna determinou o ponto de refluxo do movimento estudantil dos anos 60. Costa e Silva fecharia ainda mais o cerco nas semanas seguintes. Em 22 de novembro, o general-presidente criou Conselho Superior de Censura e sancionou a lei que censurava peças teatrais e filmes. Com o AI-5, baixado em 13 de dezembro, centros cívicos tomaram o lugar dos grêmios estudantis. O regime suspendeu o direito ao habeas corpus
em casos de crimes contra a segurança nacional e fechou o Congresso, as Assembleias Legislativas e as Câmara dos Vereadores. As liberdades individuais foram restritas, mas o presidente — e tão-somente ele — teria poderes tirânicos para mandar e desmandar, decretar estado de sítio no país, cassar direitos políticos, etc.
O alto escalão do governo assumia, pela primeira vez, o termo “ditadura” para caracterizar o regime, ao que o ministro do Trabalho Jarbas Passarinho reagiu com uma frase memorável: “Às favas os escrúpulos de consciência”. O movimento estudantil se desmobilizou, e o sindicalismo estava igualmente sem forças. Com o apoio de líderes estudantis secundaristas e universitários, a reação aos “anos de
chumbo” tomou a forma da luta armada.
O “maio francês”Em termos simbólicos, o epicentro dos tantos tremores mundiais de 1968 foi, sem
dúvida, Paris. Se o ano pudesse ser reduzido a uma única imagem fotográfica, provavelmente essa foto estamparia alguma cena de maio de 1968, numa rua do Quartier Latin, na ocupação da Sorbonne ou nos arredores da Universidade de Nanterre.
Também na capital da França, a contestação era liderada por estudantes, notadamente os maoístas, os trotskistas e os anarquistas. “Os estudantes se revoltaram, hastearam bandeiras vermelhas, atiraram coquetéis Molotov, lutaram contra a polícia ou fugiram dela, arrancaram paralelepípedos das ruas, ergueram barricadas (pela primeira vez desde a Segunda Guerra), atacaram os escritórios da American Express e do banco Chase Manhattan em Paris e, no dia 10 de maio de 1968, ocuparam a Sorbonne, convertendo-a numa espécie de comuna estudantil”, sintetiza o historiador Peter Burke, em artigo publicado na Folha de S.Paulo. “As revoltas estudantis não costumam conquistar a simpatia do público, mas esses fatos o fizeram. Mesmo as pichações nos muros foram fotografadas e reproduzidas na imprensa, sendo imitadas em outras cidades, como Oxford. Algumas daquelas pichações são recordadas até hoje.”
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Arthur da Costa e Silva chegou à Presidência da República,
em 1967, com a promessa de uma “política de alívio”. No discurso de
posse, falava em “governar para o povo”, “multiplicar as oportunidades
de educação” e “reatar os entendimentos com a classe trabalhadora”.
Nem o povo nem os movimentos sociais lhe deram ouvidos — e fizeram
bem. Foi sob o governo Costa e Silva que o Brasil virou uma ilha de
trevas, cercada de arbitrariedades e terror por todos os lados.
Se o regime militar (1964-1985) já era odioso desde seu
início, sua “longa noite” começou numa sexta-feira 13, em dezembro
de 1968, quando emergiu o Ato Institucional Número 5 (AI-5). “Golpe
dentro do golpe”, a mais autoritária das medidas da ditadura cassou
direitos elementares do povo, massacrou os movimentos estudantil e
sindical, desatou a prática da tortura e selou os “anos de chumbo”.
Nunca na história da República o Brasil teve um presidente
com tantos poderes, livre para impor suas vontades. O Congresso
permaneceu fechado até 22 de outubro de 1969, enquanto o Judiciário
ficou esvaziado, ao bel-prazer do general-presidente de plantão.
Juntos, o governo Costa e Silva e a Junta Militar que lhe sucedeu
foram responsáveis pela cassação do mandato 105 congressistas, 178
Já enfraquecido pelo AI-5, movimento secundarista perde lideranças e entra no ostracismo
deputados estaduais, 36 vereadores e 30 prefeitos, além de juízes e
ministros do Supremo Tribunal Federal. A censura prévia foi estendida
à música, ao teatro e ao cinema. O regime “de exceção” estava a pleno
vapor.
Estudantes secundaristas sendo expos-tos a livros considerados subversivos pela ditadura militar (Acervo CPdoc)
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Capítulo 6 (1968-1971) A ditadura destrói a UBES
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Num cenário desses, havia poucas perspectivas de ação para
o movimento estudantil. Os grêmios estudantis foram extintos. Em seu
lugar, surgiram ridículos centros cívicos, todos a serviço dos interesses
do regime. O medo da repressão estava maior desde o segundo semestre
de 1968, quando centenas de estudantes foram detidos — só a invasão
policial ao 30 - Congresso da UNE, em Ibiúna, levou mais de mil para a
prisão.
A UBES, atacada em sua base, ia em busca de sobrevida. Por
tudo isso, o Conselho de Estudantes Secundários, em dezembro de
1968, em Salvador, ocorreu sob imensos cuidados. A organização do
encontro coube ao vice-presidente da entidade, Bernardo Joffily, que
contou essa história 40 anos depois, em artigo no portal Vermelho (ligado ao PCdoB). “Fui eu o encarregado pela diretoria de preparar o
Conselho de Salvador. Cheguei à boa terra em fins de outubro, depois de
passar dez dias no Dops e no Juizado de Menores do Recife, por causa
de um ‘comício-relâmpago’ em solidariedade à greve dos canavieiros do
Cabo”, registra Bernardo.
Em Salvador, a UBES encontrou um movimento secundarista
combativo e organizado, além da solidariedade do povo baiano. A grande
liderança secundarista era Dóris Serrano, presidente do grêmio estudantil
do Colégio Central da Bahia. Na mesma instituição estudava Juca Ferreira,
da Dissidência do PCB. Conforme o depoimento de Juca ao MME, o Colégio
A polêmica secundarista
Central era “uma escola histórica”, “o principal ginásio público da Bahia”,
“o centro da movimentação”, “o lugar onde o movimento estudantil se
expressava com mais força”.
Segundo o ex-líder estudantil baiano, o movimento vivia uma
fase de grande polarização. “Eu representava as organizações que
estavam rompendo com os partidos de esquerda tradicionais e era a
grande movimentação, não só no movimento secundarista como no
movimento universitário e em toda a esquerda”. Juca diz que chegaram
a ser formadas “cerca 30 organizações”, criadas por “descontentes ou
dissidentes das organizações tradicionais — Ala Vermelha, PCBR, PCR,
Colina, VAL-Palmares, MR8, enfim, era uma infinidade, quase que cada
indivíduo era uma organização”.
Para Bernardo, porém, “Juca e outros valorosos militantes da
Dissidência do PCB” eram, de fato, “uma força entre os secundaristas
baianos” — mas não a maior. “A AP (Ação Popular), onde eu militava
então, era de longe a força hegemônica no movimento secundarista
nacional, em aliança com o PCdoB. Mesmo na Bahia a AP e seu aliado
PCdoB, no mínimo, disputavam taco a taco.”
Essa divergência não é pequena e está no centro de uma das
maiores polêmicas da história da UBES. Afinal de contas, quais forças
estudantis dominaram o Conselho de Salvador? O que foi debatido pelos
secundaristas? Quais foram suas deliberações? Não há documentação
alguma do encontro, e os relatos sobre sua realização são discordantes.
Juca Ferreira garante ter saído do Conselho como presidente da UBES,
e Antonio Risério, como seu vice — mas Bernardo Joffily contesta a
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própria realização de eleições para a diretoria. Em setembro de 2008, o
Vermelho - retomou a polêmica e - deu espaço para os dois lados.
“Nós dominamos completamente o evento, só que eram dois
partidos tradicionais os que dominavam a organização do congresso:
o PCdoB e a AP”, diz Juca. Essas duas forças, segundo ele, “tinham
dificuldade de admitir que estava havendo uma certa erupção do
mundo da esquerda na América Latina e, particularmente, no movimento
secundarista do Brasil. Foi o que ficou: aquela confusão”.
Juca afirma que a apuração para a escolha da nova diretoria
estava para acabar, mas foi interrompida quando souberam do AI-5.
“Faltavam três delegados, um de Brasília, outro de São Paulo e um de
outro estado que eu não me recordo, todos os três me apoiavam. Eles
(AP e PCdoB) tiveram a intenção de acabar a reunião antes de finalizar
a eleição”, declarou Juca ao Vermelho. “Iam encerrar a reunião sem
sufragar a minha eleição, que é uma coisa evidente, parte da história”.
Pesou a seu favor, segundo Juca, o fato de o evento ter
ocorrido na Bahia. “Estava no meu ambiente e fui celebrado presidente
— não há contestação disso”, acrescenta Juca. “Fizemos aliança com os
anarquistas, que dominavam uma parte do movimento secundarista de
Brasília. Nós éramos a novidade naquele momento, éramos o discurso
que galvanizava uma expectativa, ou uma impaciência juvenil, diante
da ditadura militar que já estava há meses reprimindo violentamente o
A versão de Juca Ferreira
movimento secundarista. Isso refletia no fortalecimento de uma visão
política que os partidos tradicionais, até por terem mais tempo de
serviço, não apoiavam”.
Juca declara, por fim, que a diretoria eleita foi vítima de forças
que queriam partidarizar a UBES. “É uma tentativa de retomar velhas
perebas do movimento secundarista, respaldando, inclusive, um gesto
antidemocrático de não admitir a perda do controle da instituição.
A instituição não pode ser biombo de partido nenhum. Se nós nos
afirmamos na base e fomos lá para dentro e conseguimos ser maioria,
isso tem que ser reconhecido, principalmente depois que passou a
conjuntura”.
Ao MME, Juca esclarece que ganhou, mas não levou. “Fui
eleito e não consegui assumir, a não ser com a parte da estrutura que
tinha votado em mim. A UBES era maior até que os partidos políticos,
porque sempre, no movimento estudantil, tem uma parte importante
que, mesmo simpatizando, não é ligado a partido nenhum, não circula
nessa órbita de organização partidária, são mais quadros do movimento
estudantil”.
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“Entro na controvérsia vestindo luvas de pelica, pois sou fã
assumido do trabalho de meu oponente, Juca Ferreira, como secretário-
executivo e agora como ministro da Cultura”, escreveu Bernardo, no já
mencionado artigo ao Vermelho. Segundo ele, as eleições para a diretoria
da UBES ocorriam apenas em congressos, nunca em conselhos, como o
de Salvador. “Não teria sentido fazer um Congresso apenas oito meses
depois do de Belo Horizonte; os Congressos e as gestões da diretoria da
UBES, como os da UNE, eram anuais”.
Bernardo sustenta que o Conselho ocorreu não em 13 de
dezembro de 1968, mas, sim, no dia 15, “o que foi pior ainda”. O clima,
diz ele, era de alguma tensão: “Ali estavam mais de 150 delegados
secundaristas (número superior ao do Congresso de Belo Horizonte),
vindos de 19 estados. Todos sequiosos para discutir a luta contra a
ditadura nas novas condições do AI-5”.
De acordo com a versão de Bernardo, a “saída” foi reunir os
delegados “numa ‘plenária-relâmpago’ — relâmpago porque não deve
ter durado nem dez minutos. Foi no auditório do prédio da Faculdade
de Filosofia da UFBA na época, um casarão enorme e muito antigo”. O
jornalista afirma que apenas um estudante falou — provavelmente o
presidente da UBES, Marcos Antonio Machado de Mello.
Segundo Bernardo Joffily, o orador “explicou a situação
excepcional, denunciou a ditadura e pôs em votação uma única proposta:
que o Conselho da UBES se dispersasse em grupos; e que a diretoria da
A versão de Bernardo Joffily entidade ficasse responsável por centralizar as conclusões. A proposta
foi aprovada por aclamação. E no minuto seguinte saímos todos de
fininho, por uma escada compridíssima e estreita que havia no fundo
do prédio”.
Bernardo escreve que os grupos se reuniram em locais distintos.
“Quero crer que a percepção de Juca sobre os acontecimentos venha
da participação dele em um destes grupos. Naquelas circunstâncias
excepcionalíssimas, é possível que tenha havido em um dos grupos a
‘eleição’ descrita por Juca, cuja boa-fé não ponho em dúvida”. No final,
segundo o ex-presidente da UBES, “o drible deu certo. O Conselho se
realizou, na medida que as circunstâncias permitiam, ninguém foi preso
e todos os delegados retornaram às suas bases, embora alguns tenham
tido de apelar para a carona, já depois do Ano-Novo, devido à sempre
proverbial pobreza do movimento secundarista”.
Depois do ato O ponto mais consensual entre as versões de Juca e Bernardo
é que o anúncio do AI-5 alterou os rumos não apenas do Conselho
de Salvador — mas também do movimento estudantil. Na opinião de
Bernardo, os secundaristas, ao regressarem do encontro na Bahia, “se
depararam com uma realidade mil vezes mais difícil, a ditadura terrorista
do pós-AI-5”.
Na opinião de Juca Ferreira, “a repressão mudou de qualidade
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e foi ela que procurou eliminar aquele processo de crescimento (do movimento estudantil). Eu acho que era porque já estava atingindo
a classe média, que começava a participar das manifestações dos
estudantes no Rio de Janeiro, em São Paulo, começando a criar uma
situação nova. O movimento cultural também estava aderindo”.
Ele próprio se viu às voltas com complicações foram diretas
e imediatas. “Com o Ato, eu fui expulso da escola técnica. Não chegou
a ser formalizado, mas o diretor da escola, junto com um policial da
Policia Federal do lado, chamou a liderança e disse: ‘Ou vocês saem ou
nós vamos abrir processo na Lei de Segurança Nacional baseado no
Ato nº 5’. É claro que todos preferiram sair. Eu deixei de ser quadro
secundarista porque era dezembro, pouco depois eu fiz vestibular para
a universidade e passei no curso de história”, diz o ex-líder secundarista
ao MME.
O fato é que todo o movimento estudantil se desarticulou
depois do AI-5. As entidades não conseguiam mais se organizar em
nível nacional, e lideranças eram cada vez mais presas ou cerceadas.
“A repressão expulsou boa parte dos militantes, pelo menos do que
a gente poderia chamar de uma vanguarda política do movimento
secundarista, não só na Bahia, mas no Brasil inteiro. A maioria passou
a estudar em escola particular”, atesta Juca. “Não houve movimento
de massa. Foi um período de inflexão de uma parte do movimento,
principalmente, as pessoas mais próximas do Partidão achando que o
movimento estudantil tinha chegado num impasse”.Todos os confrontos
com a ditadura passaram pela luta armada, seja na cidade, seja no
campo.
Já Bernardo, depois do AI-5 e do Conselho de Salvador, ficou
hospedado por dois meses na casa de um ex-soldado baiano simpatizante
do movimento estudantil. Do jeito que desse, a UBES tentava manter o
movimento ativo. “Foi uma aventura, mas nós acabamos conseguindo
fazer umas seis reuniões parciais, quebrando um galho para que não se
perdesse a possibilidade de um mínimo de discussão”.
A luta armada
Na virada de 1968 para 1969, a repressão corria solta. Dezenas
de políticos oposicionistas tiveram seus mandatos e direitos políticos
Estudante preso durante passeata con-tra a ditadura, Rio de Janeiro (Arquivo Na-cional/Acervo UNE)
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cassados, como o ex-governador Carlos Lacerda e a dona do Correio da Manhã, Niomar Muniz Sodré Bittencourt. O número de presos políticos
chegou às centenas. Até Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e
exilados. O decreto-lei 477, de 26 de fevereiro de 1969, autoriza a
perseguição de professores, alunos e funcionários de estabelecimentos
de ensino público — a medida penalizou 263 pessoas até 1973.
Pelas vias legais, não havia mais formas de combater o regime
militar. Foi o momento em que as organizações guerrilheiras tiveram
impulso, e a luta armada se alastrou pelo Brasil, convertendo-se no foco
as ações contra a ditadura. Uma data que demarcou, simbolicamente,
esse processo foi 25 de janeiro de 1969 — dia em que, num golpe de
audácia, o capitão do Exército Carlos Lamarca abandonou o 4º Regimento
de Infantaria levando consigo 63 fuzis e dez metralhadoras, além de
munição. Para custear suas ações, Lamarca e outros guerrilheiros
faziam expropriações e assaltos a bancos. Atentados a unidades
militares também eram feitos. Apesar dos riscos, diversos estudantes,
majoritariamente universitários, foram atraídos para a resistência
armada.
Em 1º de julho de 1969, o governo deu carta branca para o
funcionamento, às escondidas, de um órgão paramilitar ilegal de coerção
e tortura — a Operação Bandeirantes (Oban). Autorizada pelo governador
Abreu Sodré, o pior centro de repressão da história do Brasil funcionou
em São Paulo, na Rua Tutoia, integrada ao 36º Distrito Policial. Como
os militares alegavam falta de recursos para tocar o terror, a Oban
foi financiada pelas elites empresariais — banqueiros, fazendeiros,
industriais, empreiteiros, etc.
“Na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp), convidavam-se empresários para reuniões em cujo término se
passava o quepe. A Ford e a Volkswagem forneciam carros, a Ultragás
emprestava caminhões e a Supergel abastecia a carceragem da Rua
Tutoia com refeições congeladas. Segundo o ex-governador Paulo Egydio
Martins, ‘todos os grandes grupos comerciais e industriais do estado
contribuíram para o início da Oban’”, escreve o jornalista Elio Gaspari em
A Ditadura Escancarada.
A Operação Bandeirantes não impediu uma das mais
espetaculares ações guerrilheiras — o sequestro do embaixador
americano no Brasil, Charles Elbrick, no dia 4 de setembro, em Botafogo,
no Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que um diplomata foi capturado por
razões políticas. Curiosamente, a ação foi liderada por jovens estudantes,
que haviam aderido à guerrilha urbana através do MR8 (Movimento
Revolucionário 8 de Outubro) e da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Sem certeza do paradeiro do embaixador, o Centro de Informações da
Marinha (Cenimar) pôs suas perua para vigiar cerca de cem residências
cariocas suspeitas.
O principal objetivo da operação era tirar das prisões lideranças
do movimento estudantil, como José Dirceu, Luís Travassos e Vladimir
Palmeira. Os sequestradores gravaram as conversas com o embaixador
Na era dos sequestros revolucionários
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americano em fitas cassetes que, posteriormente, foram encaminhadas
a uma modesta república de estudantes da Dissidência, no bairro da
Glória. Nas negociações com o regime, os guerrilheiros trocaram Elbrick
por 15 presos políticos, que foram soltos no México, na manhã do dia
7. Horas mais tarde, o embaixador foi libertado. O governo foi obrigado,
ainda, a divulgar um manifesto dos grupos na TV.
O monumental sequestro se deu em condições atípicas para o
regime. Poucos dias antes, Costa e Silva sofreu uma trombose cerebral
e deixou a Presidência. Os três ministros militares — Aurélio de Lyra
Tavares (Guerra), Augusto Rademaker (da Marinha) e Márcio de Souza e
Mello (Aeronáutica) — se anteciparam ao vice-presidente, Pedro Aleixo,
deram o golpe e assumiram o poder, na forma de uma Junta Militar, em
31 de agosto. Dos poucos membros civis na cúpula do governo, Aleixo
foi o único que se posicionou contrário ao AI-5.
O sequestro de Elbrick escancarou as limitações da Junta.
Apenas 12 guerrilheiros participaram da ação, mas ao menos mil
suspeitos foram levados ao interrogatório. Para piorar a imagem dos
repressores, o embaixador concedeu uma entrevista coletiva em
que elogiou seus sequestradores — “jovens inteligentes, fanáticos
e determinados”, segundo o diplomata. “Eles até me deram charutos
e lavaram minha camisa”. Desesperado, o regime autorizou a prisão
perpétua para os casos de “guerra psicológica adversa” e “guerra
revolucionária ou subversiva”, além de pena de morte e banimento dos
presos políticos que foram trocados por diplomatas.
Um mês depois, em 8 de outubro, a Junta Militar anuncia o
nome do general Emílio Garrastazu Médici para suceder Costa e Silva na
Presidência. Depois de dez meses dissolvido, o Congresso foi reaberto para
ratificar a indicação de Médici, que assumiu o cargo em 30 de outubro,
quando outra Constituição já estava em vigor. O novo presidente seguiu
a tradição e, como Costa e Silva, injetou cinismo e hipocrisia no discurso
de posse: “O meu governo vai iniciar-se numa hora difícil. Sei o que sente
e pensa o povo, em todas as camadas sociais, com relação ao fato de
que o Brasil continua longe de ser uma nação desenvolvida, vivendo sob
um regime que não podemos considerar plenamente democrático. Não
pretendo negar esta realidade”, declarou Médici, prometendo “sindicatos
livres, imprensa livre, Igreja livre”. Com cinco dias de governo, no entanto,
o governo já ostentava o assassinato do líder da ALN, Carlos Marighela,
morto a tiros, numa rua nobre de São Paulo, em 4 de novembro.
Ao longo de 1970, a luta armada promoveu o sequestro de
mais três diplomatas, que são trocados por um total de 115 presos
políticos. Em 11 de março, o cônsul japonês Nobuo Okuchi foiretido
pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) em São Paulo e depois
trocado por cinco presos. Outros 40 prisioneiros foram soltos depois
do sequestro do embaixador da Alemanha Ocidental Ehrenfried von
Holleben, em 11 de junho, no Rio de Janeiro. A ação mais exitosa
libertou 70 presos políticos, em troca do embaixador suíço Giovanni
Enrico Bucher, sequestrado por 40 dias, também no Rio, a partir de 7
de dezembro.
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Os esporádicos êxitos da luta armada não favorecem o
movimento estudantil. Ainda em 1969, a duras penas, a UNE conseguiu
promover os chamados Congressinhos Regionais e elegeu Jean Marc Von
Der Weid para a sua presidência. “Fizemos em julho o último conselho
do qual participei, em Cachoeira de Macacu. Nós pusemos um conselho
nacional bem representativo”, recorda-se Jean Marc, que foi preso
também em 1969, no mês de setembro. “Cheguei direto no aparelho,
sem tomar precaução, nem analisar as regras de segurança, se havia
algum aviso ou não. E tinha. O pessoal, que tinha sido preso, havia
colocado uma toalha na janela, avisando que o aparelho tinha caído. E eu
não vi. Simplesmente não vi”, agrega o ex-presidente da UNE.
Para a UBES, o ano é de encruzilhadas. “Confiamos a entidade
a uma diretoria provisória, após precária consulta ao que restara do
movimento”, escreveu Bernardo Joffily no Vermelho. O DOPS registra um
Congresso da UBES de maio de 1970, com delegações de 13 estados,
em que uma nova diretoria foi eleita. “Mas o novo presidente, Mauro
Brasil, ex-presidente do (grêmio estudantil do) Colégio Paes de Carvalho,
Belém do Pará, logo depois foi preso em São Paulo e teve um mau
comportamento diante dos torturadores. O movimento nunca cessou,
mas refluiu para dentro das escolas”. Uma das poucas manifestações
mais unitárias foi a realização de uma ou outra missa, esvaziadas, pelo
segundo aniversário da morte de Edson Luís.
Os estudantes em situação-limite No governo Médici, além do mais, o ministro da Educação e
Cultura era o coronel Jarbas “às favas com os escrúpulos” Passarinho,
que promove uma reforma conservadora do ensino fundamental e médio,
por meio da Lei nº 5.692/71. Se por um lado havia 130 habilitações para
o 2º grau, por outro o governo escolhia a dedo as disciplinas. “Como
matérias obrigatórias foram incluídas Educação Física, Educação Moral
e Cívica, Educação Artística, Programa de Saúde e Religião (esta última
obrigatória para o estabelecimento e optativa para o aluno)”, aponta
Maria Lúcia de Arruda Aranha em História da Educação e da Pedagogia. “Com as alterações curriculares, algumas disciplinas desapareceram ‘por
falta de espaço’, como Filosofia, no 2º grau, ou foram aglutinadas, como
História e Geografia, que passaram a construir os Estudos Sociais, no
1º grau”.
Segundo a autora, “ao introduzir disciplinas sobre civismo,
impunha-se a ideologia da ditadura, reforçada pela extinção da Filosofia
e pela diminuição da carga horária de História e Geografia, o que exerceu
a mesma função de diminuir o senso crítico e a consciência política
da situação. Quanto à reforma universitária, também é importante
lembrar que nesse período ocorreu um processo sem precedentes de
privatização do ensino. Grande parte dos cursos, nos moldes do sistema
empresarial, nem sempre oferecia igual qualidade pedagógica.”
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Protestos através de pixações nas ruas do Rio de Janeiro (Arquivo Nacional/Acervo MME)
Sob todos os aspectos, os estudantes, suas entidades e seu
movimento saem vulneráveis de 1971, ficam numa situação-limite. A
direção da UBES se dispersa, e a entidade deixa de funcionar. No dia 18
de março, um estudante de Salvador — Teodomiro Romeiro dos Santos,
de 19 anos — se torna a primeira pessoa a ser condenada à pena
de morte no Brasil. A sentença é comutada para prisão perpétua dois
meses depois. Outro estudante, Stuart Edgard Angel Jones, é torturado
e morto em maio, pelo regime, no Centro de Informações de Segurança
da Aeronáutica (Cisa). Em setembro, um dos menores congressos da
história da UNE efetiva Honestino Guimarães na presidência. O movimento
estudantil tinha perdido a batalha para os militares no governo Médici.
Mas a luta não estava concluída.
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Com Médici no governo, os militares dissiparam os movimentos organizados e a luta armada — mas os estudantes continuaram a ser assassinados
Ilustração de Antonio Guilherme
Ribas, líder secundarista
(Acervo Banco de Imagens
PCdoB)
Em meados de seu governo (1969-1974), o general-presidente
Emílio Garrastazu Médici já tinha contido praticamente todos os focos de
resistência à ditadura. Com manifestações públicas proibidas, entidades
postas na ilegalidade, lideranças presas e políticos desaparecidos,
não havia margem de iniciativa para o movimento estudantil, as ligas
camponesas e o sindicalismo. Para massacrar a sociedade organizada, o
regime recorreu a uma vergonhosa “guerra suja”, centrada em órgãos de
repressão de poderes ilimitados. Em 1972, graças às ações à margem
da lei praticadas sobretudo na Oban (Operação Bandeirantes), a luta
armada das guerrilhas urbanas também chegou ao fim.
Nem assim os militares deixaram de perseguir, prender, torturar
e matar estudantes — centenas de jovens vítimas abatidas covardemente
pela ditadura. Foi o caso de Antônio Guilherme Ribeiro Ribas, um dos
maiores líderes secundaristas de sua geração. Nascido em São Paulo no
ano de 1946, Ribas cresceu na Vila Mariana. “O seu pai, Walter Scheiba
Pinto Ribas, havia participado da Revolução Constitucionalista de 1932 e
costumava dizer que ‘todo homem deveria passar pelo menos por uma
revolução’. Esta ideia se fixaria na cabeça de seus dois filhos mais novos,
Guilherme e Dalmo, que mais tarde ingressariam no Partido Comunista
do Brasil”, escreve o historiador Augusto Buonicore, em artigo sobre
Ribas para o portal Vermelho.
Estudante, nos anos 60, do Colégio Estadual Brasílio Machado,
na Vila Mariana, Ribas logo despontou e se elegeu presidente do grêmio
estudantil. Uma vez no cargo, interagiu com outras escolas da região
e ajudou a fundar novos grêmios. No 19º Congresso Nacional dos
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Estudantes Secundários, em março de 1967, foi eleito para a direção da
UBES, na chapa encabeçada pelo pernambucano Tibério Canuto.
Em junho de 1967, chegou à presidência da UPES (União
Paulista dos Estudantes Secundaristas), durante o 15º Congresso da
entidade, realizado no Crusp (Conjunto Residencial da Universidade de
São Paulo). “O nome de Guilherme (Ribas) unificou todas as correntes
da esquerda estudantil, apesar de ter relação com uma força política
ainda com pouca expressão no movimento estudantil paulista: o PCdoB”,
registra Buonicore.
Segundo o historiador, Ribas “foi um dos porta-vozes do
movimento estudantil naquele tumultuado ano de 1968. Entrevistas
com ele podem ser encontradas, inclusive, no combativo Correio da
Manhã do Rio de Janeiro. Na edição de 15 de agosto afirmou que uma
passeata que se realizaria três dias depois ocorreria ‘com ou sem
polícia’. No dia 3 de setembro, no mesmo jornal, disparou: ‘A ditadura
no dia 7 de setembro iria demonstrar sua força, ostentando o seu
aparato de repressão que serve para sustentar as classes privilegiadas.
O povo não deverá prestigiar esta manifestação dos ‘gorilas’ a serviço do
imperialismo americano. Dia 7 de setembro é o dia da Pátria e, portanto,
um dia de luta pela liberdade e para isso seria necessária a violência
popular’. Por tudo isso, um atento policial, infiltrado no movimento,
escreveria aos seus chefes: ‘Ribas desempenha na sua coletividade
estudantil posição de destaque semelhante àquelas notadas da parte
de José Dirceu e Catarina Meloni nas áreas universitárias’”.
Prisão e morte de RibasA essa altura, Ribas era o nome mais cotado para presidir a
UBES — mas o cerco à sua atuação começou para não mais parar. O
Estado brasileiro passou a lhe impor uma série de prisões e ameaças,
conforme admite o livro Direito à Memória e à Verdade, elaborado
pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Em 7
de setembro, lembra o livro, Ribas “foi detido pelo DOPS, juntamente
com a ex-presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo,
Catarina Meloni, durante manifestação contra a presença do presidente
Costa e Silva em solenidade pelo Dia da Independência (...). Foi libertado
mediante habeas-corpus uma semana antes de ser novamente detido,
em Ibiúna, no 30º Congresso da UNE”.
Nessa segunda prisão, segundo Augusto Buonicore, um dos
comandantes da operação reconheceu o líder secundarista e lhe provocou:
“Você não tem jeito mesmo, seu Ribas... Foi preso entregando panfletos
no Desfile de 7 de setembro, foi solto na véspera desse Congresso da
UNE. Hoje, três dias depois de ser solto, já é preso novamente. Você é
um caso perdido”. Resultado: a 2ª Auditoria do Exército, de São Paulo,
condenou Ribas a um ano e seis meses de prisão — período que foi
cumprido em várias unidades prisionais: Tiradentes, Delegacia de Polícia
da Rua 11 de Junho, Quartel do Batalhão de Caçadores, Forte de Itaipu,
Casa de Detenção de São Paulo e Quartel de Quitaúna de Osasco. “Nesse
período, seus parentes sofreram violências e abusos por parte dos
policiais”, afirma o livro Direito à Memória e à Verdade.
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Capítulo 7 (1972-1975) Os estudantes contabilizam seus mortos
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Ao ser libertado, em abril de 1970, Ribas foi para Duque de
Caxias (RJ), onde militou clandestinamente no PCdoB. Ficou lá por pouco
tempo — apenas oito meses —, deslocando-se em seguida para a região
do Araguaia. “Antes, teve um último encontro com o irmão. A família,
porém, só voltaria a ter notícias suas em 1973, através de Francisco
Romanini, detido pela OBAN, que ouvira falar de suas atividades na
guerrilha. Em 1975, julgado à revelia, foi absolvido”, aponta Direito à Memória e à Verdade.
O livro também confronta versões a morte de Ribas, em plena
atividade na guerrilha. “O relatório apresentado pelo Ministério do
Exército, em 1993, registra que ‘Antônio Ribas, durante encontro com
uma patrulha na região do Araguaia, conseguiu evadir-se, abandonando
documentos nos quais usava o nome falso de José Ferreira da Silva’. Mais
adiante o relatório informa: ‘teria morrido em confronto com as forças
de segurança’. Esse relato se aproxima das informações do relatório
Arroyo, onde consta que no dia 28 ou 29 de novembro de 1973, ao
se encontrarem com uma patrulha do Exército, ‘Jaime (Jaime Petit da Silva) e Ferreira (Antonio Guilherme Ribeiro Ribas) ficaram desligados do
grupo’. Já o relatório da Marinha registra a informação equivocada de
que teria morrido, ‘em 20 de fevereiro de 1973’.
Ainda segundo a publicação da Comissão Especial sobre Mortos
e Desaparecidos Políticos, existem mais informações soltas, por vezes
desencontradas ou até implausíveis sobre o desaparecimento e a morte
de Ribas. “No livro de Taís Morais e Eumano Silva, há uma passagem
relatando movimentos dos guerrilheiros em 26/12/1973, dia seguinte
ao maciço ataque sofrido pela Comissão Militar no dia anterior, que
reitera a indicação de que Ribas não mantinha qualquer contato com
seus companheiros desde a data da morte de Adriano Fonseca Filho
(provavelmente em 28 ou 29/11/1973)”.
Hugo Studart, no livro A Lei da Selva, baseado num um dossiê
dos militares responsáveis pela repressão à guerrilha, diz que Ribas
morreu em 19 de dezembro de 1973, ainda que anotações pessoais
de um militar apontasse para o dia 22. “Depois de Ari, os militares
apanharam Adriano Fonseca Fernandes Filho, o Chico, também do
Destacamento C. Morreu a 3 de dezembro de 1973, segundo o Dossiê.
Em vez de transportar o corpo, desta vez os militares levaram somente
a cabeça para identificação. Antonio Guilherme Ribeiro Ribas, o Ferreira,
do Destacamento B, foi abatido duas semanas depois na área dos pára-
quedistas.”
O mistério foi desfeito mais de quatro décadas depois. Em
entrevista concedida ao jornal O Estado de S.Paulo em junho de 2009,
Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o major reformado Curió, afirmou
que Ribas foi um dos 41 guerrilheiros sumariamente executados. E o
mais trágico: decapitado, o ex-presidente da UPES teve a cabeça enviada
para Xambioá, no Pará.
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Capítulo 7 (1972-1975) Os estudantes contabilizam seus mortos
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Além de Ribas, outro dirigente da UBES na gestão 1967-68
foi igualmente assassinado pelos militares. Trata-se do pernambucano
Jarbas Pereira Marques, militante da VPR, que tombou no chamado
“Massacre da Chácara São Bento”, na cidade de Paulista (hoje Abreu e
Lima), região metropolitana do Recife, em janeiro de 1973. O crime teve
como co-autor cabo Anselmo, um agente infiltrado do Dops que tinha a
confiança do grupo guerrilheiro. No mesmo massacre, morreram Soledad
Barret Viedma, Pauline Reichstul, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz
Ferreira de Souza e José Manoel da Silva.
“Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, (os seis quadros da VPR) apareceram numa pobre chácara da periferia. Lá,
segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio em cujo término morreram
seis foragidos e escaparam dois (Daniel e César). Os mortos da VPR
teriam disparado 18 tiros, sem acertar um só. Receberam 26, 14 na
cabeça. Deles, quatro eram veteranos, três com treinamento em Cuba,
mas pouco tinham a contar além do que Anselmo já contara”, conta o
jornalista Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada. Dos cadáveres — “brutalmente desfigurados” e “muito
massacrados” —, o caso mais repugnante foi o de Soledad, uma
“Brutalmente desfigurados”, “muito massacrados”
paraguaia que namorava cabo Anselmo, dele esperava um filho de quatro
meses e foi assassinada um dia antes de completar 28 anos. “Soledad
estava com os olhos muito abertos com expressão muito grande de
terror, a boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o
sangue coagulado em grande quantidade”, relata Mércia de Albuquerque
Ferreira, advogada de presos políticos que teve acesso aos corpos.
“Tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a
trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas porque
era uma quantidade grande e o feto estava lá nos pés dela. Não posso
saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu,
que ele nasceu, naquele horror.”
Jarbas morreu ainda mais jovem, aos 24 anos, com dois tiros
na cabeça e dois no tronco. “Três dos militantes — Evaldo, Pauline
e Jarbas — apesar dos tiros que levaram, inclusive na cabeça,
continuaram empunhando as próprias armas, denotando montagem
de cena”, denuncia o livro Direito à Memória e à Verdade. No dia de
sua morte, o ex-dirigente da UBES almoçou com a mulher, Tércia Maria
Rodrigues Marques, e a filha pequena. Depois de sair para trabalhar em
sua livraria, desapareceu. Segundo a publicação da Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Tércia telefonou, então, para a
livraria e descobriu que Jarbas tinha sido sequestrado por dois homens,
que ainda deixaram um recado: “Ele não regressaria mais”.
Dois dias depois, Rosália Pereira, mãe de Jarbas, descobriu pela
imprensa que ele estava morto. No IML, conforme Direito à Memória e à Verdade, ela “viu o filho com o rosto desfigurado, com marcas de torturas
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e tiros por todo corpo. Temendo pela vida da filha, Tércia deixou o Brasil
e só regressou em abril de 1979. Segundo ela, Jarbas não militava em
qualquer organização clandestina até conhecer o cabo Anselmo”.
No segundo semestre de 1973, o regime tratou de dizimar
lideranças do Partido Comunista Revolucionário (PCR), uma dissidência
do PCdoB organizada a partir de 1966. Uma operação coordenada pelo
sanguinário delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturador do Dops, levou
à morte de três integrantes do grupo — entre eles, Manoel Lisbôa de
Moura, ex-líder estudantil secundarista. Em 16 de agosto, Manoel se
encontrava na Praça Ian Flemming, no Recife. Preso enquanto conversava
com uma operária de nome Fortunata, dali foi levado até o DOI-Codi do
4º Exército.
Selma Bandeira Mendes, uma companheira sua de cela, denunciou
posteriormente que o líder do PCR enfrentou 19 dias de tortura, teve
queimaduras pelo corpo inteiro e praticamente ficou paralítico. Manoel
foi enterrado pelos militares como indigente, em caixão lacrado. Sua
memória, porém, foi recuperada com o tempo. Em novembro de 1994, a
Prefeitura de Maceió criou o Programa Especial de Cidadania e Direitos
Humanos para homenagear mártires alagoanos que lutaram contra a
ditadura. Uma das ruas da cidade recebeu o nome de Manoel Lisbôa de
Moura. Militante do PCR criaram, ainda, o Centro Cultural Manoel Lisbôa,
ligado a militantes do PCR.
Em Direito à Memória e à Verdade, há um categórico
reconhecimento da atuação de Manoel Lisbôa no movimento estudantil.
De acordo com o livro, ele “era o principal dirigente do PCR e desde seus
tempos de escola secundária, em Maceió, demonstrou interesse pelos
problemas sociais, engajando-se no movimento estudantil alagoano.
Como secundarista, participou do Conselho Estudantil do Colégio
Estadual de Alagoas, foi diretor da União dos Estudantes Secundaristas
de Alagoas (UESA) e, aos 16 anos, ingressou na Juventude Comunista.
Foi editor do jornal A Luta, de circulação clandestina e instrumento de
mobilização e combate ao regime militar. Ingressou na Faculdade de
Medicina da Universidade Federal de Alagoas, onde organizou o Centro
Popular de Cultura da UNE (CPC), apresentou e dirigiu peças de teatro,
envolvendo, inclusive, operários da estiva. Após a deposição de João
Goulart, foi preso, expulso da universidade e teve cassados os seus
direitos políticos”.
Não só as lideranças secundaristas pagavam caro por suas
lutas. Durante o tempo de vigência do regime, os universitários, por
exemplo, correspondiam a 39% dos mortos por razões políticas,
26% dos torturados nos porões da ditadura e 21% dos denunciados,
segundo o livro Brasil Nunca Mais. O caso mais emblemático foi o do
goiano Honestino Guimarães, que foi preso em 10 de outubro de 1973,
quando ocupava a presidência da UNE. Nunca mais foi encontrado. Sobre
seu destino, correram várias versões. Uma delas, de um agente secreto
do período, atesta que Honestino passou por várias sessões de tortura
Os universitários na hora da morte
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em São Paulo e foi encaminhado para o Araguaia, junto a uma ordem de
execução. A família só foi receber em 1996 uma certidão de óbito, que
não expunha as causas da morte.
Integrado à AP, Honestino estudou Geologia na UnB (Universidade
de Brasília), participando do movimento estudantil através de entidades
universitárias. Com o AI-5, foi expulso do meio acadêmico. Líder em
inúmeras manifestações, volta e meia era preso pela ditadura. Na última
vez, sumiu para sempre. Em depoimento ao MME Norton Guimarães, um
dos irmãos de Honestino e ex-líder secundarista em Brasília, diz acreditar
que, em situações do gênero, a expressão “desaparecido político” deve
Honestino Guimarães
em passeata (Acervo UNE)
ser contextualizada — porque esconde uma série de crimes praticados
contra a pessoa que desapareceu. “Primeiro: é sequestro, não é prisão,
pois na prisão tem todo ato formal, você pode entrar com advogado pra
visitar o preso; segundo: tortura, que me provem que não houve tortura
com aquele prisioneiro, eu mesmo sofri tortura; terceiro: assassinato; e
quarto: ocultação de cadáver. São quatro crimes, sendo três hediondos,
subentendidos, ocultados debaixo do termo ‘desaparecido político’.”
Sem contar os efeitos colaterais impostos aos familiares. “Em
1972, fiz um concurso pro Senado e fui posto pra fora por ser irmão
do Honestino. Em 1973, quando meu irmão foi preso e desapareceram
com ele, fui torturado uma noite inteira e abandonei a faculdade porque
não conseguia voltar a estudar, os meus amigos se afastaram de
mim. Foi muito duro, a sociedade me rejeitava...” Numa das prisões de
Norton, seu pai passou praticamente três dias sem dormir, à procura
do filho. Norton voltou para casa, mas o pai, por conta das noites em
claro, dormiu ao volante na noite seguinte, bateu o carro e faleceu. Era
dezembro de 1968, pouco depois do AI-5. A família ficou sem o pai nem
o irmão primogênito.
A guerrilha no campoComo se sabe, sem entidades em funcionamento e com a
guerrilha urbana prestes a ser desmantelada, os estudantes — tanto
os secundaristas quanto os universitários — se fizeram representar na
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heroica Guerrilha do Araguaia (1972-1975). Organizada pelo PCdoB, o
movimento levou a resistência armada para o meio rural, apavorando o
regime. Além de estudantes, havia também professores e profissionais
liberais de áreas como medicina e geologia. A missão: conquistar o apoio
dos camponeses da região para resistir à ditadura e fazer a revolução
socialista a partir do campo.
Os guerrilheiros começaram a chegar à região no final dos anos
60, instalando-se numa área de 7 mil quilômetros quadrados, às margens
do Rio Araguaia-Tocantins, entre os limites dos estados de Goiás, Maranhão
e Pará. As operações da guerrilha começaram em 1972 e surpreenderam os
militares. As Forças Armadas do Brasil patrocinaram sua maior mobilização
desde a 2ª Guerra Mundial. Médici e o governo não se manifestavam
publicamente sobre as ações no Araguaia, editaram decretos sigilosos
e proibiram a mídia de tratar do tema. A repressão à guerrilha foi um
massacre fora da lei. O Exército partiu para uma política de extermínio e
amedrontamento pela selva. Os combates se prolongaram até março de
1974, e a guerrilha foi dada como encerrada no começo de 1975.
Na já citada entrevista ao Estadão em 21 de junho de 2009, o
major Curió admitiu que a ordem era exterminar todos os guerrilheiros,
poupando-se apenas os adolescentes. “Dos 67 integrantes do movimento
de resistência mortos durante o conflito com militares, 41 foram presos,
amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas”, registra o
texto do jornal. Além disso, aproximadamente metade dos desaparecidos
políticos do Brasil estava em combate no Araguaia quando sumiu.
Desses guerrilheiros desaparecidos durante a guerrilha, apenas
dois tiveram os restos mortais encontrados — Maria Lúcia Petit da Silva
e Bergson Gurjão —, ambos com passagem pelo movimento estudantil.
Nascida em Agudos (SP), Maria Lúcia se tornou líder secundarista, em
São Paulo, no ano de 1968, quando estudava no Instituto de Educação
Ilustração de Maria Lúcia Petit (Acervo Banco de Ima-gens PCdoB)
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Fernão Dias. Atuou brevemente como professora primária, até partir
para o interior do Brasil e participar da Guerrilha da Araguaia, ao lado
de dois irmãos. Morta em aos 22 anos, junho de 1972, teve sua ossada
encontrada em 1991 e identificada cinco anos depois. Seus restos
mortais foram enterrados em 16 de junho de 1996, em Bauru.
Já Bérgson Gurjão nasceu em 1947, em Fortaleza. Era estudante
de Química e vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE)
na Universidade Federal do Ceará (UFC) quando foi preso, em 1968,
no 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Expulso da universidade
após o Decreto-Lei 477, partiu para o Araguaia, onde foi morto em
maio de 1972. Seus restos mortais foram encontrados em 1996, mas
identificados apenas em 2009. O sepultamento de Bérgson, em 6 de
outubro de 2009, teve direito a palavras-de-ordem entoadas por uma
multidão de jovens: “Tarda! Tarda! Tarda, mas não falha! Aqui está
presente a juventude do Araguaia!”.
Além de Maria Lúcia e Bérgson, a luta contra o regime militar
no campo tirou a vida de várias ex-lideranças do movimento estudantil,
inclusive combativas mulheres, como Helenira Rezende (que estudava
Letras e chegou a ser vice-presidente da UNE em 1968) e Dinaelza
Soares Santana Coqueiro (ex-diretora do DCE da PUC de Salvador).
Segundo o site DHnet — Direitos Humanos na Internet, “as mulheres
foram incorporadas às organizações de esquerda, tanto no campo
Secundaristas vão à luta
como nas cidades. Mas essas organizações relutaram em absorver a
mulher militante de maneira mais adequada ao papel que ela já vinha
desempenhando nas diversas áreas da vida social e econômica, talvez
por considerarem que as ações guerrilheiras só diziam respeito aos
homens”.
Com base em dados do Comitê Brasileiro de Anistia, o site
tenta estimar o número de mulheres que se integraram às organizações
armadas. “De um universo de 340 nomes, 40 são de mulheres, ou
seja, 11,7%. Esse índice coincide com o apresentado no livro Perfil dos Atingidos, que calcula 12% de mulheres. Os poucos estudos de autores
de esquerda não se referem à participação das mulheres. Jacob Gorender,
que buscou traçar a trajetória das esquerdas, menciona apenas quatro
mulheres no livro Combate nas Trevas.”A guerrilha também contou com o engajamento de jovens
que tinham passado, recentemente, pelo movimento secundarista,
como Rodolfo Troiano, Uirassu de Assis Batista e João Qualatroni. Sem
condições de atuar nas lutas estudantis, todos eles não desistiram
do combate à ditadura e trocaram a escola pelo campo. Morreram no
Araguaia e, até hoje, não tiveram seus corpos encontrados. A trajetória
de cada um deles no Araguaia é contada com detalhes no livro Direito à Verdade e à Memória (veja box como o perfil de guerrilheiros mortos ou desaparecidos).
Afora aqueles que tombaram em luta na região do Araguaia,
o governo Médici tratou de prender, torturar e matar outros jovens
estudantes. A família de Marco Antônio Dias Batista sabe do que se
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Capítulo 7 (1972-1975) Os estudantes contabilizam seus mortos
trata. Nascido em Sorocaba (SP), ele foi líder estudantil do Colégio
Estadual de Goiânia e dirigente da UBES, tendo participado do Conselho
dos Estudantes Secundaristas, em Salvador em 1968. Desapareceu aos
15 anos, em 1970, militando na Frente Revolucionária Estudantil (FRE)
e na VAR-Palmares. Na última vez em que foi visto, estava de passagem
por Porto Nacional, no interior de Goiás.
A luta da mãe de Marco Antônio para buscar informações
sobre o filho durou mais de três décadas — e acabou melancolicamente,
como lembra uma reportagem do jornal O Popular de 16 de fevereiro
de 2006. “Foram quase 36 anos em busca de notícias sobre o filho
desaparecido. A mãe queria pelo menos a oportunidade de enterrá-lo.
Ontem, a procura terminou para a funcionária pública aposentada Maria
Campos Batista, de 78 anos. Ela não encontrou notícias concretas do
filho, o estudante Marcos Antônio Dias Batista, que era militante político
e desapareceu aos 15 anos, em maio de 1970. Maria Batista morreu
em um acidente, na BR-060, entre Brasília e Goiânia, próximo ao trecho
chamado Sete Curvas”.
De acordo com o jornal, “a aposentada voltava para Goiânia,
após se reunir com o vice-presidente e ministro da Defesa, José
Alencar, em Brasília. Ela vinha esperançosa, pois o vice-presidente
havia se comprometido a aprofundar as investigações a respeito
do desaparecimento do filho. ‘Não descanso enquanto não der um
sepultamento digno para o meu filho’, disse, depois do encontro. No
entanto, ela morreu sem ter a chance de sepultá-lo”. A José Alencar,
ela havia contado que “deixou a porta da casa aberta durante anos
a fio, na expectativa de que o filho voltasse um dia. A mãe imaginava
que talvez ele vivesse na clandestinidade. Maria Batista discorreu ao
vice-presidente que a esperança de ver Marcos Antônio vivo ia sendo
substituída, aos poucos, pelo desejo de saber o que havia acontecido
a ele. Falou da sua vontade de, pelo menos, sepultar os restos mortais
com dignidade”.
Parentes de Joel Vasconcelos Santos também passaram pela
amargura de um desaparecimento político. Baiano de nascimento,
Joel foi para o Rio com a família em 1966. Na nova cidade, cursou
contabilidade na Escola Técnica de Comércio e se tornou líder estudantil,
sendo presidente da AMES (1970) e diretor da UBES (1970-71). Foi
preso e desapareceu quando integrava as fileiras da União da Juventude
Patriótica, ligada ao PCdoB. Segundo o livro Direito à Memória e à Verdade, “Joel Vasconcelos e Antônio Carlos de Oliveira da Silva foram presos nas
imediações do Morro do Borel, na esquina das ruas São Miguel e Marx
Fleuiss, no Rio de Janeiro, em 15/03/1971, por uma ronda policial que
desconfiou serem ambos traficantes de drogas. Por mais de três meses
Joel e “Makandal”, como era conhecido Antônio Carlos, ficaram detidos
e incomunicáveis”.
Ao saber do sumiço do filho, a mãe iniciou uma estoica
busca por seu paradeiro. “Aos apelos de Elza Joana, os agentes da PE
e os oficiais do Ministério do Exército com os quais conseguiu falar,
responderam com evasivas. Primeiro confirmaram a prisão, mais tarde
negaram e, pouco depois, informaram que ele já havia sido liberado. Mas
os dois continuavam detidos. Elza Joana apelou a Dom Eugênio Salles,
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Dom Ivo Lorscheiter, aos jornalistas Sebastião Nery e Evaldo Diniz, ao
presidente da OAB, ao senador Danton Jobim, ao deputado Chico Pinto
e ao professor Cândido Mendes. Após enviar carta ao presidente da
República, Garrastazu Médici, recebeu em sua casa uma visita de agentes
do Dops, que a levaram até o gabinete do general Sizeno Sarmento.
O comandante do 1º Exército prometeu esclarecer completamente o
episódio, mas nada foi informado”.
Direito à Memória e à Verdade traz também revelações sobre
os últimos momentos do líder secundarista. “Makandal conta que ele e
Joel conversavam numa esquina, quando passou o carro da polícia. Joel
assustou-se e comentou que havia documentos políticos nos pacotes
que carregava. Os policiais armados cercaram os dois e revistaram os
pacotes. Foram algemados e levados ao 6° Batalhão da PM e, em seguida,
ao quartel da PM na rua Evaristo da Veiga. De lá, foram encaminhados à
Polícia do Exército, onde Joel permaneceu até o seu desaparecimento, sob
constantes interrogatórios durante os quatro meses em que Makandal
esteve preso. O preso político Luiz Artur Toríbio, em seu depoimento na
Auditoria Militar, denunciou que um dos policiais do DOI-Codi/RJ afirmou
‘que se não confessasse teria o mesmo fim que ‘Joel Moreno’, que foi
morto por policiais do DOI do RJ”.
Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, no livro Desaparecidos Políticos, esclarece que Makandal e Joel foram espancados tão logo foram presos
— e não pararam de sofrer agressões no carro policial até o Exército. Os
autores ouvem o depoimento de Makandal, citado também em Direito à Memória e à Verdade: “Lá, na PE, começou tudo muito tranquilo ao
ponto de a gente imaginar que não iríamos ser torturados. Caiu a noite
e começamos tudo novamente. (...) Era pau-de-arara, choque e tudo o
mais. Um mês nesse sofrimento e nós já estávamos com queimaduras
por todo o corpo em virtude dos choques elétricos. Levaram então o
Joel para a ‘esticadeira’, com uma pedra amarrada nos testículos. Fiquei
apavorado e me trancafiaram numa ‘geladeira’. Depois me pegaram para
assistir às torturas de Joel e me fizeram um montão de perguntas”.
O início da reaçãoOutro caso dramáticos foi o do estudante paulista de Geologia
Alexandre Vannucchi Leme, preso dentro da USP e morto sob tortura
nas dependências do DOI-Codi em 17 de março de 1973, aos 22 anos.
Segundo o regime, Alexandre teria morrido num “atropelamento”. Tanto
a morte quanto a versão fabricada do regime causaram indignação.
Conforme o livro o livro Direito à Verdade e à Memória, “o
fraudulento comunicado oficial dos órgãos de segurança sobre a morte
de Alexandre o acusava de participação em ações armadas realizadas
recentemente pela ALN, sendo que no dia e horário de uma delas o
estudante se encontrava ainda anestesiado, no pós-operatório de
uma cirurgia de apendicite, conforme a família pode comprovar com
documentação irrefutável”. Aos presos políticos, no entanto, as
autoridades contaram que o universitário se suicidara com uma lâmina
de barbear. Posteriormente, nove ex-presos relataram à Justiça Militar
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que Alexandre foi torturado, durante dois dias, por pelo menos 13
agentes do DOI-Codi.
As circunstâncias mal explicadas da morte estarreceram os
estudantes de Geologia da USP, que, em 23 de março, resolveram desafiar
os militares e promover uma missa de 7º dia, além de decretar luto e
paralisações simbólicas na universidade. A celebração da missa, no dia
30, levou cerca de 5 mil pessoas à catedral da Sé. Foi a maior e mais
comovente manifestação de repúdio à ditadura desde a implantação do
AI-5. No ano seguinte, foi criado na USP o Comitê de Defesa dos Presos
Políticos.
Quando ocorreram as eleições de 15 de novembro de1974, o
regime se sentia vitorioso de antemão. Não havia “más notícias” na mídia
— os meios de comunicação estavam sob censura, e a propaganda oficial
se aliava à boa fase esportiva do Brasil. Vivia-se o milagre econômico,
em meio ao qual o país cresceu, durante cinco anos, a uma média
superior a 11% anual. Grandes obras se alastravam Brasil afora. Nas
urnas, porém, o MDB elegeu 16 senadores, e a Arena, apenas seis. De
quebra, um terço da Câmara Federal ficou com a oposição.
A Arena perdeu ainda a maioria nas assembleias legislativas de
São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco
e Ceará. “O governo acata, em sua plenitude, o resultado da votação de
sexta-feira passada, porem não admitirá que a livre manifestação da
vontade popular seja desvirtuada para fins de contestação ao regime”,
registrava a Folha de S.Paulo. Faltou combinar com o povo. Novas mortes
e outros descalabros da ditadura levariam os brasileiros de volta às
ruas durantes todos os anos do governo de Ernesto Geisel (1974-
1979), o sucessor de Médici na Presidência. O governo iniciava sua rota
de declínio, e o movimento estudantil lentamente voltaria à grande cena
política.
Do movimento secundarista ao Araguaia
– Rodolfo de Carvalho Troiano (1950-1974)Quando militava no movimento secundarista de Rubim, Rodolfo
Troiano foi preso e depois transferido para Juiz de Fora (MG). O motivo: ter pixado o Morro do Cristo com palavras-de-ordem socialistas. Foi dirigente da Ujes (União Juiz-Forense de Estudantes Secundaristas) e perseguido pela repressão, indo viver próximo ao Araguaia. Na guerrilha, tornou-se um dos principais combatentes de um destacamento. Foi preso e executado.
– Uirassu Assis Batista (1952-1974)Ao lado de Custódio Saraiva Neto, era o mais jovem militante
do PCdoB a ser deslocado para o Araguaia. Começou a militar em 1968, quando cursava o primeiro ano científico em Alagoinhas (BA). Uma vez em Salvador, militou no Colégio Central e foi dirigente da Abes (Associação Baiana dos Estudantes Secundaristas). Já tinha sido aprovado no vestibular na Universidade Federal da Bahia quando, em 1971, passou à militância clandestina, para fugir da Polícia Federal. No Araguaia, foi um dos combatentes mais carismáticas da guerrilha. Acometido pela leishmaniose, foi preso e morto pelo Exército.
– João Gualberto Calatrone (1951–1973)Líder secundarista no Espírito Santo, João Gualberto Calatrone (ou
Qualatroni, segundo fontes alternativas) era estudante do curso técnico de Contabilidade e se formou nos anos 60. Foi morar no Araguaia em 1970, adaptando-se de imediato à vida rural e sobressaindo como tropeiro e mateiro. Foi morto aos 22 anos, quando se destacava pela capacidade de resolver problemas imprevistos.
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“Distensão” — eis a palavra-promessa que marcou a chegada à
Presidência de Ernesto Geisel em 15 de março de 1974. Geisel sucedia
a Emílio Garrastazu Médici, o mais brutal e desumano dos generais-
presidentes da ditadura militar (1964-1985). A Arena, partido do
governo, encolhia nas urnas e na preferência popular, numa clara
demonstração de que o povo, ainda que amordaçado, tentava reagir. O
regime militar dava os primeiros sinais de esgotamento.
“Os editoriais e principais colunas políticas dos grandes
jornais do Rio e São Paulo transmitiram uma expectativa otimista em
relação à posse do novo governo”, diz Marly Motta, em artigo para o
site do CPDoc-FGV, “Durante o mandato do presidente Emílio Médici, as
restrições às liberdades públicas e as denúncias sobre violação dos
direitos humanos haviam atingido níveis inéditos em relação a seus
antecessores, fazendo com que o projeto liberalizante apresentado por
Geisel abrisse novas oportunidades para o diálogo com a oposição, a
Igreja e setores intelectuais.” As poucas manifestações reivindicatórias
mais organizadas se restringiam ao Movimento do Custo de Vida, de
formado por donas de casa e acolhido por igrejas da periferia de São
Paulo.
Em 29 de agosto de 1974, num discurso que entrou para
A distensão “lenta, gradual e segura” do regime foi o bastante para o movimento estudantil voltar às ruas e se reorganizar
a história, o novo presidente afirmou que a tal distensão havia de
ser “lenta, gradual e segura”. Geisel, certamente, não contava com o
excepcional crescimento parlamentar do MDB nas eleições de novembro
daquele ano. Ao fim da apuração, o partido da oposição ao regime passou
de sete para 20 senadores e de 87 para 165 deputados federais.
A política de distensão, segundo o deputado federal e ex-
presidente da UNE Aldo Rebelo, “funcionou como certo estímulo”. Em
depoimento ao MME, Aldo diz que, “para uma parte da juventude que
tinha mais receio de participar da política, receio do pai e da mãe,
essa política ‘distensionou’ a vida política dentro da universidade. Eu
lembro que a gente não escutava o Geraldo Vandré e o Chico Buarque,
publicamente. Em 1975, fechávamos o CA e ficávamos ouvindo lá
dentro. Não queríamos que fosse público o fato de ouvirmos cantores
e compositores contestadores do sistema. Havia esse risco. E lembro
que, logo depois, passamos a fazer isso publicamente. Recebemos e
estimulamos festivais de música dentro da universidade”.
Mais e mais mortes O governo contava menos ainda com a estrondosa repercussão
que teve a morte do jornalista Vladimir Herzog, quase um ano depois,
nos porões do DOI-Codi. Militante do PCB — cujos principais líderes
vinham sofrendo uma ofensiva radical da ditadura —, Herzog era diretor-
responsável do Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo.
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Capítulo 8 (1975-1979) A caminho da reconstrução
Foi barbaramente assassinado poucos dias depois de ser preso, mas o
boletim assinado pelo comandante do II Exército, general Ednardo Dávila
Melo, sustentava que ele se suicidara por enforcamento.
“Segundo os jornalistas André Gustavo Stumpf e Merval
Pereira Filho, Geisel designou imediatamente o coronel Gustavo de
Morais Rego, seu assessor, para apurar a verdade e cuidar para que
os outros jornalistas convocados pelo DOI-Codi só se apresentassem
com garantias”, registra Marly Motta. A missa de sétimo dia de para
Herzog — na verdade, um ato ecumênico celebrado em 31 de outubro
de1975, na Catedral da Sé, pelo cardeal-arcebispo de São Paulo, dom
Paulo Evaristo Arns — reuniu mais de 10 mil pessoas e foi um marco da
retomada dos protestos contra o regime.
Ainda naquele ano, policiais da Rota 66, em São Paulo, matam
os estudantes Francisco Nogueira de Noronha, João Augusto Diniz e
Carlos Ignácio Rodrigues de Medeiros. A malfada tentativa de forjar a
cena do crime se transforma em outro escândalo contra o governo. O
regime começou a sofrer nova crise de credibilidade em 19 de janeiro de
1976, quando órgãos da repressão assassinaram o operário metalúrgico
José Manuel Fiel Filho, em circunstâncias tão misteriosas quanto a morte
de Herzog.
A imagem dos militares definhava, a tal ponto que, sete meses
depois, Geisel decretou luto de três dias pela morte do ex-presidente
Juscelino Kubitschek — um dos políticos civis que tiveram seus direitos
políticos cassados. No dia do enterro, cem mil pessoas foram às ruas
de Brasília e cantaram Hino Nacional. A mídia é outra instituição que,
como a igreja, se passa a se rebelar com mais contundência, ainda
mais depois que uma bomba explodiu, em agosto de 1976, na sede
da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de Janeiro. Já os
universitários conseguem, a duras penas, promover o 1º Encontro
Nacional de Estudantes (ENE), marco da retomada do movimento
estudantil após anos sob vigia.
Em março de 1977, pipocam pequenas manifestações
estudantis, especialmente entre universitários, por mais recursos para
o ensino superior e pela redução de mensalidades. Os protestos dão
força para a formação da Comissão Pró-UNE, com reúne 4 mil pessoas
e promove nova passeata em maio. Os estudantes são apoiados por
Ato pela Anis-tia, São Paulo maio de 1977 (Arquivo do Estado de São Paulo/ Ultima Hora)
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diversas entidades — como a OAB, setores da Igreja e o Comitê Brasileiro
pela Anistia. Em meio a isso, Geisel fechou o Congresso e implantou
reformas constitucionais — o “Pacote de Abril”, que deliberou eleições
indiretas para um terço do Senado e para os governos estaduais.
O governo estava convicto de que a sociedade começava a se opor
sensivelmente ao regime. Uma prova disso é que, também em 1977, a
ABI lançou um manifesto contra a censura, assinado por mais de 2.500
jornalistas.
O governo volta a derrapar, porém, em 22 de setembro
de1977, ao dissolver um ato público em frente à Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). As autoridades haviam proibido a
realização do 3º Encontro Nacional de Estudantes, programado para
um campus da instituição, mas a ordem não foi em seguida. A polícia
reagiu com truculência, invadiu as dependências da PUC e prendeu
todos os manifestantes. De acordo com a edição do dia seguinte da
Folha de S.Paulo, “cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito
moral foram empregados pelos policiais. Os estudantes correram para
os três prédios da PUC, de onde foram desalojados pela Policia, que
posteriormente liberou professores e funcionários”.
A operação, comandada pelo coronel ultraconservador Erasmo
Dias, deteve cerca de 3 mil membros da comunidade acadêmica. De
qualquer maneira, os estudantes já estavam novamente nas ruas, e
A UNE ressurge, a UBES também
o clamor pela reconstrução das entidades crescia. “Nos últimos doze
meses, a Polícia de São Paulo reprimiu dez manifestações estudantis,
das quais sete no segundo semestre deste ano”, escreveu a Folha.No ano de 1978, ocorrem simultaneamente manifestações
pela anistia e contra a carestia, além das greves operárias. A primeira
paralisação em quase dez anos é feita por trabalhadores da Saab-Scania
de São Bernardo do Campo (SP), sob a liderança do presidente do Sindicato
dos Metalúrgicos local, Luiz Inácio da Silva, o Lula. O governo sente o
peso dos protestos e revoga dois entulhos autoritários — o AI-5 e do
Decreto-Lei nº 477. Geisel passa também o julgamento de greves para
a Justiça Trabalhista. No mesmo ano de 1978, numa decisão inédita,
a União é responsabilizada pela morte de Vladimir Herzog. De certo
modo, a falta de passeatas estudantis faz o movimento ser ligeiramente
eclipsado pelo sindicalismo.
Mas, segundo Aldo Rebelo, “essa geração de 1976, 1977,
1978, deu uma contribuição muito importante, porque fez a luta pela
democracia de forma ampla, articulada com os movimentos políticos
e sociais existentes, numa concepção correta de ter amplitude, de
construir uma frente que incorporasse forças sociais amplas, de dialogar
com setores e bases de sustentação do regime militar”.
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A distensão decola de vez em 1979. Pouco depois de tomar
posse na Presidência, o último general-presidente, João Baptista
Figueiredo, se vê às voltas com uma greve de 50 sindicatos e entidades
de base, que mobiliza mais de 130 mil pessoas no estádio de Vila
Euclides, em São Bernardo. O ano é pródigo em medidas pró-abertura.
Além do ascenso do sindicalismo, o movimento estudantil universitário
consegue realizar, enfim, mais um Congresso da UNE, o 31º, em Salvador.
O último presidente da entidade, Honestino Guimarães, é homenageado,
e os delegados elegem o baiano Rui César Costa Silva para liderar a
primeira diretoria da UNE em quase uma década. Na primeira eleição
direta para a direção, os cerca de 10 mil delegados puderam votar.
Os secundaristas — que eventualmente participavam das
manifestações estudantis — comparecem ao congresso da entidade
Congresso de Reconstrução
da UNE, Salvador 1979 (Acervo UNE)
irmã. É um passo para fortalecer um movimento similar no sentido de
reconstruir a UBES, que atravessara a década de 1970 sem estrutura,
direção e atividades. Os secundaristas, durante o encontro, ficam
divididos entre duas posições: 1) reorganizar a entidade nacional e
maior dos secundaristas; ou 2) se incorporar à UNE, fazendo dela a
entidade única dos estudantes brasileiros.
O Manifesto da 1ª Reunião dos Secundaristas, lido durante o
Congresso, pede à UNE que não vete a participação de secundaristas
em suas atividades. Uma das principais decisões do 31º Congresso,
no entanto, foi aceitar a participação de pós-graduandos, mas não
de secundaristas. O livro A Volta da UNE registra que a proposta
deliberada pelos delegados foi a da antiga tendência Caminhando, de
São Paulo. Segundo Alon Feuerwerker, um dos principais integrantes
do grupo, “a organização dos secundaristas deve se dar a partir da
base dos estudantes secundaristas. A UNE deva dar apoio à luta dos
secundaristas, mas o maior apoio, nesse sentido, é o de permitir que se
organizem de forma independente”.
Os secundaristas começam, então, a planejar a reconstrução
de sua entidade, mas vão em massa a diversas manifestações
promovidas pela UNE. O segundo semestre de 1979, ainda assim, é
marcado pela Lei de Anistia, de 28 de agosto, que beneficia 4.650
brasileiros oprimidos pelo regime com prisões, cassações, banimentos,
exílios e aposentadorias forçadas. Com a anistia, voltam para o país os
ex-governadores Leonel Brizola e Miguel Arraes, o ex-deputado Márcio
Moreira Aves e os líderes comunistas Luiz Carlos Prestes (PCB) e João
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Capítulo 8 (1975-1979) A caminho da reconstrução
Amazonas (PCdoB).
Os estudantes lutam para retomar a sede na Praia do Flamengo.
Uma ocupação simbólica do terreno é feita em outubro de 1979. Meses
depois, conforme contam as historiadoras Praia Angélica Müller e Tatiana
Rezende no artigo Praia do Flamengo, 132, “uma verdadeira batalha foi
travada entre os estudantes e a polícia, a justiça e o poder público.
Isso porque com o intuito de impedir que os estudantes retomassem a
posse do prédio, que desde 1966 era ocupada pelo Centro de Artes da
UniRio, a polícia ocupou intempestivamente o local com a justificativa de
que o edifício havia sido condenado pela Defesa Civil e, por isso, seria
imediatamente demolido”.
O artigo relata como foi a demolição da sede histórica das
entidades estudantis, determinada, no fim das contas, pelo próprio
Figueiredo. “Com a iminência da derrubada do local que fora sua sede
por mais de 30 anos, os estudantes entraram com uma ação para
impedir tal acontecimento e conseguiram com que o juiz da 4ª Vara
Federal, Carlos Aarão Reis impetrasse uma liminar interrompendo a
demolição. Como a ordem judicial não foi cumprida e as obras do prédio
continuaram, o juiz foi pessoalmente à Praia do Flamengo para paralisar
a demolição. Contudo, sua liminar foi cassada pelo Superior Tribunal de
Recursos da União. Apesar dos esforços dos estudantes, de políticos e
artistas simpáticos à sua causa e da própria Justiça personalizada no
juiz Aarão Reis, o prédio foi demolido em fins de junho de 1980”.
Nem a UNE nem a UBES perderam o pique. Em setembro,
uma greve de três dias paralisa a imensa maioria das universidades e
mobiliza cerca de 1 milhão de estudantes. O movimento secundarista,
por sua vez, consegue finalmente um mínimo de articulação nacional
para reconstruir sua entidade. O Congresso da UBES foi convocado para
1981, 13 anos depois do encontro anterior (1968). A União Brasileira
dos Estudantes Secundaristas estava prestes a renascer.
Demolição da sede na Praia do Flamengo.
Rio de Janeiro, 1980 (Acervo UNE -
Foto: Márcio Goldzweig)
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Capítulo 8 (1975-1979) A caminho da reconstrução
Leia o Manifesto da 1ª Reunião dos Secundaristas
Nós secundaristas, tivemos nossas entidades de base, os grêmios
destruídos em 1968, pela repressão que se abateu sobre os trabalhadores,
estudantes e demais oprimidos que se colocavam contra a ditadura militar
instaurada em 1964 com o golpe de 31 de março. A morte do secundarista
Edson Luís em 1968, a destruição da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas, UBES, a prisão e o exílio de seus membros, é o saldo desta
repressão que abate nós secundaristas.
Hoje o movimento secundarista é ainda embrionário, fraco, não
conseguindo dar respostas imediatas aos problemas que nos atingem. Hoje
nos encontramos ainda sem nossas entidades livres e representativas,
substituídas pelos centros-cívicos; nos encontramos manipulados e
subjugados por um sistema de ensino alienante, massificantes e autoritário;
nos encontramos subjugados e reprimidos pela estrutura familiar que
nos considera irresponsáveis eternamente tentam nos tutelar, tentando
abafar nossa consciência crítica e nossa ação que procura contribuir com a
transformação da sociedade. Portanto, o movimento secundarista ainda está
generalizado, não existe o mínimo da unificação nas lutas de resistência
ao autoritarismo e as péssimas condições de ensino que despontam e
parsamente em um local ou outro.
Neste momento, quando toda a sociedade procura se organizar
em movimentos contra a opressão e a miséria social, que se generalizam por
todo o país, nós, como membros desta sociedade, sofremos as consequências
de suas contradições. Por isso lutamos, hoje, pela liberdade de organização
e manifestação, pela reconstrução de nossas entidades de base, livres e
representativa, por melhores condições de ensino e contra o autoritarismo.
Por isso mesmo não vamos participar em um departamento secundarista na
UNE ou qualquer outra forma, pois esta participação não será representativa
do conjunto dos secundaristas, a nível nacional. O que é o prioritário para
nós são as lutas de resistências, é a ampliação, a organização e o avanço do
movimento secundarista.
Apoiamos e entendemos ser da maior importância a reconstrução
da UNE não só para os estudantes como também para toda a sociedade.
Entendemos que a UNE é uma das maiores conquistas dos estudantes e
da sociedade brasileira no campo da liberdade de organização. Esperamos
também todo apoio da UNE ao movimento secundarista e às lutas, esperamos
que os companheiros da UNE não vetem a participação secundaristas, pois
se hoje não nos encontramos organizados, ao futuro podemos participar,
ficando claro que daremos prioridade à reconstrução da UBES.
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A ditadura já não era tão dura assim em 1981. Praticamente
não havia mais presos políticos, o povo tomava aos poucos as ruas,
novos partidos se formavam. A reconstrução da UNE, dois anos antes,
era a prova de que os estudantes estavam livres para reorganizar suas
entidades. O sindicalismo e
o movimento comunitário
também aproveitou o clima
de mudanças e se rearticulou,
multiplicando as entidades
de bases, fundando uniões,
federações, centrais e
confederações.
Se o general-
presidente Emílio Garrastazu
Médici dizia que, em seu
governo (1969-1974), o
Brasil ia bem e o povo ia
mal, a situação agora estava
invertida. Ao contrário da
Depois de três anos de organização, a UBES volta a realizar seu congresso nacional, e os secundaristas dão mais um passo para a democratização do Brasil
sociedade civil — que ganhava vida e liberdade —, o regime militar
caminhava para a morte. A economia, por exemplo, estremecia. Ano a
ano, a inflação acumulada atingia índices elevadíssimos — 77,21% em
1979, 110,24% em 1980 e 95,18% em 1981.
Terroristas de direita ainda promoviam ataques, a fim de
desestabilizar a ordem e garantir uma sobrevida aos milicos no poder.
Mas a explosão de duas bombas, em abril de 1981, no Rio de Janeiro
desgastou ainda mais o regime. O atentado ocorreu no Riocentro, na
Barra da Tijuca, onde 20 mil pessoas se reuniam, a convite do Cebrade
(Centro Brasil Democrático), para comemorar o Dia do Trabalhador. Uma
das bombas explodiu acidentalmente dentro de um carro, ferindo o
motorista (capitão Wilson Luís Chaves Machado) e o passageiro
(sargento Guilherme Pereira do Rosário), que respondiam ao Codi do 1º
Exército. Até as pedras das ruas da Tijuca desconfiaram que as vítimas
eram os próprios autores do atentado. A linha dura tentava dificultar a
democratização do país, mas foi o último atentado de peso.
Maior, porém, era o desejo de democracia e de liberdade. Foi em
meio a esse cenário de mudanças e rupturas que a UBES foi reconstruída.
Os secundaristas já faziam manifestações desde 1977, em várias
cidades, tentando dar uma numa nova configuração aos centros cívicos.
Organizados dentro das escolas ginasiais, os centros possibilitavam a
aglutinação de estudantes. Dali surgiu uma das reivindicações mais
urgentes — a luta pela imediata reabertura dos grêmios livres, sem
a tutela do regime. Apesar ainda estarem proibidos pelo regime, um e
outro modelo de grêmio começaram a surgir nas escolas ginasiais.
Sergio Ama-deu, primeiro
presidente da UBES pós reconstrução
1981 (Acervo UBES)
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De volta aos encontros nacionais Na virada dos anos 70 para os 80, como em qualquer outro
período de sua história, os secundaristas sofriam com a escassez de
recursos para promover qualquer tipo de atividade. Uma das saídas
mais utilizadas foi a realização de eventos culturais, como os festivais
de músicas. Era da venda de ingresso para esses shows que muitos
dos novos grêmios conseguiam se sustentar e também impulsionar o
movimento estudantil, que estava se estruturando. Muitas entidades
estaduais (UPES) e municipais (UMES) voltavam a funcionar, e outras
que não fecharam as portas durante os anos mais pesados da ditadura
agora ganhavam mais espaço.
Em maio de 1979, durante o Congresso da UNE, em Salvador,
cerca de 200 secundaristas se reúnem e convocam 1º ENES (Encontro
Nacional dos Estudantes Secundaristas) para 2 a 4 de novembro
daquele ano. O encontro ocorre em Belo Horizonte (MG) e reúne diversas
forças políticas (PCdoB, PCB, Libelu, UC e MR8). Os estudantes presentes
firmam posição contra as taxas das Associações de Pais e Mestres
(APM), pedem que os investimentos em Educação atinjam 12% do PIB,
decidem ir à disputa dos centros cívicos e convocam para 28 de março
de 1980 o “Dia Nacional de Lutas dos Secundaristas”. Mas a deliberação
de maior impacto a longo prazo foi a formação de uma Comissão Pró-
UBES, que reunia a Civub (BA), a UMES de Goiânia (GO), a UMES de São
Paulo, a UPES-SP e a UPES-PR.
Se o 2º ENES, no Rio, em agosto de 1980, é prejudicado pela
desorganização, o 3º Encontro Nacional ousa lançar a campanha “A
UBES Vem aí”. Forças ligadas ao PCdoB e ao MR8 se unem durante o
encontro, cujo principal documento é o “Manifesto pela Reconstrução”.
O movimento foi ainda beneficiado com a aprovação da Emenda
Constitucional que tornou diretas, novamente, as eleições para
governadores dos estados. Com isso, os numerosos partidos recém-
fundados convocaram manifestações de rua.
As entidades estudantis participavam de protestos como o
de 25 de janeiro de 1981, na Praça da Sé, quando se comemorava
o aniversário de São Paulo. Os estudantes se somavam às vozes
que pediam as eleições diretas que faltavam — para presidente da
República. “Acreditávamos numa revolução democrática. Acreditávamos
que a ditadura seria derrubada em um movimento popular e massivo”,
conta Sérgio Amadeu, um dos principais líderes estudantis na época.
Preparando o congresso A necessidade de reconstrução da UBES já estava clara em
toda a rede do movimento estudantil brasileiro. A data e o local do
histórico 21º Congresso já estavam definidos — de 31 outubro a 2 de
novembro de 1981, em Curitiba (PR). Apolinário Rebelo, ex-presidente da
entidade (1983-84), recorda-se que a Comissão Pró-UBES do congresso
teve a ideia de divulgar a iniciativa na Câmara Federal. “Nós tivemos em
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Brasília, onde foi lido um manifesto no parlamento. Se não me engano,
ou foi pelo Airton Soares ou pelo Audálio Dantas, pelas lideranças
também do PMDB. E, dali, a gente telefonava, fazia boletim informativo,
mobilizávamos. Assim fomos construindo o congresso”.
Quando a comissão chegou a Curitiba, deu-se conta de que
os secundaristas não tinham infraestrutura para organizar um evento
de tamanha dimensão. O que fazer? A primeira opção foi pedir ajuda ao
governador paranaense, Nei Braga, um militar que havia sido ministro
da Educação do governo Geisel e chegara indiretamente ao governo do
estado em 1979. “Tentamos uma audiência com o governador, e um
assessor graduado dele apontou e disse: ‘Oh, aqui não tem nenhum
viaduto para vocês se esconderem debaixo, mas por mim vocês vão
fazer ali’. Aí nós ficamos num desespero”, lembra Apolinário.
Dias antes, o mesmo governo interceptou os ônibus de
estudantes que iam para o Congresso da UPES-PR, que aconteceria
em Paranavaí, infiltrando-se entre os delegados. Repleto de confusões,
o encontro acabou por ser adiado. O próprio presidente da entidade,
Renato Hino, passou a procurar uma sede em Curitiba para o Congresso
de Reconstrução da UBES. Em meio à busca, foi informado de havia um
clube com um ginásio abandonado na região do bairro Capanema. Como
o dono do local estava na França, o jeito foi enviar um telegrama. Mesmo
distante, o proprietário autorizou.
Houve muita comemoração pela conquista do espaço. Mas,
quando chegaram lá, os secundaristas descobriram que o ginásio estava
realmente abandonado, sem água nem luz. Era preciso limpar centímetros
de pó no chão, isolar uma parte do teto apedrejado, entre outras tarefas
de despesas. Feito tudo isso, faltava conseguir alojamento e refeição
para as caravanas de estudantes que estavam a caminho. O governo
pressionava comerciantes, donos e funcionários de escolas a boicotarem
os estudantes. Com muito jeito, no entanto, tudo ia se resolvendo,
embora. “O pessoal ficou alojado em algumas escolas particulares que a
gente conseguiu, alojado nas universidades, nos centros acadêmicos do
Paraná, na UPES e assim por diante”, recorda-se Apolinário, com muito
entusiasmo.
Enfim, o Congresso Centenas de secundaristas de todas as regiões do país iam
tomando conta da capital paranaense. Apesar dos poucos recursos
para a viagem, da falta de informação e da ameaça policial, eles não
tinham dúvida: estavam a caminho e participariam, sim, do Congresso de
Reconstrução da UBES. Uma vez em Curitiba, os estudantes passaram
por cima de todas as dificuldades. Por falta de um auditório para instalar
o congresso, a abertura foi realizada na Igreja Guadalajara, próxima à
Rodoviária de Curitiba. Os estudantes foram muito bem acolhidos, num
reflexo da proximidade do movimento estudantil com setores da Igreja
Católica, muito por conta da campanha de redemocratização do país.
Já no Ginásio Capanema — onde houve os demais debates e as
votações do congresso —, não havia estrutura de som, a não ser um
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Capítulo Especial 3 (1979-1981) A UBES renasce
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Capítulo Especial 3 (1979-1981) A UBES renasce
microfone acoplado a um pequeno rádio. Para que todos escutassem um
fala no microfone, os mais próximos ao palco repetiam até que todos
entendessem a mensagem. E assim foi feito o congresso. Ademais,
durante os três dias de programação, rondas policiais tentavam intimidar
os delegados, revistando os estudantes e fazendo demonstrações de
força. Obviamente, a UBES sabia que estava sendo vigiada. Para aliviar a
tensão, os estudantes organizavam rodas de músicas, declamações de
poesias e trocas de experiências.
A disputa por opiniões e pela diretoria da entidade foi acirrada,
envolvendo agressões verbais e físicas. “Na segunda-feira, na hora do
almoço, os estudantes ainda estavam apreciando as conclusões dos
grupos de estudos, quando surgiu nova divergência: partidários do
‘Alicerce e Luta’ defendiam o ponto de vista de que o congresso deveria
posicionar-se pelo congelamento das anuidades escolas particular,
enquanto os seguidores da ‘Reconstrução’ defendiam a aceitação de um
aumento de apenas 34%. Com a nova pancadaria que se seguiu, quatro
estudantes foram para o pronto-socorro”, informava o jornal A Folha de Londrina, de 4 de novembro.
Em seu depoimento ao MME, Apolinário também relatou episódios
da disputa. “Só para você ter uma ideia das bandeiras, as propostas do
PCdoB sobre a internacional era: apoio à autodeterminação dos povos,
à independência nacional e à luta dos povos no mundo pela liberdade
e pela democracia. A bandeira de um pessoal mais devagar era ‘Pela
paz mundial’, só isso. E a bandeira da Libelu e da Convergência era ‘Pela
luta revolucionária dos povos em armas pela liberdade’.” Divergências à
parte, o objetivo maior de todas as correntes políticas presentes era a
reconstrução da UBES. Assim havia muitas concessões e acordos para
que o consenso vingasse — e a tal palavra-de-ordem ficou assim: “Pela
paz mundial, pela autodeterminação dos povos, respeito à soberania
nacional e apoio à luta revolucionária dos povos em armas pela sua
liberdade”. Todos saíram contemplados.
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Capítulo Especial 3 (1979-1981) A UBES renasce
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A eleição
Na hora de eleger a nova diretoria, apareceram duas chapas.
Somaram-se, do lado da “Reconstrução”, integrantes de quase todas
as tendências presentes — Movimento Revolucionário 8 de Outubro
(MR8), Tribuna da Luta Operária, Voz da Unidade, PDT, PDS e estudantes
independentes. Numa disputa com pouco mais de 500 delegados
eleitores, essa chapa conseguiu 322 votos. A outra — chamada Alicerce
e Luta e liderada por estudantes da Convergência e Libelu — obteve
200 votos.
Com a vitória da chapa Reconstrução, a UBES passou a ser
presidida por Sérgio Amadeu da Silveira, estudante do Liceu de Artes
e Ofícios de São Paulo e integrante do MR8. Àquela altura, a principal
tarefa da UBES não era exatamente se definir à direita ou à esquerda do
espectro político. Fazia-se necessário, antes de tudo, colocar a UBES de
pé. Reerguida, a entidade voltava a ser porta-voz de todos os estudantes
secundaristas do Brasil, sua representação máxima, forte e plural.
“Acho válida a presença de todas as correntes ideológicas nos
congressos estudantis, por entender que, se existem estudantes de
todas as posições, todas elas devem estar representadas”, declarou
à Folha de Londrina o paranaense José Eugênio Maciel, eleito primeiro
vice-presidente da UBES no Congresso de Reconstrução. “Reconstruir a
UBES vai exigir muita unidade por parte dos estudantes”, agrega Renato
Hino, da UPES-PR. Conforme sua declaração ao jornal londrinense, “a
chapa eleita tem mais condições de conseguir essa unidade, pois somou
representantes de todas as tendências presentes ao congresso”.
De volta ao movimento estudantil, a UBES tinha o desafio de se
enraizar no seio dos 18 milhões de secundaristas existentes no Brasil
de 1981. De quebra, era preciso derrubar um regime hediondo, que já
completava 17 anos e não deixaria de atacar a entidade reconstruída.
“Logo após ter sido eleito presidente da UBES, fui preso, pela Polícia
Federal, num ato de solidariedade, no Paraná”, lembra Sérgio Amadeu.
“Então existia, sim, um regime que queria se manter e poderia cometer
excessos. Todos sabiam que não existia mais a tortura, mas ainda
existia algumas atitudes repressivas.” A diferença, desta vez, é que os
desmedidos poderes dos militares estavam com os dias contados.
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
Capítulo 9.(1981-1987)
A conquista da democracia
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Poucos períodos históricos apresentaram tantos contrastes
para o Brasil como a década de 1980. Para a economia, foram anos
desastrosos — a “década perdida” —, em que o PIB se estagnou, e
a inflação ficou fora de controle. A ditadura, por outro lado, agonizou
até uma morte inevitável, esperada havia 21 anos, desde o Golpe de
1964. O povo foi às ruas como nunca, soltou sua voz pelas “Diretas Já”,
comemorou a volta triunfal da democracia e viu surgir um sem-número
de entidades sociais, sindicais, estudantis, comunitárias, camponesas.
Foi a década da vontade popular, culminada na primeira eleição direta
para presidente em 29 anos.
Um dos marcos desse período remonta, curiosamente, à
década anterior, mais exatamente a 29 de novembro de 1979, quando
uma reforma política do regime militar autorizou o pluripartidarismo.
De cara, o núcleo duro da Arena, partido oficial da ditadura, virou PDS,
cujo discurso procurava aproximar suas lideranças dos trabalhadores.
A maioria dos políticos da velha oposição criou o PMDB, enquanto a
oposição moderada, de centro, criou o PP — esses dois partidos seriam
incorporados em 1982. Também surgiram os partidos mais à esquerda
ou de centro-esquerda, de orientações trabalhistas, reformistas ou
socialistas — caso do PTB, do PDT e do PT. O regime militar impediu, no
Com a legalização das entidades estudantis, a redemocratização e a Lei do GrêmioLivre, UBES recupera seu protagonismo.
entanto, a legalização das legendas comunistas.
Segundo o CPDoc-FGV, “o ano de 1981 seria particularmente
difícil para o governo Figueiredo, que teria várias vezes ameaçada sua
política de abertura. Os principais obstáculos foram a intensificação das
atividades terroristas e a perspectiva de um revés do situacionismo nas
eleições marcadas para novembro de 1982, em função da qual o governo
criaria um processo eleitoral destinado a reduzir substancialmente as
possibilidades de vitória da oposição”.
Enquanto isso, a UBES se reerguia sob a liderança de Sérgio
Amadeu da Silveira, eleito seu presidente no 21º Congresso dos
Estudantes Secundaristas, em Curitiba (PR). “A gestão do Serginho é
quase como se fosse a primeira missão do homem que chegou à lua.
Está na lua, crava a bandeira e anuncia que chegou”, compara ao MME um
dos principais líderes estudantis da época, o alagoano Apolinário Rebelo.
Segundo ele, a primeira diretoria à frente da UBES na “reconstrução”
teve sobretudo a tarefa de “dizer que a UBES estava de volta, de pé. A
ditadura não conseguiu destruir o movimento secundarista. Estamos de
volta e vamos retomar o movimento”.
Apolinário reconhece também uma certa empolgação desmedida
por parte dos novos dirigentes da UBES. “Fizemos um jornal. Eu lembro
que a ideia do Serginho era assim: ‘Vamos fazer um jornal com um
milhão de exemplares’. Era tudo assim, um milhão. Na época, parecia
ter 17 ou 18 milhões de estudantes secundaristas, logo, tínhamos
que fazer um milhão de jornais. Era tudo viagem, e a gente não tinha
onde cair morto. A gente não tinha sede, não tinha dinheiro, mas tinha
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
vontade. E nós deslocamos a UBES para São Paulo.”
Apolinário lembra que o ano de 1983 é decisivo para consolidar
a rearticulação do movimento secundarista. “Esta gestão de reconstrução
foi muito de aglutinar o que já existia. Era muito pouco o que existia, mas
a nossa ideia era aglutinar isso. Não era artificializar, criar um monte de
entidades com um monte de coisas para fazer número. A gente queria
ver o que é que existe de real de grêmio, de centro cívico, para a gente
manter o contato, manter correspondência e ir aproximando isso da
estrutura da UBES. Foi esse movimento que nós fizemos. E o Serginho
jogou um papel muito importante. Ele viajava pouco, porque ele tinha
dificuldades de viajar. Mas ele era um cara muito jeitoso, muito hábil
e ajudava a coordenar o movimento. Era um cara que era habilidoso,
unificava todo mundo, e a gente conseguiu fazer este trabalho.”
Conforme Sérgio Amadeu declarou ao site Estudantenet, “o
movimento secundarista tinha apoio de movimentos de esquerda,
sindicatos de professores, de associações que forneciam recursos. Tudo
foi feito com ajuda de outras organizações. Tinham também atividades
para arrecadar fundos, que funcionavam para deslocar um militante
para outros estados para realizar reuniões, seminários. Parlamentares
também ajudavam. O senador Teotônio Vilela, que apoiou o regime militar,
mudou, começou a defender, de verdade, o processo democratizante. Ele
dava dinheiro do próprio bolso para ajudar o movimento estudantil.
Foi um processo voluntário, com a energia de muitas pessoas que
acreditavam na democratização do país”.
Nova eleição
É justamente nos marcos da redemocratização e às vésperas
da campanha pelas “Diretas Já” que a UBES realiza, em novembro de
1983, seu 22º Congresso Nacional. Apolinário Rabelo, que ocupava o
cargo de diretor de Relações Internacionais, é eleito presidente. “Tivemos
um grande apoio da Divisão Regional de Ensino de Campinas. O Franco
Montoro, que era governador de São Paulo, nos deu uma grande ajuda
por meio do Paulo de Tarso, que era secretário de Educação. Inclusive,
ajuda material, que era importante, como: alimentação, colchões para
dormir e espaço para a gente alojar o pessoal na escola. Então era um
Apolinário Rebelo presidente da UBES 1983-84 (Acervo UBES)
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
resort. Para quem participou do congresso de reconstrução no Paraná,
era uma mordomia”, afirma ao MME Apolinário.
Na opinião do presidente eleito, o congresso foi “bom”,
embora a estrutura fosse para 1.500 pessoas e o público tenha
chegado a 2.500 estudantes. “Toda a logística nossa foi para o pau.
Credenciamento também era uma guerra. Porque diziam: ‘Ah, mas tem
esse detalhe dessa ata aqui. Não credenciou.’ Sei que teve um pau no
credenciamento. Voou mesa, cadeira. Era um corre-corre de gente para
lá e para cá. Perderam os crachás, que acabaram sendo anulados. Nós
tivemos que arranjar uma gráfica para fazer os crachás novos à noite.
No outro dia, se instalou a comissão de credenciamento. No meio dessa
crise, foi que aconteceu a divisão do Alicerce e Luta. O pessoal do
Alicerce, que era a Convergência, achava que ia ganhar o congresso da
UBES. E o pessoal da Libelu achava que perderia. Então, eles disseram
que ia ter fraude, porque houve esses problemas nos crachás e a gente
tinha que refazer”, agrega Apolinário.
Sobre a definição de quem encabeçaria a chapa para a direção,
ele lembra: “Propus que todos os candidatos para a presidente da UBES,
que eram cinco, fizessem um debate. Assim, a bancada do Paraná se
reuniria e definiria em quem iria votar. Eu lembro que teve o debate. Eles
se reuniram, teve um voto do Aluízio, que era do MR8 do Rio de Janeiro,
e o resto todo disse que ia votar em mim. Foi o que decidiu o congresso.
Nós ganhamos por 50 votos de diferença. Foi 543, se não me engano,
que a nossa chapa teve, contra quatrocentos e noventa e poucos da
chapa da Convergência. Foi um congresso muito apertado. E a chapa do
MR8 ficou em terceiro lugar”.
Ao Estudantenet, Apolinário comenta que “o Brasil vivia um
momento de transição entre o fim da ditadura, que já dava sinais
visíveis de esgotamento, e a luta pela democratização do Brasil. Foi
a época em que os governos de oposição, eleitos em 1982, já haviam
tomado posse”. Apesar das dificuldades, a UBES resistia. “A gente ia
todo dia em porta de escola. Procurava estudante, procurava liderança,
viajava, pedia, ‘pintava o sete’ e fazia boletim informativo, tentava
arranjar algum espaço e articulava muito com o sindicato. Sindicato dos
Gráficos, Sindicato dos Metalúrgicos, Sindicato dos Arquitetos, Sindicatos
dos Engenheiros. Todo esse pessoal terminava dando um jornal, um
boletim, autorização para ligação”, lembra Apolinário ao MME.
“Na Assembleia Legislativa de São Paulo, eu lembro que tinha
um deputado do PMDB, que depois passou para o PT, que nos ajudava
muito para almoçar no restaurante da assembleia e, também, nos dava
cota de telefone. Sentava lá e a secretária fazia 20 ou 30 ligações
naqueles telefones de peitão pesado, que era uma dificuldade da gente
conseguir uma ligação. E a gente ia fazendo os contatos. A UBES foi se
retomando, se reconstruindo”, acrescenta o então presidente.
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
Fachada da sede da UBES e da UNE em São Paulo, na rua Vergueiro – Vila Mariana (Acervo UBES)
Ainda segundo Apolinário, a gestão foi responsável pelo
reconhecimento oficial da entidade, além de outras inúmeras iniciativas.
“Retomamos o registro legal da UBES nos cartórios do Rio de Janeiro,
relançamos o jornal que a UBES tinha e que havia sido fechado em
1964, e conseguimos também realizar o 1º Seminário Nacional sobre a
Educação e o 1º Encontro de Escolas Técnicas de Nível Médio. Retomamos
as sedes em São Paulo e no Rio de Janeiro e apresentamos o Projeto de
Lei de Legalização dos Grêmios Livres no Congresso Nacional.
Diretas JáEnquanto isso, a luta pelas Diretas avançava. “Era um período
de esgotamento do regime militar, com uma crise econômica, inflação
galopante, dívida externa absurda, desagregação do sistema social, de
seguridade, de assistência. Era um momento em que o país procurava
outra alternativa, sobretudo respirar democracia”, resume Apolinário.
“Foi um momento extremamente importante da vida nacional e acho
que garantiu uma transição limitada, vacilante, negociada e lenta como
nós vivemos hoje. Mas foi um período de saída da ditadura para a
democracia”.
Em 1984, pela primeira vez nos longos anos de regime, a
oposição tinha alguma chance de triunfar no Colégio Eleitoral contra
os militares. Depois que o PP havia se incorporado ao PMDB, o campo
democrático-civil apresentava uma candidatura competitiva, conforme
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
detalha o CPDoc-FGV: “No PMDB, a despeito de seu programa contrário
à participação no processo indireto, uma grupo começava a sustentar
que Tancredo Neves, governador de Minas e político dotado de perfil
moderado e conciliador, reunia condições para aglutinar a maioria dos
oposicionistas, obter a vitória no Colégio Eleitoral e comandar a última
fase da transição política em curso”.
A disputa avançava, e o deputado Dante de Oliveira (PMDB-
MT) lançou uma célebre emenda — que levaria seu nome — propondo
eleições diretas para a Presidência da República e impulsionando a
mobilização popular. “Depois de um comício em Curitiba, que teve a
presença de cerca de 40 mil pessoas, mais de cem mil manifestantes
reuniram-se em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, para exigir a
aprovação da emenda Dante de Oliveira”, diz o CPDoc-FGV. Até que, em
10 de abril, cerca de um milhão de pessoas vão ao maior comício das
Diretas Já, no Rio de Janeiro, e exigem o fim da ditadura.
Segundo o CPDoc-FGV, “de janeiro a abril de 1984, os comícios
em favor das eleições diretas em todos os níveis reuniram multidões
surpreendentes nas praças das capitais e principais cidades do país
(no conjunto, mais de 30 milhões de brasileiros, segundo estimativa
de seus articuladores), convertendo-se em um movimento nacional de
rejeição à continuidade do arbítrio”. Até mesmo dissidentes do governista
PDS participaram da manifestação. Os estudantes, naturalmente,
engrossavam as mobilizações.
“Fizemos parte da coordenação nacional da campanha e foi
a UBES que abriu o comício das ‘Diretas Já’, com 1 milhão de pessoas
na Candelária, no Rio de Janeiro”, diz Apolinário. “Além disso, fizemos
milhares de manifestações pelo país. Os estudantes secundaristas
sempre estiveram presentes. Em São Paulo, quando teve o comício em
25 de janeiro de 1984, as escolas foram fechadas, e os estudantes
saíam às ruas, ocupavam o metrô, pulavam as catracas e iam todos à
Praça da Sé. Foi essa época que marcou a UBES”, diz Apolinário.
O Presidente da UBES 1984-85, comenta essa grande campanha
e o prestigio do movimento estudantil. “Praticamente tudo girou em
torno desta bandeira e crescemos muito a base do movimento, ele
espalhou-se por todo o Brasil a ponto de não conseguirmos atender à
vontade que se manifestou pelos estudantes. Muitas entidades foram
criadas sem o carimbo de nenhuma força política organizada - eram os
chamados independentes. A UBES passou a ser conhecida pelo grande
público, pela imprensa e ainda mais reconhecida pelas entidades e
partidos políticos, todos envoltos na campanha das Diretas-Já”.
Com 113 deputados ausentes à votação, não houve quorum
para aprovar a emenda Dante de Oliveira em 25 de abril de 1984, na
Câmara dos Deputados. Numa sessão tensa, que durou cerca de 16
horas, 298 deputados votaram a favor da emenda, 65 contra e três se
abstiveram. Sem conseguir os 320 votos necessários (dois terços da
Câmara) para ser aprovada, a emenda caiu e não foi enviada ao Senado.
Faltaram 22 votos — uma pequena margem que deixava claro o racha
na base do governo.
Em 15 de maio seguinte, uma nova onda de protestos dobrou o
regime. Na luta por condições dignas de trabalho, boias-frias de Ribeirão
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
Preto (SP) incendiaram propriedades onde se concentrava a maior
produção de cana-de-açúcar do Brasil. Nos dias posteriores, houve
ocupação de inúmeras fazendas em Guaribas e Bebedouro, na mesma
região. Como resultado da luta, os trabalhadores rurais conquistam
carteira de trabalho assinada, reajuste salarial e 13º salário.
A UBES travava suas próprias lutas, como a reconquista da
sede na Praia do Flamengo. “No decorrer da década de 1980, projetos de
lei tramitaram nas esferas municipal, estadual e federal com o intuito
devolver a posse do terreno”, registram, num artigo, as historiadoras
Angélica Muller e Tatiana Rezende. Segundo elas, “foi aprovada por
unanimidade na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 4 de novembro
de 1980, a permuta de imóvel pertencente à municipalidade e a
reconstrução da sede (...) por
parte da Prefeitura”. Em
julho de 1983, o governador
do Rio de Janeiro, Leonel
Brizola, cedeu à UNE — e, por
consequência, a entidades
como a UBES — o casarão da
antiga Faculdade de Ciências
Jurídicas, na Rua do Catete,
quase às costas da sede no
Flamengo.
A nova sede merecia
festejos, mas a estrutura
Jornal Estudan-te em Marcha 1984 (Acervo
UBES)
das lutas estudantis se mantinha precária. O 23º Congresso da UBES,
de 11 a 13 de maio de 1984, demandou grandes esforços para ser
realizado. “O Congresso foi em Osasco, São Paulo, no ginásio José
Liberati, cedido pelo prefeito Humberto Parro, que era do PMDB, um
democrata. Era um cara muito bom, que deu toda a estrutura que a
UBES precisou para fazer o congresso: alimentação, colchão, alojamento,
ginásio, cartaz, folheto, jornal. Tudo que a gente precisou ele nos deu.
Esteve na abertura”, lembra Apolinário. No último dia do encontro, o
goiano Delcimar Pires Martins se elegeu presidente, para organizar uma
penosa gestão. “Teve uma plenária da nossa força política, que a gente
chamava de Viração. A gente reuniu a nossa plenária e ele ganhou. Saiu
como candidato da Viração à presidência da UBES. Neste congresso, a
gente era maioria. Nós éramos a quinta bancada em Curitiba (1981), a
terceira em Campinas (1982). No congresso em Osasco, a gente já era a
maior força individualmente. A gente fez um congresso, nós ralávamos
muito.”
Delcimar Pires, presidente da UBES, junto com diretores da UPES – SP (Acervo CEMJ)
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
A nova diretoria teve dificuldades à beça. Segundo Delcimar
revela ao Estudantenet, “as viagens eram sempre uma dificuldade, a
maioria de ônibus de São Paulo a Mato Grosso do Sul, ou Brasília, etc.
Poucas vezes tínhamos passagens aéreas, geralmente com apoio de
governos estaduais saídos das eleições de 82 — São Paulo, Paraná, Rio
de Janeiro, Goiás, etc. O nosso trabalho era quase que integralmente
realizar reuniões, passeatas, caminhadas, para divulgar e atrair a atenção
da juventude à necessidade de se organizar”.
Mas era 1984 e, mesmo com a derrota da Emenda Dante de
Oliveira, o Brasil poderia ter um presidente civil. A luta pela democracia
era tão consistente que um dos principais líderes governistas e ex-
presidente do PDS, José Sarney, se debandou de sua legenda e declarou
apoio à candidatura peemedebista. Ele mesmo se tornou candidato a
vice-presidente na chapa encabeçada por Tancredo e apoiada pelas
entidades estudantis. “A linha francamente ascensional da campanha,
incrementada pelo apoio maciço dos meios de comunicação, provocou
a reação de Figueiredo, que, por meio de cadeia de rádio e televisão,
acusou a oposição de pretender coagir o Colégio Eleitoral. Mas reafirmou
seu propósito de manter-se fiel ao projeto de abertura política”, diz o
CPDoc-FGV.
O temor do regime foi irrelevante. Em 15 de janeiro de 1985,
o Colégio Eleitoral consagrou a candidatura de Tancredo com 480 votos,
contra 180 do candidato oficial da ditadura, o ex-governador Paulo
Maluf. Mas o candidato eleito não assume dois meses depois, porque é
internado às pressas, em 14 de março, véspera da posse. Quem assume
é o vice, Sarney. Mesmo com a morte chocante de Tancredo, a 21 de
abril, e a posse definitiva de Sarney como presidente, a luta contra a
ditadura estava vencida. Em menos de 20 dias, Sarney sancionou leis de
sentido democratizante, como o restabelecimento das eleições diretas
para presidente, o direito ao voto para os analfabetos e a permissão
para o funcionamento do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido
Comunista do Brasil (PCdoB).
Crachá do Congresso da UBES de 1985 (Acervo UBES)
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
Novas batalhas De 5 a 7 de julho de 1985, o Congresso da UBES, no Esporte
Clube Ginástico, em Belo Horizonte (MG), elege uma estudante para
sua presidente, a segunda mulher a liderar a entidade. Trata-se da
amazonense Selma Suely Baçal de Oliveira. Por coincidência, apenas três
Cartilha de incentivo à
formação de grêmios estudantis
elaborada pela UBES em 1985 (acervo UBES)
anos antes, em outubro de 1982, a UNE havia delegado sua presidência
a uma mulher (Clara Araújo) pela primeira vez em sua história. As duas
eleições são carregadas de simbolismo.
Na gestão de Selma, a 4 de novembro, Sarney sanciona uma
das bandeiras históricas da UBES — a Lei Nº 7.398-1985, ou Lei do
Grêmio Livre, proposta na Câmara pelo deputado federal e ex-presidente
da UNE, Aldo Arantes. A medida sepulta para sempre os antigos centros
cívicos e permite “a organização de grêmios estudantis como entidades
autônomas representativas dos interesses dos estudantes secundaristas,
com finalidades educacionais, culturais, cívicas, desportivas e sociais”
(veja box). A ex-presidente Selma em ato de homenagem aos 20 anos
Lei do Grêmio Livre em 2005, disse que foi duplamente feliz em sua
época de militância no movimento secundarista. “Primeiro pelo fim da
ditadura militar e por presidir uma entidade que ajudou a enterrar essa
ditadura e reestruturar o movimento estudantil brasileiro e segundo
por aprovar essa lei tão importante”.
Outro projeto de lei de Aldo Arantes, aprovado poucos meses
antes, legalizava a UNE, as UEEs e as demais entidades de estudantes
universitários. Por seu princípio, a lei acaba por dar legitimidade para
que alunos dos mais variados graus possam estabelecer suas próprias
entidades, como a UBES, as UPES e as UMES.
Selma deixa seu cargo no encontro nacional seguinte, o 25º Congresso, realizado de 30 de maio a 1º de junho de 1986, no Ginásio
Tupinambás, em Juiz de Fora (MG). Com cerca de 6 mil participantes,
sendo 3.753 delegados, o congresso elege para presidente Rovilson
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
Robbi Brito, da chapa “União e Luta”, que amealhou 80% dos votos.
Naquele ano, a luta para retomar a sede na Praia do Flamengo ganhou
novo estímulo, quando o ministro-chefe da Casa Civil, Marco Maciel,
garantiu a devolução e a reconstrução do terreno histórico. Um projeto
de lei com esses fins foi aprovado no Congresso em 13 de abril de
1987.
O Congresso, aliás, já estava som a égide da Assembelia
Constituinte, eleita no ano anterior, em eleições nas quais candidatos
governistas foram beneficiados pelo êxito do Plano Cruzado. Assim que
as eleições passaram, Sarney e sua equipe econômica não conseguiram
mais segurar o congelamento de preços e de salários. A inflação voltou
a disparar, e a popularidade do presidente da República despencou.
Manifestações explodiram na rua. Em 25 de junho de 1987, no Rio de
Rovilson Brito em discurso
durante Congresso da UBES (Acervo
UBES)
Janeiro, o ônibus que levava Sarney para uma cerimônia foi cercado
por cerca de mil pessoas e apedrejado, ferindo autoridades. De volta à
democracia, o povo queria mais de seu país.
Rovilson em entrevista ao site Estudantenet comenta um
pouco da sua gestão com as novas perspectivas com a Lei da Grêmio
Livre em mãos “A UBES estava numa situação em que tinha legalidade,
tinha liberdade, mas era preciso colocá-la em uma sintonia maior. Então,
o marco principal da gestão foi o que chamamos de “UBES presente”,
um movimento inspirado na UNE-Volante [projeto da UNE que percorreu
o Brasil na luta por uma reforma da educação superior], mas com as
características do nosso tempo e da nossa entidade. Nós levávamos
os membros da executiva que mais se destacavam na UBES, de 5 a 8
diretores, para os estados e fazíamos intensiva visitas às escolas, às
entidade municipais, às autoridades, com objetivo de orientar sobre
a questão do grêmio livre, organizar o movimento e lutar pelo ensino
público gratuito, contra os aumentos abusivos nas escolas particulares,
além de incentivar atividades culturais, esportivas... Eram programações
combinadas, desde shows de música, até debates em escolas, passeatas.
Passamos por uns 9 ou 10 estados”.
Existe uma avaliação de que os anos 1980 foram de consolidação
de um movimento estudantil ainda um pouco fragilizado, mas que queria
esta à frente das lutas. “Talvez tenha sido a real transição da época de
ilegalidade da entidade para o período democrático, com um papel mais
amplo”, completa Rovilson.
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
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Capítulo 9 (1981-1987) A conquista da democracia
A lei que resgatou os grêmiosConfira abaixo a íntegra da Lei Nº 7.398-1985, de autoria
do então deputado federal e ex-presidente da UNE, Aldo Arantes, que legalizou as atividades dos grêmios escolares
A Lei Nº 7.398 de novembro de 1985Dispõe sobre a organização de entidades estudantis de 1º
e 2º graus e assegura aos estudantes o direito de se organizar em Grêmios:
PRESIDENTE DA REPÚBLICAFaço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono
a seguinte lei:
Art. 1º - Aos estudantes dos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus fica assegurada a organização de Grêmios Estudantis como entidades autônomas representativas dos interesses dos estudantes secundaristas, com finalidades educacionais, culturais, cívicas, desportivas e sociais.
§ 1º - (Vetado).
§ 2º - A organização, o funcionamento e as atividades dos Grêmios serão estabelecidos nos seus estatutos, aprovados em Assembleia Geral do corpo discente de cada estabelecimento de ensino, convocada para este fim.
§ 3º - A aprovação dos estatutos e a escolha dos dirigentes e dos representantes do Grêmio Estudantil serão realizadas pelo voto direto e secreto de cada estudante, observando-se, no que couber, as normas da legislação eleitoral.
Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 3º - Revogam-se as disposições em contrário.Brasília, em 4 de novembro de 1985.
164º da Independência e 97º da República.
JOSÉ SARNEYMarco Maciel
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
Capítulo 10.(1987-1992)
Em busca da unidade
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
O regime militar (1964-1985) tinha ficado para trás, mas era
preciso limpar o “entulho autoritário” acumulado ao longo de 21 anos
de ditadura. Por isso, o Brasil viveu, sobretudo na segunda metade da
década de 1980, um período de fortalecimento das instituições e dos
valores democráticos — a consolidação da Nova República. A Assembleia
Constituinte, instalada em 1987, foi responsável por elaborar e, no ano
seguinte, aprovar a Constituição Cidadã.Nas disputas eleitorais, candidatos progressistas, de esquerda,
cresceram sensivelmente, alcançando a vitória em várias capitais no
pleito municipal de 1988. Tais êxitos redobraram as expectativas para
as eleições presidenciais de 1989 — a primeira com voto direto em
29 anos. Com tantos avanços, pode-se dizer que o presidente José
Sarney, empossado em 1985, foi bem-sucedido na transição política
pós-ditadura.
Mas o primeiro civil a ocupar a Presidência da República em
mais de 20 anos tinha, em sua gestão, um imenso calcanhar-de-aquiles
— a área econômica, contaminada por um fenômeno conhecido como
“estagflação”. Ao mesmo tempo em que o PIB do país estava estagnado
(com crescimentos modestos ou mesmo retração), os brasileiros
Com disputas internas, UBES se vê surpreendentemente dividida num dos períodos mais agitados da democracia brasileira
padeciam de uma inflação galopante, que derrubava os sucessivos
planos de estabilização. Historicamente ligado às tradicionais oligarquias
nordestinas, Sarney procurava recuperar a economia brasileira sem
mexer nos privilégios das elites que ainda lhe davam sustentação.
Buscando contornar a crise, o presidente montou, logo ao
tomar posse, uma equipe econômica contrária às prerrogativas do ciclo
militar. Foi essa nova equipe que criou, em 1986, o Plano Cruzado,
impondo controle dos salários e dos preços. Nos primeiros meses, de
fato, a inflação atingiu valores até negativos, o consumo aumentou, e os
fundos aplicados foram lançados na economia.
Alguns meses mais tarde, a euforia de consumo levou o plano à
falência. A estabilização forçada dos preços retraiu os setores produtivos
e acabou fazendo com que os bens de consumo desaparecessem das
prateleiras dos supermercados e das empresas. Muitos fornecedores
passaram a cobrar um ágio sob a obtenção de determinados produtos.
As reservas cambiais do país foram empregadas na obtenção das
mercadorias essenciais que desapareceram da economia nacional. Não
suportando mais tal conjunto de medidas, o controle dos preços foi
eliminado — e assim a inflação voltava a disparar. Em 1989, a alta
de preços anual já alcançava 1.764%. As mensalidades escolares não
eram controladas, e os proprietários de estabelecimentos de ensino
aplicavam o aumento da inflação nos estudantes.
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
Já no movimento estudantil, a segunda metade da década de
1980 foi marcada por reviravoltas nas duas principais entidades. Em
1987, o PT elegeu, pela primeira vez, o presidente da UNE, rompendo
uma hegemonia do PCdoB que vinha desde o Congresso de Reconstrução
da entidade, oito anos antes. No ano de 1989, com o PT ainda à frente,
a UNE adotou o critério da proporcionalidade para compor sua diretoria.
Com isso, o PCdoB voltou a ter dirigentes na direção e, dois anos depois,
reassumiria a presidência, já no governo Collor. Nesse período, entre
numerosas idas e vindas, a UNE foi alvo de uma série de críticas,
especialmente por suas posições durante os debates da Constituinte.
Houve simultaneamente uma espécie de “rebelião dos
secundaristas”, conforme aponta Artur Poerner em O Poder Jovem: “Entre 1987 e 1989, com a UNE esvaziada e paralisada por grandes
divisões internas, o cenário das lutas estudantis foi tomado pelos
secundaristas, que, com seus jingles roqueiros e suas mochilas, saíram
às ruas das grandes capitais para exigir a redução das mensalidades
escolares e a melhoria do nível de ensino. Com idades de 12 a 18 anos,
a chamada ‘geração-mochila’ queria, ainda o fim das restrições à atuação
e à exigência dos seus grêmios — restrições que persistiam, apesar da
Lei do Grêmio Livre, de 1985”.
No ano de 1988, as passeatas ressurgem e voltam a levar
milhares de secundaristas às ruas. “Há uma retomada da mobilização de
rua, especialmente por parte do movimento secundarista e das escolas
Geração-mochila particulares, em torno da questão da lei das mensalidades em debate
durante a época do governo Sarney”, lembra ao MME o historiador e
ex-líder estudantil Darlan Montenegro. “Na esteira desse movimento de
rua — passeatas com dez mil pessoas — se formaram muitos grêmios...
A gente reunia grêmios na UNE. Eram 1970, 1980 escolas durante o
pico do movimento, que toda a sexta-feira se reunia na sede da UNE,
no Rio.”
Toda a efervescência do período não pôde, contudo, ser
plenamente capitalizada, uma vez que o movimento atravessava mais
uma divisão interna. Durante cinco anos, duas UBES falaram em nome
dos estudantes secundaristas. Mas, diferentemente do racha sofrida
pela entidade nos anos 50, a divisão iniciada em 1987 não refletia a
Guerra Fria — não se tratava de uma oposição entre direita e esquerda.
Justamente por isso, entre disputas judiciais, tentativas de anulação
de diretorias e cancelamento de congressos, o movimento estudantil
secundarista teve de crescer no conflito e amadurecer, compreendendo
de forma amarga a importância da unidade. O objetivo de todas as
forças políticas presentes na UBES era o mesmo: enterrar de uma vez
o regime militar e brigar pelas transformações do país de forma mais
igualitária e justa. Mas houve divergências políticas que levaram a uma
direção contrária da unidade.
O marco da divisão é o 26º Congresso da UBES, em Brasília,
de 16 a 19 de julho de 1987. Bastante amplo e representativo, o ato
político de abertura reuniu entidades populares e estudantis, além de
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parlamentares dos mais diversos partidos, em defesa de uma Constituinte
progressista e do ensino público e gratuito. Os secundaristas também
“abraçaram” o Congresso Nacional e estenderam ali uma bandeira da
UBES com mais de 50m², marcando a presença dos estudantes na
elaboração do novo texto constitucional.
O Congresso da UBES serviu também para demarcar posições
claras sobre a política nacional. Nos debates, o clima era tenso. Um
grupo de delegados, liderado pelo MR8, defendia o apoio da UBES ao
governo Sarney. As demais forças, em lado oposto, acreditavam na
autonomia da entidade perante o governo federal.
Não bastasse a impossibilidade de consenso entre os grupos,
no 26º Congresso a UBES enfrentou toda sorte de dificuldades
impostas pelo governo do Distrito Federal, obrigando os estudantes
a mudarem de ginásio no meio da programação. Sem contar os sérios
problemas com a alimentação servida aos participantes, o que fez muita
A “crise da comida”
Crachá do 26º Congresso da
UBES em 1987 (Acervo UBES)
gente passar mal. Cerca de 800 estudantes foram hospitalizados com
intoxicação alimentar provocada pela refeição servida pela empresa
contratada. Imediatamente, a UBES pediu auxílio à Secretaria de Saúde,
e o congresso parou.
Como a “crise da comida” impedia o encerramento do Congresso,
diversos encaminhamentos ficaram em aberto. Para evitar que o encontro
fosse totalmente invalidado, a mesa do evento propôs a eleição de uma
diretoria unitária e consensual para a UBES, composta pelas entidades
e lideranças mais representativas. A essa nova diretoria, de caráter
provisório, caberia a tarefa de convocar para o mês de setembro seguinte
um Conselho Nacional de Entidades Gerais (Coneg) — que, por sua vez,
se encarregaria dos debates e das deliberações pendentes.
A situação até dava
sinais de estar contornada.
“Abrimos o Congresso com
o informe do que estava
acontecendo e apresentamos
a proposta de diretoria
consensual, que foi defendida
por todas as forças presentes.
Tudo foi votado e assim eleita
a nova diretoria”, lembra o
então presidente em fim de
mandato da UBES (1986-87),
Rovilson Brito. No entanto, o
Manifestação de estudantes contra o governo Sarney (Acervo UBES)
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grupo liderado pelo MR8 contestava as deliberações e, em protesto, se
retirou do Congresso.
O Coneg aconteceu 18 a 20 de setembro de 1987, em Uberlândia
(MG), e referendou a diretoria eleita no congresso, presidida pelo acreano
Altair Enes Lebre. Foi um conselho com ampla participação das correntes
políticas que faziam parte do movimento estudantil organizado da
época. As críticas a Sarney ganharam decibéis. “A transição democrática
acabou. O governo da Nova República tomou medidas que inviabilizam
qualquer apoio da entidade”, disparou Altair ao jornal Estudante em Marcha. “A aplicação Plano Bresser, que promete trazer a recessão e o
desemprego, e os acenos do ministro Bresser Pereira ao FMI nos obrigam
a tomar uma posição contra o governo Sarney.”
O MR8, porém, não reconheceu a decisão majoritária e elegeu
uma diretoria à parte da entidade, presidida primeiro pelo gaúcho
Leandro Severo (1986-90) e depois por Antonio Parente (1990-92).
Apesar da divisão, a hegemonia do PCdoB na entidade se consolidou.
Os conflitos internos, de qualquer maneira, não causaram
refluxo nas manifestações. A crise do sistema educacional se escancarava
pelo país. “Na escola o que mais vemos, além de falta de vagas, são
os estudantes sem aulas por falta de professores. As condições físicas
das escolas, nem se fala. Nos dias de chuva, é preferível ter aula na rua.
As paredes, da maioria das escolas, parecem celas de penitenciária”,
denunciava Altair Lebre no Estudante em Marcha.A UBES, desde a reconstrução em 1981, debatia educação
de forma sistemática e contínua, produzindo cadernos de debate que
subsidiavam a opinião da entidade por muitos anos. Uma discussão
muito comum dizia respeito à “Nova Escola” e, invariavelmente, era
tema dos Seminários Nacionais de Educação promovidos pela UBES — a
quinta edição ocorreu em março de 1987. Ficava cada vez mais nítida a
necessidade de cada vez mais se inserir o tema na sociedade.
Os debates culturais também ganhavam configuração,
sobretudo depois do 27º Congresso da UBES, em Goiânia (GO), de 14 a
17 de julho de 1988. Dos 2.800 participantes, 1.334 eram delegados —
o que demonstra o amplo respaldo dado pelos secundaristas à direção
eleita, encabeçada pelo goiano Manoel Rangel, do PCdoB. Atualmente
na presidência da Agência Nacional de Cinema (Ancine), Rangel foi um
dos responsáveis por introduzir mais temas das artes e da cultura no
ambiente do movimento secundarista.
Foi nesse contexto que sua gestão criou a Feira Nacional de
Arte e Cultura Secundarista (Fenacs), levando atividades culturais para
dentro das escolas. A primeira edição aconteceu num clima de muito
entusiasmo e emoção, com a presença de grupos de teatro, dança,
música e vários poetas. Todos eles eram estudantes secundaristas
envolvidos com produção artística e cultural nas escolas. “Mostramos
que, através da arte, da poesia, da dança e do teatro, temos condições
de mostrar para todos que o país tem saída e conserto, mesmo que
uns não queiram — leia-se Sarney, milicos e as multinacionais”, declarou
Rangel, na época, ao Estudante em Marcha. Os estudantes ainda tiraram
uma carta sobre a Fenacs e criaram um Núcleo Nacional de Cultura da
UBES.
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
Também em 1988, a juventude brasileira, com o maciço apoio
da UBES, comemorou uma grande conquista. Por 355 votos a favor e
98 contra, a nova Constituição foi aprovada e, entre outras garantias,
manteve o voto obrigatório a partir dos 18 anos de idade, mas
estabeleceu o direito do voto facultativo aos jovens de 16 e 17 anos.
Segundo o IBGE, o Brasil contava, naquele ano, com quase 6 milhões de
jovens que poderiam, a seu bel-prazer, usufruir desse direito.
Um dos principais fatores que garantiram a aprovação da
proposta foi a pressão exercida pela juventude, sobre os constituintes.
O voto aos 16
Jornal da UBES Estudante em
Marcha (Acervo UBES)
A UBES participou durante seis meses de uma comissão de trabalho
sobre o tema, na Câmara dos Deputados. No dia da votação, 500
jovens ocuparam o Congresso Nacional. A “Constituição Cidadã” também
determinou eleições diretas para a presidente, governador, deputado
estadual e federal, senador e vereador.
Na UBES, a divisão continuava, conforme lembra enfatiza
Poerner: “No 28― Congresso Nacional da UBES, em Santo André, em
setembro de 1989, a União da Juventude Socialista (UJS), em que o
PCdoB tem maioria, conseguiu reeleger o presidente Manoel Rangel.
Mas, em decorrência da cisão criada em 1987, o MR8 havia criado uma
UBES dissidente, situação que perdurou até 1992, quando um Conselho
Nacional de Entidades Gerais reunificou as diretorias”.
Ainda no Congresso de Santo André, às vésperas das eleições
presidenciais de 1989, a UBES inovou e promoveu um debate entre
candidatos. “A verdade é que apenas dois projetos estão disputando. O
projeto de quem tá por cima levando a melhor, ganhando com a crise; e
o projeto da maioria que tá por baixo, trabalhando o dia inteiro. Os 22
candidatos que disputam o governo não têm opção: ou se colocam de
um lado, ou de outro”, afirmava Manoel Rangel.
Uma disputa espetacular Nos mais variados movimentos organizados da sociedade —
inclusive o estudantil —, as entidades demonstravam maior predileção
pelos candidatos como o metalúrgico e presidente do PT, Luiz Inácio
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
Lula da Silva; o ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro,
Leonel Brizola (PDT); no ex-prefeito de São Paulo e um dos fundadores
do PSDB, Mário Covas; e num dos principais articuladores da Constituição
de 1988, o peemedebista Ulysses Guimarães. Já mídia e as elites,
perdidas entre tantos candidatos possíveis, abraçou ostensivamente o
governador de Alagoas e presidenciável do recém-fundado PRN, Fernando
Collor de Mello.
Collor se vendia como “caçador de marajás” e batia sem dó
no governo Sarney, Brizola enfrentava a todo-poderosa TV Globo, Covas
propunha o “choque de capitalismo”, mas Lula é que era considerado
o inimigo maior das classes dominantes — o fantasma sobrevivente
do “perigo comunista”. Nas últimas semanas de campanha, apareceu
inesperadamente — para depois ser impugnada — a exótica
candidatura do empresário Silvio Santos, do SBT. Também caiu o Muro
de Berlim, sinalizando a ruína do “modelo soviético” e do socialismo
pós-Perestróica.
Até que, em 15 de novembro de 1989, no exato dia em que a
proclamação da República completava cem anos, os brasileiros voltaram
às urnas, realizando a mais dura e espetacular disputa presidencial
jamais vista no Brasil. Durante a apuração, disparado na frente, Collor
acompanhava o desfecho da briga pela outra vaga no 2º turno. No final
da contagem, por uma diferença de apenas 454 mil votos (ou 0,63
ponto percentual), Lula superou Brizola, e a coligação PT- PSB- PCdoB
avançou.
O embate eleitoral decisivo entre Collor e Lula, realizado em 17
de dezembro, foi antecedido por tensão, bate-bocas nas ruas, debates
na TV e muita, muita deslealdade por parte do candidato do PRN. Em seu
programa eleitoral em rádio e TV, Collor chegou mostrar Miriam Cordeiro,
ex-namorada de Lula, acusando o candidato petista de ser racista e de
tê-la instigado a fazer um aborto. A favor de Collor, nos últimos dias de
campanha, contou também a edição tendenciosa que o Jornal Nacional levou ao ar do último debate entre os candidatos, além da acusação
caluniosa de que o PT estaria envolvido no sequestro do empresário
Abílio Diniz. A burguesia deu seu quinhão ao clima de pânico. “Se Lula
for eleito, 800 mil empresários deixarão o país”, declarou à imprensa o
presidente da Fiesp, Mário Amato.
Um governo desastroso Collor — que prometia governar para os “descamisados” e “pés-
descalços” — levou a melhor. Com 35 milhões de votos (49,94%) contra
31 milhões (44,23%) de Lula, o alagoano se transformou, aos 40 anos,
no mais jovem político brasileiro a chegar à Presidência da República.
Os empresários que temiam por Lula, o “sapo barbudo”, não poderiam
imaginar o que lhes avizinhava com o presidente eleito. Cercado de
figuras despreparadas no alto escalão do governo — como a economista
Zélia Cardoso de Mello, nomeada ministra da Fazenda —, Collor tomou
posse em 15 de março de 1990 com um discurso focado no combate à
inflação e na eficiência da gestão pública.
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
Logo no dia seguinte, baixou o Plano Collor, uma bomba
que, de cara, extinguiu 24 estatais, elevou o Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI), congelou preços e salários, abriu o Brasil de forma
descontrolada ao capital estrangeiro e bloqueou por 18 meses as contas
bancárias (correntes ou poupanças) superiores a 50 mil cruzeiros. Antes
do bloqueio, porém, o próprio Collor e seu tesoureiro de campanha, Paulo
César Farias, sacaram milhões de suas contas bancárias. Com o Plano
Collor, o Brasil desregulamentou a economia, enforcou o Estado e abriu
sua portas e janelas para o neoliberalismo.
Para os estudantes secundaristas, a luta continuava. No início
dos anos 90, a UBES tinha diversas bandeiras de lutas claras, conforme
revela ao MME Mauro Panzera, ex-coordenador geral da entidade
(1992-93). “A pauta era procurar unificar nacionalmente as lutas dos
estudantes. Esse era o grande desfio da UBES: como atrair estudantes de
estados que têm seus problemas resolvidos, muitas vezes na Secretaria
de Educação, quando a pauta é educação? Como é que você unifica isso
com as lutas nacionais? Então o grande desafio era esse: como é que a
gente fazia movimentações nacionais?”.
Segundo Panzera, “foi daí que se começou a falar em retorno
da meia-entrada no cinema, o que era uma luta”. O projeto de desmonte
de Collor atingiu em cheio a Cultura, cujo ministério foi extinto. O
presidente-playboy também deu fim às leis de incentivos fiscais e à
Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), que respondia pela produção
e distribuição do cinema nacional. Resultado: a produção audiovisual
brasileira secou.
A UBES também
combatia as mensalidades
extorsivas. “Teve uma
campanha que a gente
tentou fazer: ‘Saia às ruas
para não sair da escola’,
relativa ao ensino pago.
Foram várias as passeatas
no Rio de Janeiro. Mas ainda
era algo muito pequeno, pois
o movimento estudantil,
no começo da década de
1990, era fraquíssimo.
Era essencialmente as
correntes e bastante ausente das escolas”.
No 29º Congresso da UBES, em setembro de 1990, na cidade
de Vitória (ES), a chapa “Pra quem tem coragem de lutar sem medo de
ser feliz” venceu a disputa para a direção. A composição foi encabeçada
pela paraense Leila Márcia, que se elegeu presidente para um mandato
de dois anos. Houve outras novidades no processo congressual, como
a eleição para delegados a partir das etapas estaduais e a adoção do
critério de proporcionalidade para a formação da diretoria.
É em meio à gestão de Leila que crescem os protestos dos
estudantes e de diversos setores da sociedade contra a “era Collor”. Toda
e qualquer expectativa possível de avanço ficava sem sentido. Segundo
Crachá do 29° Congresso da UBES, 1990. (Acervo UBES).
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
o CPDOC-FGV, “às vésperas de seu primeiro aniversário, o governo Collor
estava longe de ter alcançado suas metas principais, anunciadas com o
Plano Brasil Novo: a inflação acumulada até março ultrapassava 400%; a
taxa de desemprego era de 5,23%; o Produto Interno Bruto (PIB) tinha
apresentado uma redução, inédita, de 4,6% no ano anterior; e a renda
per capita regredira a níveis registrados em 1979. Pesquisa de opinião
feita naquela ocasião revelou que o Plano Collor II gerara resistências em
todos os segmentos: na população de baixa renda, em empresários de
portes variados, em entidades sindicais de patrões e de trabalhadores,
em credores e investidores estrangeiros e em parlamentares”.
Contra Collor, a uniãoManifestação
contra o aumento das mensalidades
escolares (Acervo UBES)
O ministro da Educação de Collor era o senador Carlos Chiarelli,
que, durante a ditadura militar, pertenceu à Arena e foi vice-reitor
da Universidade Federal de Pelotas (RS). Com discurso em defesa do
ensino privado, Chiarelli não mostrou disposição em exercer um controle
mais eficaz sobre as mensalidades que tanto marcavam a vida dos
estudantes. A escola pública passava por um processo de desmanche, e
o Plano Collor, no campo educacional, pouco se diferenciava de iniciativas
anteriores.
Em 1990, o Brasil contava com cerca de 30 milhões de
estudantes de ensino fundamental, médio e pré-vestibulares, sendo
58% deles matriculados em escolas públicas. No ensino superior, as
escolas particulares já respondiam por 78% das matrículas. Os números
invertiam a realidade anterior ao Golpe de 1964, quando as escolas
públicas respondiam por 75% das vagas para o curso superior e por
85% dos alunos do ensino fundamental e médio.
Todo esse novo cenário, de franca oposição à “Era Collor”,
começou a aproximar as entidades nacionais que carregavam a sigla
UBES. Aos poucos, os dirigentes das duas entidades começaram a
perceber a afinidade no discurso. Leandro Severo, em entrevista ao jornal
Hora do Povo, denunciava a falta de uma política pública para a educação
e o favorecimento dos “tubarões” de ensino. “As escolas particulares
são um comércio, privilegiado pelo governo Collor por uma completa
falta de política voltada aos anseios da população, dos estudantes, dos
trabalhadores. Pelo descumprimento dos preceitos constitucionais.”
As manifestações se multiplicavam, e os estudantes de todo
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Capítulo 10 (1987-1992) Em busca da unidade
o país tomavam as ruas pelo ensino público, gratuito e de qualidade,
condenando também os abusos nos reajustes das mensalidades das
escolas particulares. “A luta por uma nova escola, que prepare o estudante
para a vida, passa necessariamente por assegurar que o conjunto da
juventude tenha acesso a uma escola pública”, destacava Leila Márcia.
“O governo Collor bate firme no ensino público, destrói a escola pública
inviabilizando suas condições de funcionamento e estimula a escola
particular liberando os preços baixos e deixando sem nenhum controle.”
Com princípios, propostas e objetivos tão semelhantes, não demorou
muito para que os secundaristas das duas UBES se unissem para dar o
grito de “Fora Collor”.
Panfleto contra o aumento das mensalidades escolares, 1991 (Acervo UBES)
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
Capítulo Especial 4.(1992)
Os caras-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
Em agosto
de 1992, milhões
de brasileiros foram
às ruas para pedir
o impeachment do
presidente Fernando
Collor de Mello, nas
maiores manifestações
sociais da história do país. Como em nenhum outro momento da história
do Brasil, os protestos eram indistintamente compartilhados por
patrões, profissionais liberais e trabalhadores, estudantes, professores
e “tubarões” do ensino, jornalistas, editores e barões da mídia, artistas,
produtores e empresários culturais, partidos de esquerda, de centro
e até de direita. Instituições tradicionais como a OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil) e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) — com
histórico de resistência à ditadura (1964-1985) — engajavam-se agora
na campanha do “Fora Collor”.
Mas, como nos anos 60, nenhum setor sobressaiu mais do que
os estudantes, os “caras-pintadas” sob a contundente lideranças da
UBES, da UNE e das demais entidades. “Ante a gravidade das denúncias
e revelações que se sucediam, eles foram os primeiros a ‘sacar’ que os
Estudantes pintam seus rostos, saem às ruas e
lutam pelo Fora-Collor, nas maiores manifestações
da história do Brasil
níveis de corrupção, enquadrilhamento e banditismo no alto escalão
governamental haviam gerado um daqueles momentos decisivos da
nação, em que não há justificativas para apatia ou omissão de qualquer
brasileiro”, registra Artur José Poerner no livro O Poder Jovem.
O impeachment começou a ser delineado em 1992. Com mais de
dois anos à frente da Presidência da República, Collor lutava para salvar
sua fracassada gestão. Boas notícias não havia mais. Seus índices de
popularidade tinham desabado, a inflação estava mais descontrolada do
que nunca e as denúncias de corrupção davam a tônica das manchetes
dos jornais. Os aliados se debandavam a tal ponto que o governo já
não tinha mais governabilidade alguma. Ministros se demitiam um atrás
do outro, incapazes de emplacar políticas públicas ou mesmo os mais
elementares programas de governo.
Para piorar a situação do presidente, seu amigo e tesoureiro
na campanha eleitoral de 1989, Paulo César Farias, o PC, não conseguia
mais esconder as negociatas escusas da dupla. Boa parte dessas
tramoias veio à tona em maio de 1992, quando Pedro Collor, irmão do
presidente, concedeu três entrevistas bombásticas à revista Veja. Ele não só dava provas de que PC Farias tinha pelo menos sete empresas
no exterior como também acusava o ex-tesoureiro de ser “testa-de-
ferro” do principal mandatário do país. Para um governo já combalido, as
revelações foram devastadoras e levaram à instalação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Federal. Era o começo de uma
sangradura sem fim num dos piores governos da história da República
brasileira.
Estudantes pintam o
rosto e são apelidados de cara-pintada, manifestação
Fora-Collor 1992 (Acervo
MME)
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
A sociedade reageEnquanto a CPI colhia depoimentos e materiais que incriminavam
o presidente cada vez mais, a sociedade civil declarava guerra à corrupção
— e a Collor. Em 11 de junho, entidades e partidos lançavam o Manifesto Democrático contra a Impunidade. No dia 24, o Senado foi palco da
Vigília pela Ética na Política, em protesto contra as tramas da base
aliada para melar a CPI. Além das legendas partidárias (PT, PCdoB, PSB,
PPS, PSDB e parte do PMDB), o ato foi promovido por entidades atuantes
nas mais variadas áreas, como OAB, CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil), Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura), CUT (Central Única dos Trabalhadores) e SBPC (Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência). Em 29 de maio, na sede da ABI,
todas essas entidades lançaram o Fórum pelo Impeachment, ao lado
de UNE, UBES, União da Juventude Socialista (UJS), Central Geral dos
Trabalhadores (CGT), Força Sindical, entre outras entidades.
De uma hora para outra, Collor também se viu abandonado por
uma de suas mais assíduas colaboradoras e cúmplices — a grande mídia,
que começou a pedir abertamente o impeachment do presidente. “Diante
do desgaste do governo Collor e sua iminente queda, a grande imprensa
e, em especial, as Organizações Globo tiveram que rever suas posições
de apoio ao presidente”, resume o historiador e acadêmico Luiz Felipe O.
Franceschini no artigo “Marajás e Caras-Pintadas: A Memória do Governo
Collor nas Páginas de O Globo”. “Até o início de 1992, as denúncias
de corrupção e as críticas à política econômica eram ofuscadas nos
noticiários por aparições pirotécnicas do presidente-aviador, presidente-
carateca ou presidente-motoqueiro. Com o agravamento das denúncias,
principalmente depois que estas foram confirmadas e aprofundadas pelo
irmão, Pedro Collor, os grandes veículos nacionais adotaram posturas
cada vez mais críticas”.
Num editorial de 30 de junho, uma terça-feira, intitulado
“Renúncia já”, a Folha de S.Paulo elevava o tom. A crise, segundo o jornal
paulista, chegara “a seu ponto extremo”, ante “uma verdadeira avalanche
de denúncias e evidências”. Não havia mais saídas. “O presidente Collor
não possui, hoje, condições de governar o país”, registrava o jornal.
“O problema deixou de ser apenas jurídico ou moral. Passou a ser
político. Num momento de crise econômica e social profunda, o país não
tem governo. Temos, na Presidência da República, uma figura acuada.
A sociedade não mais confia em sua palavra. Não mais espera do
presidente nenhuma atitude. Nenhuma atitude, exceto a da renúncia.”
Entre acusações de tráfico de influência, corrupção e outras
irregularidades, o governo se viu particularmente isolado depois de uma
nova denúncia. De acordo com a IstoÉ, a secretária de Collor, Ana Acióli,
bancava as despesas de familiares dele e da residência presidencial (a
Casa da Dinda) com dinheiro recebido de PC Farias. Quem dava garantias
dessa versão era o motorista de Acióli, Francisco Eriberto, entrevistado
pela revista. Em 1º de julho, Eriberto depôs à CPI e garantiu que PC fazia
depósitos diretamente na conta de Ana Acióli. Também na comissão,
Cláudio Vieira bancou a defesa de Collor e citou um empréstimo de
US$ 3,7 milhões feito por ele, no Uruguai, durante a campanha de
260
Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
1989. O dinheiro seria supostamente usado nas despesas pessoais
de Collor. Diversos depoentes ouvidos pela CPI contestaram a “operação
Uruguai”. Se dependesse dos parlamentares, o governo estava próximo
à perdição.
Os estudantes, então, entraram em cena. Ao se darem conta
de que era preciso ir às ruas e pedir o impeachment de Collor, UBES e
UNE se junto ao Movimento Cívico contra a Impunidade e pela Ética na
Política, formado em agosto por entidades como OAB, CUT e ABI. Ao
todo, havia 18 entidades unidas. Segundo Artur Poerner, “o Paraná foi
o pioneiro: a primeira manifestação de envergadura pelo impeachment
aconteceu no dia 7 de agosto em Curitiba, com o apoio do governador
Roberto Requião e a presença do recém-eleito presidente da UNE,
Lindbergh Farias, dos presidentes da OAB, Marcelo Lavanère, e da CUT,
Jair Menegueli, bem como de políticos como Franco Montoro, Luiz Inácio
Lula da Silva e João Amazonas”.
A ocupação simultânea da Reitoria da Universidade Católica do
Paraná — quando os estudantes lutavam contra o aumento abusivo das
mensalidades — deu mais visibilidade ainda ao ato em Curitiba, conforme
explica Poerner. “Como o reitor ordenou que todos os funcionários
abandonassem o prédio, a ocupação se prolongou durante mês e meio,
tempo em que os estudantes não só administraram a Reitoria como
utilizaram a gráfica universitária para imprimir material de propaganda
A vez dos estudantes
do impeachment.”
Do Sul para o Norte, a segunda passeata ocorreu no dia 10,
em Manaus. Em 11 de agosto, Dia Nacional do Estudante, uma passeata
convocada pela UBES levou mais de 10 mil pessoas à Avenida Paulista,
em São Paulo. Por causa do ato e da campanha pelo impeachment, a
entidade produziu 50 mil panfletos e 20 cartazes com a inscrição “Anos
Rebeldes, próximo capítulo: Fora Collor, Impeachment Já”. A concentração
da marcha foi no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), onde
um caminhão de som tocava músicas como Alegria, Alegria e ecoava os
protestos.
Num gesto que marcaria o conjunto das manifestações pelo
“Fora Collor”, os estudantes pintavam seus rostos com as cores da
bandeira nacional e tomaram as ruas. Eram os caras-pintadas na
vanguarda do movimento pelo impeachment. “Chegou uma escola que
era, se não me engano, a Oswald de Andrade, uma escola particular de
Estudantes pintam o rosto e ficam conhe-cidos como caras-pintadas. 1992. (Acervo MME)
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
São Paulo, que chegou com uma turma animadíssima e com algumas
meninas com o rosto pintado de verde e amarelo”, recorda-se ao MME
Mauro Panzera, um dos coordenadores recém-eleitos da UBES — o outro
era José Antonio da Silva Parente, o Totó.
“Começou a chegar muita gente, muito mais do que a gente
esperava, na verdade. Então, fomos à papelaria próxima e compramos
alguns potes de tinta guache e saímos pintando todo mundo, sem a
expectativa de que isso viraria uma marca. Essa escola tinha participado
da chegada do pessoal do vôlei que tinha ganhado medalha (na Olimpíada de Barcelona) e tal. E nessa história do vôlei, a juventude que estava
lá estava com a cara pintada”, agrega Panzera. “A origem foi o vôlei, se
quiser pensar. Depois foi a escola Oswald de Andrade que trouxe para a
passeata. A gente olhou, achou legal, comprou guache e saiu espalhando
no outro dia as fotos dos estudantes nos jornais, todos tinham as caras
pintadas. Daí foram surgindo os caras-pintadas. O guache passou a ser
obrigatório nas passeatas como bandeira das entidades.”
Segundo a revista Veja, “em sua caminhada rumo ao centro
da cidade, os alunos provocaram um engarrafamento colossal em São
Paulo. Mas dos prédios caía papel picado. A passeata contra Collor e seus
40 fantasmas terminou no Largo São Francisco, em frente à vetusta
Faculdade de Direito — palco de combates estudantis que começaram
com as manifestações pela abolição da escravatura, passaram pelas que
se insurgiram contra a ditadura do Estado Novo, foram derrotados em
1968, ressurgiram no movimento pela anistia e viveram dias de glória
na campanha pelas diretas já”.
Collor acusou o golpe. No dia14 de agosto, em cadeia de
rádio e TV, ele convocou os brasileiros a saírem às ruas, dois dias
depois, vestidos de verde e amarelo. “Vamos mostrar a essa minoria
que intranquiliza diariamente o país que já é hora de dar um basta a
tudo isso”, bradou. Apenas 300 pessoas seguiram esse script. O que
se viu mesmo pelo Brasil, naquele ensolarado “domingo negro”, foram
milhares e milhares de pessoas trajando preto, em luto contra Collor. Os
estudantes, além das roupas, traziam o preto em pinturas nos rostos.
Houve passeatas e protestos em ao menos dez capitais. Em Salvador
(BA), 20 mil estudantes usavam roupas pretas e tinham o rosto, sim,
pintado de verde e amarelo — pelo Brasil, contra Collor. O golpe de
O Brasil de luto
Manifestação Fora-Collor, São Paulo 1992. (Acervo UBES)
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
marketing do presidente tinha sido um fiasco e trouxe mais gás para a
campanha pró-impeachment.
Os caras-pintadas viraram notícia nacional, e suas imagens
estampavam as capas da grande imprensa. “Caminhando contra o vento,
sem lenço sem documento, uma garotada alegre ocupou as ruas das
duas maiores cidades brasileiras; na semana passada. Alto astral, altas
transas, lindas canções deram o tom às passeatas que atingiram em
cheio o coração do Rio de Janeiro e de São Paulo. Foram momentos
poéticos, nos quais se confundiram ficção e realidade, passado e
presente, a minissérie Anos Rebeldes e a CPI de PC. Alegria, alegria:
a rebeldia juvenil está de volta, juntando mauricinhos; e militantes,
skatistas e esquentados”, dizia uma reportagem da revista Veja na
edição de 19 de agosto.
A publicação da Editora Abril destacava também a grande
inserção de jovens da classe média entre os manifestantes. “No Rio
e em São Paulo, uma garotada bonita e bem humorada, habituada a
frequentar shopping centers e curtir a praia, entendeu muito bem o que
está se passando nas altas esferas do poder. Em São Paulo, na terça-
feira, eles gritavam: ‘Rosane, que coisa feia, vai com Collor pra cadeia’.
No Rio, os colegiais berravam: ‘PC, PC, vai pra cadeia e leva o Collor
com você’.” Aos 16 anos, a secundarista Tereza Alvarez, do Colégio São
Vicente de Paulo — o mesmo onde Collor havia estudado —, teve uma
das ideias que mais repercutiram. Foi dela a sugestão para uma faixa
com os dizeres “Bonita camisa, Fernandinho” e a imagem de uma camisa
de presidiário.
“No pátio do Colégio São Vicente” — registrava a Veja —, “os
alunos do Santo Inácio, Zaccaria, Senador Corrêa e Santa Úrsula, escolas
de classe média da zona sul carioca, se encontraram. Decidiram que
deveriam ter uma identificação, e optam por amarrar tiras pretas no
braço, feitas de sacos plásticos de lixo”. Na volta da manifestação, os
secundaristas do Rio iniciaram um novo grito de guerra contra Collor. “Ai,
ai, ai, empurra ele que ele cai”.
Ainda em agosto, entidades da sociedade civil e partidos de
oposição ao governo formalizaram o pedido de impeachment, por meio
de um documento assinado pelos presidentes da ABI, Barbosa Lima
Sobrinho, e da OAB, Lavanère. Os partidos de sustentação do governo já
não conseguiam controlar as defecções. Em campanha para a Prefeitura
de São Paulo, Paulo Maluf, do PDS, anunciou que estava contra Collor.
Candidatos do PFL pelo Brasil seguiam a tendência e declaravam apoio
ao impeachment. Em 24 de agosto, relatório apresentado na CPI
sugeria também o impedimento do presidente. O texto foi aprovado na
comissão e encaminhado à Procuradoria Geral da República e à Câmara
dos Deputados. Cerca de 60 mil pessoas comemoravam o resultado nas
ruas de Brasília.
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
As maiores mobilizações
Com o impeachment de Collor se tornando uma realidade, o
Movimento Cívico contra a Impunidade e pela Ética na Política convocou
novas manifestações. Na manhã de 25 de agosto, 400 mil estudantes
caras-pintadas voltaram ao vão livre do Masp e saíram em passeata na
direção do Vale do Anhangabaú. “As passeatas começavam entre 11
horas e meio-dia. Os estudantes que ainda estavam em aula pulavam os
muros para acompanhar a passeata”, afirmou Lindberg à Folha de S.Paulo.
No mesmo dia, houve grandes atos em Salvador (80 mil pessoas) e no
Recife (100 mil). As manifestações cresciam.
“Não houve capital brasileira que não tenha visto seus jovens
nas ruas mobilizados pela UBES e pela UNE, com a palavra de ordem
‘Fora Collor’ pintada em vermelho nos rostos, protestando contra o
mar de lama que transbordava do Palácio do Planalto, em Brasília. Foi
também uma explosão alegre e colorida de bom-humor e irreverência,
expressos em jingles como “Rosane, que coisa feira, vai com o Collor pra
cadeia” e na canção Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, trilha musical
da minissérie da TV Globo Anos Rebeldes, que se referia ao movimento
estudantil de 1968 e estava sendo exibido na ocasião das passeatas”,
escreve Poerner.
Collor voltou a se pronunciar em cadeia de rádio TV em 1º de
setembro, acuado, declarando que não renunciaria ao cargo, apesar do
risco de que o plenário da Câmara iniciasse o processo de impeachment.
Os estudantes e o povo brasileiro deram mais uma demonstração
de repúdio à roubalheira e, aos milhões, voltaram às ruas. No maior
comício, em 18 de setembro, no Vale do Anhangabaú, cerca de 750 mil
pessoas pediam “Fora Collor, impeachment já!”. O presidente eleito com
25 milhões de votos não tinha mais nenhum respaldo popular sequer.
Collor caiEm 30 de setembro de 1992, numa nas votações mais
antológicas de sua história, a Câmara aprovou a abertura do processo
de impeachment de Collor por 441 votos a 38. A sessão foi transmitida
ao vivo por emissoras de rádio e TV. Nesse dia, manifestações em 17
cidades somaram 500 mil pessoas, segundo a PM. Em São Paulo, 120
mil tomaram o Anhangabaú. Em Brasília, 100 mil foram para a frente do
Manifestação Fora-Collor,
Rio de Janeiro 1992. (Acervo UBES)
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Capítulo Especial 4 (1992) Os cara-pintadas derrubam o presidente
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Congresso”, informou a Folha. “Eu estava no Anhangabaú pra assistir a
votação no telão. A cada voto, era um abraço com desconhecidos. No
final começou um temporal, mas ninguém ligou para a chuva: era uma
conquista de todo nós”, declarou em 2008 ao jornal Cecília Lotufo, a
musa dos caras-pintadas.
Na opinião de Lindberg Farias, expressa ao MME, “as passeatas
do impeachment retomaram a história da resistência à ditadura e o
papel dos estudantes — foi como se tivesse aflorado de novo a história
do movimento estudantil”. Já Fernando Gusmão, primeiro presidente
da UNE depois do impeachment, elogia o empenho dos estudantes
secundaristas. “A UBES teve papel decisivo na questão do impeachment.
Não se fala muito isso, mas é bom que se fale. A UBES é a que mobilizava
muita gente. A base da mobilização do Fora Collor era estudantes
secundaristas. Você tinha milhares de estudantes e 70% deles eram
secundaristas”, diz Gusmão ao MME.
O historiador Darlan Montenegro, que fez parte da direção da
UNE na gestão Lindberg, concorda. “Todas as passeatas tinham sempre
muito mais secundaristas do que universitários: no Rio, em São Paulo. O
peso da UNE na direção do movimento é menor, o que inclusive, deixava
seus diretores meio irritados”, conta ele ao MME. “Apesar disso, a figura
com mais projeção do ‘Fora Collor’ é o Lindbergh e a entidade mais
fortemente ligada ao movimento é a UNE. O que é uma maldade, eu
diria, com o pessoal da UBES, que era efetivamente quem organizava a
mobilização dos secundaristas, que passava pelas escolas para convocar
o pessoal pra formar os grêmios.”
“A mobilização — isso é inegável — foi feita pelas UBES, que
teve uma participação e decidia sobre as questões”, garante Mauro
Panzera. “Eu diria que, durante todo esse processo, a UBES tinha mais
poder de decisão do que a UNE. Poderíamos dizer: ‘Olha, a passeata
vai ser tal dia’, porque a UNE não podia marcar uma passeata sem
a UBES. Apesar de não existir essa briga, isso só existe nas nossas
brincadeiras. Tanto que até as correntes eram as mesmas. As correntes
que existiam na UNE eram as mesmas da UBES.”
Após a célebre votação da Câmara, Itamar Franco, vice de
Collor, assumiu interinamente a Presidência em 2 de outubro. Ainda
em 1992, no dia 29 de dezembro, o Senado se preparava para votar
também a admissibilidade do impeachment, mas Collor renunciou.
Independentemente disso, os senadores lhe puniram com oito anos
inelegibilidade e inabilitação para o exercício cargos públicos. Com isso,
Itamar assumiu definitivamente como presidente do Brasil. A Era Collor
tinha chegado ao fim.
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Capítulo 11 (1992-2002) Cara a cara com o neoliberalismo
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Capítulo 11 (1992-2002) Cara a cara com o neoliberalismo
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O expressivo e vitorioso engajamento dos estudantes no “Fora
Collor”, em 1992, garantiu uma visibilidade sem precedentes à UBES.
Mas, quando o processo de impeachment do presidente da República,
Fernando Collor de Mello, foi aprovado na Câmara Federal, o ano já tinha
rendido outra grande conquista à entidade: a unificação do movimento
estudantil secundarista. Desde 1987, duas UBES coexistiam — uma
delas comandada pelo MR8 e a outra liderada pela UJS-PCdoB.
Depois de cinco anos, as divergências tinham ficado para
trás. Com o desgaste do governo Collor e a necessidade de enfrentar o
neoliberalismo e barrar o acelerado desmonte educacional, a divisão não
fazia mais sentido algum. Lideranças das duas entidades costuraram,
então, um acordo para convocar um Congresso de Reunificação. Foi
formada, nesse sentido, uma comissão que incluía os presidentes das
duas entidades — Leila Márcia (UJS) e Antonio “Totó” Parente (MR8).
“O acordo dessas duas estruturas foi fundamental para
começar a campanha ‘Fora Collor’. Esta campanha surgiu porque a gente
discutiu o seguinte: ‘Não. Vamos nos unir por causa da questão política,
por causa da luta’”, diz ao MME Mauro Panzera, da UJS, que integrava
Após a reunificação, UBES teve forças para enfrentar o governo neoliberal de FHC, que implementou um conjunto de medidas para privatizar e desmontar o ensino público.
uma das UBES e a comissão pró-unidade. A urgência da agenda política,
imposta pela crise radical do governo Collor, precipitou as decisões. Em
vez de um Congresso de Unificação mais formal, foi convocado um Coneg
para o mês agosto. Pela primeira e única vez em sua história, a UBES,
mesmo unificada, elegeu não um, mas, sim, dois coordenadores-gerais
— Mauro Panzera e Antonio Parente.
“Houve esse Coneg, que foi um conselho de entidades — uma
chapa única, já fruto desse acordo. Juntaram-se as duas estruturas
que tinham 18 diretores (nove de uma e nove de outra). Fizemos
lá a composição: comigo e o Totó como coordenadores gerais, dois
tesoureiros, dois isso, dois de tudo. Juntamos estudantes de todos os
estados, pois fizemos um esforço de convencer a UNE a participar”, diz
Panzera.
Manifestação Fora-Collor, 1992 (Acervo UBES)
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Um ponto que favoreceu a unificação foi a escolha da principal
palavra-de-ordem dos secundaristas. Enquanto entidades de outras
frentes defendiam uma bandeira tão genérica quanto “a ética na política”,
a UBES passou a levantar a bandeira do impeachment. “A nossa bandeira
(da UJS) era o ‘Fora Collor’. A bandeira do MR8 era ‘Impeachment já’. Então,
fizemos nesse dia a primeira passeata cuja motivação era ‘Fora Collor!
Impeachment já!’. Até isso foi composição entre os dois grupos, entre
as duas diretorias. Então, foi uma passeata que uniu as duas bandeiras,
digamos assim. Criou essa bandeira que depois viria a ser a que todo
mundo encampou: “Fora Collor! Impeachment!”, explica Panzera.
Nem mesmo os cinco anos de separação estavam prejudicando
as conversas entre lideranças de forças diferentes. “Deixamos de
centralizar as discussões em nós, e fomos assumir o que o país
esperava da sua juventude”, resume Totó. Com a derrubada de Collor
e a ascensão de Itamar Franco à Presidência, a UBES estava preparada
unida e madura para ir atrás das bandeiras de lutas dos secundaristas
em uma nova correlação de forças. O trauma da separação era coisa do
passado.
Itamar e o movimento estudantilPresidente interino da República desde outubro de 1992,
Itamar Franco assumiu efetivamente o cargo em 29 de dezembro de
1992, depois da renúncia de Collor. O movimento estudantil, desde o
começo, tentou travar um bom relacionamento com o novo chefe de
Estado. “Quando ele foi à Câmara dos Deputados para receber a posse,
nós ocupamos a parte de dentro. Algumas pessoas ficaram temerárias:
‘O que essa turma vai fazer aí?’. E com aquele negócio lotado, cantamos:
‘Oh, Minas Gerais...’. Ele ficou muito grato e nos recebeu logo depois”,
conta Mauro Panzera. “Os primeiros a serem recebidos pelo Itamar
fomos nós”, confirma o ex-presidente da UNE (1992-1993) Lindberg
Farias. “Lembro que saiu editorial em todo lugar falando dessa reunião
do Itamar conosco”.
Com a transição pós-impeachment, Itamar enfrentou uma série
de dificuldades, sobretudo na área econômica. Ao fim de 1992, a inflação
acumulada era de 1.158%, e vários setores da economia estavam em
recessão. Em sete meses, cinco ministros se revezam na Fazenda, até a
posse do tucano Fernando Henrique Cardoso, em maio de 1993.
No mês anterior, a 21 de abril, houve o plebiscito em que
os brasileiros decidiram o sistema e a forma de governo para o país.
Permaneceu tudo como estava, e o Brasil continuou a ser uma república
presidencialista. No mesmo ano, com o apoio do próprio governo, foi
criada a “CPI dos Anões do Orçamento”, que apurava esquemas de
corrupção em várias instâncias governamentais. Os trabalhos da CPI
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dominaram por vários meses a pauta do Congresso.
Com um discurso favorável às privatizações, mas disposição ao
diálogo, Itamar teve uma relação ambígua com as entidades estudantis.
“Fizemos de tudo para atrair o presidente Itamar para uma posição
nacionalista, uma posição de não privatizar, de ir contra a maré
dominante. E usamos todas as armas possíveis para isso. E participamos
de várias discussões com o pessoal do governo sobre isso”, diz Panzera.
“Eles ajudaram muito na discussão das mensalidades escolares e criou-
se uma lei de mensalidades que foi muito favorável para os estudantes.
Houve conquistas na área da educação pública; houve um movimento
que a gente fez com a ajuda da própria presidência da República”.
Os conflitos, segundo o ex-coordenador da UBES, tiveram início
com as privatizações, mas não chegaram a levar os estudantes para
a oposição ao governo, embora também não houvesse apoio. “A gente
pode classificar a nossa relação com o presidente Itamar Franco como
uma das mais positivas para a história do movimento estudantil. E o
mesmo com o ministro [da Educação] da época, que era o Murilo Angel,
afirma Panzera.
A mídia, por outro lado, voltava a desqualificar as entidades
estudantis, conforme o relato de Lindberg Farias ao MME: “Para esses
setores, quando o Itamar entrou, a UNE virou porta-voz do que era mais
atrasado. Éramos contra as privatizações, ficávamos lá dizendo: ‘Não
pode privatizar, Itamar, não pode...’. Era um grande debate, mas o que
os caras queriam, na verdade, era retomar o projeto neoliberal todo.
Aí começamos a apanhar tanto, tanto... Era pancadaria dos jornais em
cima da gente! Só conseguimos sobreviver porque nos apoiamos nos
estudantes e na massa”.
A conquista do terreno
A gestão de Panzera
e Totó se encerrou em 30º
Congresso da UBES, realizado
no Palácio de Convenções do
Anhembi, em São Paulo (SP),
de 29 de outubro a 1º de
novembro de 1993. Sob o
tema “Em Defesa da Nação e
da Educação”, o congresso teve
3.070 delegados e uma acalora
disputa para a direção. A chapa
“Declare Guerra a Quem Finge
te Amar”, encabeçada por Joel
Benin, da UJS, venceu com
1.978 votos, contra 1.102
da chapa “Pra UBES Detonar”.
Segundo Mauro Panzera, “no
percurso do mandato, as
diferenças de método das
Crachá do 30º Congresso Nacional da UBES, São Paulo 1993 (Acervo UBES)
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entidades — a UJS, as Juventudes ligadas ao PT e os demais setores do
movimento estudantil — com o método de atuação do MR8 se tornaram
mais evidentes. E teve uma disputa grande que acabou com a eleição
do Joel”.
“Assumi o movimento em alta”, diz Joel Benin ao Estudantenet. “Participei daquele período do impeachment e tudo mais. O Congresso
de 93 foi o maior até então, muito disputado pelas forças, tudo isso
fruto à importância que tinha a UBES naquele momento”.Segundo ele,
o encontro, “além de colher todo aquele resultado de impeachment, da
alta do movimento, tinha que consolidar a reunificação. Eu lembro que a
plenária final começou 18 horas e acabou às 8 horas na manhã do outro
dia, de tão intensas que foram as discussões”.
A gestão de Benin na UBES coincidiu com a de Fernando Gusmão
na UNE. A dobradinha que deu certo na época do impeachment voltava a
mostrar afinidades e parcerias. “A UNE e a UBES mantiveram uma relação
amistosa, amigável, viajando juntas para as atividades. A minha relação
com o Joel era dessa forma. A gente sempre viajava junto, sempre
estava junto”, diz Gusmão.
O presidente da UBES Joel
Benin em atividade na Câmara dos Deputados,
Brasília (Acervo UBES)
Uma das conquistas das duas entidades foi a Medida Provisória
das Mensalidades Escolares. Os estudantes estavam contra a proposta
do governo e foram aconselhados a tratar do assunto diretamente com
Itamar. Gusmão e Benin não pensaram duas vezes e bateram na porta
do Palácio do Planalto. “Para a nossa surpresa, alguém lá também disse:
‘Vocês podem subir’. Pegamos o elevador, subimos e ficamos na sala
esperando o presidente receber”, relata Gusmão. “Depois de esperar
um tempo, algum tempo depois, vem ao nosso encontro o ministro da
Educação, dizendo que ele, de fato, não queria aquela medida provisória.
E que a medida provisória vai ser outra e que o presidente da República
vai nos receber no dia seguinte, fazendo a medida provisória que a
gente queria. Então, a gente desceu com uma expectativa grande de
dizer isso ao pessoal. Saímos e a TV Globo estava na frente, o Jornal Nacional”.
O período também foi marcado pela expansão dos grêmios
estudantis, de acordo com Benin. “Fizemos um gibizinho colorido
incentivando e orientando a criação de grêmios livres nas escolas.
Reproduzimos muitos, foi uma onda de formação de grêmios. Esse gibi
fez um sucesso, fizemos mais de 200 mil, com apoio do Ministério da
Educação”, lembra o ex-líder da UBES.
No meio desse período, o governo Itamar implantou, em duas
etapas, o Plano Real, com a finalidade conter a inflação. Era o sétimo
plano do gênero em sete anos, mas o único deles que teve vida longa.
A medida criava, em 1993, uma unidade real de valor (URV) equivalente
a US$ 1 e desvinculada da moeda brasileira, que passava a se chamar
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cruzeiro real. Numa segunda etapa, a partir de 1º de julho de 1994,
o Brasil passava a ter um novo padrão monetário, o real, que também
deveria manter a paridade com o dólar.
A mudança de moeda veio junto a medidas essencialmente
neoliberais, como o corte de gastos públicos, a abertura da economia e a
privatização de estatais. Os efeitos de longo prazo incluíram duas crises
cambiais, crescimentos medíocres do PIB, elevação do custo de vida e
alta do desemprego. Mas o objetivo imediato do plano — o controle da
inflação — foi alcançado, e o real, a exemplo do cruzado de 1986, foi o
fator decisivo nas eleições seguintes.
O maior beneficiado foi FHC, o ex-ministro de Itamar que se
proclamou “o pai do real” e se elegeu presidente de forma espetacular,
ainda no primeiro turno. “Acabou-se cometendo até um desatino perante
a Justiça Eleitoral, pois, mesmo depois de deixar o cargo de ministro da
Fazenda, o Fernando Henrique era quem assinava as primeiras cédulas
de Real (...). Eu vi. Mandei verificar. Ele assinou, sem poder assinar. Ele
sabia que sem o autógrafo, sem ele na cédula do real, ele não ganharia”,
declarou Itamar, ao Jornal do Brasil, em 2008.
Para os estudantes, uma das melhores lembranças de
1994 data de 17 de maio — dia em que Itamar assinou o protocolo
de devolução definitiva da sede histórica das entidades, na Praia do
Flamengo. Um posseiro havia invadido o terreno para ali montar um
grande e lucrativo estacionamento. Mas, com o acordo assinado pelo
presidente da República, UNE e UBES ganhavam mais uma motivação para
recuperar efetivamente sua casa. Na saída da reunião que formalizou o
documento, Fernando Gusmão convidou o presidente da República para
comemorar no tradicional restaurante Lamas, no Largo do Machado, Rio
de Janeiro. Sem pestanejar, Itamar topou e não teve pudor nenhum de
tomar chopes com os satisfeitos líderes estudantis.
“Isso foi uma luta. A gente passou os dois anos da gestão
discutindo e decidimos no congresso: ‘Vamos retomar o terreno da Praia
do Flamengo’. Eu precisei de muitas e muitas vezes ir ao Congresso
Nacional, ao Ministério da Educação”, rememora Gusmão. Segundo ele, o
texto que deu origem ao protocolo foi redigido pelo ministro da Educação,
Murílio Hingel. “Nós retomamos o terreno na praia do Flamengo e o
evento foi muito bonito, com a presença de muitas personalidades,
muitos presidentes da UNE que atuaram no passado nessa reconstrução
e nessa retomada do terreno”, agrega Gusmão. Em 21 de dezembro de
1994, a dez dias do término de seu mandato, Itamar assinou a escritura
de doação do terreno às entidades.
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Depois de Itamar,
o país passou oito anos sob
um governo nefasto. Nos
breves períodos realmente
democráticos vividos
pelos brasileiros, nenhum
presidente fez tão mal ao
movimento estudantil e
aos trabalhadores quanto
FHC. Seus dois governos
— que duraram de 1º
de janeiro de 1995 a 31
de dezembro de 2002 —
consistiram numa longa
noite neoliberal, de tantos
retrocessos ao Brasil.
Mal empossado, Fernando Henrique deixou claro que abriria
o país a uma onda de “desconstitucionalização”, redução dos direitos
sociais e trabalhistas, venda do patrimônio público e criminalização dos
movimentos. A gestão FHC quebrou o monopólio estatal em várias áreas
estratégicas (como o petróleo), entregou mais de 60 empresas estatais
ao capital privado e promoveu reformas de fundo conservador nas áreas
A longa noite neoliberal
Manifestação Fora-FHC, São Paulo (Acervo
UBES)
tributária, previdenciária e trabalhista. Audiência com os estudantes?
Nem pensar.
“Foi confronto. Aí já não havia diálogo, havia uma disparidade
muito grande de propostas. O que fazíamos era ocupar delegacias do
MEC, delegacias do Ministério da Fazenda”, conta Joel Benin. “Uma vez
estávamos eu, o Gusmão da UNE e mais alguns. Encheram a gente de
porrada, fomos parar no hospital e tudo mais. Então foi confronto com
a gestão, o movimento estudantil se mobilizou muito nesses oito anos.
A luta começou a ser de toda sociedade, contra as privatizações, contra
o neoliberalismo. Foi um confronto difícil”.
Das tantas dificuldades que enfrentou em sua gestão, Benin
destaca três “bandeiras fundamentais”: pela punição aos anões do
orçamento (“Fizemos várias mobilizações, no Brasil todo, nas principais
cidades, alguns foram cassados”.); contra as privatizações (“Sempre
foi característica do movimento estudantil participar das grandes lutas
nacionais”.); e contra a revisão constitucional (“Entendíamos que os
pontos daquela revisão levariam ao atraso”.).
Em novembro de 1995, Joel Benin passa a presidência da UBES
para o mineiro Kerison Lopes, eleito no 31º Congresso da entidade, na
Universidade Federal de Goiás. A chapa presidida por Kerison, chamada
“Unidade contra FHC e a Divisão — Saudações a Quem Tem Coragem”,
obtém a preferência de nada menos 1.493 dos 1.656 votantes. A
unidade das bases fortalece o compromisso da UBES em denunciar os
desmandos do governo Fernando Henrique.
Durante essa gestão, estudantes secundaristas e universitários
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enfrentam uma verdadeira ofensiva contra a educação pública. É a época
da Lei nº 9.394-1996, que trata das diretrizes e bases da educação
nacional. “O projeto aprovado foi criticado por ser vago demais, omisso em
pontos fundamentais e autoritário, não só por não ter sido precedido por
debates, mas por privilegiar o Poder executivo, dispensando as funções
deliberativas de um Conselho Nacional composto por representantes
do governo e da sociedade”, registra Maria Lúcia de Arruda Aranha, em História da Educação e da Pedagorgia.
Segundo a autora, “a lei foi acusada de neoliberal, por não
garantir a esperada democratização da educação, sobretudo porque o
Estado delegou ao setor privado grande parte das obrigações”. Com isso,
diz Maria Lúcia, “proliferam as ‘escolas técnicas’ geralmente privadas,
cujo objetivo é sempre o de atender às demandas do mercado e que, por
isso mesmo, estão mais voltadas para o adestramento. É bom lembrar
que no primeiro projeto encaminhado à Câmara, a educação profissional
achava-se articulada à formação
geral e humanística”.
A UBES não ficou parada
diante dessa escalada. “Fizemos
uma grande campanha em
defesa do ensino técnico, com a
bandeira do ‘Queremos mais que
apertar parafusos’, que defendia
que o ensino profissionalizante
Cartaz da campanha
“Queremos mais que aper-tar parafusos” (Acervo UBES)
continuasse veiculado com o ensino de segundo grau, dando uma
formação mais ampla aos futuros profissionais. Respondíamos a um
decreto do governo federal que fazia a desvinculação. Foi uma luta que
aconteceu em todas as escolas técnicas e agrotécnicas do país e foi
traduzida em enormes manifestações”, diz Kerison.
Além da educação, FHC entregava a Vale do Rio Doce e a Telebrás.
Na conta total, mais de 60 empresas estatais foram vendidas durante
seu governo. Para aprovar a emenda da reeleição, houve compra do voto
de pelo menos quatro parlamentares, a R$ 200 mil, cada um. À base de
fisiologismo, FHC fez seus projetos serem aprovados no Congresso no
esquema “rolo compressor”. Mas a campanha “Abra o Olho, Brasil” faz
um alerta contra os rumos do país. A UBES é uma das promotoras da
iniciativa, ao lado de CUT, MST, CNBB, UNE e partidos. Em de 25 de julho
de 1997, dia do trabalhador rural, 75 mil pessoas vão às ruas contra
FHC. Passeata contra as privatizações de estatais brasileiras, São Paulo (Acervo UBES)
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Capítulo 11 (1992-2002) Cara a cara com o neoliberalismo
“O mais marcante era a contradição entre a euforia de ter a
força de derrubar um presidente corrupto e a frustração de ter um
presidente neoliberal como o Fernando Henrique. Em seus governos,
praticamente todas as suas medidas eram prejudiciais aos estudantes,
ao povo e a soberania do país”, declara Kerison. “Rolou uma onda nas
manifestações contra a reforma do ensino técnico que era ocupar as
delegacias do MEC nos estados e, aproveitando, a oportunidade, quebrar
os quadros oficiais do presidente que ficam dependurados. Acho que
foi esta a única proximidade que tivemos, quebrando quadros com sua
imagem”.
No 32º Congresso da UBES, em Juiz de Fora (MG), de 13
a 16 de novembro de 1997, um dos destaques foi a valorização da
participação feminina. Além da aprovação da cota de 20% de mulheres
na diretoria, a carioca Juana Nunes Pereira se sagrou presidente da
entidade, por ampla maioria de votos. O repúdio ao governo federal
ainda dava a tônica. “Quando chego à presidência da UBES, o principal
sentimento já era o ‘Fora FHC’”, revela Juana ao Estudantenet. “Éramos
a geração pós-impeachment, nós que tínhamos lutado por tudo aquilo.
Era aquele pessoal que entrou para a política em 1992, militava nas
entidades municipais e estava ali na direção da UBES naquela época.
Então, tinha ainda muita agitação no movimento, passeatas grandes,
e era o momento em que o governo FHC estava no auge, caminhando
O segundo governo FHC
para sua reeleição e com as políticas educacionais que eram contrárias
a nós. Havia a reforma do ensino médio, estava sendo feita a reforma
do ensino técnico, desvinculando os cursos profissionalizantes do
ensino geral — então era todo um sentimento de construir um grande
movimento contrário a esse governo”.
Outra marca da gestão, segundo Juana, foi a luta contra a
privatização da Vale do Rio Doce. “No dia anterior, todos os movimentos
sociais foram para a porta do prédio onde estava sendo feito o leilão.
Queríamos realmente conseguir entrar e impedir esse processo, só que
o que aconteceu é que apanhamos muito nesse dia, era coisa de Jornal Nacional”, diz a ex-presidente da UBES. “No dia seguinte, nas escolas
todas, havia aquele sentimento de indignação. Isso fez com que a nossa
causa ganhasse muito mais adesões. A gente foi para as escolas, e
a imagem dos estudantes secundaristas apanhando na TV repercutiu
muito. Aí então o movimento cresceu, apareceu gente de todos os
lados e havia mais estudantes do que policiais no fim das contas. Aí
houve a história das rosas, uma imagem linda, os policias do lado de
dentro das grades e os estudantes de fora, ao invés de mandar pedras
ou algo assim, entregavam flores pros soldados. Estávamos ansiosos,
houve até uma euforia porque a justiça conseguiu paralisar o leilão. A
gente comemorou e tudo mais, mas no final da tarde eles conseguiram
privatizar”.
Da generalizada oposição ao governo surgiu um fórum dos
movimentos sociais contra o neoliberalismo. Liderado por CUT, UNE
e MST, o fórum contava com a firme participação da UBES. Mas os
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secundaristas também tinham estímulo para construir suas entidades
locais. “Fizemos o projeto UBES é Massa, que era uma campanha de
construção de entidades municipais, mas na verdade era muito mais do
que isso, discutia uma verdadeira concepção do movimento estudantil.
A gente discutia a ideia de que ele deveria deixar de ser uma tribo da
juventude, e passar a ser de todas as tribos. O que quer dizer isso?
Criar um movimento que envolva toda ação juvenil dentro da escola, a
galera do futebol, a galera do teatro, a galera que quer fazer uma oficina
de curtas, ou um jornalzinho, todas as iniciativas. Ali você pode discutir
a ideia de democracia nas entidades, como fazer as entidades serem
transparentes. Era uma campanha legal”, comenta Juana.
Em 1998, com a emenda da reeleição aprovada, FHC volta a
vencer a disputa presidencial — mas o governo perde em estados como
Rio de Janeiro e Minas Gerais. A oposição se fortalece. Logo no começo
do segundo governo de Fernando Henrique, uma crise assola a economia
brasileira e expõe as fragilidades do Plano Real. A paridade com o dólar
acaba e a inflação é controlada, mas o Brasil dá adeus ao crescimento
econômico e vê o desemprego crescer. Em março de 1999, um apagão
revela também a falácia do discurso neoliberal — os brasileiros foram
obrigados até a racionar energia.
No dia 26 de agosto, a Marcha dos Cem Mil ocupa a Esplanada
dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes, na maior manifestação
contra FHC e o FMI. O ato foi promovido pelo Fórum Nacional de Luta por
Trabalho, Terra e Cidadania, do qual a UBES fazia parte. Os manifestantes
entregam ao presidente da Câmara um manifesto com 1,3 milhão de
assinaturas pela abertura da CPI da privatização do Sistema Telebrás e
por mudanças na política econômica.
Na UBES, as mulheres se mantêm em evidência. Seu 33º Congresso ocupa Goiânia (GO) de 12 a 15 de novembro de 1999, e a
maioria dos delegados vota na chapa “UBES para todos”, fazendo da
gaúcha Carla Santos, a Carlinha, a nova presidente da entidade. Marco
de ousadia, o encontro aprova uma resolução que defende o aborto,
além de 50% das vagas em universidades públicas para alunos que
sempre estudaram em escolas públicas. Ainda em novembro, Carla se
reuniu com o presidente da Câmara, Michel Temer, para pressionar os
deputados a votarem a proposta que autorizasse esse tipo de cota.
Na opinião da presidente, essa bandeira de luta foi uma das
marcas da gestão. “Depois de uma campanha bem-sucedida, que contou
com a participação de diversos estudantes, o projeto foi regulamentado
Carla Santos com o primeiro presidente da UBES Luiz Bezerra (Acervo UBES Foto Isadora Pisoni 2005)
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no Rio de Janeiro. A lei da reserva de vagas fluminense garante que
50% das vagas no vestibular da UERJ e UENF sejam reservadas para
alunos oriundos de escolas públicas do estado. Além disso, esses alunos
estão isentos de taxa do vestibular”, disse Carla em entrevista ao jornal
Questão de Ordem. Em novembro de 2000, o “Seminário de Educação:
Rumo à Universidade Pública” consolida essa reivindicação como uma
das prioridades da UBES.
Carla foi também protagonista de um dos atos mais irreverentes
na história do movimento
estudantil. Em 31 de
maio de 2001, numa
manifestação em Brasília
pela renúncia de Fernando
Henrique e a criação da CPI
da Corrupção, a presidente
da UBES tirou a roupa e,
coberta apenas com uma
bandeira da UBES, entrou
no espelho d’água do
Congresso. Nas nádegas,
fez registrar a palavra-
de-ordem “Fora FHC” em
guache. Em março de
2000, Carla já havia sido
Manifestação de estudantes em São Paulo, contra a cor-
rupção. (Acervo UBES)
presa, em frente ao Colégio Estadual Caetano de Campos, em São Paulo,
por protestar contra a política neoliberal do governo tucano.
“Se tenho vergonha de tirar a roupa? Tenho vergonha é de ter
um presidente picareta como Fernando Henrique Cardoso, que comprou
votos para se reeleger”, emendou Carlinha, em Brasília, microfone a mão.
Ao site Último Segundo, ela fez uma defesa contundente de seu gesto:
“Na década de 60, mulheres arrancavam o sutiã em praça pública para
trazer à tona a polêmica a respeito do feminismo. Duas semanas depois
que tirei a roupa em Brasília, uma menina na Alemanha fez o mesmo
contra a Alca. Na minha opinião, o que vale não é forma da manifestação,
mas o seu conteúdo”.
Meia-entrada para democratizar o acesso à cultura
A gestão de Carla travou combate, ainda, contra a
desregulamentação da meia-entrada para estudantes em eventos
culturais e esportivos, uma conquista em vigor desde a década de
1930. O direito, que era garantido inicialmente pelo uso da carteira
da UNE, na década de 50 passou também a valer com a carteira de
identificação da UBES.
A meia-entrada sempre foi uma forma de complemento
educacional dos conteúdos vistos em sala de aula, ampliando o acesso
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do jovem aos bens culturais. Porém, o direito foi praticamente extinto
com a chegada dos militares ao poder em 1964 e o fim das entidades
estudantis alguns anos depois. Após a reconstrução da UBES e da UNE,
na década de 80, vários estados e municípios criaram suas legislações
próprias para a meia-entrada.
Em 2001, porém, a meia-entrada começou a enfrentar um
grande problema: a instituição da Medida Provisória 2208, editada pelo
governo Fernando Henrique Cardoso. Essa medida tirou das entidades
estudantis a exclusividade na emissão das meias-entradas. A MP, por
sinal, foi um golpe e uma irresponsabilidade deliberados do governo.
Como a carteirinha abrange apenas os estudantes, nada mais natural
que as entidades estudantis exerçam a emissão e a fiscalização do
documento.
Do contrário, o efeito é o vale-tudo, em que até pizzarias
começam a emitir a meia-entrada, para qualquer pessoa, deturpando o
sentido do projeto e prejudicando todas as pontas da indústria cultural,
que passa, então, a se virar contra um mecanismo democrático. Isso
permitiu que organizações sem compromisso com a educação ou vínculos
com as lutas estudantis pudessem produzir a carteira estudantil,
desarticulando o controle e gerando uma infinidade de fraudes e a
criação das famosas “entidades de gaveta” ou “fábricas de carteirinha”.
Em relatório sobre um projeto de aprovação da meia-entrada
na Câmara dos Deputados, a ex-deputada Iara Bernardi fez a seguinte
afirmação: “Historicamente governos e empresários investem na
indústria cultural e turística junto aos estudantes pela alta taxa de
retorno que este público proporciona. A meia-entrada, portanto, não
deve ser encarada como vantagem, benefício ou política compensatória,
mas sim como peculiar chamamento da Escola. Porque ser estudante é
uma condição transitória, e, é no momento de seus estudos que ele se
encontra aberto às novas manifestações culturais que irão moldar sua
forma de encarar o mundo, a vida, seu próximo, etc.”.
Segundo a ex-parlamentar, “a experiência tem demonstrado
que o pagamento reduzido dos preços das entradas em teatros, cinemas
e estádios não causa prejuízo aos empresários destes espetáculos e
nem muito menos aos artistas, uma vez que a diminuição dos preços é
compensada pelo aumento no número de espectadores.
Desde então, a UBES luta para resgatar a correta aplicação
desse direito, defendendo a revogação da MP 2208 e a criação de uma
legislação federal para a meia-entrada. Em 2006, a entidade esteve no
Congresso Federal debatendo a questão com representantes do governo
e da classe artística. A UBES também conseguiu, na mesma época,
reunir diversos artistas em uma frente de defesa da meia-entrada. O
manifesto produzido pela UBES e pela UNE foi assinado por diversos
representantes do meio cultural.
A luta pela revogação dessa Medida Provisória da Era FHC ainda
é constante no movimento estudantil e a derrubada dela é a resposta a
esse ataque a juventude brasileira.
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Em 2001 ainda, a UBES foi uma das entidades pioneiras do 1º
Fórum Social Mundial, realizado no mês de janeiro, em Porto Alegre. No
dia 30 de julho, a entidade se saiu vitoriosa na ação judicial que moveu
para obrigar a União a complementar, com R$ 3,4 bilhões, os recursos
do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do
Magistério (Fundef ) de 1999.
No ano inaugural do novo século, o primeiro estudante a ser
eleito presidente da UBES é o carioca Igor Bruno, em novembro de 2001,
no 34º Congresso da entidade, em Uberlândia (MG). O encontro renovou
a posição da UBES contra o governo FHC e, num momento em que apenas
3,5% do PIB brasileiro era destinado à educação básica, defendeu que
tal investimento fosse, no mínimo, dobrado.
Na campanha presidencial do ano seguinte, a UBES promove
a campanha “Se liga 16!”, incentivando jovens a irem às urnas e
exercerem seu direito de escolher o presidente da República e os
demais governantes. Depois de penar por oito anos sob um governo da
dupla PSDB-PFL, os estudantes e os trabalhadores comemoram a vitória
de um candidato de maior sensibilidade social — o ex-metalúrgico Luiz
Inácio Lula da Silva. “A vontade de mudança era muito grande naquele
momento, após um período de domínio neoliberal. No Congresso que
antecedeu as eleições, debatemos qual seria o posicionamento dos
estudantes secundaristas e decidimos que a eleição de Lula era muito
A eleição de Lula e o fim de um ciclo importante”, diz Igor. Ex-ministro de FHC, o presidenciável José Serra até
consegue ir ao segundo turno, mas Lula é eleito com 62% dos votos.
A festa da vitória levou centenas de milhares de pessoas à Avenida
Paulista, sobretudo estudantes. O movimento estudantil estava livre de
Fernando Henrique Cardoso.
Dirigente da Upes (PR) sofre agressão policial durante a “Batalha da Copel”, serie de manifestações contra a venda da Copel -Companhia Paranaense de Energia. (Acervo UBES Foto Doação Raoni de Assis), Curitiba, 2001
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Marco transformador da política nacional, as eleições
presidenciais de outubro de 2002 traçaram um novo rumo para o país.
Os brasileiros tinham a chance de dar um basta ao projeto neoliberal
implantado no governo Collor e deslanchado na Era FHC. Já o movimento
estudantil, permanentemente criminalizado durante o governo tucano,
sabia que não podia se omitir num momento tão crucial. Por isso, no
primeiro turno, as entidades elaboraram uma Carta Compromisso e
apresentaram aos candidatos.
A disputa precisou de mais um turno, e aí a UBES soube
compreender bem o que estava em disputa e se posicionar. De um
lado, a candidatura do tucano José Serra personificava a continuidade
da gestão FHC, com seu viés entreguista e antidemocrático. No outro
extremo, o petista Luiz Inácio Lula da Silva abria perspectivas de
mudanças. Depois de promover uma ampla consulta às bases, através
de uma prévia eleitoral, a UBES declarou apoio a Lula. As expectativas de
mudanças estruturais na sociedade e na educação foram depositadas
na eleição desse pernambucano, filho de retirantes nordestinos, ex-
metalúrgico e sindicalista, que recebeu o apoio de praticamente todas
as forças populares.
No governo Lula, entidades estudantis participam de mais instâncias decisórias, deixam de ser criminalizadas e viram protagonistas de grandes mudanças
Lula foi causa e também consequência de um momento
de transformação da América Latina, em que candidatos contra-
hegemônicos, críticos do ideário neoliberal e da globalização mercantil,
começavam a sobressair. Como em outros países, os secundaristas
brasileiros participaram ativamente da campanha, com independência e
autonomia. Eleito em 27 de outubro de 2002, Lula tomou posse em 1º
de janeiro do ano seguinte. Não foi preciso esperar muito tempo para
saber que o governo federal trataria os movimentos sociais com mais
diálogo e respeito.
Em reconhecimento ao papel exercido pelos estudantes durante
a campanha eleitoral, o novo governo, por meio de Cristovam Buarque,
ministro da Educação, visitou a sede das entidades estudantis, em
São Paulo, logo após a posse. “Tínhamos claro que, naquele momento,
o governo estava em disputa e a diretoria da UBES tinha um grande
Igor Bruno (UBES) e Felipe Maia (UNE), du-rante a visita do ministro da Educação, Cris-tovam Buarque, à sede das entidades. São Paulo - 2003 (Acervo UNE)
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interesse em aprofundar o diálogo com o novo governo, pelo seu caráter
amplo e democrático”, afirma o então presidente da entidade, Igor
Bruno. Antes de Cristovam, o último ministro da Educação a realizar
esse encontro foi Murilo Hingel, durante o governo Itamar Franco.
Cristovam apresentou o projeto de erradicação do analfabetismo,
que atingia 20 milhões de brasileiros em 2003, e reafirmou a abertura
ao movimento estudantil brasileiro. “Os estudantes são os principais
agentes das mudanças. Quem usa gravata não faz revolução, as
transformações são feitas pelos jovens. Eu vou garantir o diálogo, as
mudanças serão feitas pelos jovens”, frisou o ministro à revista Caras Pintadas.
No entanto, como nada muda de um dia para o outro, os anos
2000 também foram marcados por muita reivindicação e protestos do
movimento secundarista, na busca por seus direitos. A UBES participou,
como fundadora, da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), uma
importante organização que reúne entidades das mais variadas frentes,
como UNE, Central Única dos Trabalhadores, Movimento dos Sem Terra,
Unegro, Marcha Mundial das Mulheres, Conam, União Brasileira de
Mulheres, entre outras.
Dentro do movimento estudantil, a participação começou
a acontecer cada vez mais cedo acompanhando as mudanças
comportamentais da juventude. “Acho que tem uma diferença marcante
no movimento nessa época. A cada congresso, nos encontros, a gente
ia percebendo que a turma ia entrando mais nova”, afirma Igor Bruno.
“O jovem também já começava a sair cada vez mais novo no ensino
médio. Então a UBES começa a agregar uma faixa muito grande de 14,
15, 16 anos. Isso mostra que, depois de tanto tempo, o movimento
secundarista continua jovem, combativo, espontâneo, e isso é muito
importante.”
No final de 2003, no 35º Congresso da UBES, o baiano Marcelo
Gavião foi eleito presidente, assumindo a entidade em um cenário
nacional mais propenso ao diálogo e com possibilidades de grandes
vitórias. “A defesa da reserva de vagas nas universidades públicas
para estudantes egressos de escolas públicas. Essa é uma luta que
a UBES vem travando desde 1995 e percebemos que, depois de muita
mobilização, muito debate, havia um ambiente político que favorecia a
aprovação”, afirma Gavião em depoimento ao MME.
A defesa da reserva de vagas ganhou força com a chegada de
Lula à Presidência. Essa causa expressa a luta pela democratização do
acesso ao ensino superior e, justamente por isso, foi rechaçada pelas
elites. Um forte preconceito dominou a resistência a que a universidade
pública se convertesse num espaço democrático, que abrangesse todas
as classes sociais. Muitos argumentos surgiram para desqualificar esse
projeto, mas aos poucos a UBES conseguiu ganhar apoios importantes
“Caras-Pintadas” garantindo direitos
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na sociedade.
Fruto dessa luta,
a reserva de vagas virou
realidade em diversas
universidades espalhadas
pelo Brasil. Isso deu fôlego
para a UBES intensificar as
mobilizações e fazer aprovar
a proposta nas universidades
federais. O projeto ganhou
apoio de Lula, que, no entanto,
defendia somente 20% de
vagas reservadas. Em 2004, o
Congresso Nacional apresentou um projeto de lei que institui a proposta
da UBES, obrigando as instituições de ensino público superior a reservar
50% das suas vagas para estudantes vindos das escolas públicas.
Os bons ventos do governo Lula começaram a refluir em 14 de
maio de 2005, quando a revista Veja denunciou um esquema de corrupção
entre um diretor dos Correios, Maurício Marinho, e o presidente do PTB,
deputado Roberto Jefferson (RJ). Em 6 de junho, Jefferson declarou
à Folha de S.Paulo que o governo bancava um pagamento regular a
parlamentares — o tal mensalão — em troca de apoio na Câmara. Com
base na reportagem, a oposição não mediu esforços para criar a CPI dos
Correios, instalada no dia 9. A CPI do Mensalão e dos Bingos é criada em
seguida. Em 16 de julho, o tesoureiro do PT, Delúbio Soares afirma que
Cartaz da campanha
pela reserva de vagas nas universidades
públicas, 2004 (Acervo UBES)
fez empréstimos com o publicitário Marcos Valério no valor de quase
R$ 40 milhões para campanhas eleitorais do partido, mas nega haver
“mensalão”.
“Quero dizer com toda franqueza que me sinto traído por
práticas inaceitáveis, das quais nunca tive conhecimento. Estou
indignado com as revelações que aparecem a cada dia e que chocam o
país”, disse Lula, no dia 12 de agosto, em pronunciamento em cadeia
de rádio e TV. A aprovação ao governo cai. A oposição, assanhada com
a crise, se junta à mídia e a outros setores da elite para ventilar a ideia
de impeachment para Lula — omitindo que o presidente não estava
envolvido diretamente em nenhum escândalo.
O risco de golpe ia ficando iminente. Foi então que a CMS
convocou uma manifestação em Brasília para pedir a apuração das
denúncias, mas também acusou a escalada golpista da oposição.
A UBES lança a campanha “Tem Ladrão Falando em Corrupção”, e os
secundaristas passam, novamente, a protagonizarem um dos episódios
Passeata da CMS, Brasília 2005 (Acervo UNE)
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mais importantes no último período da história brasileira. A data
escolhida para a passeata foi a mesma do ano de 1992, 16 de agosto,
quando os brasileiros foram às ruas pela primeira vez vestidos de preto,
para protestar contra o presidente Collor. Agora, 13 anos depois, a UBES
também estava na manifestação, que pôs 20 mil pessoas nas ruas
da capital federal. Uma parte dos estudantes resgatou a tradição dos
caras-pintadas e usaram o verde e o amarelo no rosto para exigir que
Lula continuasse. E Lula continou.
A luta pelo passe livre
A UBES também retomou com determinação a luta pelo
passe livre. Segundo o Artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases (LDB)
da Educação brasileira, de 1996, é dever do Estado prover o ensino
público com base na igualdade de condições para o acesso. O texto da
legislação é claro: todos os alunos precisam ter as mesmas condições
para chegar à escola e nela permanecer. Porém, a realidade traz à tona
um cenário bem diferente. Um dos maiores motivos da evasão escolar
em todos os tempos, mas principalmente a partir da década de 1990,
tem sido a falta de recursos do estudante para pagar o seu transporte
até a escola. Nas famílias com pouca renda e mais de um filho em idade
escolar, a situação se agrava.
A luta pelo passe estudantil no movimento secundarista começou
localizada em algumas grandes cidades do país. É uma luta antiga, já
presente na juventude da década de 1940. Os estudantes começaram
a se reunir em diversos protestos pela ampliação do acesso estudantil
ao transporte público, por meio da criação de legislações municipais e
estaduais. Durante os anos 90 e começo dos anos 2000, as manifestações
cresceram em proporção, ganharam corpo e tiveram grande repercussão
por meio de movimentos como a “Revolta do Buzú” (2003, Salvador) e a
“Revolta da Catraca” (2004 e 2005, Florianópolis).
Em Salvador, os protestos começaram com passeatas contra o
aumento da tarifa de ônibus e ganharam uma proporção tão grande que
se chegou a paralisar a cidade completamente durante 15 dias. “O saldo
dessa luta foi que, depois de 15 anos, conseguimos ampliar o direito ao
passe estudantil, que antes valia só de segunda a sexta-feira, para sábado
Em defesa do passe livre, Rio de Janeiro (Acervo MME)
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e domingo e também para as férias. O estudante passou a ter direito
à meia-passagem durante todo o ano”, comenta Gavião ao MME. “Além
disso, reconstruímos o conselho municipal de transporte e conquistamos
a extensão da meia passagem para os cursos técnico-profissionais, que
antes não tinham direito. Aquele movimento acabou impulsionando a luta
contra o aumento da passagem de ônibus em todo o país.”
No 36º Congresso da UBES, em 2005, a entidade elegeu o
mineiro Thiago Franco como presidente e definiu que a luta pelo passe
estudantil seria a principal bandeira da gestão. Grandes manifestações
aconteceram no Dia Nacional de Defesa do Passe Estudantil, em 22 de
março de 2006, com o lema “O Futuro do País Pede Passagem”.
As atividades aconteceram em 40 cidades, com grandes
mobilizações em São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte. Em 2007, o dia
foi marcado por grandes protestos, como os que aconteceram no Rio de
Janeiro, em Manaus, e Brasília. “Para se chegar a uma nova escola, que
a UBES defende, lutamos muito pelo passe estudantil para retirar das
costas dos estudantes brasileiros o alto custo das passagens, dando
margem para o estudante ter mais acesso à cultura, lazer e esporte,
condições essenciais para sua formação. E foi isso que mais de 150 mil
estudantes fizeram naquele momento nas ruas do Brasil”, relatou o ex-
presidente Thiago Franco ao Estudantenet.
A maior dessas iniciativas, porém, foi a Caravana UBES em Defesa
do Passe Estudantil, em 2007, que visitou 20 cidades em 11 estados
nos meses de março, maio e junho. A Caravana percorreu escolas de
todas as regiões do país, promovendo debates e apresentações teatrais.
Foram realizados encontros com governadores, prefeitos, deputados,
vereadores, secretários de estado e outras autoridades, que receberam
um modelo de projeto de lei do passe estudantil elaborado pela UBES.
Mudanças Educacionais
Outro avanço dos mais
importantes para a formação de
jovens críticos e conscientes foi à
obrigatoriedade do ensino da Sociologia
e Filosofia no ensino médio “Garantir
Levante do Busão contra
o aumento das passagens. São Paulo. (Acervo
UBES)
Thiago Franco, presidente UBES 2005-07. (Acervo UBES)
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as duas disciplinas no currículo contribui para ampliar a capacidade de
questionar, compreender e modificar o mundo em que vivemos”, afirmou
Thiago, o ex-presidente da UBES, em artigo ao jornal Plug.Em 2007, o governo Lula lançou o Plano de Desenvolvimento
da Educação (PDE) — um pacote de medidas que busca integrar todos
os níveis e os diferentes setores da educação, com destaque para a
educação básica. Seus objetivos principais são melhorar a qualidade do
ensino, diminuir a evasão escolar e o analfabetismo, além de ampliar o
acesso da população aos estudos. Embora o PDE traga inúmeros avanços
reivindicados pelos estudantes e setores da educação durante muitos
anos, eles sequer foram chamados para debater o projeto. Talvez por
isso, apresente lacunas e insuficiências.
“O PDE não diz nada sobre a participação dos pais, professores,
Caravana em defesa do pas-se estudantil (Acervo UBES)
estudantes e funcionários na vida escolar, por meio da formação de
conselhos, eleição direta para diretores e livre organização de grêmios
estudantis. Esses elementos são indispensáveis ao bom exercício da
cidadania e democracia na escola e estão presentes hoje em praticamente
todos os discursos sobre reforma educacional”, analisa Thiago Franco.
Mas o governo também, após muita reivindicação da UBES e
dos movimentos sociais, aprovou do Fundeb (Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica), em substituição ao Fundef. O
novo fundo multiplicou por dez a complementação da União que visa
equalizar o investimento por aluno no país, além de incluir as matrículas
da educação infantil, do ensino médio e da educação de jovens e adultos,
desconsideradas pelo fundo anterior, restrito ao ensino fundamental
regular.
Voltando pra Casa
Já a luta pela
retomada da sede história
na Praia do Flamengo —
luta que, por sinal, não
teve avanço algum durante
o governo FHC — se torna plenamente exitosa sob o segundo governo
Lula. Em 2007, UBES e UNE recuperam o direito de voltar para casa,
Estudante na demolição do estacionamento ilegal que fun-cionava na Praia do Flamengo. Campanha “UBES e UNE De Volta pra Casa” 2007 (Acervo UBES Foto:Lucimar Bersot)
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depois que uma passeata com 5 mil pessoas, em 1º de fevereiro, ocupa
o terreno. A marcha, durante a 5º Bienal de Arte e Cultura da UNE,
mobilizou estudantes secundaristas e universitários, ex-militantes e
ex-dirigentes das entidades estudantis. Era a campanha “De Volta para
Casa”.
Depois de a sede ter sido demolida pelo governo militar,
funcionava ali um estacionamento clandestino, interditado pela prefeitura
poucos dias antes da Bienal. Assim que entraram, os estudantes
levantaram acampamento e não arredaram pé por mais de cinco meses,
ocupando o espaço com cultura e debates, recebendo a visita e o apoio
de políticos e personalidades.
O terreno voltou de fato para as mãos dos estudantes com a
sentença do juiz Jaime Dias Pinheiro Filho, da 43ª Vara Cível do Rio. Com
um novo projeto de sede, desenhado especialmente por Oscar Niemeyer
e entregue aos presidentes da UBES, Thiago Franco, e da UNE 2007-09,
Lúcia Stumpf, os estudantes planejam as obras do Centro Cultural que
deverá funcionar ali.
No final de 2007, Lula se reuniu com Thiago e Lúcia para
tratar da construção da nova sede, com apoio do Estado. Durante a
conversa, o presidente e os estudantes concordaram que a invasão e
destruição do prédio na praia do Flamengo são dívidas social do Estado
com os estudantes. Após o encontro, o presidente da UBES se mostrou
otimista: “Para nós, será muito importante resgatar não só o endereço,
mas fundamentalmente toda a história de combatividade e luta que
marcou e ainda marca o movimento estudantil, principalmente no Rio de
Janeiro”. Thiago ainda ressaltou a importância da UBES ter sido fundada
naquele endereço e o simbolismo do retorno no momento em que a
entidade se preparava para os seus 60 anos.
Em 12 de agosto de 2008, essa conversa com o presidente Lula
rendeu frutos. Pela segunda vez na história do movimento estudantil,
um presidente da República visitou a sede das entidades, acompanhado
de várias autoridades políticas e muitos estudantes presentes. Lula
aproveitou a ocasião para assinar um projeto de lei que reconhece a
responsabilidade do governo brasileiro na destruição da sede da UBES e
da UNE — medida que foi encaminhada para a Câmara dos Deputados,
onde uma comissão deve definir uma indenização pelo incêndio da
sede.
Passeata pela retomada do terreno na Praia do Flamengo, 132 – Rio de Janeiro, 2007 (Acervo UBES – Foto: Lucimar Bersot)
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No último período, o debate educacional do Brasil tem sido
marcado pela forte defesa do fim do vestibular — um dos principais
debates do 37º Congresso da UBES, ocorrido em Goiânia em 2007, que
elegeu o carioca Ismael Cardoso à presidência da entidade. Os vestibulares
existentes no país não atendem mais à sede de conhecimento dos
jovens. São insuficientes para os candidatos e massacram o ensino
médio. O processo de admissão à universidade só prova que é capaz
de selecionar os mais preparados, pois para esses basta escolher seu
Lúcia Stumpf (UNE) e Thiago Franco (UBES)
na entrega do projeto na
entrega do projeto de
Oscar Niemayer para a sede
das entidades. (Acervo UBES)
curso favorito e fazer o vestibular que mais desejar.
Os outros, para aumentarem as chances, têm de realizar diversos
vestibulares, mas há muitas taxas a pagar e mais os deslocamentos
para diversas cidades. Assim, a proposta de vestibular único é de fato
um passo adiante para os vestibulandos, e o plano inicial do Ministério
da Educação, voltado para as universidades federais, vem com a nova
versão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que começou a valer
a partir de 2009 com finalidades distintas. Além de servir de diferentes
maneiras no processo seletivo das universidades federais, o Enem passa
a ser utilizado para a seleção dos bolsistas do Programa Universidade
para Todos (ProUni) e ainda continuará valendo como parte das notas
de alguns vestibulares de instituições particulares.
Lúcia Stumpf – UNE e Ismael Cardoso – UBES com o presi-dente Lula da Silva em visita a sede das en-tidades. Rio de Janeiro, 2008 (Acervo UBES – Foto: Ricardo Stuckert)
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A proposta é boa, porém é tímida diante do imenso problema
que é o acesso a universidade. A UBES acredita na proposta de substituir
o vestibular tradicional pelo “Enem seriado”, em que o exame seria
adotado ao final dos três anos do ensino médio. Para Ismael Cardoso, a
proposta é limitada, pois não substitui o vestibular tradicional pelo novo
Enem. “A ideia é pegar o filme do estudante e não a foto. A melhoria
do vestibular tem que estar casada com a melhoria do ensino médio.
A aplicação do exame de modo seriado também ajudaria a aprimorar o
ensino médio” comenta Ismael em entrevista ao portal G1.
Como o currículo escolar hoje é tão extenso, muitos assuntos
são diluídos no meio de tanta informação. A educação acaba voltada
à decoreba, limita o real aprendizado e não aprofunda o saber do
estudante. O atual ministro da Educação, Fernando Haddad, concorda com
a avaliação da UBES: “O vestibular está desorganizando o currículo do
ensino médio. Os assuntos cobrados não colaboram para a compreensão
do mundo e seus fenômenos.”
O vestibular acentua, assim, a má qualidade do ensino médio. É
por sua causa que muitos currículos incluem conhecimentos que visam
apenas às provas de acesso ao ensino superior. “Não é necessário que
um jovem, para cursar uma faculdade, saiba o que lhe é perguntado
Fim do vestibular – o livre acesso no vestibular”, opina o sociólogo Rudá Ricci, professor da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). “Ao invés de saber o
que o vestibular pergunta, deveríamos perguntar o que país quer que
o jovem saiba.”
Países da America Latina adotam o método que a UBES defende
para a avaliação e o ingresso na universidade. No Uruguai, por exemplo,
desde o século 19 é a avaliação continuada que determina a conclusão
do ensino médio e a entrada na universidade pública. Na avaliação da
UBES, ao longo dos anos o aluno tem maneiras de se aperfeiçoar e se
preparar melhor para ingressar no ensino superior. “A avaliação seriada
dá chance para o aluno ver o que errou e melhorar”, diz Ismael.
Um dos adeptos desse tipo de proposta seriada é Aloísio
Teixeira, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em
entrevista ao O Globo, Aloísio falou sobre do desempenho escolar como
forma de acesso: “Teríamos formas de ingresso, através da vinculação
orgânica entre a universidade pública e a rede pública de ensino pré-
universitário. A universidade faria um sistema de acompanhamento e
avaliação dos estudantes ao longo do curso. Poderíamos começar pelo
ensino médio e progressivamente ir abarcando todo o ensino básico.
Com isso, daqui uns anos teríamos um sistema de acesso inteiramente
diferente. Mais justo. Um sistema que valoriza o conjunto das atividades
do estudante ao longo da sua vida escolar, e não mais o vestibular, uma
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excrescência brasileira”.
Para Sírio Lopez Velasco, especialista em ética e educação
ambiental e docente no Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da Fundação Universidade Federal de Rio Grande (FURG), o
fim dos vestibulares tem resistência, pois existe uma elite de boa parte
dos docentes. “Fatores que tendem a colocar o vestibular como sendo
uma espécie de criação divida indispensável e eterna. Não esqueçamos,
tampouco, dos interesses dos cursinhos pré-vestibulares”.
Portanto, na avaliação da UBES ao longo dos anos o aluno
tem maneiras de se aperfeiçoar e se preparar melhor para ingressar
no ensino superior como. Essa bandeira de luta da entidade ainda
deve gerar muitos debates até chegar a vitórias para os estudantes
brasileiros.
Oclae, a integração do movimento estudantil
A UBES, nesta década, destacou-se ainda no plano internacional,
sobretudo na Organização Continental Latino-Americana dos Estudantes
(Oclae). Na realidade, a maior entidade dos secundaristas brasileiros
sempre tem uma grande participação internacional desde a década de
50, participando dos fóruns da União Internacional dos Estudantes (UIE).
Em novembro de 1992, filiou-se à Oclae durante o 9º Congresso Latino-
Americano de Estudantes. Importantes momentos da Oclae foram vividos
recentemente no Brasil, como a realização, em 2005, do seu congresso,
o 14º Clae, e a 1º Trienal de Cultura da Oclae respectivamente nas 4ª
e 6º Bienais de Arte e Cultural da UNE.
Sem contar o 1º Encontro Latino Americano e Caribenho de
Estudantes Secundaristas, que aconteceu no Rio de Janeiro, em setembro
de 2009 simultaneamente ao 12º Coneg da UBES. As semelhanças e
Marcelo Gavião (UBES), Gustavo Petta (UNE) com o presidente da Venezuela no Festival Mundial da Juventude. 2005. (Acervo UNE)
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diferenças da educação pública no continente deram a linha dos debates.
“Mais do que compartilhar experiências é fundamental construir uma
agenda comum para garantir vitórias no continente, não só no que
diz respeito a políticas educacionais, mas em defesa da democracia na
região”, afirma Ismael Cardoso, presidente da UBES eleito em 2007.
“Sem dúvida, o 1º Encontro Latino-Americano e Caribenho
de Estudantes Secundaristas marca o desenvolvimento do movimento
estudantil secundarista do continente e a definição de ações conjuntas,
como a realização de uma Jornada Continental de Lutas”, opinou o
presidente da Oclae, Roberto Obregón, em entrevista ao Estudantenet.
“Foi um privilégio também ter sido consensual entre os participantes
desse encontro que vai haver um 2º Encontro Latino-Americano e
Caribenho de Estudantes Secundaristas, no marco da realização da 17º
Clae, na Nicarágua.”
Fundada em 11 de agosto de 1966, a Oclae surgiu da
articulação de representantes do movimento estudantil que lutavam
contra a intervenção norte-americana na educação de seus países.
Com mais de 40 anos de luta, reúne 38 entidades, universitárias e
secundaristas, que representam 23 países. Em quatro décadas, muitas
bandeiras já foram levantadas pela entidade. A Oclae tem um histórico
de luta anti-imperialista, defesa da democratização do ensino e da
Ismael Cardoso em passeata no Rio de Janeiro, 2008 (Acervo UBES)
universidade pública. Também defende os estudantes nos órgãos de
administração e gestão educacional, a autonomia universitária e a
pluralidade acadêmica.
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Pronta para muitos anos de lutaA UBES passou 60 ajudando a impulsionar a mudança de
rumos do Brasil, mas a realidade vive trazendo novos desafios. Os secundaristas brasileiros estão cientes que precisam fazer mais lutas, unir ainda mais o movimento, falar com milhares de estudantes e ampliar cada vez mais o nível de organização. Só assim a UBES continuará a ser o principal canal de participação dos estudantes brasileiros que persistem na luta pela verdadeira mudança.
Porque o Brasil sempre teve manifestações juvenis grandes. Muitos acontecimentos da história brasileira, quando tiveram desfechos mais favoráveis ao povo, assim aconteceram com a participação dos estudantes, principalmente os secundaristas. Esses jovens lutadores sempre formaram um contingente enorme de povo brasileiro. Se em algum registro de lutas populares e sociais não houver os estudantes secundaristas, não estará ali a verdadeira história do Brasil.
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Raisa Marques
Paranaense de Campo Mourão, tem 23 anos de idade. Foi
presidente da União Mourãoense dos Estudantes Secundaristas (UMES)
e membro da diretora executiva da UBES por duas gestões. É autora do
livro UMES, 35 anos — Uma Rebeldia Consequente (2004). Atualmente, é
graduanda em História e atua em pesquisas sobre movimento estudantil
secundarista.
André Cintra
Nascido em São Paulo (SP) no ano de 1980. Foi militante
estudantil e se graduou em Comunicação Social na Faculdade Cásper
Líbero. É jornalista, consultor editorial e escritor. Já prestou serviços
para diversas empresas, instituições e entidades. Integra desde 2006
a equipe do portal Vermelho, onde já foi editor de “Movimentos Sociais”,
“Cultura” e “Mídia”.
Autores Acervos pesquisados- Associação Brasileira de Imprensa - ABI- Biblioteca Nacional- Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea – CPDOC/FGV- Projeto Memória do Movimento Estudantil - PMME- Centro de Estudos de Memória da Juventude – CEMJ- Arquivo Público do Estado de São Paulo- Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro - AMORJ- Biblioteca Pública do Estado do Paraná- Arquivo Nacional - AN- Arquivo da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo - UMES- Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ- Arquivo da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBES- Arquivo da União Mourãoense dos Estudantes Secundaristas – UMES- Arquivo Público do Paraná- Arquivo Público Mineiro
DepoimentosTodos depoimentos retirados do programa de memória oral do Projeto Memória do Movimento Estudantil estão disponíveis no site: www.mme.org.br e os depoimentos obtidos pelo Projeto Sempre Jovem e Sexagenária estão disponíveis no arquivo da UBES.
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