lacan, jacques. o seminário livro 05

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Jacques Lacan , o SEMINARIO rexto estabelecido par Jacques-Alain Miller l'oIlN II', /110-502-2 111111111111111111111111 'J fII/I',/l 105027 Quando resolvi abordar com voces, este ano, a questao do Witz ou do wit, iniciei uma pequena pesquisa. Nao ha nada de surpreendente em que a tenha comegado interrogando um poeta. Trata-se de um poeta que introduz em sua prosa, bem como em formas mais poeticas, a dimensao de um espfrito singularmente dangarino que habita sua obra, e que ele faz vibrar ate quando fala, vez ou outra, de matematica, pois e tambem matematico. Estou me referindo a Raymond Queneau. Quando trocavamos nossas primeiras ideias a esse respeito, ele me contou uma historia. Eo a historia de um exame, de bacca/aureat, por exemplo. Temos 0 candidato e temos 0 examinador. - Fa/e-me, diz 0 examinador, da bata/ha de Marengo. o candidato para por um instante, com ar pensativo: - A bata/ha de Marengo ... ? Mortos! Uma coisa medonha ... Fer/dos! Assustador. .. - Mas, diz a examinador, a senhor nao pode me dizer a/go mais especffica sabre essa bata/ha? o candidato reflete por um momenta e responde: - Um cava/a empinada nas patas traseiras, e que relinchava. Surpreso, 0 examinador quer sonda-Io um pouco mais, e Ihe diz: - Cava/heiro, sendo assim, quer ter a bandade de me fa/ar da bata/ha de Fantenay? - A bata/ha de Fontenay? ... Martas! Par tada parte ... E feridas! Uma parr;aa de/es, um harror ... o examinador, interessado, diz: - Mas sera que a senhar pade me dar uma indicar;aa mais especffica sabre essa bata/ha de Fantenay? - Oh! diz 0 candidato, um cava/a empinado nas patas traseiras, e que relinchava. Fazendo uma manobra, 0 examinador pede ao candidato que Ihe fale da batalha de Trafalgar. E ele responde: - Mortos! Uma carnificina ... E feridas! As centenas ... - Mas, afina/, cava/heiro, a senhar naa pade me dizer nada mais especffica sabre essa bata/ha? - Um cava/a ... - Oescu/pe, meu senhar, deva abservar que a bata/ha de Trafa/gar fai uma bata/ha naval. - Oa6! Oa6! diz 0 candidato, para tras, cavalinho! o valor dessa historia esta, a meu ver, em permitir decompor, creio eu, aquilo de que se trata na tirada espirituosa. (Excerto do capitulo VI) 1J-2·£1 Jorge Zahar Editor o Jorge Zahar Editor

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Page 1: Lacan, jacques. o seminário   livro 05

Jacques Lacan,o SEMINARIO

rexto estabelecido parJacques-Alain Miller

l'oIlN II', /110-502-2

111111111111111111111111'J fII/I',/l 105027

Quando resolvi abordar com voces, este ano, a questao doWitz ou do wit, iniciei uma pequena pesquisa. Nao ha nadade surpreendente em que a tenha comegado interrogandoum poeta. Trata-se de um poeta que introduz em sua prosa,bem como em formas mais poeticas, a dimensao de umespfrito singularmente dangarino que habita sua obra, e queele faz vibrar ate quando fala, vez ou outra, de matematica,pois e tambem matematico. Estou me referindo a RaymondQueneau. Quando trocavamos nossas primeiras ideias aesse respeito, ele me contou uma historia. Eo a historia deum exame, de bacca/aureat, por exemplo. Temos 0 candidatoe temos 0 examinador.

- Fa/e-me, diz 0 examinador, da bata/ha de Marengo.

o candidato para por um instante, com ar pensativo: - Abata/ha de Marengo ... ? Mortos! Uma coisa medonha ...Fer/dos! Assustador. ..

- Mas, diz a examinador, a senhor nao pode me dizer a/gomais especffica sabre essa bata/ha?

o candidato reflete por um momenta e responde: - Umcava/a empinada nas patas traseiras, e que relinchava.

Surpreso, 0 examinador quer sonda-Io um pouco mais, eIhe diz: - Cava/heiro, sendo assim, quer ter a bandade deme fa/ar da bata/ha de Fantenay?

- A bata/ha de Fontenay? ... Martas! Par tada parte ... Eferidas! Uma parr;aa de/es, um harror ...

o examinador, interessado, diz: - Mas sera que a senharpade me dar uma indicar;aa mais especffica sabre essabata/ha de Fantenay?

- Oh! diz 0 candidato, um cava/a empinado nas patastraseiras, e que relinchava.

Fazendo uma manobra, 0 examinador pede ao candidatoque Ihe fale da batalha de Trafalgar. E ele responde: - Mortos!Uma carnificina ... E feridas! As centenas ...

- Mas, afina/, cava/heiro, a senhar naa pade me dizer nadamais especffica sabre essa bata/ha?

- Um cava/a ...

- Oescu/pe, meu senhar, deva abservar que a bata/ha deTrafa/gar fai uma bata/ha naval.

- Oa6! Oa6! diz 0 candidato, para tras, cavalinho!

o valor dessa historia esta, a meu ver, em permitir decompor,creio eu, aquilo de que se trata na tirada espirituosa.

(Excerto do capitulo VI)

1J-2·£1 Jorge Zahar Editor

o

Jorge Zahar Editor

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CAMPO FREUDIANONO BRASIL Jacques Lacan

Cole9aa dirigida par Jacques-Alain e Judith MillerAssessaria brasileira: Angelina Harari

,o SEMINARIOlivro 5

as forma<;oesdo inconsciente

Texto estabelecido parJacques-Alain Miller

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

Page 3: Lacan, jacques. o seminário   livro 05

Preparac;:ao de texto:Andre Telles

Titulo original:Le Seminaire de Jacques Lacan

Livre V: Les formations de I'inconscient (1957-1958)

as forma90es do inconsciente1957-1958

Traduc;;ao autorizada da primeira edic;;ao francesapublicada em 1998 par Editions du Seuil,

de Paris, Franc;;a, na colec;;ao Le Champ Freudien,dirigida por Jacques-Alain e Judith Miller

Copyright © 1998, Editions du Seuil

Copyright © 1999 da ediC;;ao brasileira:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mexico 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJtel: (021) 240-0226/ fax: (021) 262-5123

Traduc;ao:Vera Ribeiro

Versao final:Marcus Andre Vieira

Todos os direitos reservados.A reproduc;;ao nao-autorizada desta publicac;;ao, no todoou em parte, constitui violac;;ao do copyright. (Lei 5.988)

CI P-Brasil. CatalogaC;;ao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Lacan, Jacques, 1901-1981o seminario, livro 5: as formac;;6es do inconscien-

te (1957-1958) / Jacques Lacan; texto estabelecidopor Jacques-Alain Miller; [traduc;;ao de Vera Ribeiro;revisao de Marcus Andre Vieira]. - Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1999

(Campo freudiano no Brasil)

Traduc;;ao de: Le seminaire de Jacques Lacan,livre V: les formations de I'insconscient (1957-1958)

ISBN: 85-7110-502-2

1. Psicanalise. 2. Inconsciente. I. Miller, Jac-ques-Alain. II. Titulo. III. Serie.

CDD- 150.195CDU - 159.964.2

Page 4: Lacan, jacques. o seminário   livro 05

SUMARIO

AS ESTRUTURAS FREUDIANAIDO ESP!RITO

IX. A metafora paterna 166

X. Os tres tempos do Edipo 185

XI. Os tres tempos do Edipo (II) 204

XII. Da imagem ao significante no prazer eJrazcr I, I I

XIII. A fantasia para alem do princfpio de l

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SUMARIO

AS ESTR UTURAS FREUDIANASDO ESP/RITO

IX. A metafora paterna 166

X. Os tres tempos do Edipo 185

XI. Os tres tempos do Edipo (II) 204

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XIV. 0 desejo e 0 gozo 261

XV. A menina eo falo 280

XVI. As insfgnias do Ideal 299

XVII. As formulas do desejo 314

XVIII. As mascaras do sintoma 330

AS ESTRUTURAS FREUDIANASDO EspiRITO

A DIALETfCA DO DESEJO E DA DEMANDANA CLfNICA E NO TRATAMENTO DAS NEUROSES

XX. 0 sonho da bela a~ougueira 367

XXI. Os sonhos da "agua parada" 383

XXII. 0 desejo do Outro 399

XXIII. 0 obsessivo e seu desejo 417

XXIV. Transferencia e sugestao 435

XXV. A significa~ao do falo no tratamento 451

XXVI. Os circuitos do desejo 468

XXVII. Uma safda pelo sintoma 485

XXVIII. Tu es aquele a quem odeias 504

A. 0 grafo do desejo 525

B. Explica~ao sobre os esquemas 526

Page 7: Lacan, jacques. o seminário   livro 05

POl1luar;ao dos seminarios anterioreso esquema do Witzo esp£rito e suas tradi~'i5es nacionaisA SLlnr;aodo Outroo que s6 se vi ofhando para outro fugar

Tomamos este ana pOl' tema de nosso seminario as formar;;oes doinconsciente.

Aqueles dentre voces, e creio que saG a maioria, que estiveramaqui ontem a noite em nossa sessao cientffica, ja esUio afinados esabem que as quest6es que lcvantaremos aqui dizem respeito, destavez de maneira direta, a fungao, no inconsciente, daquilo que ao longodos anos anteriores elaboramos como sendo 0 significante.

Alguns de voces - expresso-me assim pOl'que minhas ambigoessaG modestas - terao lido, espero, 0 artigo que publiquei no terceironumero da revista La Psychanalyse, com 0 titulo" A instancia da letrano inconsciente".* Os que tiverem tido essa coragem estarao em hoascondigoes, ou em melhor situac,:ao do que os outros, para acompanharaquilo de que se tratara. Alias, uma pretensao modesta que ]JOSSllIn,

parece-me, c que voces, que se dao ao trabalho de escutar 0 lIll,' di,I'O,

tambem se deem ao trabalho de ler 0 que escrevo, ja lilli', :i1ill:i1, (.

para voces que 0 fago. Quem nao tiver lido, pOrU1I1(ll,1:11':1kill ('III

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se reportar a este artigo, ja que Ihe farei referencia 0 tempo todo. Souobrigado a dar por conhecido 0 que ja foi enunciado uma vez.

Pensando nos que nao tern nenhuma dessas preparac;:6es, YOUdizer-Ihes a que me limitarei hoje, e que sera 0 objeto desta aula deintroduc;:ao em nosso assunto.

Num primeiro tempo, de maneira forc;:osamente breve e alusiva,uma vez que nao posso recomec;:ar, YOUrelembrar-Ihes alguns pontosque pontuam 0 que, nos anos anteriores, iniciou e anunciou 0 quetenho a Ihes dizer sobre a fun<;;ao do significante no inconsciente.

Em seguida, e para repouso do espfrito daqueles a quem estabreve rememorac;:ao possa deixar meio sem fOlcgo, pretendo explicar-Ihes 0 que significa a esquema a que teremos de nos reportar em todaa sequencia de nossa experiencia tearica deste ano.

Por ultimo, tomarei urn exemplo. Trata-se do primeiro exemplode que se serve Freud em seu livro sobre a tirada espirituosa.* Naoo farei para fins de ilustrac;:ao, mas sim porque so existe tiradaespirituosa particularizada - nao ha tirada espirituosa no espac;oabstrato. Comec;arei pOl' Ihes mostrar, a proposito disso, em que atirada espirituosa revela-se a melhor entrada em nosso assunto, asformac;:6es do inconsciente. Essa e nao apenas a melhor entrada, mastambem a mais brilhante forma com que 0 proprio Freud nos apontaas relac;6es do inconsciente com 0 significante e suas tecnicas.

Eis, portanto, minhas tres partes. Com isso voces saberao a queficar atentos naquiJo que you explicar; 0 que lhes permitira, ao mesmotempo, dosar seu esforc;o mental.

Nao sendo esta determina~'iio no sentido Olltra cois;l. 11;1'1'1<'1.1

ocasiao, senao .uma definic;ao da razao, recordo-Jhes que cssa );1/;1<'

se encontra no proprio principio da possibilidade da psican,llisl·. I'.justamente pOl'que alguma coisa foi atada a alguma coisa semelhalllt"a rala que 0 discurso pode desata-Ia.

Assinalei a esse respeito a distancia que separa a fala, quandopreenchida pelo ser do sujeito, do discurso vazio que burburinha pmsobre os atos humanos. Esses atos sao tornados impenetraveis pelaimaginac;:ao de motivos irracionais, uma vez que so saD racionalizadosna perspectiva egoica do desconhecimento. Que 0 proprio eusejafunc;:ao da relac;ao simbolica e possa ser afetado pOl' cIa em suadensidade, em suas func;:6es de sfntese, todas igualmente feitas de umamiragem, mas de uma miragem cativante, isso, como igualmente Ihesensinei no primeiro ano, so e possfvel em razao da hiancia aberta noser humano pela presenc;:a nell', biologica, original, da morte, emfunc;:ao daquilo que chamei de prematurac;:ao do nascimento. Eis 0

ponto de impacto da intrusao simbolica.Era a esse ponto que havfamos chegado na articulac;:ao de meu

primeiro seminario com 0 segundo.o segundo seminario valorizou 0 fator da insistencia repetitiva

como oriunda do inconsciente. Identificamos sua consistencia naestrutura de uma cadeia significante; foi 0 que tentei faze-Ios vislum-brar, ao lhes dar urn modelo sob a forma da chamada sintaxe dos ex~ y 8.

Atualmente voces tern, em meu artigo sobre A carta rouhada,uma exposic;:ao escrita que constitui um resumo sucinto dessa sintaxe.Apesar das crfticas que recebeu, algumas das quais tinham fundamento- ha ali dois errinhos que convira corrigir numa edic;:ao posterior-, ele ainda devera servir-Ihes por muito tempo. Estou inclusiveconvencido de que se modificara ao envelhecer, e de que vocesencontrarao menos dificuldade de se reportar a ele dentro de algunsmeses, ou mesmo no fim deste ano. Isso c dito para responder aosesforc;:os louvaveis que fizeram alguns para reduzir sua importancia.Essa foi para ell'S, pelo menos, uma oportunidade de se testarem, quee precisamente tudo 0 que procuro. Nao importa com que impassetenham-se deparado, e justamente para essa ginastica que ell' Ihes ter,iservido. Ell'S terao opprtunidade de encontrar outra no que terei enscj,)de lhes mostrar este ano.

Certamente, como me frisaram e ate escreveram os que sc tln,lllla esse trabalho, cada urn desses quatro termos c marcado Ill») 11111;1

ambiguidade fundamental, mas e precisamente cia qlll' (,OII~;1111I1 "

o primeiro ano de meu seminario, dedicado aos escritos tecnicos deFreud, consistiu essencialmente em apresenta-Ios a noc;:ao da func;aodo simbolico como a unica capaz de dar conta do que podemos chamaI'de determinac;:ao no plano do sentido [determination dans Ie sens], namedida em que essa e a I'ealidade fundamental da experiencia freu-diana.

* Aqui e praticamente ao longo de todo este Seminurio, Lacan traduz 0 Witz alemaonao pelo habitual mot d' esprit que ele proprio usava, mas pela expressao trait d' espritItirada espirituosa, rasgo de engenhosidade etc.]. A tradll~ao pOl' chiste ficou reser-valia para os easos em que aparece em franees mot d'esprit. (N.E.)

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valor do exemplo. Com esses agrupamentos, enveredamos pelo ca-minho daquilo que comp6e a especulas;ao atual sobre os grupos e osconjuntos. Essas pesquisas baseiam-se no principio de partir de es-truturas complexas, apresentando-se as estruturas simples unicamentecomo casos particulares. Nao Ihes relembrarei como san geradas aslctrinhas, mas com certeza, depois das manipulas;6es que permitemdefini-Ias, chegamos a algo muito simples. Cada uma del as, comefeito, e definida pelas relas;6es mtituas entre os dois termos de doispares, 0 par do simetrico e do dissimetrico, do dissimetrico e dosimetrico, e, em seguida, 0 par do semelhante com 0 dessemelhante,e do dessemelhante com 0 semelhante. Temos ai, pOl"tanto, urn grupode quatro significantes que tern a propriedade de cada urn deles seranalisavel em funs;ao de suas relas;6es com os outros tres. Paraconfirmar, de passagem, esta analise, acrescentarei que urn grupoassim e, segundo Roman Jakobson, em suas proprias palavras, quecolhi quando 0 encontrei recentemente, 0 grupo minimo de signifi-cantes que se faz necessario para que sejam dadas as condis;6esprimarias, elcmentares, da analise lingiiistica. Ora, como verao, estaultima tern a mais estreita relas;ao com a psicanalise pura e simples.Elas chegam a se confundir. Se examinarmos de perto, veremos quenao san essencialmente diferentes uma da outra.

No terceiro ana de meu seminario, falamos da psicose comofundamentada numa carencia significante primordial. Mostramos 0

que sobrevem de subducs;ao do real quando, arrastado pela invocas;aovital, ele vem tomar lugar na carencia do significante da qual falavamosontem a noite sob a denominas;ao de Verwerfllng, e que, admito, naodeixa de apresentar certas dificuldades, razao por que voltaremos acIa este ano. Creio, nao obstante, que 0 seminario sobre a psicoseIhes permitiu compreender, se nao 0 fundamento ultimo pclo menoso mecanismo essencial da redus;ao do Outro, do grande Outro, doQutro como sede da fala, ao outro imaginario. E uma supIencia dosimbolico pelo imaginario.---

Com isso, voces apreenderam como podemos conceber 0 efeitode total estranheza do real que se produz nos momentos de rupturadesse dialogo do delfrio que e 0 unico pelo qual 0 psicotico podesustentar em si 0 que chamaremos de uma certa intransitividade dosujeito. A nos a coisa parece muito natural. Penso, logo existo, dizemosintransitivamente. Com certeza, e essa a dificuldade para 0 psicotico,precisamente em razao da redus;ao da duplicidade do Outro cQJ:rlmaillscula e do outro com minuscula, do Outro como sede da fala_egarantia da verdade, e do outro dual, que e aquele diante de quem 0

sujeito s_een contra como sendo sua propria imagem. 0 de~aparec:i=men to dessa dualidade e justamente 0 que causa ao psicotico tantasdificuldades de se manter num real humano, isto e, num real simbolico.

No decorrer desse terceiro ano, ao tratar da dimensao daquilo aque chama dialogo, na medida em que ele permite ao sujeito susten-tar-se, ilustrei isso, nada mais nada menos, com 0 exemplo da primeiracena de Atalia. * Essa e uma lis;ao que eu gostaria de ter retomadopara escrever, se tivesse tido tempo.

Creio, no entanto, que voces nao esqueceram 0 extraordinariodialogo inicial da pes;a, onde vemos adiantar-se Abner, esse prototipodo irmao falso e do agente duplo, que vem sondar 0 terreno logo noprimeiro anuncio. Seu Sim, venho a sell templo adorar 0 Eterno fazressoar de imediato uma tentativa qualquer de sedus;ao. A maneiracomo coroamos essa pes;a fez-nos esquecer urn poueo, sem duvida,todas essas ressonancias, mas vejam como e extraordinario. Iii indiqueicomo, par seu lado, 0 Sumo Sacerdote contribuiu com alguns signi-ficantes essenciais: E Deus, jlllgado fiel em todas as Sllas amear;as,ou entao As promessas do Cell, por que renunciais? 0 termo Cell, ealgumas outras palavras bastante exuberantes, nada mais saD do quesignificantesjJui:os. Apontei seu vazio absoluto. Joad, se assim possodizer, traspassa seu adversario a ponto de, dali por diante, fazer deleunicamente 0 verme derrisorio que, como Ihes disse, retomara asfileiras da procissao e servira de isca para Atalia, a qual, nessejoguinho, acabara por sucumbir.

A relas;ao do significante com () significado, tao sensivel nessedialogo dramatico, lcvou-me a fazer referencia ao celebre esquemade Ferdinand de Saussure em que vemos representado 0 duplo fluxoparalelo do significante e do significado. distintos e fadados a urnperpetuo deslizamento um sobre 0 outro. Foi a proposito disso quefOljei a imagem, retirada da tecnica do estofador, do ponto de basta.E preciso que em algum ponto, com efeito, 0 tecido de urn se prendaao tecido do outro, para ~ue saibamos a que nos atermos, pelo menosnos limites possiveis desses deslizamentos. Existem pontos de basta,pOltanto, mas eles deixam uma certa elasticidade nas ligas;6es entreos dois termos.

Retomaremos este ana deste ponto, quando eu Ihes disser a queleva, paralela e simetricamente a isso, 0 dialogo de Joad e Abner, ou

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seja, a que nao ha sujeito verdadeiro que se sustente a nao ser aqueleque fala em nome da palavra. Voces nao esqueceram em que planofala load ~ Eis como esse Deus lJOS responde par ,ninha boca. S6existe sujeito na referencia a esse Outra. Isso e simb6lico daquilo queexiste em toda fala valida.

Do mesmo modo, no quarto ana de seminario, eu quis mostrar-lhesque nao existe objeto a nao ser metonfmico, sendo 0 objeto do desejoobjeto do desejo do Outra, e sendo 0 desejo sempre um desejo deOutra coisa ~ muito precisamente, daquilo que falta, a, 0 objetoperdido primordial mente, na medida em que Freud mostra-o semprepor ser reencontrado. Da mesma forma, nao existe sentido senaometaf6rico, s6 surgindo 0 sentido da substituic;ao de um significantepor outra significante na cadeia simb6lica.

E isso que e conotado no trabalho de que lhes falei ha pouco eao qual os convidei a se referirem, "A instancia da letra no incons-ciente". Os sfmbolos que se seguem sao, respectivamente, os dametonfmia e os da metafora.

onde poderfamos coloca-lo no esquema seria, no entanto, extrema-mente infantil.

J (S. S') s" ~ S (-) 5

J(~)S"~S(+)5\ S

Posto que ha entre a cadeia simb6lica e a corrente do significadocomo que um deslizamento recfproco, que constitui 0 essencial darelac;ao entre elas, e pOsto que, apesar desse deslizamento, existe umaligac;ao, uma coerenci a entre essas duas correntes, a qual e precisoapreendermos onde se passa, pode ser que lhes venha a cabec;a queesse deslizamento, se e que ha deslizamento, e forc;osamente umdeslizamento relativo. 0 deslocamento de cada uma produz umdeslocamento da outra. Alias, deve ser por alguma coisa como 0

entrecruzamento das ciuas linhas em sentido inverso, numa especiede presente ideal, que encontraremos algum esquema exemplar.

E em tomo disso, portanto, que podemos agrupar nossa especu-lac;ao.

S6 que, por mais importante que deva ser para n6s essa noc;ao: do presente, um discul'sO nao e um evento punctiforme, a maneira deRussell, se assim me posso exprimir. Um discurso nao e apenas umamateria, uma textura, rnas requer tempo, tem uma dimensao no tempo,uma espessura. Nao podemos contentar-nos, em absoluto, com umpresente instantaneo, pois toda a nossa experiencia vai contra isso,assim como tudo 0 que 4issemos. Por exemplo, quando comec;o umafrase, voces s6 compreenderao seu senti do quando eu a houverconclufdo. E absolutaInente necessario -- essa e a definic;ao de frase~ que eu tenha dito a ultima palavra para que voces compreendama situac;ao da primeira. Isso nos da 0 exemplo mais tangfvel do quepodemos chamar de ac;ao nachtriiglich do significante. E precisamenteo que nao para de lhes Inostrar no texto da pr6pria experiencia analftica,numa escala infinitall1ente maior, quando se trata da hist6ria dopassado.

Na primeira f6rmula, 0 S esta ligado, na combinac;ao da cadeia,ao S', tudo em reJac;ao a S", 0 que leva a colocar S numa certa relac;aometonfmica com s no nfvel da significac;ao. Do mesmo modo, asubstituic;ao de S por S' em relac;ao a S" leva a relac;ao S(+)s, queaqui indica ~ e mais facil dize-Io do que no caso da metonfmia ~o surgimento, a criac;ao do senti do.

Eis 0 ponto onde estamos. Vamos agora abordar 0 que sera objetode nossas investigac;6es este ano.

Para abordar esse objeto, construf um esquema para voces, e agoralhes direi 0 que, ao menos pOI' hoje, ele Ihes servira para conotar.

Uma vez que temos de encontrar um meio de examinar mais deperto as relac;5es da cadeia significante com a cadeia significada, 0

faremos atraves da imagem grasseira do ponto de basta.Para que isso seja valido, e ainda preciso nos perguntarmos onde

fica 0 estofador. E evidente que ele esta em algum lugar, mas 0 lugar

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Por OlItrO lado, uma coisa esUi clara - essa e uma maneira defalar a qual destaco com precisao em "A instancia da letra noinconsciente". Pe<;;o-Ihes que se refiram a ela provisoriamente. Ex-pressei-a sob a forma de uma metafora, digamos, topologica. Eimpossivel, efetivamente, representar no mesmo plano 0 significante,o significado e 0 sujeito. Isso nao e misterioso nem opaco, como ficademonstrado no texto, de maneira muito simples, a proposito do cog itacartcsiano. Vou me abster de voltar a isso agora, pOl'que tornaremosa encontra-Io sob outra forma.

Este lembrete tem 0 simples objetivo de justificar as duas Iinhasque iremos agora manipular.

no significante aquilo com que nos, analistas, temos que jogar inccs-santemente. A exce<;;ao dos que estao chegando aqui pela primeiravez, voces devem ter uma no<;;aodisso, e e exatamente par essa razaoque hojc come<;;arcmos a entrar no tema do inconsciente pela tiradaespirituosa, a Witz.

A outra Iinha e a do discw:s()racional, no qual ja esta integradoum certo numero de pontos de referenda, de coisas fixas. Essas coisas,no caso, so podem ser estritamente apreendidas no nivel dos empregosdo significante, isto e, daquilo que concretamente, no usa do discurso,constitui pontos fixos. Como voces sabem, eles estao muito lODge deresponder de forma univoca a uma coisa. Nao ha um unico semantemaque corresponda a uma coisa so. Um semantema corresponde, namaioria das vezes, a coisas muito diferentes. Vamos nos deter aquino nfvel do semantema, isto c, do que e fixado e definido por umemprego.

Ela e, portanto, a Iinha do discurso correntc, comum, tal comoeste e admitido no codigo do discurso que chamarei de discurso darealidade que nos e comum. Esse e tambem 0 nfvel em que se produza minimo de cria<;;6es de senti do, uma vez que, nele, 0 sentido ja estacomo quc dado. Na maioria das vezes, esse discurso consiste apenasnuma mistura refinada dos ideais comumente aceitos. E nesse nfvel,muito precisamente, que se produz 0 famoso discurso vazio do qualpartiu um certo numero de meus comentarios sabre a fun<;;ao da falae a campo da Iinguagem.

Como voces podem ver, pOltanto, esta Iinha e a discurso concretodo sujeito individual, daquele que fala e se faz ouvir, e a discursoque se pode gravar num disco, ao passo que a primeira e tudo a queisso inclui como possibilidades de decomposi<;;ao, de reinterpreta<;;ao,de ressonancia e de efeitos metaforico e metonfmico. Uma vai nosenti do invcrso da Olltra, Prla simples razao de que elas desli~am umasobre a outra. Mas uma eOlta a outra. E elas se COl·tam em dOlS pontosperfeitamente reconhecfveis.

Se partimos do discurso, a primeiro ponto em que ele en contraa cadeia propriamente significante e a que acabo de Ihes explicar doponto de vista do significante, isto e, a feixe dos empregos. Vamoschama-Io de codigo, num ponto marcado aqui como Ct..

Decerto e preciso que a codigo esteja em algum lugar, para quepossa haver audi<;;ao do discurso. Esse codigo esta, muito evidente-mente, no grande Outro (A), isto e, no Outro como companheiro deIinguagem. E absolutamente indispensavel que esse Outro exista, e,

A base da flecha significa a come<;;o de um percurso, e a pont ae seu fim. Voces reconhecerao aqui minha primeira linha, na qual aOlltra vem se conectar depois de have-la atravessado duas vezes.

Observo que voces nao devem confundir 0 que essas duas linhas~'epresentavam anteriormente, au scja, 0 significante e 0 significado,com a que representam aqui, que e ligeiramente diferente, pois agoranos colocamos inteiramente no plano do significante. Os efeitos sabreo significado cstao em outro lugar, nao sao diretamente representados.Trata-se, nesse esquema, dos dois ~stados" ou fun<;;6es que podemosapreender de uma sequencia significante.

A primeira linha representa a cadeia significante na medida emque permanece inteiramentc permeavel aos efeitos propriamente sig-nificantes da metafora e da metonfmia, 0 que implica a atualiza<;;aopossivel dos efeitos significantes em todos os niveis, inclusive no

\ nivel fonematico, em particular. 0 elemento fonologico e, com efeito,aquilo que funda 0 trocadilho, a jogo de palavras etc. Em suma, esUi

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rogo-Ihes que 0 ohservem, nao ha nenhuma necessidade de chama-Iopor esse nome imbecil e delirante de consciencia coletiva. Um Outroe um Outro. Basta apenas um para que uma lfngua seja viva. Alias,a tal ponto um s6 e suficiente que esse Outro pode constituir, sozinho,o primeiro tempo - se restar um s6, e se ele puder falar sua linguaconsigo mesmo, bastara isso para que existam ele e nao somente umOutro, mas ate dois, au, em todo caso, alguem que 0 compreenda.Pode-se continual' a fazer tiradas espirituosas numa lfngua mesmoquando se e 0 tinico a possui-la.

Eis, pOl'tanto, 0 encontro primeiro, que se da no nivel daquilo aque chamamos c6digo. 0 segundo encontro, que fecha 0 circuito, queconstitui 0 sentido, que 0 constitui a partir do c6digo, com que sedeparou inicialmente 0 circuito, da-se no ponto de chegada assinaladopor y. Voces estao vendo que duas setas desem bocam nele, hoje yOU

dispensar-me de Ihes dizer qual e a segunda. 0 resultado destaconjunc;ao do discurso com 0 significante, como suporte criador dosenti do, e a mensagem.

Na mensagem vem a luz 0 sentido. A verdade que ha pOl' anunciar,se 6 que existe verdade, esta ali. Na maior parte do tempo, nenhumaverdade e anunciada, pela simples razao de que, na maioria dos casos,o discurso absolutamente nao atravessa a cadeia significantc, que e 0

puro e simples romonar da rcpctic;ao, 0 moinho de palavras, que passanum curto-circuito entre ~ e W. 0 discurso nao diz absolutamentenada, a nao ser assinalar-Ihes que sou um animal falante. Esse e 0

discurso comum, feito de palavras para nao dizer nada, grac;as ao qualnos certificamos de nao estar simplesmente lidando, frente a frente,com 0 que 0 homem e em estado natural, ou seja, um animal feroz.

Os dois pontos - nos mfnimos do curto-circuito do discurso -SaGfaceis de reconhecer. Ha, pOl' um lado, em ~', 0 objeto, no sentidodo objeto metonimico de que Ihes faJei no ana passado. Ha, por outrolado, em ~, 0 [Eur, no que ele indica no pr6prio discurso 0 lugardaquele que fala.

Voces podem, nesse esquema, tocar de maneira sensivel naquiloque liga c naquilo que distingue 0 enunciado e a enunciaSiao. Essa euma verdade perfcita e imediatamente acessivel a experiencia linguis-tica, mas que a experiencia freudiana da analise reafirma, pelo menos,

com a distinSiao de princfpio que existe entre 0 [Eu], que nao e outracoisa senao 0 lugar do falante na cadeia do discurso, e que, alias,nem sequer precisa ser designado pOl' um [Eu], e, por Olltro lado, amensagem, a qual no minimo necessita em carateI' absoluto do aparatodesse esquema para existir. E totalmente impossivel fazer sair daexistencia de algum sujeito, de maneira irradiante e concentrica, umamensagem ou uma palavra qualquer, se nao existir toda essa comple-xidade - e isso, pela bela razao de que a fala presume, precisamente,a existencia de uma cadeia significante.

Sua genese esta longe de ser simples de obter - levamos umano para atingi-Ia. Ela pressup6e a existencia de uma rede de empregos,ou, em outras palavras, 0 usa de uma lingua. Pressup6e ainda todo 0

mecanismo que faz com que - nao importa 0 que se diga ao pensarnisso, ou, nao pensando, nao importa 0 que se formule -, uma vezque se entre na roda do moinho de palavras, 0 discurso sempre digamais do que aquilo que se diz.

Alem disso, pelo simples faro de ser fala, 0 discurso funda-se naexistencia, em algum lugar, do tenno de refercncia que e 0 plano daverdade - da verdade como distinta da realidade, 0 que faz entrarem jogo 0 possivel surgimento de novos senti dos, introduzidos nomundo ou na realidade. Nao se trata de sentidos que estejam presentesali, mas dos sentidos que a verdade faz surgir neJes, que cia literalmenteintroduz.

Voces tem ai, irradiando-se da mensagem, pOl' um lado, e do[Eu], por outro, essas asinhas que indicam dois sentidos divergentes.Do [Eu], um deles vai em direaSiao ao objeto metonimico, eo segundo,ao Outro. Simetricamente, pela via de retorno do discurso, a mensagemvai em direSiao ao objeto metonimico e ao Outro. Tudo isso eprovis6rio, peSio-lhes que 0 observem, mas voces verao que essasduas linhas, que podem pfr'ecer-Ihes evidentes - a que vai do [Eu]em direc;ao ao Outro e a que vai do [Eu] em direc;ao ao objetometonimico -, nos serao de grande utilidade.

Verao tambem a que correspondem as outras duas linhas, extraor-dinariamente apaixonantes, que VaG da mensagem ao c6digo e doc6digo a mensagem. Com efeito, a linha de retorno existe e, se naoexistisse, nao haveria a minima esperanSia de criaSiao de sentido, comolhes indica 0 esquema. E precisamente no entrejogo entre a mensa-gem e 0 c6digo, e portanto, tambem no retorno do c6digo para amensagem, que funciona a dimensao essencial a qual a tirada espiri-tuosa nos introduz diretamente." Mantivemos ao longo desta versao brasileira do seminurio, a nota<;:ao [Eu]=.!e e

Eu=Moi para esta distin<;:ao lacaniana fundamental. (N.E.)

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E nisso que nos manteremos durante um certo numero de encon-tros, para ver ludo 0 que pode aconlecer af de extraardinariamentesugestivo e indicativo.

Isso tambem nos dani uma oportunidade a mais de caplar a rela<;:aode dependencia em que fica 0 objeto metonfmico, esse famoso objetode que come<;:amos a nos oeupar no ana passado, esse objeto quenunc a esta ali, que esta sempre siluado em outro lugar, que e sempreoutra coisa.

Abordemos agora 0 Witz.

obra de Freud em que e mencionado aquilo que em outras paragl~llse decorado com uma maiuseula, ou seja, 0 espfrito, e seu livro sobrco Witz. Nem por isso deixa de haver um parentesco entre os doisp610s do termo, que sempre deu pano para mangas nas discussoes.

Seria divertido evocar-lhes a tradi<;:ao inglesa. 0 wit e ainda maisnitidamente ambfguo que 0 Witz e atc que 0 esprit em frances.Floreseeram as discussoes sobre 0 espfrito verdadeiro, autentico, 0espfrito benfazejo, em sum a, e depois, sobre 0 espfrito malcfieo, istoc, 0 espfrito com que os fazedores de piruetas divertem 0 mundo.Como distingui-los'? Seria preciso nos referirmos as dificuldades peJasquais enveredaram os crfticos. Depois do seculo XVIII, com Addison,Pope etc., isso continuou, no infcio do seculo XIX, com a escolaromanlica inglesa, on de a questao do wit nao pode deixar de estar naordem do dia. Os escritos de Hazlitt, nesse contexto, sao bastantesignificativos. Algucm de quem teremos oportunidade de falar, Co-leridge, e quem foi mais longe nesse caminho.

Eu poderia igualmente falar-lhes da tradi<;:ao alema. Em particular,a promo<;:ao do espfrilo ao primeiro plano do cristianismo literarioseguiu uma evolu<;:ao estritamente paralela na Alemanha. Ali, a questaodo Witz esteve no cerne de toda a especula<;:ao romantica, que teraque reter nossa aten<;:ao tanto do ponto de vista historico quanta doponto de vista da situa<;:ao da psicanalise.

o absolutamente impressionante e nao haver entre nos nada quecorrespond a a esse interesse da crftica pela questao do wit ou do Witz.As unicas pessoas que se ocuparam seriamente disso foram os poetas.No perfodo do scculo XIX, nao somente essa questao foi viva entreeles, como csteve no cernc da obra de Baudelaire e Mallarme Foradisso, ela so esteve presente, ate mesr;;o em cnsaios, do ponto d~ vistacrftico, quer dizcr, do ponto dc vista dc uma formula<;:ao intclectualdo problema.

Dcixo de lado a tradi<;:ao principal, a espanhola, pot'que e impor-tante demais para que nao tenhamos, na sequencia, que voltar a elaabundantemente.

o ponto decisivo e este: leiam voces 0 que lerem sobre 0 problemado Witz ou do wit, 0 fato e que sempre chegarao a impasses sensfveis,que somente 0 tempo me impede de desenvolver hoje ~ voltarei aisso. Apago esta parte de meu discurso, mas posteriormente lhesprovarei 0 salto, a franca ruptura, a diferen<;:a de qualidade I.' deresultados que caracterizam a obra de Freud.

Freud nao fez 0 levantamento a que acabo de aludir a 1TSIll'i to

da tradi<;:ao europeia do Witz. Ele nos revela suas fOllles, qut' ,S;\,)

o Witz e aquilo que se traduziu par tirada espirituosa. Tambem houvequem dissessc chiste, I.' deixo de lado as razoes por que prefiro aprimeira tradLl(;ao. Mas Witz tambem quer dizer espfrito [esprit]. 0termo, portanto, apresenta-se de imediato numa extrema ambigiiidade.

A tirada espirituosa e, vez por outra, objeto dc uma ccrtadeprecia<;:ao ~ e leviandade, falta de seriedade, extravagancia,capricho. E que acontece com 0 espfrito? Nesse, em contrapartida,nos nos detemos, olhamos duas vezes antes dc falar dele da mesmamanelra.

Convcm deixar ao espfrito todas as suas ambigiiidades, inclusiveo espfrito no senti do lalo, esse espfrito que, evidentemente, serve comdemasiada freqiiencia de quiosque para mercadorias duvidosas, 0

espfrito do espiritualismo. Mas a no<;:aode espfrito nem por isso deixade ter um ccntro de gravidade, que reside, para nos, no espfrito nosenti do em que se fala de homcm espirituoso, ainda que ell.' nao tenhauma reputa<;:ao excessivamente boa. Esse espfrito, n6s 0 centraremosna tirada espirituosa, isto C, no que nele sc afigura 0 mais contingente,o mais caduco, 0 mais passfvel de crftica. E bem da fndole dapsicanalise fazer coisas desse tipo, e c por isso que nao temos parque nos surpreender com 0 fato dc que, em suma, 0 unico ponto da

" Na acepyao de graya/espirituosidade, como tamb6m de intelcclo/engenho. Apesardesses dois sentidos serem bem men os freqiientes em portugues, optamos pOl' manter"espfrito" em lugar de "espirituosidade" para conservar a ambigiiidade do frances.Utilizamos "espirituosidade" apenas nos pontos em que haveria grande margempara confusao entre os sentidos acima e a id6ia de "alma" e similares (vel' adiantea seqUencia do texto). (N.E.)

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clal;l, tres livros muito sensatos, muito legfveis, daqueles honradosprolcssorcs alemaes de pequenas universidades, que tinham tempopara renetir pacatamente e que faziam coisas nada pedantes. Sao clesKuno Fischer, Theodor Vischer e Theodor Lipps, um professor deMunique que escreveu a melhor coisa dos tres e que foi muito longe,chegando ate a abrir os bra~os para a investiga~ao freudiana. Sim-plesmente, se 0 sr. Lipps nao fosse tao cioso da respeitabilidade deseu Witz, se nao tivesse querido que houvesse 0 Witz falso e 0

verdadeiro, certamente teria ido muito mais longe. Foi isso que, aocontnirio, nao deteve Freud. Ele ja tinha 0 habito de se expor, e foipar essa razao que enxergou com muito mais clareza. E tambem pOl'tel' visto as rela~6es estruturais existentes entre 0 Witz e 0 inconsciente.

Em que plano ele as viu? Unicamente num plano que podemoschamar de formal. Refiro-mc ao formal nao no sentido das belasformas, das linhas arredondadas, de tudo aquilo com que tentam tornara nos mergulhar no mais negro obscurantismo, mas no senti do comose fala da forma na teoria literaria, pOl' exemplo. Com efeito, ha maisuma OLltra tradiC;ao de que nao lhes falei, tambem pOl"que terei quevoltar a cIa com freqiiencia, que e uma tradi~ao nascida recentemente- a tradi~ao tcheca. Sua ignorancia leva voces a crerem que arefereneia ao formalismo tem um sentido vago. De modo algum. 0formalismo tem um sentido extremamente preeiso - e uma escolacrftica literaria, que a organiza~ao estatal que se coloca em defesa dosputnik ja vem perseguindo ha algum tempo. Seja como for, e nonfvel desse formalismo, isto e, de uma teoria estrutural do significantecomo tal, que Freud se coloca, e 0 resultado nao deixa duvidas, emesmo perfeitamente convincente. E uma chave que permite ir muitomais longe.

Depois de haver pedido que leiam meus artigos de vez em quando,nem sequel' preciso pedir-lhes que leiam 0 livro de Freud, Der WitzlInd seine Beziehung zum Unbewussten. Ja que este ana lhes estouCalando do Witz, isso me parece 0 mfnimo. Voces verao que a economiadcsse livro baseia-se em que Freud parte da tecnica do chiste e voltasCll1pre a ela. Que quer dizer isso para ele'? Trata-se da tecnica verbal,como se costuma dizer. Eu lhes digo, mais precisamente, tecnica doligllijil"unte.

I·: pOl' partir da tecnica do significante e pOl' vol tar a ela inces-'..IIII'·Jlll'lltc que Freud deslinda verdadeiramente 0 problema. Faz,II';II,'{ "!l'11l af pianos distintos e, de repente, vemos com a maxima11[1[.1,,/ ;lIl'lilo que e preciso saber distinguir para nao nos perdermos, [[ 1 ">1 [IIIc;' II', perpetuas do significado, em pensamentos que nao

permitem que nos localizemos. Vemos, pOl' exemplo, quc h;'1 llill

problema do espfrito e ha urn problema do camico, e que eles ni'lO

SaG a mesma coisa. Similarmente, 0 problema do camico e 0 problemado riso, pOl' mais que volta e meia andem juntos, e que ate sLlcedaaos tres se embaralharem, tampouco e 0 mesmo problema.

Em suma, para esclarecer 0 problema do espfrito, Freud parte datecnica significante, e e dela que partiremos com ele.

Curiosamente, isso se passa num nfvel que, com certeza, nao hanenhuma indica~ao de que seja 0 do inconsciente, mas, pOl' raz6esprofundas, que se prendem a natureza mesma daquilo de que se tratano Witz, e precisamente ao olharmos para isso que veremos com maiscerteza aquilo que nao esta total mente ali, aquilo que esta de lado, eque e 0 inconsciente. 0 inconsciente, justamente, so se esclarece eso se entrega quando 0 olhamos meio de lado. Af esta uma coisa quevoces reencontrarao 0 tempo todo no Witz, pois tal e sua proprianatureza - voces olham para ele, e e isso que lhes permite vel' 0 quenao esta ali.

Comecemos, pois, com Freud, pelas chaves da tecniea do signi-ficante.

Freud nao quebrou a eabe~a para encontrar seus exemplos -quase todos os que nos da, e que talvez lhes parc~am meio terra-a-terrae de valor desigual, foram tirados daqueles tres professores, e foi pOl'isso que lhes falei da estima em que os tenho. Mas houve, aindaassim, lima olltra fonte da qual Freud foi real mente impregnado.Trata-se de Heinrich Heine, e foi nessa fonte que ele bllscoll sellprimeiro exemplo.

Trata-se de lIm dito maravilhoso que desponta na boca de HirschHyacinth, um judell de Hamburgo. vendedor de bilhetes de loteria,necessitado e esfaimado, que Heine conhece no balneario de Lucca.Se quiserem fazer uma leitura plena sobre 0 Witz, sera preciso voceslerem 0 Reisebilder, Imagens de viagem, que e espantoso que naoseja um livro classico. Nele encontramos, na parte italiana, umapassagem em que figura esse personagem inenarravel, sobre cujosditos oportunos ainda espero tel' tempo de lhes dizer alguma coisahoje.

Durante a con versa com ele, Heine ouve de Hirsch Hyacinth adeclara~ao de que este tivera a honra de tratar dos calos dos pes dogrande Rothschild, Nathan, 0 Sabio. Enquanto the raspava os calas,dizia a si mesmo que ele, Hirsch Hyacinth, era um homem importante.Com efeito, ficara pensando que, durante aquela operac;ao, Nathan, 0

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Sabio, pusera-se a meditar sobre as diferentes mensagens que enviariaaos reis, e que se ele, Hirsch Hyacinth, lhe raspasse um pouco demaiso calo do pc, daf resultaria na partes altas uma irrita<;:ao que faria comque tambcm Nathan arrancasse um pouco mais 0 couro dos reis.

Foi assim que, con vcrs a vai, conversa vem, Hirsch Hyacinthacabou falando de um Olltro Rothschild a quem havia conhecido,Salomon Rothschild. Num dia em que se anunciara na casa dele comoHirsch Hyacinth, havia recebido como resposta, em linguagem bona-chona: - Sim, eu tambem sou vendedor de loteria, da loteriaRothschild, e niio quero que meu colega entre pela cozinha. E,exclamou Hirsch Hyacinth, ele me tratou de maneira totalmentefamilionaria.

E foi nisso que se deteve Freud.Familionario, que c isso? Sera um neologismo, um lapso, uma

tirada espirituosa'l E uma tirada espirituosa, seguramente, mas 0

simples fato de eu ter sido capaz de formular as outras duas perguntasja nos introduz numa ambigliidade do significante no inconsciente.

Que nos diz Freud'l Que reconhecemos af 0 mecanismo dacondensa<;:ao, que cia c materializada no material do significante, quese trata de uma espccie de engavetamento, com a ajuda sabe-se la deque maquina, entre duas linhas da cadeia significante. Freud completaa afirma<;:ao com um esquema significante muito bonito, onde primeirose inscrevefamiliar e, logo abaixo, milionario. Foneticamente, adario*encontra-se dos dois lados, 0 mesmo se da com 0 mili, isso se condensae, no intervalo entre os dais, aparece familionario.

com Salomon Rothschild perfeita familiaridade - e, em seguida,corre para a mensagem, y.

Entretanto, nao se esque<;:am que 0 interesse desse esquema estaem haver nele duas linhas, e em as coisas circularem ao mesmo tempo

Ina linha da cadeia significante. Pela misteriosa propriedade dosfonemas que se encontram numa palavra e noutra, algo se agitacorrelativamente no significante, ha um abalo da cadeia significante

Ielemental' como tal. Tres tempos distinguem-se igualmente do ladoda cadeia.

No primeiro tempo, ha 0 esbo<;:o da mensagem.No segundo tempo, a cadeia vem refletir-se, em l3', no objeto

metonfmico, meu milionario. Com efeito, aquilo de que se trata paraHirsch Hyacinth c do objeto metonfmico, esquematizado, de sua posse.Ele e seu milionario, mas ao mesmo tempo nao a e, porque e muitomais a milionario que a possui. Resultado: isso nao funciona, e eprecisamente por isso que esse milionario vem refletir-se, no segundotempo, em l3', ao mesmo tempo que a outro termo, a maneirafamiliar,chega a (x.

No terceiro tempo, milionario e familiar se encontram e vemconjugar-se na mensagem em y, formando familionario.

Pode ser que esse esquema lhes pareya pueril como ]Joucos,embora esteja certo, pOl"que fui eu que 0 fiz. S6 que, quando houverfuncionado durante a ana inteiro, talvez voces digam a si mesmosque ele serve para alguma coisa. Em particular, gra<;:as ao que nosapresenta de exigencias topol6gicas, ele {IOSpermite medir nossospassos no que concerne ao significante. Tal como e feito, nao importacomo voces 0 percorram, elc limita todos os nossos passos - ou seja,cada vez que precisarmos dar um passo, 0 esquema exigira que naodemos nada mais que tres passos clcmentares. E para isso que tendemas bases e as pont as de seta, bem como as asinhas que concernemaos segmentos, que devem estar sempre numa posi<;:ao secundariaintermediaria. as outros, ou SaG iniciais, ou entao terminais.

Portanto,. em tres tempos, as duas eadeias, a do discurso e a dosignifieante, conseguem convergir para 0 me sma ponto, 0 da mensa-gem. Isso faz com que 0 sr. Hirsch Hyacinth seja tratado de maneiratotalmente familionaria.

Essa mensagem e perfeitamente incongruente, no sentido de naoser aceitavel, de nao estar no c6digo. Tudo se resume nisso. E claroque a mensagem existe, em principio, para estar numa certa rela<;:aode difereneia<;:ao com 0 c6digo, mas, nesse caso, e no proprio planodo significante que cIa esta em flagrante viola<;:ao do c6digo.

famili armili onario

faMILIon ARIa

Tentemos ver em que resulta isso no esquema que esta no quadro.Sou obrigado a andar depressa, mas tenho que Ihes apontar uma coisa.

Podemos, evidentemente, esquematizar 0 discurso, dizendo queele parte do [Eu] e vai para 0 Outro. E mais con"eto perceber que,nao importa a que pensemos, todo discurso parte do Outro, (x, retlete-seno [Eu], ~, ja que e preciso que este seja inclufdo na hist6ria, retornaao Outro no segundo tempo - don de a invoca<;:ao ao Outro, Eu tinha

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A defini<;ao que Ihes proponho para a tirada espirituosa baseia-seprimeiramente nisto, em que a mensagem se produz num certo nfvelda produ<;ao significante, que ela se diferencia e se distingue doc6digo, e que "assume, por essa distin<;ao e essa diferen<;a, urn valorde mensagem .. p,. mensagem reside em sua diferen<;a para com._()c6digo.

Como e sancionada essa diferen<;a? Esse e 0 segundo plano deque se trata. Essa diferen<;a e sancionada como tirada espirituosa peloOutro. Isso e indispensavel, e esta em Freud.

Ha duas coisas no livro de Freud sobre a tirada espirituosa - apromo<;ao da tccnica significante e a referencia expressa ao Outrocomo tercciro. Essa referencia, que repiso ha anos, e absolutamentearticulada por Freud, muito especialmente na segunda parte de seulivro, mas for<;osamente desde 0 infcio.

Por exemplo, Freud real<;a perpetuamente a difcren<;a entre atirada cspirituosa e 0 comico, que se vincula a que 0 comico e dual.o comico e a rela<;ao dual, c e preciso haver 0 Outro terceiro paraque exista a tirada espirituosa. A san<;ao do Outro terceiro, seja elesuportado ou nao par urn indivfduo, e essencial aqui. 0 Outro rebatea bola, alinha a mensagem no c6digo como tirada espirituosa. Elc dizno codigo: Isto e um tirada espirituosa. Quando ninguem faz isso,nao ha tirada espirituosa. Quando ninguem se apercebe disso, quandofamilionario e urn lapso, ele nao constitui um tirada espirituosa. Epreciso, partanto, que 0 Outro 0 codifique como tirada espirituosa,que ele seja inscrito no codigo atraves dessa interven<;ao do Outro.

Terceiro elemento da defini<;ao: a tirada espirituosa tem rela<;aocom alguma coisa que se situa profundamente no nfvel do senti do.Nao digo que seja urna verdade, pois as alus6es sutis a seja la qualfor a psicologia do milionario c do parasita, cmbora contribuam muitopara nosso prazer, e voltaremos a esse ponto, nao nos explicam aprodu<;ao do familionario. Digo que e a verdade.

Afirmo-Ihes desde ja que a essencia da tirada espirituosa - sequisermos procura-Ia, e procura-Ia com Freud, pois ele nos levara 0

mais longe possfvel no senti do onde se encontra sua agudeza [pointe],ja que e de agudeza que se trata e ela cxiste - reside em sua rela<;aocom uma dimensao radical, que se prende essencialmente a verdade,aquilo a que chamei, em mcu artigo sobre "A instancia da letra", adimensao de alibi da verdade.

Por mais que queiramos circunscrever a essencia da tirada espi-Ii Illosa, 0 que nao deixa de acarretar em nos sabe-se la que diplopiaIlll'lllal, a coisa de que sempre se trata, e que e 0 que produz

expressamente a tirada espirituosa, e isto: cIa designa, e semprc delado, aquilo que so e visto quando se olha para outro lugar.

E por af que recome<;aremos da pr6xima vez. Certamente os deixocom algo em suspenso, com um enigma. Creio, entretanto, haver aomenos enunciado os termos aos quais Ihes mostrarei, na continua<;ao,que deveremos necessariamente nos ater.

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E surpreendente vel' que, a medida que se engalfinll:1111 ('(1111 II

delicado tema da afasia, isto e, do deficit da fala, os nelll,dllgistas,nao especialmente preparados para isso por sua disciplilla, I'azelllprogressos notaveis, dia apos dia, quanta ao que se pode cllamar desua forma<;ao lingufstica, enquanto os psicanalistas, cuja arte e tccnicarepousam inteiras no uso da fala, ate hoje nao a levaram minimamenteem conta, ainda que a referencia de Freud ao campo da filologia naoseja uma simples referencia humanista que evidencie sua cultura ousuas leituras, mas uma referencia interna, organica.

Ja que voces entreabriram, desde a ultima vez ~ ao menos amaioria de voces, espero ~, 0 livro de Freud sobre 0 Witz, puderamperceber que toda a argumenta<;ao dele gira em torno da tccnica dochiste como tecnica de linguagem.Se 0 que surge de sentido esignifica<;ao no chiste parece-Ihe digno de ser aproximado do incons-ciente, isso se fundamenta apenas em sua fun<;ao de prazer. Af estauma coisa que fico martelando, pois tudo 0 que tenho a dizer sobrea tirada espirituosa se relaciona com isso: 0 essencial gira, sempre eunicamente, em torno de analogias estruturais que so sao concebfveisno plano lingi.ifstico, e que se manifestam entre 0 aspecto tecnico ouverbal do chiste e os mecanismos proprios do inconsciente, que Freuddescobriu sob nomes diversos, tais como condensa<;ao e deslocamento~ limito-me a esses dois, pOl' hoje.

E af que estamos. Hirsch Hyacinth, fic<;ao de Heinrich Heine,esta contando, pois, 0 que the aconteceu. Para nos atermos ao segmentoque isolei ao come<;ar, produz-se de infcio um enunciado bastanteexplfcito. enaltecendo 0 que vira em seguida, colocando-o sobre umabandeja, exaltando-o. Trata-se ?a invoca<;ao feita a Testemunha uni-versal e as rela<;6es pessoais do sujeito com essa Testemunha, isto e,Deus. Tao certo quanta Deus lUl de me dar tudo 0 que h6 de bom~ eis algo ao mesmo tempo incontestavelmente significativo, pOl'seu senti do, e ironico, pelo que a realidade pode mostrar que tern defalho. A sequencia ~ eu estava sentado ao lado de Salomon Roth-schild, totalmente como a um igual ~ faz surgir 0 objeto. Essetotalmente traz em si algo de muito significativo. Toda vez queinvocamos a totalidade, e pOl' nao estarmos inteiramente seguros deque ela esteja realmente formada. Isso se verifica em muitos nfvcis.eu diria ate em todos os nfveis, do uso da no<;ao de totalidade.

E pOl' fim se produz 0 fenomeno inesperado, 0 escandall I (1;\

enuncia<;ao, ou seja, esta mensagem inedita que ainda nem S('q IWI

sabemos 0 que e e que ainda nao podemos denominar: dl' /11/1,/, I

totalmente familion6rio, muito familionariamente.

Substituir;ao. condensar;ao, metaforaAterradoDo espirito ao lapso e ao esquecimento do nomeRuinas e ce!ltelhas metonimicaso paras ita e seu mestre

Retomemos nossa exposl<;ao no ponto em que a havfamos deixadoda ultima vez, no momento em que Hirsch Hyacinth, dirigindo-se aoautor do Reisebilder, a quem havia conhecido no balneario de Lucca,diz-lhe: Tao certo quanta Deus h6 de me dar tudo () que h6 de bom,eu estava sentado com Salomon Rothschild e ele me tratou totalmentecomo a um igual, muito familionariamente.

Eis af de onde partimos, da palavra familion6rio, que, em suma, fezfortuna. Ficou conhecida pOl' Freud a tel' transformado em ponto departida, e e a partir disso que tentarei mostrar-Ihes de que maneiraele abordou a tirada espirituosa.

Sea analise desta tirada e util para nosso objetivo, se esse pontofoi exemplar, e porque ele nos manifesta ~ ja que, infelizmente, issoe necessario ~, de maneira indubitavel, a importancia do significantenaquilo que, com Freud, podemos chamaI' de mecanismos do incons-ciente.

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Sera isso um ato falho ou um ato bem-sucedido? Uma derrapagemou uma cria~ao poetic a? Nao sabemos. Talvez seja tudo ao mesmotempo. Mas convem nos determos, precisamente, na forma~ao dofenomeno no plano significante estrito. Com efeito, como anuncieida ultima vez, ha nisso uma fun~ao significante que e propria datirada espirituosa, como significante, que escapa ao codigo, isto e,atudo 0 que ate entao se acumulou de forma~6es do significante emsuas fun~6es de cria~ao de significado. Aparece algo novo, que podeser concebido como vinculado ao proprio fundamento do que podemosdenominar de progresso da lfngua, ou sua mudan~a, mas que requerque, antes de al chegarmos, detenhamo-nos em sua propria forma~ao,a fim de situa-Io em rela~ao ao mecanismo formador do significante.

o fenomeno essencial e 0 no, 0 ponto onde aparece esse signifi-cante novo e paradoxal, Jamilionario. Freud parte dele e a ele retornaincessantemente, pede que nos detenhamos nele e, ate 0 fim de suaespecula~ao sobre a tirada espirituosa, COIpO verao, nao deixa de voltara ele como sendo 0 fenomeno essenciaJ.lEsse e 0 fenomeno tecnicoque especifica 0 chiste. AI esta 0 fenomeno centraL! Ele nos informasobre 0 plano que nos e proprio, 0 das rela~6es com 0 inconsciente,ao mesmo tempo em que ilumina com uma nova perspectiva aquiloque 0 conduz pelas tendencias - e essa a palavra empregada no livro-, bem como aquilo que 0 cerca e que se irradia a partir dele, 0

comico, 0 riso ete. Sem nos determos nisso, nao poderlamos articularvalidamente as seqUencias e acompanhamentos do fenomeno, bemcomo suas fontes e pontos de interesse.

Detenhamo-nos, pois, em Jamilionario. Ha varias maneiras deaborda-Io. E objetivo de nosso esquema permitir-Ihes isso, mas eletambem Ihes e dado para que al se inscrevam os diferentes pianos daelabora~ao significante - escolhi essa palavra, elabora~'iio, pOl'queFreud a sublinha. Para nao surpreende-Ios em demasia, comecemosno nlvel do sentido.

Que acontece quando surge familionario? Sentimos, a princfpio,uma especie de visada na direr,;ao do senti do, um sentido que e ironicoau ate satlrico. Menos aparente, desenvolvendo-se nas repercuss6esdo fenomeno, propagando-se,em seguida a ele, pelo mundo, surgetambem um objeto, a qual, por sua vez, vai mais para a comico, 0

absurdo, a nonsense. E a personagem do Jamilioncirio como derrisaodo milionario, e que tende a figura-Ia.

Nao e preciso fazer muita coisa para indicar em que dire~ao eletende a se encarnar. 0 proprio Freud nos assinala que Heinrich Heine,duplicando seu chiste, chamaria 0 milionario de Millionarr, a que,

em alemao, quer dizer alga como milionario tanta. Na Illl'SIll:l lillll~1de substantiva~ao do familionario, poderlamos dizer, em I"r;III('0s.0fat-millionnaire [faruo-milionario], com hlfen.

Essa abordagem Ihes mostra que nao somos desumanos. Isso Cbom - desde que nao nos leve muito mais adiante nessa dire~ao. I~a tipo de passo que convem nao precipitar. Trata-se de nao compreen-der muito depressa, pOl'que, compreendendo depress a demais, nao secompreende coisa alguma. Tais considerar,;6es nao explicam a feno-menD nem de que modo ele se liga a economia geral do significante.

Quanto a isso, insisto em que todos voces tomem conhecimento dosexemplos, que dei em "A instancia da letra", daquilo a que chamafun~6es essenciais do significante, na medida em que e par elas quea arado do significante sulca no real 0 significado, literalmente aevoca, 0 faz surgir, maneja-o, engendra-o. Trata-se das fun~6es dametMora e da metonlmia.

Parcce que para alguns C, digamos, meu estilo que barra a entradadesse artigo.

Lamento, nao ha nada que eu possa fazer - meu estilo e 0 quee. Quanto a neste ponto, pe~o a eles que far,;am um esfor~o. E acrescentosimplesmente que, sejam quais forem as deficicncias de minha lavraque possam al intervir, ha tambem, nas dificuldades desse estilo -talvez eles a possam vislumbrar -, algo que corresponde ao proprioobjeto que esta em questao. Uma vez que se trata, com efeito, defalar de maneira valida das fun~6es criadoras que 0 significante exercesobrc a significado, ou seja, nao simplesmcnte de f,tlar da fala, masde falar no fio da fala, por assim dizer, para evocar suas propriasfunr,;6es, talvez haja necessidades internas de estilo que se imp6em- a concisao, por exemplo, a alllsao, Oll atc a ironia [pointe], queSaG elementos decisivos para entrar no campo em que as fUl1<;:6esdafala dominam nao somente as avenidas, mas toda a textura. Acontinua~ao de minha exposir,;ao deste ano, espero, Ihes mostrara isso.Voltaremos a esse ponto a proposito de um certo estilo que naohesitaremos em chamar pOl' seu nome, por mais amblguo que elepossa parecer, isto e, 0 maneirismo. Tentarei mostrar-lhes que naoapenas ha por tras dele uma grande tradi~ao, mas que ele tem umafun~ao insubstitulveI.

Isso foi apenas um parentese para vol tar a meu texto.

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Pois nele voces verao que 0 que ehamo de fun~oes metaf6rica emetonfmica da linguagem, baseando-me em Roman Jakobson, queinventou isso, pode exprimir-se, muito simplesmente, no registro dosignificante.

Como ja enunciei varias vezes ao longo dos anos precedentes, ~sc::iracterfsticas do significante sao as da existencia de uma cadela~rticulada que, como acrescentei no artigo em questao, ten de a formal'g~'upos fechados, isto e, compostos de uma serie de aneis que seprendem uns aos outros para constituir cadeias, as quaIs, por sua vez,prendem-se a outras cadeias a maneira de an6is. A form,a geral denosso esquema, alias, evoca um pouco isso, sem apresenta-lo ~lreta-mente. A existencia dessas cadeias implica que as artlcula~oes ouliga~6es do significante comportam duas dimensoes, aq~ela que po-demos chamar de combina~ao, continuidade, concatena~ao da cadela;e a da substitui~ao, cujas possibilidades estao sempre im~licadas el~cada clemento da cadeia. Essa segunda dimensao 6 omitJda na deh-ni~ao linear que se fornece da rela~ao entre 0 significante e 0

significado. . _, . Em outras palavras, em todo ato de linguagem, embora a dnnensao

diacronica seja essencial, ha tamb6m uma sincronia implicada, evo-cada, pela possibilidade permanente de substitui~ao que e inerente acada um dos termos do significante.

Indiquei-lhes da ultima vez duas f6rmulas, uma das quais davauma representa~ao da combina~ao, e a OLitra, a imagem da rel.~~ao desubstitui~ao sempre implfcita em qualquer articula~ao slgmhcante.

]Nao e preciso tel' possibilidades extraordinarias de intui~ao paraperceber que deve haver alguma rela~ao entre a f6rmula da m~taforae 0 que Freud nos esquematiza sobre a forma~ao do fanulwnano.

Que po de querer dizer seu esquema? Talvez queIra dlzer quehouve algo que caiu dentro do intervalo, que e eludido na articula~aodo senti do, ao mesmo tempo que se produziu alguma coisa quecomprimiu, que embutiu um no outro 0 familiar e 0 milionario, d:modo a produzir familionario, 0 qual, pOl' seu tumo, perman~c_eu. Hanisso uma especie de caso particular da fun~ao de SubstltulyaO, umcaso partIcular do qual como que restam vestfgios. A condensa.~ao,podemos dizer assim, e uma forma particular do que pode produzlr-seno nfvel da fun~ao de substitui~ao. .

Seria bom voces terem em mente desde ja 0 longo desenvolvl-mento que fiz em torno de uma metafora, a do feixe [gerbe] de Booz_ Seu feixe nao era avaro nem odioso -, mostrando de que modoo fato de seufeixe substituir 0 termo Booz constituir a metafora, nesse

caso. Gra~as a essa metafora, surge em tomo da figura de Boo/, 11111

sentido, 0 sentido do ad vento a sua paternidade, com tudo 0 que podl'irradiar-se e repercutir a partir daf, em virtude deste senti do Sl'

introduzir de maneira implausfvel, tardia, imprevista, providencial,divina. Essa metafora esta ali, precisamente, para mostrar 0 ad ventode um novo sentido em tomo do personagem de Booz, que pareciaexclufdo, foraclufdo dele.

E na rela~ao de substitui~ao que reside 0 recurso criador, a for~acriadora, a for~a de engendramento, caberia dizer, da metafora.

A metafora e uma fun~ao absolutamente generica. Eu diria ateque e pela possibilidade de substitui~ao que se concebe 0 engendra-mento, pOl' assim dizer, do mundo do sentido. Temos de apreendertoda a hist6ria da lfngua, isto 6, das mudan~as de fun~ao gra~as asquais uma Ifngua se constitui, af, e nao em outro lugar.

Se imaginassemos fomecer, algum dia, um modelo ou um exemploda genese e do surgimento de uma lfngua nessa realidade inconstitufdaque poderia ser 0 mundo antes que hoUvesse fala, seria precisosupormos urn dado irredutfvel, original, que seguramente seria 0

mfnimo de cadeia significante. Nao insistirei hoje nesse mfnimoespecffico, mas ja dei indica~6es suficientes a esse respeito para quesaibam que e por intermedio da metafora, pelo jogo da substitui~aode um significante pOl' outro num lugar determinado, que se cria apossibilidade nao apenas de desenvolvimentos do significante, mastambem de surgimentos de sentido sempre novos, que vem semprecontribuir para aprimorar, complicar, aprofundar, dar sentido de pro-fundidade aquilo que, no real, nao passa de pura opacidade.

Estava procurando um exemplo para ilustrar isso, um exemplodo que podemos denominar de evolu~ao do senti do, onde sempreencontramos, mais ou menos, 0 mecanismo da substitui~ao. Como 6de praxe nesses casos, aguardo meus exemplos do acaso. E este naodeixou de me ser fomecido por alguem de meu cfrculo fntimo que,as voltas com uma tradu~ao, teve de procurar no dicionario 0 sentidoda palavra aterrado [atterre], e ficou surpreso ante a ideia de nuncahaver entendido bem 0 seu sentido ate entao. De fato, aterrado naotem, originariamente e em muitos de seus empregos, 0 sentido detomado de terror, mas 0 de lanf:ado por terra."

Hi uma diferen<;a entre a eonstela<;ao semantiea do tempo franees a/terre e a desell eorrespondente em portllglleS "aterrado". Enquanto em frances, "terra" nao eevoeado de modo algum no uso de a/terre, 0 mesmo nao aeonteee em portugues,

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Em Bossuet, aterrar significa literalmente deitar por terra. Emoutros textos urn pouquinho posteriores, vemos precisar-se essa especiede peso do terror que, diriam os puristas, vem contaminar, deturparo senti do da palavra aterrado. Mas nao deixa de persistir 0 fato deque, incontestavelmente, os puristas estao totalmente errados nisso.Nao ha nenhuma especie de contaminac;ao. Mesmo que, de repente,alguns de voces tenham a ilusao de que aterrar nao e outra coisa,evidentemente, senao voltar-se para a terra, fazer tocar na terra,colocar-se no n{vel da terra, nem por isso 0 uso corrente da palavradeixa de implicar urn pano de fundo de terror.

PaItamos de outra palavra que tern uma certa relal;ao com 0

sentido originario da palavra aterrado. Isso e pura convenc;ao, poisnao ha em parte alguma uma origem da palavra aterrado, masadmitamos que se trate da palavra abatido, [abattu] na medida emque ela de fata evoca 0 que a palavra aterrado poderia evocar-nosem seu pretenso senti do puro.

A palavra aterrado, portanto, substitui a palavra abatido. Eis umametafora.

E uma metafora que nao parece se-Io, ja que partimos da hipotesede que, originariamente, lanfado por terra ou de encontro a terraquerem dizer a mesma coisa. E justamente isto que Ihes pec;o obser-varem: nao e pelo fato de 0 sentido de aterrado modificar em sejala 0 que for 0 sentido de abatido que a palavra e fecunda, geradorade urn novo sentido.

No entanto, dizer que alguem esta aterrado nao e a mesma coisaque dizer que esta abatido, e, por mais que isso implique urn terror,tambem nao e aterrorizado. Ha af uma nuance suplementar, algo denovo, urn novo sentido. Uma nova nuance de terror e assim introduzidano sentido psicologico e ja metaforico que tern a palavra abatido.

Desnecessario dizer que, psicologicamente, ninguem fica aterradonem abatido no senti do estrito. Essa e uma coisa que so se po de dizerquando ha palavras, e essas palavras provem de uma metafora - ouseja, 0 que acontece quando uma arvore e abatida, ou quando urnlutador e prostrado por terra, aterrado, segunda metafora.

Mas 0 interesse todo da coisa esta em assinalar que 0 terror eintroduzido pelo terra que ha em aterrado. Em outras palavras, a

metafora nao e uma injec;ao de sentidp - como se isso fosse possfvel,como se os sentidos estivessem em algum lugar, fosse onde fosse,num reservatorio. Se a palavra aterrado traz um novo senti do, nao etanto por ter uma significac;ao, mas na qualidade de significante. Epor conter urn fonema que se encontra na palavra terror. E pela viasignificante, a do equfvoco e da homonfmia, isto e, pelo caminho doque existe de mais nonsense, que a palavra vem gerar essa nuanceQ~s~I1tido, essa nuance de terror, que vem ser introduzida por ela,injetada no sentido ja metaforico da palavra abatido.

Em outras palavras, e na relac;ao de urn significante com umsignificante que vem gerar-se uma certa relac;ao significante sobresignificado. A distinc;ao entre os dois e essencial.

s sS' ~ 5

E a partir da relac;ao de significante a significante, da Iigac;ao dosignificante daqui com 0 significante dali, da relac;ao puramente sig-nificante, isto e, homonfmica, entre aterrado e terror, que vai poderse exercer a ac;ao que e engendramento de significac;ao, isto e, amodulac;ao, pelo terror, do que ja existia como sentido numa basemetaforica.

Isso exemplifica 0 que acontece no nfvel da metafora. A viametaforica preside nao apenas a criac;ao e a evoluc;ao da Ifngua, mastambem a criac;ao e a evoluc;ao do sentido como tal, quero dizer, dosenti do na medida em que algo nao apenas e percebido, mas no qua}o sujeito se inclui, ou seja, na medida em que 0 senti do enriquecenossa vida.

Eu gostaria ainda de Ihes apontar simpIcsmente um esboc;o devereda por onde chegar ao que vemos ocorrer no inconsciente.

Ja indiquei a func;ao essencial do desvio terra, que deve serconsiderado como puramente significante, e 0 papel da rescrva ho-monfmica com que trabalha a metafora, quer 0 vejamos ou nao. Masacontece mais uma coisa. Nao sei se voces a captarao bem de imediato.Irao capta-Ia melhor quando virem seu desenvolvimento. Isto e apenaso comec;o de urn caminho essencial.

A nuance de significac;ao trazida por aterrado, em toda a medidaem que ela se constitui e se afirma, implica, observem, uma certadominaC;ao e uma certa domesticaC;ao do terror. 0 terror e nao apenasdenominado, mas tambem atenuado, e e justamente isso que Ihespermite, alias, guardar em mente a ambigtiidade da palavra aterrado.

em que tanto" terror" quanto "terra" vem 11 tona no uso de "aterrado". Mantivemos"aterrado" para preservar 0 argumento de Lacan. Outros dois exemplos analogos,porem vertidos com mais fidelidade, sao "familia" (p.57-8) e "senhor" (p.61).(N.E.)

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Voces dizem a si mesmos que, afinal de contas, aterrado tem mesmouma rela~ao com a terra, que 0 terror af nao esta completo, que 0

abatimento, no senti do em que e sem ambigliidade para voces, guardaseu valor preponderante, e que trata-se somente de uma nuance.

Em suma, 0 terror nessa situa~ao permanece na penumbra, naoe observado de ft'ente, e tom ado peru vies intermediario da depressao.o que acontece fica completamente esquecido ate 0 momenta em queo relembro a voces. 0 modelo, como tal, fica fora do circuito. Emoutras palavras, a medida que a nuance aterrado firmou-se no uso,em que se tornou senti do e uso do senti do, 0 significante, par suavez, foi - digamos explicitamente - recalcado propriamente falando.Desde 0 momenta em que se estabeleceu em sua nuance atual 0 usada palavra aterrado, 0 modelo, salvo 0 recurso ao dicionario e aodiscurso erudito, ja nao se encontra a disposi~ao de voces, mas, comoterra, e recalcado.

Estou avan~ando um pouquinho demais, pOI'que esse e um modode pensar a que voces ainda nao estao habituados, mas creio que issonos poupara uma volta. Voces verao a que ponto esse come~o econfirmado pela analise dos fen6menos.

Ia registrei um lapso que colhi quando brotava da boca de umde meus pacientes. Tenho Olltros, mas retorno aquele pOI'que e semprebom vol tar as mesmas coisas ate que elas tenham sido bem usadas,e depois, entao, passa-se a outra coisa. Trata-se do paci~nte que, nocursu da narrativa de sua historia ou de suas assocla~oes em meudiva, evocou a epoca em que, junto a companheira com quem acaboucasando per ante 0 juiz, apenas vivia maritavelmente,

Voces todos ja perceberam que isso po de ser escrito no esquemade Freud: em cima, maritalmente, 0 que significa que nao se e casado,e embaixo, um adverbio no qual se conjugam perfeitamente a situa~aodos casados e ados nao casados, miseravelmente. Daf resulta mari-tavelmente. Isso nao e dito, e muito melhor do que dito. Por af vocesveem a que ponto a mensagem ultrapassa nao 0 mensageiro, pois erealmente 0 mensageiro dos deuses que fala pela boca desse 1I10cente,mas ultrapassa 0 suparte da rala.

o contexto, como diria Freud, elimina pOl' completo a hipotesede que meu paciente houvesse feito um chiste, e voces nao conheceriamesse chiste se, nessa ocasiao, eu nao tivesse sido 0 Outro commaiuscula, isto e, 0 ouvinte, e nao apenas 0 ouvinte atento, mas 0ouvinte que escuta, no verdadeiro senti do da palavra. Mesmo assimpersiste 0 fato de que, posta em seu luga~', justam~nte no Outro,trata-se de um chiste particularmente sensaclOnal e bnlhante.

Dessa aproxima~ao entre a tirada espirituosa e 0 lapso, Freud nosda in(imeros exemplos na Psicopatologia da vida cotidiana. Vez pOl'Olltra, 0 lapso e ta~ proximo do chiste que 0 proprio Freud e for~adoa dizer, e somos fOI'~ados a acreditar em sua palavra, que 0 contextoexclui a hip6tese de que 0 paciente ou a paciente tenham feito aquelacria~ao a guisa de chiste.

Em algum lugar desse livro, Freud da 0 exemplo da mulhcr quc,falando da situa~ao recfproca de homens c mulhcres, dl/,: Pora queuma l1lulher interesse aos homens, ela tem que ser bonita - 0 quenao e concedido a todo 0 mundo, deixa cIa implfcito em sua rrase-, m.as, para 0 homem, basta que ele tenha os cinco membros direitos.

Essas express6es nem sempre SaGplenamente traduzfveis e, muitasvezes, sou obrigado a fazer uma transposi~ao completa, isto e, a recriara palavra em frances. Quase seria preciso empregar a expressao"totalmente rijo" [tout raide]. A palavra "direito" [droit] nao e d~uso corrente nesse caso, e tao pouco corrente, alias, quanta em alemao."

Voltemos ao nosso familionario, ao ponto de conjun~ao ou de con-densa~ao metaforica em que 0 vimos formar-se,

Convcm, para comer;ar, separar a coisa de seu contexto, isto e,do fato de que foi Hirsch Hyacinth, ou seja, 0 espfrito de Heine, quema gerou. Posteriarmente, iremos buscar sua genese bem mais alem,nos antecedentes de Heinrich Heine e em suas rela~6es com a ramfliaRothschild. Conviria inclusive reler toda a historia da famflia Roth-schild para tel' bastante certeza de nao cometer erros, mas, par ora,ainda nao chegamos a isso, estamos no familionario.

Vamos isola-Io par um momento. Estreitemos 0 maximo possfvelo campo de visao da camera em torno desse familionario. Afinal, elepoderia tel' nascido em outro lugar que nao na imagina~ao de Heine.Talvez este nao 0 tenha fabricado no momenta em que estava diantede sua folha em branco, com a pena na mao; talvez tenha sido certanoite, numa de suas perambula~6es parisienses que iremos evocar,que isso Ihe ocorreu dessa maneira. Hi todas as probabilidades,inclusive, de que tenha sucedido num momenta de fadiga, de crepus-culo. Esse familionario tambem poderia muito bem ser um lapso, 0que e perfeitamente concebfve!'

* Vale lembrar que ° gerade alemao tambem tern as acep~6es dc creto, dircto,relo. (N.E.)

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Freud precisa fazer uma glosa a respeito dos quatro e dos cincomembros para explicar a genese da coisa. A tendencia um tantinhoindecorosa e inquestionave!. 0 que Freud nos mostra, em todos oscasos, e que a palavra nao acerta diretamente 0 alvo [droit au !Jut],nem em alemao nem em frances. POI' outro lado, 0 contexto exclui ahipotese de que a mulher seja tao crua assim intencionalmente. Trata-seefetivamente de um lapso, mas voces estao vendo como isso seassemelha a um chiste.

Logo, pode ser um chiste, pode ser um lapso, e eu ate diria mais- po de ser, pura e simplesmente, uma asneira, uma ingenuidadelingUfstica. Afinal, em meu paciente, homem particularmente simpa-tico, maritavelmente nem sequel' era realmente um lapso, pois a palavrade fato fazia parte de seu lexico pessoal, e ele nao achava nem delonge que estivesse dizendo alguma coisa extraordinaria. Ha pessoasque passeiam assim pela vida, que ocupam as vezes posic;:6es muitoelevadas, e que soltam palavras desse genero. Dm celebre produtorde cinema, ao que parece, as produzia aos qui16metros 0 dia inteiro.Dizia, pOl' exemplo, para en cerraI' algumas de suas frases imperativas:E ponto final, e isso ai, esta afirmado que 11Iio.Nao se tratava de umlapso, era simplesmente uma mostra de ignorancia e estupidez.

Ja que falamos de lapso, que e, nisso tudo, 0 que nos toea maisde perto, vejamos um pouco 0 que acontece nesse nive!. Retornemosao lapso pelo qual passamos em varias ocasi6es para ressaltar, justa-mente, a func;:ao essencial do significante, 0 lapso originario, se assimposso dizer, aquele que se en contra na base da teoria freudiana, aqueleque inaugura a Psicopatologia da vida cotidiana depois de tel' sidopublicado antes - em outras palavras, 0 esquecimento do nomeproprio, no caso, Signorelli.

A primeira vista, nao sao a mesma coisa um esquecimento e issoque acabo de falar. Mas, se 0 que lhes estou explicando tem impor-tancia, se de fato e 0 mecanismo ou 0 metabolismo do significanteque se acha no princfpio e na engrenagem das formac;:6es do incons-ciente, devemos encontra-las todas em cada uma dessas formac;:6es.o que se distingue no exterior deve encontrar sua unidade no interior.

No esquecimento do nome, em vez de vel' surgir uma palavra,familionario, temos 0 inverso - falta-nos alguma coisa. 0 que nosmostra a analise feita pOl' Freud sobre 0 esquecimento de um nomeproprio e, ainda por cima, estrangeiro?

Lemos a Psicopatologia da vida cotidiana como lemos 0 jornal,e a conhecemos tao de cor que achamos que isso nao merece que nos

detenhamos. Essas coisas, no entanto, foram os passos de Freud, C

cada um de seus'passos merece ser preservado, e portador de ensina-mentos e rico em conseqiiencias. Observo de passagem que, com umnome, e um nome proprio, estamos no nivel da mensagem. Teremosque descobrir a importancia disso mais tarde, pois nao posso dizer-Ihestudo de uma vez, diversamente dos psicanalistas de hoje, que sao taodoutos que dizem tudo de uma vez s6, falam do [eu] e do eu comocoisas sem complexidade alguma, misturam tudo. Trago-Ihes esboc;:osaos quais retornarei e aos quais darei um desenvolvimento depois.

o nome proprio de que se trata e um nome estrangeiro, na medidaem que seus elementos sao estranhos a lfngua de Freud. Signor naoe uma palavra da lfngua alema, e Freud sublinha que isso nao e semimportancia. Ele nao nos diz pOl' que, mas 0 fato de destaca-lo nocapitulo inicial prova que considera que esse e um ponto particular-mente sensivel da realidade abordada. Se Freud aponta isso, e pOl'estarmos numa dimensao diferente da do nome proprio como tal, queesta sempre mais ou menos ligado a signos cabalfsticos. Se 0 nomefosse absolutamente proprio e particular, nao haveria p:itria.

Ha um outro fato que Freud tambem destaca logo de saida, emboraestejamos habituados a nao nos deter nele. Com efeito, 0 que Ihepareceu nota vel no esquecimento dos nomes proprios, tal como elecomec;:a evocando para abordar a Psicopatologia da vida cotidiana,e que esse esquecimento nao e um esquecimento absoluto, um vazio,uma hiancia, mas que outros nomes se apresentam em seu lugar. Enisso que se situa, para Freud, 0 que constitui 0 comec;:o de qualquerciencia, ou seja, 0 espanto. Nao hit como hear espantado, real mente,senao com 0 que ja se comec;:ou, pen pouco que seja, a aceitar, casocontrario nao se para de maneira alguma nesse ponto, porque nao seenxerga nada. Mas Freud, justamente, advertido por sua experienciacom os neuroticos, ve que 0 fato de se produzirem sUbstituic;:6esjustifica que nos detenhamos nele.

Agora preciso apertar um pouco 0 passo e lhes descrever emdetalhe toda a economia da analise feita por Freud sobre esse esque-cimento do nome, que e um lapso, no senti do de que 0 nome cai nasprofundezas.

Tudo se centra em torno do que podemos chamaI' de aproximac;:aometonimica. Por que? POl'que 0 que ressurge, antes de mais nada, saonomes substitutos - Botticelli e Boltraffio. Nao hi duvida de queFreud situa 0 fenomeno no plano metonimico. Podemos apreende-Io

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- e par essa razao que estou fazendo esse desvio pela analise de umesquecimento - pelo fato de que 0 surgimento desses nomes, nolugar do Signorelli esquecido, situa-se no plano de uma forma<;:ao naomais de substitui<;:ao, parem de combinac;ao. Na analise que Freud fazdo caso, nao ha nenhuma rela<;:ao perceptfvel entre Signorelli, Bol-traffio e Botticelli, exceto rela<;:oes indiretas, ligadas unicamente afenomenos do significante.

Atenho-me primeiro aquilo que Freud nos diz e que se impoe emseu rigor. Essa e uma das demonstra<;:oes mais c1aras que ele deu dosmecanismos atuantes num fenomeno de formac;ao e defarmac;ao ligadoao inconsciente. Ela nao deixa absolutamente nada a desejar quantaa clareza. De minha parte, sou for<;:ado, em prol da c1areza de minhapropria exposi<;:ao, a Ihes apresentar esta analise de maneira indireta,dizendo: Isso e 0 que Freud diz.

Ele nos diz pOl' que Botticelli esta ali. A ultima metade da palavra,elli, e a resto de Signorelli, desfaleado pelo fato de Signor tel' sidoesquecido. Bo e 0 resto, 0 desfalcado de Bosnia-Herzegovina, namedida em que Herr foi recalcado. E esse mesmo recalque do Herrque explica que Boltraffio associe 0 Bo de Bosnia-Herzegovina aTrafoi, nome da localidade onde Freud soubera do suicfdio de um deseus pacientes pOl' causa de impotCncia sexual.

Este ultimo tema fora evocado durante a conversa no vagao entreRagusa e Herzegovina, que precedia de imediato 0 esquecimento donome. Seu interlocutor estava Ihe falando dos turcos da Bosnia-Her-zegovina, aqueles mu<;:ulmanos muito simp<iticos que, quando 0 me-dico nao consegue cura-Ios, dizem-Ihe: Herr, senhor, sabemos que

fez tudo 0 que the foi possfvel. 0 Herr tem seu peso proprio, seuacento significativo, esta no limite do dizfvel, e 0 Herr absoluto, quec a morte, aquela marte, como diz La Rochefoucauld, que nos 6 taoimpossfvel olhar fixamente quanto 0 sol; e Freud, com efeito, assimcomo os outros, tampouco po de faze-Io.

A morte, aqui, e duplamente presentificada diante de Freud. Elao e pelo incidente que concerne a sua fun<;:ao de medico e 0 e tambempar uma certa ligaC;ao, manifestamente presente, e que tem um toquetodo pessoal, entre a marte e a potcncia sexual. E muito provavel queessa liga<;:ao, indubitavel no texto, nao esteja unicamente no objeto,isto e, no que presentifica para ele 0 suicfdio de seu paciente.

o que temos diante de nos? Nada alem de uma pura e simpleseombina<;:ao de significantes. Sao as mfnas metonfmicas do objeto deque se trata. 0 objeto esta pOl' tras dos diferentes elementos particularesque vem participar af de um passado imediato. Quem esta pOl' tras

disso') 0 Herr absoluto, a marte. A palavra passa para outro lugar.~lpaga-se, recua, e repelida, e, dizendo-o apropriadamente, unterdriickl.

Ha duas palavras com que Freud joga de maneira ambfgua. Aprimeira e esse unterdriickt, que ja Ihes traduzi par cafdo nas pro-jiuldezas. A segunda e verdrdngt.

Situando-o em nos so esquema, Herr esgueira-se no nfvel do objetometonfmico, e par uma otima razao: e que ele cOlTia 0 risco de ficarum pouco presente demais apos essas conversas. Como Ersatz, en-contramos os destro<;:os, as mfnas desse objeto metonfmico, ou seja,() Bo que ali vem compar-se com a outra rufna do nome que nessemomenta e recalcado, isto e, elli, pOl' nao apareeer no outro nome desubstituic;ao.

E esse 0 vestfgio, 0 indfcio que temos do nfvel metonfmico. Isso6 0 que nos pcrmite encontrar a cadeia no fenameno no discurso. Eaf que se situa, na analise, aquilo a que chamamos associa<;:ao livre,na medida em que ela nos permite seguir a pista do fenamenoinconsciente.

Posto que e metonfmico, esse objeto ja e fragmentado. Tudo 0

que acontece na ordem da linguagem esta sempre ja consumado. Seo objeto metonfmico se quebra tao bem, e parque, como objetometonfmico, ele ja nao pass a de um fragmento da realidade querepresenta. E nao e so isso. Com efeito, 0 Signor nao se en contraentre os vestfgios, os fragmentos do objeto metonfmico partido. Issoe 0 que convem explicar agora.

Signor, por seu turno, nao e evocavel, fazendo com que Freudnao possa encontrar 0 nome Signorelli parque este esta dentro dajogada. Ele esta dentro, evidentemente, de maneira indireta, pelo viesdo Herr. 0 Herr foi de fato pronunciado, num momenta particular-mente significativo da fun<;:ao que pode assumir como Herr absoluto,como representante da marte que, nessa ocasiao, esta unterdriickt. 0Signor so esta najogada na medida em que pode simplesmente traduziro Herr. E af que encontramos 0 nfvel substitutivo.

A sUbstitui<;:ao e a articula<;:ao, 0 meio significante, onde se instaura() ato da metafora. Isso nao quer dizer que a sUbstitui<;:ao seja ametafora. Se lhes estou ensinando, aqui, a proceder pOl' todos essescaminhos de maneira articulada, e precisamente para que voces naose entreguem 0 tempo todo a abusos de linguagem. Dizer que ametaforaproduz-se no nfvel da sUbstitui<;:ao significa que a substituic;a;o6 uma possibilidade de articulac;ao do significante, que a metaforaexerce sua fun<;:ao de cria<;:ao de significado no lugar on de a substi-

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- e por essa razao que estou fazendo esse desvio pela analise de urn,squecimento - pelo fato de que 0 surgimento desses nomes, noIllgar do Signorelli esquecido, situa-se no plano de uma formayao naoIIJais de substituiyao, porem de combinayao. Na analise que Freud fazdo caso, nao ha nenhuma rela<;ao perceptfvel entre Signorelli, Bol-I raffio e Botticelli, exceto rela<;oes indiretas, ligadas unicamente aIcnomenos do significante.

Atenho-me primeiro aquilo que Freud nos diz e que se impoe emseu rigor. Essa e uma das demonstrayoes mais claras que ele deu dosIllecanismos atuantes num fenomeno de formayao e deforma<;ao ligadoao inconsciente. Ela nao deixa absolutamente nada a desejar quanto~l clareza. De minha parte, sou for<;ado, em prol da clareza de minhapropria exposiyao, a Ihes apresentar esta analise de maneira indireta,dizendo: [Sol'O Ii 0 que Freud diz.

Elc nos diz por que Botticelli esta ali. A Liltima metade da palavra,elli, e 0 resto de Signorelli, desfalcado pelo fato de Signor ter sidoesquecido. Bo e 0 resto, 0 desfalcado de Bosnia-Herzegovina, namedida em que Herr foi recalcado. E esse mesmo recalque do Herrque explica que Boltraffio associe 0 Bo de Bosnia-Herzegovina aTraloi, nome da localidade onde Freud soubera do suicfdio de urn deseus pacientes por causa de impotencia sexual.

Este Liltimo tema fora evocado durante a conversa no vagao entreRagusa e Herzegovina, que precedia de imediato 0 esquecimento donome. Seu interlocutor estava Ihe falando dos turcos da Bosnia-Her-zegovina, aquelcs mu<;ulmanos muito simpaticos que, quando 0 me-dico nao con segue cura-Ios, dizem-Ihe: Herr, senhor, sabemos quefez tudo 0 que lhe foi poss/vel. 0 Herr tern seu peso proprio, seuacento significativo, esta no limite do dizfvel, e 0 Herr absoluto, quee a morte, aqucla morte, como diz La Rochefoucauld, que nos e taoimpossfvel olhar fixamente quanta 0 sol; e Freud, com efeito, assimcomo os outros, tampouco pode faze-Io.

A morte, aqui, e duplamente presentificada diante de Freud. Elao e pelo incidente que concerne a sua funyao de medico e 0 e tambempor uma certa ligayao, manifestamente presente, e que tern um toquetodo pessoal, entre a morte e a potencia sexual. E muito provavel queessa liga<;ao, indubitavel no texto, nao esteja unicamente no objeto,isto e, no que presentifica para ele 0 suicfdio de seu paciente.

o que temos diante de nos? Nada alem de uma pura e simplescombina<;ao de significantes. Sao as rufnas metonfmicas do objeto deque se trata. 0 objeto esta par tras dos diferentes elementos particularesque vem participar af de urn passado imediato. Quem esta por tras

disso? 0 Herr absoluto, a morte. A palavra passa para outro 1i1)';II.apaga-se, recua, e repelida, e, dizendo-a apropriadamente, unteulriid/.

Ha duas palavras com que Freud joga de maneira ambfgua. ;\primeira e esse unterdriickt, que ja Ihes traduzi por cafdo nas pro-fundezas. A segunda e VI' rdrangt.

Situando-a em nosso esquema, Herr esgueira-se no nfvel do objetometonfmico, e por uma otima razao: e que ele cOlTia 0 risco de ficarurn pouco presente demais apos essas conversas. Como Ersatz, en-contramos os destroyos, as rufnas desse objeto metonfmico, ou seja,a Bo que ali vem compor-se com a OLltra rufna do nome que nessemomenta e recalcado, isto e, elli, por nao aparecer no outro nome desubstituigao.

E esse 0 vestfgio, 0 indfcio que temos do nfvel metonfmico. Issoe 0 que nos permite encontrar a cadeia no fenomeno no discurso. Eaf que se situa, na analise, aquilo a que chamamos associagao livre,na medida em que ela nos permite seguir a pista do fenomenoinconsciente.

Posta que e metonfmico, esse objeto ja e fragmentado. Tudo 0

que acontece na ordem da linguagem esta sempre ja consumado. Seo objeto metonfmico se quebra taa bern, e porque, como objetometonfmico, ele ja nao passa de urn fragmento da realidade querepresenta. E nao e so isso. Com efeito, 0 Signor nao se encontraentre os vestfgios, os fragmentos do objeto metonfmico partido. Issoe 0 que convem explicar agora.

Signor, por seu turno, nao e evocavel, fazendo com que Freudnao possa encontrar 0 nome Signorelli pOl'que este esta dentro dajogada. Ele esta dentro, evidentemente, de maneira indireta, pelo viesdo Herr. 0 Herr foi de faro pronunciado, num momenta particular-mente significativo da fungao que pode assumir como Herr absoluto,como representante da morte que, nessa ocasiao, esta unterdriickt. 0Signor so esta najogada na medida em que po de simplesmente traduziro Herr. E af que encontramos 0 nfvel substitutivo.

A substituiyao e a articulagaa, 0 meio significante, onde se instaurao ato da metafora. Isso nao quer dizer que a substituigao seja ametafora, Se Ihes estou ensinando, aqui, a proceder par todos essescaminhos de maneira articulada, e precisamente para que voces naose entreguem 0 tempo todo a abusos de linguagem. Dizer que ametafora produz-se no nfvel da substituigao significa que a substituigaoe uma possibilidade de articulagao do significante, que a metaforaexerce sua funyao de criayao de significado no lugar on de a substi-

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tUi<;ao pode se produzir, mas isso sao duas coisas diferentes. Domesmo modo, a metonimia e a combina<;ao sao duas coisas diferentes.

Esclare<;o isso de passagem, porque essas indistin<;6es conduzemaos chamados abusos de linguagem. No que e definido em termoslogico-matematicos como um conjunto ou um subconjunto, quandoesse conjunto tem apenas um elemento, nao se deve confundir 0

conjunto em questao com esse elemento particular. Esse e um exemplotipico de abuso de linguagem. E podera servir para as pessoas quecriticaram minhas historias de (X ~ y 8.

Voltemos ao que se produz no nivel de Signor e Herr. A liga<;aosubstitutiva de que se trata e uma substitui<;ao chamada heteronimica.

:E 0 que acontece em qualquer tradu<;ao ~ a tradu<;ao de um termoem uma lfngua estrangeira no eixo substitutivo, na compara<;ao exigida

, pela existencia de di versos sistemas lingiiisticos, chama-se substitui<;aoheteronimica. Voces me dirao que isso nao constitui uma metafora.Estou de acordo, mas preciso apenas de uma coisa: que seja umasUbstitui<;ao.

Notem bem que tudo 0 que estou fazendo e seguir 0 que vocessao for<;ados a admitir ao lerem 0 texto. Em outras palavras, querofaze-los extrairem de seu saber precisamente isto: que voces 0 saibam.Mais ainda, nao estou inovando ~ tudo isso voces deverao admitir,se admitirem 0 texto de Freud.

Portanto, se 0 Signor esta implicado, se esta na jogada, e justa-mente pOl' haver alguma coisa que 0 liga aquilo de que 0 fenomenoda decomposi<;ao metonimica e um signo para voces no ponto emque se produz. 0 Signor esta implicado como substituto de Herr.

Nao preciso de mais do que isso para lhes dizer que, se 0 Herrescapuliu pOl' ali, pelo lado dos ~, 0 Signor, como indica a dire<;aodas Ilechas, saiu pelo lado (X- y. Nao somente escapuliu por ali, como

. tambem podemos admitir ate que eu volte a isso, que ele e rebatidocomo uma bola entre 0 cadi go e a mensagem. Fica girando em cfrculosnaquilo que podemos chamar de memoria. Lembrem-se do que os fizvislumbrar no passado, que devemos conceber 0 mecanismo doesquecimento, e, ao mesmo tempo, da rememora<;ao analftica, comoaparentado a memoria de uma maquina. 0 que esta na memoria deuma maquina, com efeito, fica girando em cfrculos ate que se tomenecessario ~ e obrigado a girar em cfrculos, pois nao ha outra maneirade constituir a memoria de uma maquina. Encontramos a aplica<;aodisso, muito curiosamente, no fato de que podemos conceber 0 Signorcomo girando indefinidamente entre 0 codigo e a mensagem, ate serencontrado.

Voces estao vendo nisso, ao mesmo tempo, a nuance que pmlL-llloc;estabelecer entre ounterdriickt, de um lado, e 0 verdrangt, de olliru.Enquanto 0 unterdriickt so precisa se dar de uma vez pOl' todas, e elll

condi<;6es nas quais 0 ser nao pode descer ao nivel de sua condi<;uomortal, e de outra coisa que se trata quando 0 Signor e mantido nocircuito sem poder entrar nele par algum tempo. Convem realmenteadmitirmos 0 que Freud admite, ou seja, a existencia de uma far<;aespecial que 0 mantem assim, isto e, uma cfetiva Verdrangung.

Havendo indicado aonde quero chegar quanta a esse ponto exato,retorno as rela<;6es da metafara e da sUbstitui<;ao. Embara, com efeito,haja apenas sUbstitui<;ao entre Herr e Signor, ha tambem, nao obstante,metafara. Toda vez que h:i substitui<;ao, ha efeito ou indu<;ao meta-foricos.

Para alguem de lfngua alema, nao e exatamente a mesma coisadizer Signor ou Herr. Eu ate diria mais ~ nunca e indiferente quenossos pacientes bilfngiies, ou que simplesmente conhecem uma lfnguaestrangeira, tendo algo a nos dizer num dado momento, no-Io digamnuma outra lfngua. Essa mudan<;a de registro sempre lhes e, estejamcertos disso, muito mais comoda, e nunca e desprovida de uma razao.Quando 0 pacicnte e real mente poliglota, isso tem um senti do; quandoele conhcce de maneira imperfeita a lingua a que se refere, temnatural mente outro senti do; se e bilfngiie de nascen<;a, tem outrosentido ainda. Mas, em qualquer desses casos, tem um sentido.

Eu lhes disse, provisoriamente, que na substitui<;ao de Herr porSignor nao havia metafora, mas uma simples sUbstitui<;ao heteroni-mica. Volto a essa questao para lhes dizer que, nessa ocasiao, aocontrario, Signor, por todo 0 contexto a que esta ligado ~ ou seja,o pintor Signorelli, 0 afresco de Orvieto, a evoca<;ao das coisasderradeiras ~, representa precisamente a mais bela das elabora<;6esque ha dessa realidade impossivel de enfrentar que c a marte. Ejustamente contando a nos mesmos mil fic<;6es ~ ficfiio e tomadaaqui no sentido mais veridico ~ sobre a questao das coisas derradeirasque metaforizamos, domesticamos e fazemos entrar na linguagem ()confronto com a morte. Assim, fica claro que 0 Signor aqui, enquantoligado ao contexto de Signorelli, representa de fato uma metMora.

Eis ao que chegamos, partanto, e que nos permite reaplicar pOlllt)a ponto, ao esquecimento do nome, 0 fenomeno do Wil:::, 1l1I};1WI

que encontramos neles uma topic a comum.o familionario e uma produ<;ao positiva, mas 0 IH11III)Olldl",I'

produz e 0 mesmo furo mostrado par um fcnllllll'110 tit' I;ql:,o 1'.11poderia tomar outro exemplo e lhes reLl/.cr:1 t1"IIIIl1I:,II:II.,:IO1'llll"II:1

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dar-Ihes como dever de casa articular a exemplo do verso latinoevocado par um dos interlocutores de Freud, Exoriare ex nostrisossibus ultor, cuja ordem a sujeito desorganiza um pouco - a exfica enlre nostris e ossibus -, deixando desaparecer a segunda palavra,indispensavel it escansao, aliquis, que ele nao consegue fazer surgir.Voces nao poderiam realmente compreender 0 fenomeno senao re-pOl"tando-o a essa mesma grade, a essa mesma ossatura.

Ela eomporta dais niveis - 0 nivel combinat6rio, com 0 ponlode elei~ao onde se produz 0 objeto metonimico como tal, e 0 nivelsubSlitutivo, com 0 ponto de elei~ao no encontro das duas cadeias, ado discurso e a da cadeia significante em eslado puro, on de se produza mensagem. 0 Signor e recalcado, verdrangt, no circuito mensagem-c6digo, enquanto 0 Herr e unterdriickt no nivel do discurso. Comefeito, foi a discurso anterior que captou 0 Herr, eo que coloca voccsnas pegadas do significante perdido san as ruinas metonimicas doobjeto.

E isso que nos fornece a analise do exemplo de esquecimento donome em Freud. A partir del a, evidencia-se com mais clareza 0 quepodemos pensar do familionario, forma~ao que tem em si algo deambiguo.

e crescendo por entre as intersticios das coisas, como um micclll Ull

outro parasita analogo. Sem sequer chegar a tanto, a palavra poderiaintroduzir-se na Ifngua it maneira como, ja faz algum tempo, cortesa[respectueuse] quer dizer prostituta.

Esses tipos de cria~6es tem um valor pr6prio, a de nos introduzirnum campo ale hoje inexplorado. Fazem surgir a que poderiamosdenominar de um ser verbal. Mas um ser verbal e tambem um serpuro e simples, e que ten de cada vez mais a se encarnar. Alias, afamilionario desempenhou, ao que me parece, um bocado de papeis,nao simplcsmente na imagina~ao dos poetas, mas tambem na hist6ria.

Ha inumeras cria~6es que se aproximaram ainda mais disso doque a familionario. Gide faz girar loda a hist6ria de seu Prometeumal acorrentado em torno do que nao e real mente a deus, mas amaquina, au seja, a banqueiro Zeus, que ele chama de Ie Miglionnaire.Cabera pronuncia-Io it italiana au it francesa? Nao se sabe, mas, deminha parle, acho que convem pronuncia-lo it italiana. Moslrar-Ihes-ei,em Freud, a fun<;:ao essencial do Miglionario na cria~ao do chiste.

Se agora nos debru~armos sabre a familionario, veremos que adire<;:ao que lhes aponto nao e atingida no plano do texto de Heine.Este de modo algum Ihe confere liberdade, independencia na condi~aode subslantivo. Se a traduzi ha pouco por muito familionariam.ente,foi para Ihes indicar que continuamos no nivel do adverbio. Podemosaqui brincar com as palavras e convocar a Ifngua - voces tcm aitoda a diferen<;:a que ha entre a maneira de ser e a dire~ao que euIhes vinha apontando, isto e, uma maneira de ser. Como estao vendo,h3. uma continuidade entre as dais. Heine permanece no nive! damaneira de ser, ao escrever ganz famillionar.

o que da suporte ao muito familionariamente de Heine? Sem quecheguemos de modo algum a um ser de poesia, trata-se de um lermoextraordinariamente rico, formigante, pululante, it maneira como sedao as coisas no nivel da decomposic;ao metonimica.

A cria<;:ao de Heine merece aqui ser reposta em seu contexto, 0balneario de Lucca, on de vamos encontrar, ao lado de Hirsch Hya-cinth, a marques Cristofaro di Gumpelino, homem muito em Yoga,que se desmancha em toda sorte de cortesias e aten<;:6es para com asmulheres bonitas, ao que vem juntar-se a familiaridade fabulosa deHirsch Hyacinth sempre agarrado it sua sombra.

A fun<;:ao de parasita, de servo, de empregado domestico, de mo<;:ode recados desse personagem evoca-nos uma outra decomposi<;:aopossivel da palavra, a "esfaimilionario" [affamillionnaire], que su-hlinha em Gumpelino 0 aspecto faminto do sucesso, a fame que nao

A cria<;:ao da tirada espirituosa, como vimos, e da mesma ordem daprodu<;:ao de um sintoma de linguagem como a esquecimento de umnome.

Se as dois sao de fato superponiveis, se sua economia significanlec a mesma, devemos encontrar no nivel da tirada espirituosa aquiloque complementa - ha pouco lhes dei a en tender alga sabre suafunc;ao dupla - sua fun<;:ao de visada em dire<;:ao ao sentido, fun<;:aoneol6gica perlurbadora, transtornadora. 0 que a complementa deveser buscado na vertente do que podemos chamar de dissoluc;ao doobjeto.

Nao se trata apenas de Ele me aceitou a seu lado como a umigual, muito familionariamente, mas do surgimento deste personagemfantastico e derris6rio que podemos chamar de a familionario. Ele seassemelha a uma daquelas cria<;:6es que uma certa poesia fantasticanos permite imaginar, intermediaria entre a "formigonario" [millepattes] eo" maluco milionario" [{au millionnairel Seria uma especiede tipo humano do qual imaginariamos exemplares passando, vivendo

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mais e a auri sacra fames, porem a de ter acesso as mais altas esferas,e cuja satisfa<;ao Ihe fora recusada ate esse momento. Retrocedendoainda mais, nao quero fazer alusao a fun<;ao desoladora, dilacerantedas mulheres na vida desse marques caricato.

Poderiamos tra<;ar ainda de outra maneira a significa<;ao possivelda palavra, decompondo-a assim: faruo-miliomirio (fat-millionnaire].Ofatuo milionario e, ao mesmo tempo, Hirsch Hyacinth e Gumpelino.E e ainda uma coisa bem diferente, pois por tras disso existem asrela<;6es de Heine, dentre elas as que manteve com os Rothschild,singularmente familionarias.

Assim, voces estao venda nesse chiste as duas vertentes da cria<;aometaforica. Existe a vertente do senti do, na medida em que a palavraearrega efeito, emociona, e rica em significa<;6es psicologicas, acertaem cheio no momento, e nos prende por urn talento que beira a cria<;ao .poetica. Mas ha uma especie de avesso que, por sua vez, nao efor<;osamente percebido de imediato: em virtude de combina<;6es quepoderiamos estender indefinidamente, a palavra formiga com tudo 0

que pulula de necessidades em torno de urn objeto.Fiz alusao afames. Mas haveria tambemji:una, isto e, a necessidade

de brilho e renome que persegue 0 personagem do patrao de HirschHyacinth. Haveria ainda a infamia inerente a familiaridade servil queleva, na cena do balneario de Lucca, a que Hirsch Hyacinth de a seusenhor um dos purgativos dos quais detem 0 segredo, mergulhando-onos horrores da colica no exato momenta em que 0 coitado finalmenterecebe 0 bilhete da dama amada, que the permitiria, em outrascircunstancias, atingir a satisfa<;ao de seus anseios. Essa extraordinariacena bufa revela as profundezas dessa familiaridade infame. Esta,real mente, da a forma<;ao do chiste seu peso, seu senti do, seus vinculos,seu direito e seu avesso, seu lado metaforico e seu lado metonimico.No entanto, nao e a essencia dele.

Vimos agora suas duas faces, seus meandros e mimicias. Ha, porurn lado, a cria<;ao do sentido de familionario, que implica tambemurn dejeto, alguma coisa que e recalcada. Trata-se, for<;osamente, dealgo que esta no campo de Heinrich Heine, e que ficara, como 0

Signor de ha pouco, girando entre 0 c6digo e a mensagem. Por outrolado, existe a coisa metonimica, com todas as marcas de sentido, ascentelhas e os respingos que se produzem em torno da cria<;ao dapalavra familionario, e que constituem sua irradia<;ao e seu peso,aquilo que comp6e para nos seu valor literario. Nem pOl' isso a unicacoisa importante, 0 centro do fenomeno, deixa de ser aquilo que seproduz no nivel da cria<;ao significante, e que faz com que isso seja

urn tirada espirituosa. Tudo 0 que esta ali, e que se produz ao rcdm.coloca-nos no caminho de sua fun<;ao, mas nao deve ser confundidocom 0 centro de gravidade do fenomeno.

o que constitui a enfase e 0 peso do fenomeno deve ser buscadoem scu proprio centro, isto e, pOl' urn lado, no nivel da conjun<;ao dossignificantes, e por mitro, naquele - que ja lhes indiquci - da san<;aodada pelo Outro a essa cria<;ao. Eo Outro que da a cria<;ao significanteurn valor de significante em si, valor de significante em rela<;ao aofenomeno da criac;ao significante. E a san<;ao do Outro que distinguea tirada espirituosa do puro e simples fenomeno do sintoma, porexemplo. E na passagem para essa fun<;ao outra que reside a tiradaespirituosa.

Mas, se nao houvesse tudo isso que hoje acabo de lhes dizer, ouseja, 0 que acontece no plano da conjun<;ao significante, que e 0

fenomeno essencial, e daquilo que ela desenvolve na medida em queparticipa das dimens6es fundamentais do significante, isto e, a meta-fora e a metonfmia, nao haveria nenhuma san<;ao possivel da tiradaespirituosa. Nao haveria nenhum meio de distingui-Ia do comico, ouda brincadeira, ou de um fenomeno bruto de riso.

Para comprecnder do que se trata na tirada espirituosa comofenomeno de significantc, e preciso que tenhamos isolado suas faces,suas particularidades, suas vincula<;6es, todos os seus mcandros eminucias no nfvel do significante. A tirada espirituosa acha-se numnivel tao elevado da elabora<;ao significante, que Freud se deteve nelapara vel' af urn exemplo particular das forma<;6es do inconseiente.Isso e tambem 0 que nos retem.

Voces dcvem cstar come<;ando a vislumbrar sua importancia, umavez que puderam con statal' que ela nos permite avan<;ar de maneirarigorosa na analise de urn fenomeno psicopatol6gico como tal, 0 lapso.

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De Kant a lakobsono recalcado da tirada espirituosao esquecimento do nome, meta/ora fracassadao chamariz de um signijicanteA mora e 0 conde

Eis-nos, pOltanto, entrando em nos so assunto do ana pela porta datirada espirituosa.

Da ultima vez, comec;amos a analisar 0 exemplo princeps queFreud encaixou sob a forma de uma palavra,familioncirio, imputadopor Heinrich Heine ao personagem de Hirsch Hyacinth, criac;aopoetica repleta de significac;ao. Alias, nao foi por acaso que sucedeua Freud tomar seu exemplo sobre urn fundo de cria<;ao poetica.Alern disso, como e praxe acontecer, n6s mesmos achamos esseexernplo particularmente apto a dernonstrar 0 que aqui queremosdernonstrar.

A analise do fenomeno psicol6gico de que se lrata na lirada'sririluosa levou-nos, como sem duvida voces viram, ao nfvel delima arliculac;ao significante que, por mais interessante que seja,;1O menos assim espero, para grande parte de voces, nem por issodl'ix:1 de parecer, como e facil imaginar, urn bocado desnorteante.() ljll' surpreende aqui, 0 que desnorteia 0 espfrito, e, alias, 0

I \'1111' cia I' 'Iomada, que aqui quero fazer com voces, da experienciaIII i1rll ';I, ' \ue concerne ao lugar e, ate ~erto ponto, a existenciaIIII '0\ I j I"i Ill.

Alguem me formulou a pergunta - alguem que decerto estava longede estar pouco informado, nem pouco inl"onnado quanta a pergunta,nem tampouco quanto ao que tento trazer para ca: - Mas, queacontece, afinal, com 0 sujeito? Onde estci?

A resposta era faci!. Como era urn fil6sofo que fazia essa perguntana Sociedade Francesa de Filosofia, onde eu estava falando, fiqueitentado a responder: - Devolvo-lhe sua pergunta, deixo a palavraaos filosofos nesse ponto, pois nao hci, afinal, pOl' que ficar todo 0

trabalho reservado a mim.A ideia de sujeito certamente pede para ser revista a partir da

experiencia freudiana. Nao ha nisso nada que deva nos surpreender.Em contrapartida, sera mesmo que 0 que podfamos esperar, depoisdo que Freud trouxe de essencial, era ver os espfritos, muito particu-larmente os dos psicanalistas, ainda mais fortemente presos a umaideia do sujeito que encarna, numa dada maneira de pensar, simples-mente 0 eu? Isso nao passa de urn retorno ao que poderfamos chamarde confus6es gramaticais sobre a questao do sujeito.

Seguramente, nenhum dado da experiencia permite sustentar aidentifica<;ao do eu com urn poder de sfntese. Haved sequer neces-sidade de recorrer a experiencia freudiana? Vma simples inspe<;aosincera do que e a vida de cada urn de n6s permite entrever que essepretense poder de sfntese esta mais do que posto em xeque. A bemda verdade, exceto pela ficc;ao, nao 'ha real mente nada que seja umaexperiencia mais comum do que nao apenas a incoerencia de nossosmotivos, como tambem 0 sentimento de sua profunda imotiva<;ao, desua alienac;ao fundamental. Freud traz uma icteia de urn sujeito quefunciona mais alem. Desse sujeito em n6s, tao diffcil de captar, elenos mostra os dispositivos e a a<;ao. Uma coisa que deveria reter aaten<;ao af e que esse sujeito - que introduz uma unidade oculta,secreta, naquilo que nos parece ser, no nfvel da experiencia maiscomum, nossa divisao profunda, nos so profundo enfeitic;amento, nossaprofunda aliena<;ao em rela<;ao a nossos pr6prios motivos -, que essesujeito e outro.

Esse sujeito outro, sera ele simplesmente uma especie de duplo,urn eu mau, como disseram alguns, na medida em que de fato encerramuitas tendencias surpreendentes, ou UIl1 outre eu, ou, como poderiamachar que digo, urn verdadeiro ell? Sera disso mesmo que se trata?Sera que e simplesmente uma duplicac;ao? Urn outro eu, pura esimplesmente, que podemos conceber estrllturado como 0 eu da

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'xp'ricncia? Eis a questao, e e tambem pOl' isso que este ana aahordamos a partir do nfve] e sob 0 tftulo das formafoes do incons-cienfe.

Seguramente, a pergunta oferece uma resposta - Q....sujeito naoe estruturado do mesmo modo que eu da experieQcia. p que...sea resenta Eele tern suas lekpr6prias. Suas formac;;6es tern nao somenteurn estilo particular, mas uma estrutura particular. Essa estrutura,\iFreud a aborda e a demon~ i10ef da-s neuroses, no nfvel dosI sintomas, no nfvel dos sonhos, no nfvel dos atos falhos, no nfvel da

) tirada espirituosa, e a reconhece como unica e homogenea. Ela e seuargumento fundamental para fazer da tirada espirituosa uma manifes-tac;;ao do inconsciente. E 0 cerne do que ele nos exp6e a prop6sito datirada espirituosa, e foi por isso que a escolhi como porta de entrada.

~ A tirada espirituosa e estruturada, organizada segundo as mesmas\ leis que encontramos no sonho. Essas leis, Freud as reconhece naestrutura da tirada espirituosa, enumera-as e as articula. Sao elas alei da condensac;;ao, Verdichtung, a do deslocamento, Verschiebung,e urn terceiro elemento, que adere a essa lista, e que denominei, nofinal de meu artigo, de considerafiio as necessidades da encenafiio,para traduzir Rucksicht auf Darstellung. Mas, pouco importa deno-mimi-Ias. ;:. chave da ~nalise Freudian,! e 0 reconhecimento de I~sestruturais comuns. Por isso se reconhece que urn processo, comoFreud se exprime,- foi atrafdo para 0 inconsciente. Ele e estruturadosegundo leis desse tipo. E disso que se trata quando se trata doinconsciente.

Ora, alguma coisa acontece no nfvel do que Ihes ensino, a saber,que estamos agora, isto e, depois de Freud, em condic;;6es de apreenderque ~sa estrutura do in(:onsciente, jsso pelo qual se reconhece urnfen6meno como pertcncente as formac;;6es do inconsciente, sorresp.QIl-~ exaustLvamen.le ao que_a..analiseJi.ngUfstica nos permite situar comosendo os meios essenciais de formac;;ao do senti do, na medida emque.este e geracl..Q...pelilli~Qmbinag6es d_osignificant.e. Esse acontecimentoe tao mais demonstrativo quanto tern tudo para surpreender. /

A icteia de elemento significante assumiu seu senti do pleno naevoluc;;ao concreta da lingUfstica a partir do momento em que sedestacou a noc;;ao de fonema. Ela nos permite tomar a linguagem nonfvel de um registro elementar, duplamente definido - como cadeiadiacr6nica e, no interior dessa cadeia, como possibiJidade permanented substituic;;ao no senti do sincr6nico. Permite-nos igualmente reco-nh' 'cr, no plano das func;;6es do significante, um'a forc;;a originaria naqll:i1 pod mo localizar urn certo engendramento do que chamamos

I sentido. Essa concepc;;ao, que em Sl e riqUIsslma em implicac;;6cspsicol6gicas, rec~be, sem que sequer seja preciso aprofundar-Ihe maisa trilha, uma complementac;;ao naquilo que Freud ja nos havia prep a-rado no ponto de junc;;ao do campo da lingUfstica com 0 campo pr6prioda analise, na medida em que esses efeitos psicol6gicos, esses efeitosde engendrame.nto dQ sentido, _na~ sao outra ..£0' sa ~nao 2. ue elenos mostroll C_QlllCLs.emio_as.J:orma.~6esdo inconsciente.

Podemos, neste ponto, apreender e situar um dado que ate entaoficara elidido quanto ao lugar do homem. E fato evidente que existempara ele objetos de uma heterogeneidade, de uma diversidade, de umavariabilidade real mente surpreendentes em comparac;;ao com os objetosbiol6gicos. A existencia de qualquer organismo vivo tern como cor-relato no mundo um conjunto singular de objetos que apresentam urncerto estilo. Mas, em se tratando do homem, esse conjunto e de umadiversidade superabundante, luxuriante. Alem disso, 0 objeto humano,o mundo dos objetos humanos, permanece inapreensfvel como objetobiol6gico. Ora, verifica-se que esse fato, nessa conjuntura, deve serestreita ou mesma indissoluvelmente relacionado com a submissao,a sUbducc;;ao do ser humano pelo fen6meno da linguagem.

Naturalmente, isso nao havia deixado de aparecer, mas s6 atecerto ponto, e, de certa maneira, permanecera mascarado. Com efeito,o que e apreensfvel no nfvel do discurso concreto sempre se apresenta,em relac;;ao ao engendramento do sentido, numa posic;;ao de ambigUi-dade, dado que a linguagem volta-se para objetos que ja incluem emsi alguma coisa da criac;;ao que receberam da pr6pria linguagem. Foiisso que p6de constituir-se objeto de toda uma tradic;;ao, ou mesmode toda uma ret6rica filos6fica,a da crftica no senti do mais geral,que formula a pergunta: 0 que vale essa linguagem? 0 que representamsuas conex6cs cm relac;;ao aquelas a que clas parecem conduzir, queelas inclusive p6em-se a refletir, e que sao as conex6es do real?

Eis, com efeito, a questao a que leva uma tradic;;ao fiJos6fica cujoauge e apice podemos definir pela crftica kantiana, que pode serinterpretada como 0 questionamento mais profundo de qualquer es-pecie de real, na medida em que este se acha submetido as categorias

. a prio!i nao somente da estetica, mas tambem da 16gica. Esse e umponto axial, do qual a meditac;;ao human a partiu novamente paraencontrar 0 que nao era percebido nessa maneira de colocar a questaono nfvel do discurso 16gico, e de interrogar a correspondencia entreoreal e uma certa sintaxe do cfrculo intencional enquanto completadoem cada Frase. E justamente isso que se trata de retomar, por baixoe atraves dessa crftica, a partir da ac;;ao da fala nesta cadeia criadora

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em que ela e sempre suscetfvel de gerar novos sentidos - porintermedio da metafora, da maneira mais evidente, e por intermedioda metonfmia, de urn modo que, por sua vez, ficou sempre profun-damente mascarado ate epoca muito recente, yOU explicar-Ihes porque quando for a hora.

Esta introdu~ao ja esta suficientemente diffcil. Ja basta para queeu retorne a meu exemplo familiontirio e para que nos esforcemospor completar sua analise.

Chegamos a no~ao de que, no decorrer de urn discurso intencionalem que 0 sujeito se apresenta como querendo dizer alguma coisa,produz-se algo que ultrapassa seu querer, que se manifesta como urnacidente, urn paradoxo, ou ate um escfmdalo.

Essa neoforma~ao, 0 chiste, apresenta-se com tra~os que nao saonada negativos, em bora pudesse ser considerada uma especie detrope~o, urn ato falho - mostrei-Ihes coisas que se assemelhavam

I,singularmente a ela na ordem do puro e simples lapso. Ao contrario;nas condi~6es em que se produz esse aCldente, venfIca-se que ele e

, registrado e valorizado na categoria de fenomeno significativo deengendramento de um senti do.

A neoforma~ao significante apresenta uma especie de colapso designificantes que af se encontram, como diz Freud, comprimidos,engatados um no outro, daf resultando uma cria~ao de significa~aoda qual Ihes mostrei as nuances e 0 enigma, entre uma evoca~ao demaneira de ser, propriamente metaforica - Ele me tratava de £1mmodo totalmente familiontirio -, c uma evoca~ao de maneira de ser,de ser verbal, prestes a assumir a anima~ao singular cujo fantasmatentei agitar diante de voces com 0 personagem do familiontirio.

o familionario faz sua entrada no mundo como representativo deum ser que e muito passfvel de assumir para nos uma realidade e urnpeso infinitamente mais consistentes do que aqueles, mais apagados,do milionario. Tambem lhes mostrei 0 quanto ele detem uma for~atao vivificante na existencia que realmente representa urn personagemcaracterfstico de uma epoca historica. Indiquei-Ihes, pOl' fim, que naofoi so Heine quem 0 inventou, ao Ihes falar do Prometeu malacorrentado de Gide e de seu Migliontirio.

Seria de grande interesse determo-nos par urn momenta nessacria~ao gideana. 0 Migliontirio e Zeus, 0 banqueiro. Nada e mais

surpreendente do que a elabora~ao desse personagem. Na lembran~aque nos deixa esse,livro de Gide, talvez ele seja ofuscado pelo brilh?inaudito de Paludes, do qual e, no entanto, uma especie de duplo. Edo mesmo personagem que se trata nos dois. Ha muitos tra~os paraconfirma-Io. De qualquer modo, constata-se que 0 Migliontirio terncomportamentos singulares com seus semelhantes, uma vez que e deleque vemos sail' a ideia do ato gratuito.

o banqueiro Zeus, com efeito, esta impossibilitado de mantercom quem quer que seja um intercfllnbio verdadeiro e autentico, namedida em que e identificado ao poder absoluto, a esta faceta designificante puro que existe no dinheiro, e que torna precaria aexistencia de qualquer troca significativa possfve!. Ele nao encontranada melhor para sair de sua solidao do que proceder da seguintemaneira. Vai para a rua, levando em uma das maos um envelope quecontem uma cedula de quinhentos francos, 0 que, na epoca, tinha lao seu valor, e na outra mao uma bofelada, se assim podemos nosexprimir. Deixa cair 0 envelope. Dm sujeito 0 apanha e 0 entrega aele, gentilmente. Ele Ihe prop6e que escreva um nome e urn endere~ono envelope. Ao que entao the desfere uma bofetada, e, como nao ea toa que ele e Zeus, uma formidavel bofetada, que deixa 0 sujeitoaturdido e ferido. Em seguida, ele se afasta e remete 0 conteudo doenvelope a pessoa cujo nome foi escrito por aquele a quem acaba detratar tao rudemente.

Ele se ve, assim, na posi~ao de nao haver escolhido coisa alguma,e de tel' compensado um maleffcio gratuito com urn dom que eletambem nao escolheu. Seu esfor~o consiste em restabelecer, atravesde seu ato, 0 circuito da troca, que nao pode introduzir-se pOl' si sode maneira alguma e pOl' nenhum meio. Zeus tenta participar dissocomo pOl' efra~ao, gerando uma especie de dfvida da qua! nao participaem nada. A sequencia do romance desenvolve 0 fato de que os doispersonagens jamais conseguirao conjuminar 0 que devem urn ao outro.Dm ficara quase caolho por isso, e 0 outro morrera disso.

Essa e toda a historia do romance, uma historia profundamenteinstrutiva e moral, alem de utilizavel no que aqui lenlamos mostrar.

Eis, pOl·tanto, nos so Heinrich Heine na posi~ao de haver criadoum personagem do qual fez surgir, com 0 significanle familiontirio,uma dimensao dupla - a da cria~ao metaforica e a de uma especiede objeto metonfmico novo, 0 familiontirio, cuja posi~ao podemossituar em nosso esquema. Mostrei-Ihes, da ultima vez, que podfamosencontrar nele, mesmo que a aten~ao nao fosse atrafda para esseaspecto, todos os destro~os ou dejetos comuns ao reflexo de uma

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criac;ao metaf6rica num objeto. Trata-se de todos os subterraneossignificantes, de todas as parcelas significantes em que se decomp6eo termo familionririo - afames, afama, 0 famulus, a infamia, enfim,tudo 0 que voces quiserem, tudo 0 que e Hirsch Hyacinth, efetivamente,para seu patrao caricato Cristoforo Gumpel. Toda vez que Iidamoscom uma formac;ao do inconsciente, devemos sistematicamente pro-curar 0 que chamei de destroc;os do objeto metonimico.

Por raz6es que sao perfeitamente claras para a experiencia, essesdestroc;os revelam-se particularmente importantes quando a criac;aometaforica nao e bem-sucedida, ou seja, quando nao leva a nada,como no caso que Ihes mostrei do esquecimento de urn nome. Quandoo nome Signorelli e esquecido, quando permanece oco, faz urn furono nivel da metafora, os destroc;os metonimicos assumem toda a suaimportancia para encontrar seu vestigio. Quando 0 termo Herr desa-parece, e 0 contexto metonimico em que ele foi isolado, ou seja, 0contexte Bosnia-Herzegovina, que nos permite resgata-lo.

Voltemos a nos so familionririo, neoformac;ao que se produz nonivel da mensagem. Fiz voces observarem que, no plano da tiradaespirituosa, deveriamos encontrar as correspondencias metonimicasda formac;ao paradoxal tanto quanto, no nfvel do esquecimento donome, as que correspondem a escamoteac;ao ou ao desaparecimento

\ do Signor. Foi neste ponto que ficamos. Como conceber 0 que acontece

Ino nivel do familionririo, na medida em que a metafora, aqui espiri-. tuosa, e bem-sucedida? Deve haver alguma coisa que marque comoIque 0 resfduo, 0 dejeto da criac;ao metaf6rica.

Uma crianc;a 0 diria de imediato. Quando nao ficamos fascinadoscom a faceta entificadora que sempre nos faz manejar 0 fen6menoda linguagem como se ele fosse urn objeto, aprendemos a dizer coisassimples e evidentes a maneira como procedem os matematicos quandomanejam seus simbolozinhos, x e y, a e b, isto e, sem pensar em nada,sem pensar no que eles significam. Posto que estamos invest~gandoo que acontece no nfvel do significante, para saber 0 que significaisso, nao investiguemos 0 que isso significa. 0 ue foi rej.titad03 0Qlle marca, I!2 nivel _da-!Detafora, 0 resto" 0 residuo da criac;ao~taforica? ~ claro que e a palavra familiar.

Se a palavra familiar nao apareceu, e se foi familionririo quesurgiu em seu lugar, devemos considerar que a palavra familiar foipara algum lugar, que teve urn destino identico ao que foi reservadoao Signor de Signorelli, 0 qual, como Ihes expliguei da ultima vez,foi prosseguir seu circuitozinho circular em algu~ lugar da memoria. . \1I1conSClente.

Nao nos espantaremos nem urn pouco que assim seja. A palavrafamiliar sofre UIl) destino que corresponde bem ao mecanisme derecalque no sentido habitual, quer dizer, no sentido do qual todostemos a experiencia, e que corresponde a uma experiencia hist6ricaanterior, digamos, pessoal, e que remonta a urn passado remoto.Naturalmente, ja nao e 0 ser de Hirsch Hyacinth que fica em questao,mas 0 de seu criador, Heinrich Heine.

Mesmo que na criac;ao poetica de Heine a palavra familionririotenha florescido de maneira tao feliz, pouco nos importa saber emque circunstancias ele a encontrou. Talvez nao a tenha feito correrde sua pena quando estava a sua mesa, mas a tenha inventado duranteurn de seus passeios por uma noite parisiense que ele devia concluirsolitario, depois de urn dos encontros que tivera, na decada de 1830,com 0 barao James de Rothschild, que 0 tratava como a urn igual ede maneira totalmente familionriria. Pouco importa, 0 resultado foifeliz, e tudo bem.

Nao pensem que estou indo mais longe do que Freud nisso. Comefeito, passado urn terc;o do livro aproximadamente, voces 0 veemretomar 0 exemplo do familionririo no plano do que ele chama detendencias do espfrito, e identificar as fontes da formac;ao dessa tiradaespirituosa de invenc;ao engenhosa. Ele nos ensina que essa criac;aode Heine tinha algo correspondente em seu passado e em suas relac;6es

Ipessoais ?e ~amflia. Por tras de Salomon de Rothschild, que ele invocaem sua flcc;ao, houve de fato urn outro familionririo, de sua familia- 0 chamado Salomon Heine, seu tio. Este desempenhou em sua

I vida 0 mais opressivo papel ao longo de toda a sua existencia. Naoapenas 0 tratou extremamente mal, recusando-Ihe a ajuda conCl'etaque Heine podia esperar dele, como tambem criou obstaculos arealizac;ao de seu grande amor, 0 que ele nutria pela prima - a quemnao p6de desposar pela razao, essencialmente familion.riria, de que 0tio era milionario e ele nao era. Heine sempre considerou uma traic;aoaquilo que nao foi senao a conseqUencia de urn impa sc familiarprofundamente marcado pela milionaridade.

IIA palavrafamiliar, que se constata ter aqui a funyao significante

~aior no recalque correlato da criac;ao espiritual de .He!nc: arlista dalInguagem, mostra-nos de manelra eVldenle a subjaccncla de umasignificac;ao pessoal. Essa subjacencia esta ligada a palavra, e nao atudo 0 que possa haver de confusamente acumulado na significac;aopermanente, na vida do poeta, de uma insatisfac;ao e de uma posic;aomuito singularmente falseada perante as mulheres em gera!. Se essefator intervem aqui, e pelo significante familiar como tal. Nao ha, no

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IIL'X 'n plo indicado, nenhum outro meio de tocar na a~ao ou na inci-

" t!"n<.;ia do inconsciente, a nao ser mostrando que a significa~ao estacSlrcitamente ligada a presen~a do tenno significante famil~ar.

Tais observa~6es SaG feltas para lhes mostrar que 0 caml11ho peloqual enveredamos, 0 de ligar toda a economia do que esta gravadono inconsciente a combina~ao significante, leva-nos muito longe,joga-nos numa regressao que nao pros segue ad infinitum, mas quenos reconduz a origem da linguagem. Com efeito, temos de considerartodas as significa~6es humanas como tendo sido, em algum momento,metaforicamente geradas por conjun~6es significantes.

Considera~6es como esta certamente nao SaG desprovidas deinteresse - sempre temos muito a aprender com a historia dosignificante. A identifica~ao do termo familia como 0 que e recalcadono nivel da forma~ao metaforica e perfeita para Ihes dar, de passagem,uma ilustra~ao disso.

Com efeito, a menos que se tenha lido Freud, ou que hajasimplesmente um pouquinho de homogeneidade entre a maneira comose pensa quando se esta em analise e aquela pela qual se Ie um texto,nao se pensa em familia no termo familionario, assim como nao sepensa em terra no termo aterrado. Quanto mais voces realizam 0

termo aterrado, mais vogam pelo sentido do terror e mais terra eevitado, embora seja esse 0 elemento ativo na introdu~ao significantedo termo metaforico aterrado. Aqui, do mesmo modo, quanta maisvoces se aprofundam no senti do de familionario, mais pens am nofamilionario, isto e, no milionario que se tornou transcendente porassim dizer - transfonnado em alguma coisa que existe no ser, enao mais uma especie de signa puro e simples -, e mais familiaten de a ser eludido como termo atuante na cria~ao da palavra fami-lionario. Tratem, pois, de se interessar por esse termo, familia, comofiz eu, no nivel do significante e de sua historia, abrindo 0 dicionarioLittre.

Era no Littre, diz 0 sr. Charles Chasse, que Mallarme apan~avatodas as suas ideias. E 0 pior e que ele tem razao. Tern razao numccrto contexto, no qual e tao apanhado quanto seus interiocutores, 0

que Ihe da a sensa~ao de estar arrombando uma porta. E e claro quefuz isso porque a porta nao esta aberta. Com efeito, se pensassemosno que e a poesia, nao haveria nada de surpreendente em perc5bertill' Mallarme se interessava vivamente pelo significante. Mas ninguemjilmais abordou 0 que e verdadeiramente a poes~a. Oscila-se entre seiIii '\I qu lcoria vaga e movedi~a sobre a compara~ao e uma referenciaII ,':i1w s' Iii quc lermos musicais, mediante 0 que se pretende explicar

a pretensa falta de sentido em Mallarme. Em suma, nao se percebeem absoluto qu~ deve haver uma maneira de definir a poesia emfun~ao das rela~6es com 0 significante. A partir do momenlo em quese produz uma formula talvez um pouco mais rigorosa da poesia,como fez Mallarme, e muito menos' surpreendente que ele sejaquestionado em seus mais obscuros sonetos.

Dito isso, nao creio que ninguem venha um dia a fazer a descobertade que tambem eu tirava todas as minhas ideias do diciolHirio Littresob 0 pretexto de que 0 abro.

Abro-o entao, e posso informar-Ihes isto, que suponho algunspossam saber, mas que mesmo assim tem la seu interesse: 0 termofamilial, em 1881, era um neologismo. Vma consulta atenta a algunsbons autores que se debru~aram sobre esse problema permitiu-medatar de 1865 0 surgimento dessa palavra. Nao se dispunha desseadjetivo antes daquele ano. Por que nao?

Segundo a defini~ao dada pelo Liitre, diz-se familial daquilo quese relaciona com a famflia, no nivel, em suas palavras, da cienciapolitica. A palavrafamilial esta ligada, pOltanto, a um contexto ondese diz, por exemplo, salarios-famflia [allocations familiales]. 0 adje-tivo veio a luz, assim, no momenta em que a famflia po de ser abordadacomo objeto no nivel de uma realidade polftica interessante, isto e,"Por ela ja nao ter para 0 sujeito a mesma fun~ao estruturante quetivera ate entao, sendo parte integrante das proprias bases de seudiscurso, sem que sequer se pensasse em isola-Ia. Foi a propor~aoque ela foi tirada desse nivel, para se tornar tema de um manejotecnico particular, que pode surgir uma coisa tao simples quanto seuadjetivo correlato. Talvez isso nao seja indiferente, como voces naopodem deixar de perceber, no proprio uso do significante familia.

Scja como for, evidcncia-se que 0 termo que acabo de Ihes dizerque foi posta no circuito do recalcado nao tinha, em absoluto, naepoca de Heine, um valor identico ao que pode ter em nossa epoca.Com efeito, 0 simples fato de 0 termo familial nao apenas nao ser deuso corrente no mesmo contexto, mas ate de nao existir nessa epoca,basta para modificar 0 eixo da fun~ao significante ligada ao termofamilia. Essa nuance nao deve ser desprezada nesse caso.

E gra~as a negligencias dessa especie que podemos imaginar quecompreendemos os textos antigos tal como eles eram compreendidospelos seus contemporaneos. No entanto, ha toda probabilidade de queuma leitura ingenua de Homero em nada corresponda a seu sentidoverdadeiro. Certamente nao e a toa que exista quem se dedique a urnesgotamento atento do vocabulario homerico, na esperan~a de repor

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i1proximadamente em seu lugar a dimensao de significa~ao de que se[rala cm seus poemas. Mas, 0 fato e que estes conservam seu sentido,apcsar de boa parte do que e impropriamente chamado de mundomcntal - que e 0 mundo das significa~6es dos herois homericos -nos escapar, com toda a probabilidade, por completo, e, muito pro-vavelmente, deve escapar-nos de maneira mais ou menos definitiva.A distancia que vai do significante ao significado permite compreenderque a uma concatena~ao bem feita, que e precisamente 0 que carac-teriza a poesia, sempre se podera dar sentidos plausfveis, provavel-mente ate 0 fim dos seculos.

Creio tel' feito mais ou menos 0 circuito do que se pode dizersobre 0 fenomeno da cria~ao da tirada espirituosa em seu registroproprio. Isso talvez nos permita chegar mais perto da formula quepodemos dar db esquecimento do nome, do qual Ihes falei na semanapassada.

10 que e 0 esquecimento de urn nome? No caso, e 0 sujeito formulardiante do Outro, e ao proprio Outro como Outro, a pergunta: Quemlpintou 0 afresco de Orvieto? E nao encontrar nada.

Quero assinalar-Ihes, nesta oportunidade, a importancia do cui-dado que tenho em Ihes dar uma formula~ao correta. A pretexto dea analise descobrir que, se 0 sujeito nao evoca 0 nome do pintoI' deOrvieto, e porque falta 0 Signor, voces podem ficar pensando que 0Signor e que foi esquecido. Isso nao e verdade. Nao e Signor que eleesta procurando, mas Signorelli, e Signorelli e que foi esquecido.

l Signor e 0 dejeto significante recalcado de alguma coisa que acontece~ no lugar onde nao se pode encontrar Signorelli.

Percebam bem 0 carateI' rigoroso do que Ihes estou dizendo. Demodo algum e a mesma coisa lembrar Signorelli ou Signor. Depoisde terenLfeito de Sig[lQretli o_nome proJ2riQ d~ ,urn a!ltor, voces n~opensam mais no Signor. ~e 0 Signor foi isolado em Signorelli, foiem raza(Ldo ato_dcdem osiyio que e propiTo da metafora, e namedida em que 0 nome foi ap.1-nhado no jQgo ~ri~ q;; levou.a seu esquecimentg.

I A analise nos permite reconstituir a correspondencia de Signor'om I-Ierr, numa cria~ao ~e~aforica que visa 0 sen,tido existente a!¢m

d' I/err, senti do que este ultImo assumlU durante a conversa de Freud('0111 () P rsonagem que 0 acompanha em sua pequena viagem a foz

do Cattaro. Herr tornou-se 0 sfmbolo daquil0 diantc do qual fracassasua mestria de m~dico, 0 sfmbolo do mestrc absoluto, ou seja, dadoen~a-que ele nao cura - 0 paciente suicidou-se apesar de seuscuidados - e, numa palavra, da moite e di impotencia que 0 amea~ampessoalmente, a ele, F;-eud. E na cria~ao metaforica que se produz a

uebra de Signorelli, 0 qual permite ao elemento Signor ir para urnoutro lugar. Assim, nao se deve dizer que Signor e que foi esquecido,quando foi Signorelli. §J.gn!!}' e llquilo qu~_encontI~a!il0s no nfvel dodejeto metaforico, como recals:adj). Signor e recalcado, mas -aoesguecido Nao pode-ser esq~ecido, uma vez que nao existia aptes.. Se Signorelli po de quebrar-se tao faeilmente e Signor pode sedestacar, e pOl'que Signorelli e uma palavra de uma lfngua estrangeirapara Freud. E impressionante - voces 0 constatarao facilmente, pOl'menos que tenham a experiencia de uma lfngua estrangeira - comose discernem com muito mais facilidade os elementos componentesdo significante numa outra lfngua do que na propria. Quando eome~ama aprender uma lfngua, voces percebem rela~6es de composi~ao entreas palavras as quais omitem em sua propria lfngua. Em sua lfngua,voces nao pens am nas palavras decompondo-as em radicais e sufixos,ao passo que 0 fazem, da maneira mais espontanea, ao aprender umalfngua estrangeira. E pOl' essa razao que uma palavra estrangeira e

ais facil de fragmentar e utilizar em seus elementos signifieantesdo que uma palavra qualquer da propria lfngua. Esse e apenas urnelemento adjuvante desse processo, que po de igualmente produzir-secom as palavras da propfia lfngua, mas, se Freud come~ou peloesquecimento de urn nome estrangeiro, foi pOl-que 0 exemplo eraparticularmente acessfvel e demonstrativo.

Pois bern, 0 que h3. no nfvel do lugar onde voces nao eneontramo nome Signorelli? Houv~J!esse lugar, a tel1tativjl ~ uma cria~aoI)1etaforica. Q..flue s§.Jlpr.esenla como esqueci.mento d<2nome e 0 q~ese a recia no lugar do familionario. Nao teria havido absolutamente

]

nada ali, se Heinrich Heine tivesse dito: Ele me recebeu totalmentecomo a um igual, totalmente ... tsc ... tsc ... tsc ... E exatamente isso queaeontece no nfvel em que Freud proeura 0 nome Signorelli. Alguma

(

coisa nao sai, nao e eriada, Ele procura Signorelli e 0 proem-aindevidamente. Por que? £m:q.u,e. no nfvel em que procura Signorejji,aquilo que e esperado nesse lugar, em virtude da con versa anterior,aquilo que e chamado a ele, .~ma }1letafora gue sirva de media~aoentre ~isa de que se trata no correr da con versa e aquilo que ele.xecusa, ou seja,~orte,

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E justamente disso que se trata quando ele volta 0 pensamentopara 0 afresco de Orvieto, ou seja, do que ele mesmo chama de as'oisas derradeiras. E convocada, por assim dizer, uma elabora<;:ao

escatologica. Essa seria sua unica maneira de conseguir abordar essetermino abomimivel, impensavel, por assim dizer, de seu pensamento,no qual apesar de tudo ele tern de se deter, pois existe a morte, quetanto limita seu ser de homem quanto sua a<;:aode medico, e que daum limite absolutamente irrefutavel a todos os seus pensamentos. Ora,nenhuma metafora Ihe ocorre no caminho da elabora<;:ao dessas coisasderradeiras. Freud se recusa a qualquer escatologia, a nao ser sob aforma de uma admira<;:ao pelo afresco pintado em Orvieto. E nadalhe ocorre.

No lugar onde ele procura 0 autor - afinal, e do autor que setrata, de nomear 0 autor - nao se produz nada, nenhuma metaforatern sucesso, nenhum equivalente e atribufvel ao Signorelli. 0 S' :no-r.,ellifora convocado, naquele momento, numa forma significante bemdistinta da de pm simples_ nome. Fora solicitado a entrar em jogo amaneira como, em aterrado, 0 radical terra desempenha sua fun<;:ao,isto e, rompendo-se e se elidindo. A existencia do termo Signor emalgum lugar e a conseqilencia da metafora malsucedida que, nessemomento, Freud chama em seu auxflio, e cujos efeitos devem serinscritos no esquema no nfvel do objeto metonfmico.

o objeto de que se trata, 0 objeto representado, pintado sobre ascoisas derradeiras, Freud 0 extrai sem esfor<;:o de sua memoria -Nao somente eu nao encontrava 0 nome Signorelli, como nuncavisualizei tao bem 0 afresco de Orvieto, logo eu, diz ele, que nao soumuito imaginativo. Disso nos sabemos por toda sorte de outros tra<;:os- pel a forma de seus sonhos, em particular -, e, se Freud podefazer todas essas descobertas, muito provavelmente foi por ser muitomais receptivo e permeavel ao jogo simbolico do que ao jogo ima-ginario. Ele mesmo notou a intensifica<;:ao da imagem no plano dalembran<;:a, a reminiscencia mais intensa do objeto em questao, ouseja, a pintura, e ate do rosto do proprio Signorelli, que ali estava napostura em que, nos quadros da epoca, apareciam os doadores e, asvezes, 0 autor. Signorelli estava no quadro e Freud 0 visualizou.

Nao houve, portanto, urn esquecimento puro e simples, urn es-quecimento maci<;:o do objeto. Houve, ao contrario, uma rela<;:ao entre:I revivescencia intensa de alguns de seus elementos imaginarios e ap'rda de outros elementos, que sao elementos significantes no nfvelsirnb61i '0. E!2,contramos_njsso_o_s.inaLdo que estava acontecendo noII v'l 10 objeto metonfmico. - .

POltanto, podemos formular 0 que acontece no esquecimento donome mais ou menos assim:

. .-2S._ . SignorSignor Herr

I Af encontramos a formula da metafora, na medida em que ela se

Iexerce por urn mecanismo de sUbstitui<;:ao que coloca urn significanteS no lugar de outro significante, S'. Qual e a conseqilencia dessasubstitui<;:ao? Produz-se no nfvel de S' uma mudan<;:a de sentido -o senti do de S', digamos, s', torna-se 0 novo sentido, que chamaremos

I de s, por ele corresponder a S maiusculo. Para nao deixar que subsistanenhuma ambigilidade em seu espfrito, pois voces poderiam acharque, nessa topologia, 0 s minusculo e 0 sentido do S maiusculo,esclare<;:o que e preciso que 0 S tenha entrado em rela<;:ao com 0 S'

. para que 0 s minusculo possa produzir, u.nicamente a esse tftulo, 0

que chamarei de s". A cria<;:ao desse senti do e a finalidade doIifuncionamento da metafora. A metafora e sempre bem-sucedida, desde

I que, sendo isso executado, exatamente como numa mUltiplica<;:ao defra<;:6es, os termos se simplifiquem e se anulem. 0 sentido e entaorealizado, depois de entrar em fun<;:ao no sujeito.e na medida em que aterrado acaba significando 0 que significapara nos na pratica, isto e, mais ou menos tomado de terror, que 0

terra - 0 qual, por urn lado, serviu de intermediario entre aterradoe abatido, 0 que constitui a distin<;:ao mais absoluta, pois nao hanenhuma razao pela qual aterrado deva substituir abatido, e 0 qual,por outro lado, trouxe a tftulo homonfmico 0 terror - que 0 terra,em ambos os casos, pode simplificar-se. E urn fenomeno da mesmaordem que se produz no nfvel do esquecimento do nome.

~. 0 que esta em pauta nao e uma perda do nome Signorelli, masII de um X que Ihes apresento aqui pOl'que iremos aprender a reconhe-ce-lo e a fazer usa dele. Esse X e 0 chamariz da cria<;:ao significativa.Encontraremos seu luga~economia de outras forma<;:6es incons-i2entes. Para dize-Io a voces de uma vez, ~o e 0 que acontece no

lano d? 9.E!. c1}..amamos desejo do sonho. Vemo-lb aqui, de maneirasimples, no lugar onde Freud deveria encontrar Signorelli.

I Freud nao encontra nada, nao simplesmente pOl"que Signorellidesapareceu, mas pOl'que, nesse nfvel, ter-lhe-ia sido preciso criar

I alguma coisa que satisfizesse ao que constitufa a questao para ele, ouseja, as coisas derradeiras. Desde que esse X esteja presente, a for-

t ma<;:ao metaforica tende a se produzir, e nos 0 vemos nisto, no fata

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de 0 termo Signor aparecer no nfvel de dois term os significantesopostos. Ele tern duas vezes 0 valor S', e e nessa condic;:ao que elesofre 0 recalque. No nfvel do X nao se produziu nada, e e por issoque Freud nao descobre 0 nome, e que 0 Herr desempenha 0 papele ocupa 0 lugar do objeto metonfmico, objeto que nao pode ser

. denominado, que s6 e denominado por suas conex6es. A morte e 0

Herr absoluto. Mas, quando se fala do Herr, nao se esta falando damorte, pOl-que nao se pode falar da morte, porque a morte e, muitoprecisamente, 0 limite de toda a fala e, ao mesmo tempo, provavel-mente tambem a origem de onde ela parte.

Eis, portanto, a que nos leva conelacionar termo a termo aI

formac;:ao da tirada espirituosa e a formac;:ao inconsciente cuja formavoces agora veem aparecer melhor. Ela e aparentemente negativa. Na

\

verda~e, n,ao e n,egativa. Esquecer urn nome nao e simplesmente umanegac;:ao, e uma falta, mas - sempre tendemos a andar depressademais - uma falta desse nome. Nao e elo fate de 0 nome nao ser

,cetido que ha aJ_aHa. Nao, ha a falta desse nome. - - --I Ao procurar 0 n~ncontramos a falta no ugar onde ele deverialexercer sua func;:ao e onde nao mais pode exerce-Ia, pois urn novosenti do e requerido, 0 qual exige uma nova criac;:ao metaf6rica. E poressa razao que 0 Signorelli nao e encontrado, mas, inversamente,deparamos com os fragmentos, ali onde eles devem ser encontradosna analise, ali onde exercem a func;:ao do segundo termo da metaFora,ou seja, do termo nela elidido.

Isso pode parecer grego mas nao importa, desde que vocessimplesmente se deixem conduzir poraquilo que aparece. Por maisgrego que possa parecer, e rico em conseqiiencias. Se voces lembraremdisso quando for preciso lembrar, isso Ihes permitira esclarecer 0 quese passa na analise de uma dada formac;:ao inconsciente e prestarcontas dela de maneira satisfat6ria. Inversamente, ao elidi-Io, ao naoleva-Io em conta, voces sac conduzidos a entificac;:6es sumarias,grosseiras, se nao sempre geradoras de enos, no mfnimo vindosustentar enos de identificac;:6es verbais que desempenham urn papelimportantfssimo na construc;:ao de uma certa psicologia - a daindolencia, precisamente.

Voltemos a nossa tirada espirituosa e ao que cabe pensar dela. Queroapresentar-lhes, para terminar, uma distinc;:ao qtfe retorna aquilo peloqual comecei, ou seja, a questao do sujeito.

a pensamento sempre se reduz a fazer do sujeito aquele que sedesigna como tal no, discurso. Farei voces observarem que a isso seop6e urn outro termo. Trata-se da oposic;:ao do que chamarei de dizerdo presente ao presente do dizer.

Isso tern jeito de jogo de palavras, mas nao 0 e de modo algum .a dizer do presente remete aquilo que se diz [eu] no discurso.

Juntamente com uma serie de outras partfculas, aqui, agora e outraspalavras tabus em nosso vocabulario psicanalftico, ele serve para situarno discurso a presenc;:a do falante, para situa-Io em sua atualidade defalante, no nfvel da mensagem.

Basta ter a mais fnfima experiencia da linguagem para ver que 0

pr~sente do dizer, ou seja, 0 que existe presentemente no discurso, eCOisa completamente diferente. a presente do dizer po de ser lido emtoda sorte de modalidades e registros, e nao tern nenhuma relac;:ao deprincipio com 0 presente, tal como este e designado no discurso comopresente daquele que 0 sustenta, que e variavel e para 0 qual aspalavras tern apenas urn valor de partfcula. a [eu] nao tern mais valordo que aqui ou agora. A prova disso e que quando voce, meuinterlocutor, me fala de aqui ou agora, nao esta falando do mesmoaqui ou agora de que falo eu. Em to do caso, 0 seu [eu] certamentenao e 0 mesmo que 0 meu.

~Vou Ihes dar uma ilustrac;:ao do presente do dizer, mediante amais curta tirada espirituosa que conhec;:o, a qual nos introduzira, aomesmo tempo, numa dimensao diferente da dimensao metaf6rica.

Esta dimensao corresponde a condensac;:ao. Falei-lhes ha poucodo deslocamento, e e a dimensao metonfmica que corresponde a ele.Se ainda nao a abordei, foi pOl-que ela e muito mais diffcil de apreender,mas essa tirada espirituosa nos sera particularmente favoravel para,fazer com que a percebamos. .

A dimensao metonfmica, na medida em que pode entrar na tiradaespirituosa, joga com os contextos e os empregos. Ela se exerceassociando os elementos ja conservados no tesouro das metonfmias.Vma palavra pode ser Iigada de maneira diferente em dois contextosdiferentes, 0 que the da dois sentidos completamente diversos. Aotoma-Ia num certo contexte com 0 sentido que ela' tern em outro,estamos na dimensao metonfmica.

Darei 0 exemplo princeps disso sob a forma da seguinte tiradaespirituosa, sobre a qual voces poderao meditar antes que eu fale dela.

Heine estava com 0 poeta Frederic Soulie num salaD quando esteIhe disse, a prop6sito de urn personagem coberto de ouro, figura queocupava urn bocado de espac;:o na epoca, como voces podem ver, e

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que era muito requisitada: - Como ve, meu caro amigo, 0 culto aoBezerro de Guro niio acabou. - Gh - respondeu, depois de olharo personagem: - para um bezerro, ele me parece ter passado umpouco da idade.

E esse 0 exemplo do chiste metonfmico. Vou esmiu<;i-lo dapr6xima vez, mas voces ji podem notar que e na medida em que apalavra bezerro e tomada em dois contextos metonfmicos diferentes,e unicamente nessa condi~ao, que hi uma tirada espirituosa. Nadaacrescenta a significa~ao dessa tirada espirituosa dar-lhe seu senti do,ou seja, 0 de que 0 personagem e urn boi. E engra~ado dizer isso,mas s6 hi tirada espirituosa na medida em que, de uma fala a outra,bezerro e tornado em dois contextos diferentes.

Que a tirada espirituosa se exer~a no nfvel do jogo do significante,podemos demonstni-lo de uma forma ultracurta.

Uma mo~a, uma mulher em potencial, em quem podemos reco-nhecer todas as qualidades da verdadeira educa~ao, aquela que consisteem nao usar as palavras chulas, mas em conhece-Ias, foi convidadapara sua primeira festa surpresa pOl' urn galanteador que, ao cabo deurn momento de ei~fado e silencio, disse-lhe, ao sabol' de uma dan~a,aliis imperfeita: ~ Como viu, senhorita, eu sou conde. - At! -respondeu ela, simplesmente.*

Nao e uma hist6ria que voces tenham lido nas pequenas antologiasespeciais. Talvez a pudessem colher da boca da senhorita, que ficoubastante satisfeita com ela, devo dizer. Mas nem por isso a hist6riadeixa de apresentar urn caniter exemplar, pois e a encarna~ao pOl'excelencia do que chamei de presente do dizer. Nao existe [eu], 0

[eu] nao se nomeia. Nada e mais exemplar do presente do dizer, comooposto ao dizer do presente, do que a exclama~ao pura e simples. Aexclama~ao e 0 prot6tipo da presen~a do discurso, na medida em queaquele que 0 sustenta apaga por completo seu presente. Seu presentee, pOl' assim dizer, inteiramente situado no presente do discurso.

Nao obstante, nesse nfvel de cria~ao, 0 sujeito di mostras depresen~a de espfrito, pois uma coisa dessas nao e premeditada, apareceassim, e e pOl' af que se reconhece que uma pessoa e espirituosa. Elaefetua uma simples modifica~ao no c6digo, que consiste em Iheacrescentar esse pequeno t, que assume todo 0 seu valor pelo contexto,se assim ouso me exprimir, ou seja, 0 de que 0 conde nao a contenta,

• A palavra comte (conde) soa identica ao termo chulo con (babaca), acrescido deum t. A resposta dada pela mo~a corresponderia mais ou menos a "Ah, t!". (N.E.)

exceto pelo fato de que se, como digo, e tao pouco capaz de contentar,o conde pode nao pe,rceber nada. Esse tra~o, portanto, e completamentegratuito, mas nem por isso voces deixam de vel' nele 0 mecanismoelementar da tirada espirituosa, isto e, a ligeira transgressao do c6digoe tomada por si s6 como urn novo valor, que permite gerar instanta-neamente 0 senti do de que se precisa.

Esse sentido, qual e? Talvez lhes pare~a que ele nao deixa duvidas,mas, afinal, a mo~a bem-educada nao disse a seu conde que ele erao que e menos urn t. Nao Ihe diz nada parecido. 0 sentido a ser criadopermanece em suspenso, em algum lugar entre 0 eu e 0 Outro. E aindica~ao de que existe algo que, pelo menos pOl'ora, deixa a desejar.POl'outro lado, 0 texto nao pode ser transposto em outros termos: seo personagem tivesse dito que era marques, a cria~ao nao teria sidopossfve!. Segundo a boa velha f6rmula que era a alegria de nossospais no seculo passado, perguntava-se Como 'ta tu? Tatu 'ta bom?,e se respondia: Tatu do bem. Nao valia responder Coelho vai bem.Voces me hao de dizer que essa era uma epoca em que as pessoastinham prazeres simples. *

At! - af voces captam a tirada espirituosa em sua forma maisbreve, incontestavelmente fonemitica. E a composi~ao mais curta quese ode dar a urn fonema. E preciso que haja dois tra~os caracterfsticos,sendo esta a mais curta f6rmula do fonema - quer uma consoanteapoiada numa vogal, quer uma vogal apoiada numa consoante. Umaconsoante apoiada numa vogal e a f6rmula clissica, e e 0 queencontramos aqui. Isso basta, sirnplesmente, para constituir urn enun-ciado que tern valor de mensagem, desde que haja uma referenciaparadoxal ao emprego atual das palavras e que ele dirija 0 pensamentodo Outro para uma capta~ao instantanea do sentido.

E a isso que se chama ser espirituoso. E tambem isso que esbo~ao elemento propriamente combinat6rio em que se ap6ia toda metifora.Se hoje falei muito da metifora, foi para lhes apresentar mais umavez urn referencial do mecanismo substitutivo. 0 ,mecanismo existeem quatro termos, os quatro termos que estao na f6rmula que lhesdei em "A instancia da letra". Essa e, singularmente, pelo menos na

* Como na adapta~ao em portugues, a brincadeira (no frances dizia-se Commentvas-tu? e se respondia Et toile a matelas, mas nunca Et toile a edredon) era calcadanos significantes e jogava com 0 disparate dos significados que eles evocavam.(N.E.)

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forma, a opera<;ao essencial da inteligencia, que consiste em formularo correlato do estabelecimento de uma propor<;ao com um X.

Um teste de inteligencia nao e outra coisa senao isso. So que issonao basta para dizer que 0 homem se distingue dos animais pOI' suainteligencia, de uma maneira bruta. Talvez ele se distinga do animalpOI' sua inteligencia, mas talvez, nesse fato, a introdu<;ao de formu-la<;6es significantes seja primordial.

Para par no devido lugar a questao da pretensa inteligencia doshomens como a fonte de sua realidade mais X, seria preciso come<;arperguntando - inteligencia de que? Que ha pOI' compreender? Como real, sera mesmo de compreender que se trata? Se e pura esimplesmente de uma rela<;ao com 0 real que se trata, 0 discursocertamente deve conseguir restabelece-lo em sua existencia de real,isto e, nao deve levaI', estritamente falando, a nada. E isso, alias, queo discurso costuma fazer. Se chegamos a uma outra coisa, se atepodemos falar de uma historia que chega a seu fim num certo saber,e na medida em que 0 discurso introduz nela uma transforma<;aoessencial.

E disso mesmo que se trata, e talvez, muito simplesmente, trata-sedesses quatro pequenos termos, ligados de certa maneira pelo que sechama de rela<;6es de propor<;ao. Essas rela<;6es, mais uma vez,tendemos a entifica-las. Acreditamos retira-las dos objetos. Mas on deestao, nos objetos, essas rela<;6es proporcionais, se nao as introduzir-mos com a ajuda de nossos pequenos significantes?

\1A verdade e que a propria possibilidade do jogo metaforico

baseia-se na existencia de algo a ser substitufdo. a que esta na baseI e a cadeia significante, como princfpio da combina<;ao e lugar da

J metonfmia.E isso que tentaremos abordar da proxima vez.

A necessidade e a recusaFonnaliza~iio da melonlmia

.Sem metonlmia niio ha metaforaA diplopia de Maupassanto descentramento de Feneon

D ultima vez deixamos as coisas no ponto em que, depois de lheshaver. mostrado 0 mecanismo encontrado por uma das fOt'mas da tiradaespirituosa naquilo que chama de fun<;ao metaforica, famos tomar umsegundo aspecto dela sob 0 registro da fun<;ao metonfmica.

Voces poderiam se espantar com esse modo de proceder, queconsiste em partir do exemplo para desenvolver sucessivamente rela-<;6es funcionais, as quais, em vista disso, parecem nao estar ligadaspOl' uma rela<;ao geral aquilo de que se trata. Isso decorre de umanecessidade propria de nossa materia, cujo elemento sensfvel teremosa oportunidade de mostrar. Di amos 91le_tudo 0 que e da ordem dC!inconscienJe como estruturado pela linguagem coloca-nos diante do;guiJ:lte fenomeno: nao e nem 0 genero nem a cLasse, mas tao-somenieQ..~.xemplo_particular que nos permite apreender as propriedades. maiss.i~as.

Ha nisso uma inversao de nossa perspectiva analftica habitual, nosentido da analise das fun<;6es mentais. Poder-se-ia chama-Ia defracasso do conceito, no sentido abstrato do tenno. Trata-se, mais,exatamente, da necessidade de _P~~s.~.LRor UI!1aoutraJDIlIl qJ e M.9a da ap.reensao cOQceitual. Foi a isso que aludi urn dia, ao falar do

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maneirismo, e esse trac;o e perfeitamente apropriado a nos so campo.Considerado 0 terreno em que nos nos deslocamos, mais do que pelouso do conceito, e pOl' uma distorc;ao do conceito que somos obrigadosa proceder. Isso, em razao do campo onde se movem as estruturac;6esde que se trata.

Sendo 0 termo "pre-Iogico" propenso a gerar confusao, eu osaconselharei a risca-Io de antemao de suas categorias, considcrandoo que se costuma fazer dele, ou seja, uma propriedade psicologica.Trata-se, aqui, de propriedades estruturais da linguagem, que saoanteriores a qualquer questao que possamos enderec;ar a linguagemsobre a legitimidade do que ela nos prop6e como meta. Como vocessabem, e exatamente isto quc constituiu 0 objeto da ansiosa indagac;aodos filosofos, grac;as a qual chegamos a uma especic de arranjo, quee mais ou menos 0 seguinte: Apesar de a linguagem nos mostrar quenao podemos dizer grande coisa neste nivel a nao ser que ha um serde linguagem, um para nos se realiza no enquadre; a este para noschamamos objetividade. Essa e, sem duvida, uma maneira meioapressada de resumir toda a aventura que vai da logica formal a logicatranscendental, mas serve, simplesmente, para Ihes anunciar desdelogo que e em outro campo que nos nos situamos.

Quando fala do inconsciente, Freud nao nos diz que ele e estru-turado de uma certa maneira, mas, ainda assim, diz ele isso, na medidaem que as leis que prop6e, as leis de composic;ao desse inconsciente,coincidem exatamente com algumas das mais fundamentais leis decomposic;ao do discurso. POI' outro lado, no modo de articulac;ao quee proprio do inconsciente faha toda sorte de elementos que estaoimplicados em nos so discurso comum - 0 vinculo de causalidade,dira Freud a proposito do sonho, ou a negac;ao, e isso para reconsiderarlogo em seguida e nos mostrar que esta ultima se exprime de algumaoutra maneira no sonho. E esse 0 campo ja delimitado, definido,circunscrito, explorado, e mesmo lavrado por Freud. E a ele quevoltamos para tentar formular - ou entao, indo mais longe, paraformalizar - 0 que ha pouco chamamos de leis estruturantes primor-diais da linguagem.

Se ha uma coisa que a experiencia freudiana nos traz, e que somosdeterminados pOl' essas leis no mais intimo de nos, como se costumadizer, acertadamente ou nao, para criar uma imagem. Digamos sim-plesmente: somos determinados no nivel do que em nos esta alem denossas apreens6es autoconceituais, alem da ideia que podemos fazerde nos mesmos, sobre a qual nos apoiamos, a qual nos agarramos de

Il'lalquer maneira, a qual as vezes meio prcmaturamente, nos preCl-\'llaI110S,em dar um destino falando de sfntcse, de [otalidadc da pessoa

termos que, nao nos esquec;amos, sao todos precisamcnte, pclal'\ periencia freudiana, objetos de contesta«ao.

Com efeito, Freud nos ensina - e devo rcstahl'lecc-lo aqui como11ll1adivisa explfcita - a distancia ou mesillo a hiancia quc existe('ntre a estruturac;ao do desejo e a estrutura,,~ao de nossas necessidades.I':, se a experiencia freudiana chcgou ao ponto de se referir a umalllctapsicologia das necessidades, certamente isso nada tem de evi-dente, e podemos ate qualifica-Io de inesperado em relac;ao a umaprimeira evidencia, pois toda a experiencia, tal como instituida edet'inida por Freud, mostra-nos em todo canto a que ponto a estruturados desejos e determinada pOl' outra coisa que nao as necessidades.As necessidades so chegam a nos refratadas, fragmentadas, despeda-\'adas e sao estruturadas precisamente por todos esses mecanismos. - co~densac;ao, deslocamento etc. - conforme as manifesta«6es davida psiquica em que se retletem, e que pressup6em ainda outrosintermediarios e mecanismos, nos quais reconhecemos um certo nu-lI1era dessas leis a que iremos chegar apos este ana de seminario, eque denominaremos de leis do significante.

Essas leis sao dominantes aqui, e na tirada espirituosa aprendemossobre urn certo uso delas, 0 do jogo espirituoso; urn ponto deinterrogac;ao e exigi do pela introduc;ao desse termo. a que e 0 espirito?() que e ingenius em latim? 0 que e ingenio em espanhol, uma vezque fiz referencia ao conceito? a que e esse nao-sei-que que intervemaqui e que e diferente da func;ao do jufzo? So poderemos situa-Ioquando houvermos articulado e elucidado seus procedimentos. Quais<10 esses procedimentos? Qual e sua meta fundamental?

Ia enfatizamos a ambigiiidade da tirada cspirituosa com 0 lapso,ambigiiidade fundamental e, de certo modo, constitutiva. a que seproduz pode transformar-se, conforme 0 caso, nessa especie de aci-dente psicologico que e 0 lapso, diante do qual ficariamos perplexossem a analise freudiana, ou entao, ao contrario, po de ser retomado ehomologado pela escuta do autra, no nivel de urn valor significanteproprio - que e assumido, por exemplo, pelo termo ~eol?gico,paradoxal, escandaloso que e familionario. A func;ao slgl1lf!cantepropria dessa palavra nao e somente designar isto ou aquila, mas simllma especie de para-alem. 0 que e significado aqUl de fundamentalnao esta ligado unicamente aos impasses da relac;ao do sujeito como protetor milionario. Trata-se de uma certa relac;ao que malogra,

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trata-se de algo que introduz nas rela<;:oes humanas constantes ummodo de impasse essencial que repousa nisto: que nenhum desejopo de ser aceito, admitido pelo Outro, a nao ser atraves de toda sortede intermediarios que 0 refratem, que fa<;:am do desejo um objeto detroca, algo diferente do que e, e que, em suma, submetam desde aorigem 0 processo da demanda a necessidade da recusa.

Vou me permitir introduzir 0 verdadeiro nlvel em que se colocaessa questao da tradu<;:ao da demanda num enunciado que surte efeito,aU'aves de uma hist6ria engra<;:ada, se nao espirituosa, cujo registroesta longe de dever limitar-se a risadinha espasm6dica. E a hist6riaque, sem duvida, todos voces conhecem, contada sobre 0 masoquistae 0 sadico: Me machuca, diz 0 primeiro ao segundo, que responde:Nao.

Vejo que isso nao os faz rir. Tanto faz. Alguns riem, assim mesmo.Alias, essa hist6ria nao esta aqui pam faze-Ios rir. Pe<;:o-Ihes apenasque observem que nela nos e sugerida alguma coisa que se desenvolvenum nlvel que nao tem mais nada de espirituoso. Com efeito, quemesta mais fadado a se entender do que 0 masoquista e 0 sadico? Sim,mas, como estao venda por essa hist6ria, desde que nao falem umcom 0 outro.

Nao e pOl' maldade que 0 sactico responde nao. Ele responde emfun<;:ao de sua condi<;:ao sactica. E, a partir do momenta em que sefala, ele e obrigado a responder no nlvel da fala. POl'tanto, e na medidaem que somos transpostos para 0 nlvel da fala que aquilo que deveria,sob a condi<;:ao de que nada fosse dito, levar ao mais profundoentendimento conduz ao que chamei ha pouco de dialetica da recusa,necessaria para sustentar em sua essencia de demanda 0 que semanifesta pOl' interm6dio da fala.

Em outras palavras, voces observam nesse esquema uma Silll,'III;1entre os dois,elementos do circuito, a al<;:afechada, que 6 0 cirClIllldo discurso, e a al<;:a aberta. Da parte do sujeito e lan<;:ada algumacoisa que, encontrando em A 0 ponto de assentamento do entronca,mento, recurva-se sobre si mesma como uma frase articulada, um aneldo discurso. Inversamente, quando 0 que se apresenta como demandatrai a simetria essencial de que falei, para percorrer diretamente 0

circuito que vai de sua necessidade ao objeto de seu desejo, cIadesemboca no nao. Digamos que a necessidade, se a situamos noponto delta linha, se depara, necessariamente, com a resposta do Outroque par ora chamamos recusa.

Sem duvida, isso justifica que nos aproximemos mais daquilo quenao se apresenta aqui senao como um paradoxo, que nosso esquemaapenas permite situar. Retomemos agora a cadeia de nossas proposi-<;:oessobre as diferentes fases da tirada espirituosa,

Introduzirei hoje, pOl'tanto, a fase metonlmica.Para fixar prontamente essa no<;:ao, dei-Ihes um exemplo sob a

forma de uma hist6ria em que voces podem vel' tudo 0 que a diferenciado familionario. Trata-se de um dialogo de Heine com 0 poeta FredericSoulie, praticamente seu contemporaneo, relatado no livro de KunoFischer, e que, segundo creio, era bastante conhecido na epoca.Farma-se uma aglomera<;:ao num salaD em torno de um senhor idoso,aureolado par todos os reflexos de seu po del' financeiro. Olhe, dizFrederic Souli6 aquele que era apenas um pouco mais velho do queele e de quem era admirador: veja como 0 seculo XIX adora 0 Bezerrode Ouro. Ao que Heine, com um olhar desdenhoso para 0 objeto parao qual era chamada a sua aten<;:ao, responde: - E, mas este me parecehaver passado da idade.

o que significa essa tirada espirituosa? Onde esta 0 tempero'lQual e seu fundamento?

A prop6sito da tirada espirituosa, voces sabem que Frcud IlllScolocou imediatamente neste plano: a tirada espirituosa dcw S,'Iinvestigada ali on de esta, ou seja, em seu texto. Nada e m,lis caliv;IIII,',o homem a quem se atribui 0 talento de sondar todos llS ;J1CIISd;1hip6tese psicol6gica, pOl' assim dizer, sempre partc, ;Ill l'lliliraril), <illponto inverso, ou seja, da materialidade do significalill', IlaLIII<ill II

como um dado dotado de existencia pr6pria. TCllillS 111;lIllksl;IIIICII[C

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o cxemplo disso em sua amilise da tirada espirituosa. Nao apenas eda tecnica que ele parte a cada vez, como tambem e nos elementostecnicos que se fia para encontrar 0 mobil.

Que faz ele de imediato? Pro cede ao que denomina de tentativade reduc;:ao. Se traduzirmos a tirada do familionario dando-lhe seusentido desdobrado, se decompusermos aquilo de que se trata, e sedepois lermos os elementos, isto e, se dissermos tao familiar quantase pode ser com um milionario, tudo 0 que havia de tirada espirituosase esvaeceni, desapareceni, 0 que deixa bem claro que aquilo de quese trata reside na relac;:ao de ambigUidade fundamental que e propriada metafora, na func;:ao que urn significante assume ao substituir urnoutro, latente na cadeia, por similaridade ou simultaneidade posieional.

Freud, que comec;:ou por abordar a tirada espirituosa no nlvelmetaforico, ve-se, com a historia do Bezerro de Ouro, diante de umanova variedade, cuja diferenc;:a se pode pressentir, e, como nao ehomem de nos poupar dos meandros de sua abordagem dos fen6menos,diz estar pensando em qualific:i-la de tirada de pensamento, emoposic;:ao a tirada de palavras. Mas logo percebe que essa distinc;:aoe total mente insuficiente, e que e no que se chama forma, ou seja, naarticulac;:ao significante, que convem se fiar. Assim, ele trata desubmeter outra vez 0 exemplo em questao a reduc;:ao tecnica, parafaze-lo dar eonta do que ha de subjacente na forma contestavel, doconsentimento subjetivo como atestando que ali ha uma tirada espi-rituosa. Pois bern, Freud depara com algo que nao se deixa analisarcomo familionario.

Comunieando-nos todas as abordagens de seu pensamento, ele sedetem por urn instante - seguindo Kuno Fischer, que fica paradonesse nlvel - na protase, isto e, no que e trazido pelo interlocutorde Heine, nominalmente, Frederic Soulie. Descobre nesse Bezerro deOuro algo de metaforico, e certamente a expressao tern urn valorduplo, por urn lado como slmbolo da trama, e por Olltro, como slmbolodo po del' do dinheiro. Sera que isso quer apenas dizer que 0 tal senhorrecebe todas aquelas homenagens porque e rico? Nao equivaleria issoa fazer desaparecer 0 fundamento do que esta em questao? Freud seapercebe rapidamente do que ha de falacioso nessa abordagem. Ariqueza do exemplo justifiea que ele seja examinado em detalhes.

E claro que, nos dados inieiais da utilizac;:ao do Bezerro de Ouro,a noc;:ao da materia esta implieada. Sem nos aprofundarmos em todasas maneiras como se instituiu 0 uso verbal dessa expressao, ineon-lcstavelmente metaf6rica, basta dizer que, se 0 Bezerro de Ouro emsi lcm 0 mais estreito vInculo com a relac;:ao entre 0 significante e a

Illlagem que constitui a vertente em que efetivamente se instala aI<!()!atria, ele so se situa, afinal de contas, pOl' uma perspectiva em'illl~0 reconhecimento daquele que se anuncia como Eu sou aquele<lite sou, isto e, 0 Deus dos judeus, exige que se rejeile nao somente:1 idolatria pura e simples, ou seja, a adorac;:ao de uma estatua, porem,Illais do que isso, a denominac;:ao por exeelencia de qualquer hip6staseligurada, ou seja, ele e aquilo que se coloca como a pr6pria origemdo significante, e isso faz busear 0 para-alem essencial deste ultimo.,<';uarecusa e precisamente 0 que da valor ao Bezerro de Ouro.

Assim, e somente pelo que ja constitui urn deslizamento que 0

l\czerro de Ouro adquire urn uso metaf6rico. A regressao t6pica queimplica, na perspectiva religiosa, a substituic;:ao do simb6lico peloIInaginario na qual se sustenta a idolatria assume aqui, secundaria-mcnte, urn valor metaf6rico, para exprimir 0 que outros alem de mimchamaram de valor fetiche do ouro, 0 qual nao estou evocando a toa,ja que justamente essa func;:ao de fetiche - seremos lev ados a voltara isso - s6 e conceblvel na dimensao significante da metonlmia.

Eis, pOl·tanto, 0 Bezerro de Ouro, carregado de todas as intricac;:6es,de todos os enredamentos da func;:ao simb61ica com 0 imaginario.Sera nisso que reside 0 Witz? Nao. Nao e esse, de modo algum, 0

lugar onde ele se situa. 0 chiste, como percebeu Freud, esta na replicade Heine, e esta consiste, precisamente, senao em anular, pelo menoscm subverter todas as referencias que sustentam a metafora desseBezerro de Ouro, para nele designar 0 que e reduzido de estalo acon~ic;:ao de urn bezerro que vale tanto por libra. Subitamente, essehezerro e tornado pOl' aquilo que e: urn ser vivo a quem 0 mercado,efetivamente instituldo pelo imperio do ouro, reduz a ser ele mesmoapenas enquanto vendido como gado, como uma cabec;:a de bezerro,donde ser lfcito frisar que, com certeza, elc nao esta mais dentro doslimites etarios da definic;:ao de bezerro forneeida pelo Littre, a de urnhezerro em seu primeiro ano, que urn purista de ac;:ougue designariacomo aquele que ainda nao parou de mamar na mae, um bezerroembaixo da mae. Ouvi dizer que esse purismo s6 era respeitado naFranc;:a.

Que esse bezerro aqui nao seja urn bezerro, que seja urn poucoidoso para ser bezerro, e algo que nao ha nenhuma maneira de reduzir.Com ou sem 0 pano de fundo do Bezerro de Ouro, essa e uma tiradaespirituosa. Assim, Freud capta entre a hist6ria do familionario e estauma diferenc;:a - a primeira e analisavel, a segunda e nao-analisavel.E, no entanto, ambas sao tiradas espirituosas. Que quer dizer isso, senao que decerto se trata de duas dimens6es diferentes da experiencia

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da tirada espirituosa? 0 que aqui se apresenta parece, como nos dizo proprio Freud, uma escamoteas;ao, urn passe de magica, urn errodo pensamento. Ora, esse e 0 tras;o comum a toda uma categaria detiradas espirituosas, distinta da categaria na qual se inscreve 0 fami-lionririo, onde se toma uma palavra, como dirfamos vulgarmente, numsenti do diferente daquele em que nos e apresentada.

Vma outra historia se inscreve na mesma categaria do Bezerrode Ouro - a que diz respeito ao confisco dos bens dos Orleans parNapoleao III quando de sua ascensao ao trono. E a primeiro vao [vol]da Aguia, disseram, e todos ficaram deslumbrados com essa ambi-giiidade, nem e preciso insistir". Nao ha pOl' que falar aqui emespirituosidade do pensamento, pois se trata mesmo e de uma espiri-tuosidade das palavras, que repousa na ambigiiidade que permite tomaruma palavra em outro sentido.

E divertido alias, nessa oportunidade, sondar as subjacencias daspalavras nesta situas;ao, e Freud tom a 0 cui dado, registrando a palavraem frances, de esclarecer 0 duplo sentido do vol como as;ao, comoforma motara dos passaros, e como subtras;ao, rapto, violaS;ao dapropriedade. Seria born lembrar, a proposito disso, 0 que Freud elide- nao digo que 0 ignore -, isto e, que urn desses sentidos foihistaricamente tornado emprestado do outro, e que 0 termo valerie,mais ou menos no seculo XIII ou XIV, passou do emprego em "0

falcao voa" [vole], "a codorniz voa" [vole], para 0 costume de designaraquele delito contra uma das leis essenciais da propriedade que econhecido como" roubo" [vol].

Isso nao 6 pOl' acaso. Nao digo que se produza em todas as lfnguas,mas ja se havia produzido em latim, onde volare adquirira esse mesmosenti do a partir da mesma origem. Este e 0 momenta de destacar umacoisa que nao deixa de se relacionar com aquilo em que nos deslo-camos, ou seja, 0 que chamarei de modos de expressao eufemfsticosdo que representa, na fala, a violaS;ao da palavra ou do contrato. Naoe it toa que a palavra violaS;ao [viol] foi retirada do registro de urnrapto que nada tern a vel' com 0 que chamamos, propriamente, e emtermos jurfdicos, de "roubo" [vol].

!'memos neste ponto e retomemos 0 que me levou a introduzir.1< Illi 0 tenno metonfmia.

!\Icm das ambigiiidades, tao fugidias, do sentido, creio de fato que<levo buscar uma outra referencia para definir esse segundo registro<1:\lirada espirituosa, a fim de unificar seu mecanismo com a primeira('specie e encontrar 0 fundamento comum aos dois. Freud nos aponta() caminho, sem no entanto concluir a formula.

De que adiantaria eu lhes falar de Freud, se, justamente, naoIcntassemos tirar 0 maximo proveito do que ele nos traz? Cabe a nosir urn pouco mais longe, fornecer essa formalizas;ao, que a experiencianos dira se e conveniente, se e realmente nessa dires;ao que osIcnomenos se organizam.

A questao e rica em conseqiiencias, nao somente para tudo 0 queconcerne it nossa terapeutica, mas tambem para nos sa concepS;ao dos11l0dos do inconsciente. Que haja uma certa estrutura, que essa estruturaseja a estrutura significante, que ela imponha sua grade a tudo 0 queacontece com a necessidade humana, isso e absolutamente decisivo.

Essa metonfmia, ja a introduzi diversas vezes, nomeadamente noarligo intitulado "A instancia da letra no inconsciente". Ali dei urnexemplo propositalmente retirado do nfvel da experiencia vulgar dagramatica que ressalta da lembrans;a dos estudos secundarios. Nao sepode dizer que 0 estudo das figuras de retorica sufocava voces - abem da verdade, ate hoje nunca se deu muita importancia a ele. Ametonfmiaf na epoca, era relegada para 0 final, sob a egide de urnQuintiliant\) bastante subestimado. Seja como far, no ponto em quenos encontramos de nossa concepS;ao das formas do discurso, tomeicomo exemplo de metonfmia trinta velas, 0 que e dito no lugar detrinta navios. Ha urn pano de fundo litenirio nessa escolha, uma vezque voces sabem que essas trinta velas san encontradas num certomonologo do Cid, referencia com a qual talvez fas;amos alguma coisa.

Nao se trata nessas trinta velas, como ja disseram a voces tomandopar referencia 0 real, simplesmente da parte pelo todo, pois e raro osnavios terem uma vela so. Essas trinta velas, nao sabemos 0 que fazercom elas: ou bem SaG trinta, e nao ha trinta navios, ou bem ha t1'intanavios, e elas SaG mais de trinta. E par isso que digo que 6 precisonos referirmos it correspondencia das palavras ao pe da lclI'a Imot cImot]. Dizendo isso, e claro que so fas;o colocar dianle de voces 0

* A ambigliidade a que Lacan se refere diz respeito ao substantivo vol e it 3£ pes so ado verba voler (vole) do frances, cuja homonfmia c explicada adiante. (N.E.)

** 0 terll10 volerie preserva ainda hoje em frances as duas acep<;ocs de "volata-ria" I" altallaria" ou "roubalheira" I" gatunice". (N.E.)

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aspecto problematico da coisa, e mostrar que convem nos aprofun-darmos mais no cerne da diferenc;a que h:i em relac;ao a metafora,pois voces poderiam me dizer, afinal de contas, que isso e umametafora. POl' que nao e? A questao e justamente essa.

Ja faz algum tempo que venho sabendo, periodicamente, que urncerto ntimero de voces, nos meandros de sua vida cotidiana, de repentee surpreendido pelo cncontro com alguma coisa que ja nao sabem dejeito nenhum como classificar, se na metafora ou na metonfmia. Issoas vezes acarreta disttirbios exeessivos no organismo del as, umaarfagem violenta da metafara de bombordo para a metonfmia deestibardo, com a qual houve quem senti sse uma certa vertigem.Tambem me disseram, a proposito de Booz, que 0 Seu feixe nao eraavaro nem odioso, que Ihes apresento como uma metafara, bem poderiaser uma metonfmia. Creio, pOl"em, haver mostrado com clareza emmeu artigo 0 que era esse feixe, e 0 quanta ele e bem diferente deuma parte da bondade de Booz. Na medida em que substitui 0 pai,precisamente, 0 feixe faz surgir toda a dimensao de fecundidadebiologica que esta subjacente ao espfrito do poema, e nao e par acasoque no horizonte, e mais ainda no firmamento, surge 0 gume afiadoda foice celeste, que evoca 0 pano de fundo da castrac;ao.

Voltemos as nossas trinta velas e tentemos circunscrever, de umavez par todas, do que se trata no que chamo de func;ao metonfmica.

No que concerne a metafara, creio haver sublinhado suficientc-mente, 0 que nao deixa de render alguns enigmas, que a substituic;aoera sua forc;a estrutural. A metafora vincula-se a func;ao conferida aurn significante S no que esse significante substitui urn outro numacadeia significante.

A metonfmia, par sua vez, consiste na func;ao assumida por urnsignificante S no que ele se relaciona com outro significante nacontinuidade da cadeia significante. A func;ao atribufda a vela em

\relac;ao ao navio esta numa cadeia significante, e nao na referenciaao real; esta na continuidade dessa cadeia, e nao numa substituic;ao.Trata-se, entao, da maneira mais clara, de uma transferencia de,significac;ao ao longo dessa cadeia.

E pOl' essa razao que as representac;6es farmais, essas formulas,sempre podem prestar-se naturalmente a uma exigencia suplementarpor parte de voces. Alguem me relembrou, recentemente, que urn diaeu disse que 0 que procurava fOljar para a utilizac;ao de voces erauma logica de borracha. E justamente de uma coisa assim, de fato,que se trata aqui. Essa estruturac;ao topica deixa fon;osamente lacunas,parque e constitufda de ambigtiidades. Deixem-me dizer, de passagem,

que nao escaparemos disso. Se conseguirmos, todavia, levar bem longecssa estruturac;ao topica, nao escaparemos a urn resto de exigenciasuplementar, se e verdade que seu ideal e uma formalizac;ao unfvoca,pois algumas ambigiiidades sao irredutfveis no nfvel da estrutura dalinguagem tal como tentamos defini-la.

Permitam-me tambem dizer-Ihes, de passagem, que a noc;ao demetalinguagem e freqiientemente empregada da maneira mais inade-quada, uma vez que se desconhece 0 seguinte: ou a metalinguagemtern taman has exigencias farmais que elas deslocam todo 0 fenomenode cstruturac;ao do local on de ela deveria situar-se, ou a propriametalinguagem conserva as ambigiiidades da linguagem. Em outraspalavras, nao existe metalinguagem, existem formalizac;6es - sejano plano da logica, seja no plano da estrutura significante cujo nfvelautonomo tento destacar para voces, Nao existe metalinguagem nosentido de isso querer dizer, par exemplo, uma completa matemati-zac;ao do fenomeno da linguagem, e isso, precisamente, pOl"que naoha meio de formalizar para-alem daquilo que e dado como estruturaprimitiva da linguagem. Nao obstante, a formalizac;ao e nao somenteexigfvel, mas necessaria.

Ela c necessaria aqui, por exemplo. Com efeito, a ideia desubstituic;ao de urn significante par Olltro requer que 0 lugar ja estejadefinido, Trata-se de uma substituic;ao posicional, e a propria icteiade posic;ao exige a cadeia significante, isto C, uma sucessao combi-natoria. Nao digo que exija todos os trac;os dela, mas digo que essasucessao combinatoria e caracterizada por elementos que chamarei,por exemplo, de intransitividade, alternancia e repetic;ao.

Se nos transportarmos para esse nlvel original mfnimo da cons-tituic;ao ere uma cadeia significante, seremos arrastados para longe denosso tCrba de hoje. Existem exigencias mfnimas. Nao Ihes digo queeu tenha a pretensao de haver ate aqui feito 0 circuito completo del as.Mesmo assim, ja lhes dei 0 suficiente para Ihes propor formulas quepermitam sustentar uma certa retlexao, pat'lindo da particularidade doexemplo - que e, neste campo, e pOl' raz6es sem duvida essenciais,de onde devemos extrair todos os nossos ensinamentos.

E exatamente assim que procederemos mais uma vez, observando,mesmo que isso parec;a urn trocadilho, que essas velas nos velam avisao, tanto quanta nos indicam que nao en tram em seu pleno direitode velas, a todo 0 pano, no uso que fazemos delas. Essas velas naose afrouxam. 0 que tern de reduzido em seu alcance e sua manifestac;aose encontra tambem quando evocamos uma aldeia de trinta {[IIIIO,I',

onde as almas SaG al inseridas como as sombras do que reprcsl~Ill;llll,

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mais leves que urn termo sugerindo de uma enorme presenc;a dehabitantes. Essas almas, segundo 0 tftulo de urn romance celebre,podem ser, mais do que seres que nao estao ali, almas mortas. Domesmo modo, se eu dissesse trinta chamas extintas, isso tambemrepresentaria uma certa degradac;ao ou minimizac;ao do sentido, poisessas chamas tanto sao chamas apagadas quanta chamas a propositodas quais voces dirao que nao ha fumac;a sem fogo, e nao c a toa queessas chamas sao reencontradas num uso que diz, metonimicamente,o que elas vem substituir.

Sem duvida alguma, voces me dirao que me fio em uma referenciade senti do para estabelecer a diferenc;a. Nao creio, e quero ressaltar-Ihes que patti disto: de que a metonfmia e a estrutura fundamentalem que se po de produzir esse algo novo e criativo que c a met:ifora.'Mesmo que alguma coisa de origem metonfmica seja colocada naposic;ao de sUbstituic;ao, como acontece com as trinta velas, isso ediferente de uma met:ifora. Numa palavra, nao haveria met:ifora senao houvesse metonfmia.

A cadeia em que e definida a posic;ao na qual se produz 0 fenamenoda met:ifora esta, quando se trata da metonfmia, numa especie dedeslizamento ou equfvoco. Nao haveria metafora se nao houvessemetonfmia ocorreu-me como urn eco - e nao pOl' acaso, de modoalgum - da camica invocac;ao que Jarry poe na boca do pai Ubu -Viva a Po!bnia, porque, sem a PolOnia, nao haveria po!oneses. Issoesta precisamente no cerne de nosso tema. E urn tirada espirituosa,e, 0 que c mais engra<,,~ado, refere-se justamente a func;ao metonfmica,Pegarfamos 0 bonde en'ado se acreditassemos haver af urn gracejoreferente, pOl' exemplo, ao papel que os poloneses podem haverdesempenhado nos infortunios da Polania, que sao por demais conhe-cidos. A coisa c igualmente engrac;ada quando digo: Viva a Franr;a,meu senhor, pois sem a Franr;a nao haveria franceses! E tambem seeu disser: Viva 0 cristianismo, porque, sem 0 cristianismo, nao haveriacristaos! E ainda Viva Cristo! etc.

Nao se pode desconhecer, nesses exemplos, a dimensao metonf-mica. Toda relac;ao de derivac;ao, todo uso dos sufixos ou das desi,nencias' nas lfnguas flexionais, utiliza para fins significativos a con-tigtiidade da cadeia. A experiencia do afasico, pOl' exemplo, e indi-cativa nesse ponto. Existem dois tipos de afasia, precisamente, e,quando estamos no nfvel dos disturbios da contigtiidade, isto e, dafunc;ao metonfmica, 0 sujeito tern sua maxima dificuldade na relac;aoda palavra com 0 adjetivo, de beneflcio ou beneficencia com benefi-cente, ou tambem com bem fazer. No casu acima, e no Outro

111l:tonfmico que se produz esse lampejo que da uma iluminac;ao naa';I)mente camica, mas tambem bufa.

E importante nos empenharmos em apreender as propriedades daladeia significante, e procurei encontrar alguns termos de referencia'1ue permitissem apreender 0 que tenciono designar pOl' esse efeitalia cadeia significante, efeito inerente a sua natureza de cadeia signi-licante, que c a que podemos chamaI' de sentido.

Ano passado, foi numa referencia analogica - que podia parecer-Ihesmetaforica, mas que frisei bastante que nao a era, que pretendia sertomada ao pc da letra da cadeia metonfmica - que situei a essenciade todo deslocamento fetichista do desejo, ou, em outras palavras, desua fixac;ao, antes, depois ou ao lado, de todo modo, a porta de seuobjeto natural. Tratava-se da instituic;ao desse fenameno fundamentalque podemos chamaI' de perversao radical dos desejos humanos.

Eu gostaria agora de indicar na cadeia metonfmica uma outradimensao, aquela que chamarei de deslizamento do sentido. J:i lhesapontei a rclac;ao dela com 0 procedimento literario que se costumadesignar pelo termo realismo.

Nao c impossfve!, nesse campo, que se possa fazer toda sorte decxperiencias, de modo que me submeti a de pegar urn romance dacpoca realista c rete-Io, para vel' os trac;os que pudessem levar vocesa apreenderem3sc algo de original que 0 usa metonfmico da cadeiasignificante introduz na dimensao do senti do. POl' isso me reportei aoacaso, dentre as romances da cpoca rcalista, a urn romance deMaupassant, Bel-Ami.

Sua leitura c muito agradavel. Fac;am-na uma vez. Tendo enve-redado pOl' ela, fiquei bastante surprcso ao encontrar 0 que estouprocurando designar aqui ao falar de deslizamento. Vcmos partir 0

heroi, Georges Durey, do alto da rua Notre-Dame-de-Lorette.

Quando a mo<;a da caixa the entrcgou 0 troco dc sua moeda de cernvintens, Georges Durey saiu do rcstauranlc. COIllO tinha urn belo porte,por natureza e par pose de ex-suboficial, clllpcrtigou-sc, cofiou 0 big odenum gesto militar e habitual, e lan<;ou sohrc os frcgucscs que continua-yam a mesa urn olhar nipido e circular, Ul1l daquclcs olhares de mo<;obonito, que dardejam como investidas de gaviao,

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o romance come~a assim. Nao parece nada, mas, depois, ele vaide momenta em momento, de encontro em encontro, e voces assistem,da maneira mais evidente, a uma especie de deslizamento que levaurn ser bastante elementar, diria eu, - considerando-o do ponto aque esta reduzido no infcio do romance, pois aquela moeda de cernvintens e a ultima que ele traz consigo - que esse ser, pot"tanto,reduzido a necessidades completamente diretas, a preocupa~ao ime-diata com 0 amor e a fame, e arrastado progressivamente por umasucessao de acasos felizes ou infelizes, embora em geral felizes _uma vez que ele e nao apenas urn rapaz bonito, mas tambem de sorte-, que a leva para urn cfrculo, urn sistema de manifesta~6es da troca,onde se consuma a subversao metonfmica dos dados primitivos, asquais, a partir do momenta em que SaG satisfeitos, alienam-se numaserie de situa~6es em que ele nunca tern a possibilidade de se orientarnem de descansar; e que assim a conduz, de sucesso em sucesso, auma aliena~ao quase total daquilo que e sua propria pessoa.

o desenrolar do romance, assim vista superficialmente, nao diznada, pais tudo reside no detalhe, isto e, na maneira como 0 romancistanunca vai alem do que acontece na sequencia dos acontecimentos ede sua nota~ao nos termos mais concretos possfveis, constantementecolocando nao apenas a heroi, mas tudo aquilo que a cerca, numaposi~ao sempre dupla, de tal sorte que a tad a momenta ha uma diplopiapresente a respeito do objeto, par mais imediato que ele seja.

Torno como exemplo esta refei~ao no restaurante, que e urn dosprimeiros momentos da eleva~ao do personagem a riqueza:

{Ille estava ali, unicamente preocupados com 0 que diziam, imersusll11m banho de amur.

Esse alibi perpetuo, que faz com que voces nao saibam se a quecsta sabre a mesa e carne de menina-mo~a au truta, permite a descri~aorealista, como se diz, prescindir de qualquer referencia abissal a sejala que sentido au trans-sentido for, poetico au moral ou de outraordem. Isso esclarece suficientemente, segundo me parece, a que estouapontando quando digo que e numa perspec~iva de desliza~entoperpetuo do sentido que }odo discurso q~e alme] a ,a~ordar a realida/dee obrigado a se manter. E isso que constltUI seu mento, e que tambemfaz com que nao exista realismo Iiterario. No esfor~o de abra~aI' arealidade, enunciando-a no discurso, nunca se can segue nada alem demostrar a que a introdu~ao do discurso acrescenta de desorganizador,au mesmo de perverso, a essa realidade.

Se isso ainda lhes parece continuar num estilo impressionistademais, eu gostaria de experimentar com voces uma coisa diferente.Uma vez que estamos tentando manter-nos nao no nfvel em que adiscurso responde pelo real, mas em que simples mente pretendecanota-la, segui-Io, ser analista - com dais enes* -, vejamos noque da isso. De urn autor certamente meritorio, Felix Fene?n, d/equemnao tenho tempo de Ihes fazer aqui a apresenta~ao, tomel a sene das"Notfcias em tres Iinhas" que elc fazia no jomal Le Matin. Semduvida alguma, nao e a toa que elas foram compiladas, pois ali semanifesta urn talento particular. Vejamos qual e ele, tomando-asinicialmente ao acaso:

Trouxeram as ostras de Ostende, miudas e gordas, parecidas com peque-nas orelhas encerradas em conchas, e se desmanchando entre 0 palato ea lingua como bombons salgados. Em seguida, depois da sopa, serviu-seuma truta rosada como carne de menina-mo<;a; e os convivas come<;arama conversar. Foi a hora dos subentendidos refinados, dos veus erguidospar palavras it maneira de saias Ievantadas, a hora dos artiffcios deIinguagem, das ousadias habeis e dissimuladas, de todas as hipocrisiasimpudicas, da Frase que mostra imagens despidas mediante express6esveladas, que faz passar pelos olhos e pela mente a visao celere de tudoo que nao se pode dizer, e permite it gente gra-fina uma especie de amorsutil e misterioso, uma especie de contato impuro dos pensamentos,atraves da evoca<;ao simultanea, perturb adora, sensual como urn enlace,de todas as coisas secretas, vergonhosas e desejadas do intercurso sexual.Haviam trazido 0 assado, perdizes ...

- Por haverem apedrejado os guardas, tres senhoras beatas de Herissartforam multadas pelos jufzes de Doulens. A

- Quando 0 sr. Poulbot, mestre-escola na Ile-Saint-Denis, soava 0 toquepara a entrada dos alunos, 0 sino despencou, por pouco nao Ihe arran-cando 0 couro cabeludo.- Em Clichy, urn rapaz elegante atirou-se sob urn fiacre com pneus deborracha e, em seguida, ileso, embaixo de urn caminhao, que a esmiga-Ihou. /- Uma mo<;aestava sentada no chao em Choisy-Ie-Roi. Unica palavrade identidade que sua amnesia Ihe permitia dizer: "Modelo."- 0 cadaver do sexagenario Dorlay pendia de uma arvore, em Arcueil,com este cartaz: "Velho demais para trabalhar."

Observem que esse assado, as perdizes, a terrina de galinha etodo a resto, eles comiam aquilo tudo sem saborear, sem desconfiar * Lacan deixa claro a seus ouvintes que 0 annalisle (aquele que redige anais, atas)

de que se trata nao e 0 analysle com urn ene so (analista, psicanalista). (N.E.)

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:- A prop6sito do misterio de Luzarches, 0 juiz de instruc;ao Du ulI1terrogou a delIda Averlant; mas ela e louca. p y- Atras de um fer~tro ia caminhando Mangin, de Verdun. Nao chegou,nesse dla, ao c~mlteno. A morte 0 surpreendeu a caminho.- 0 cnada Silot mstalou em Neuilly, na casa de seu patrao ausente,uma mulher dlvertlda, e depois desapareceu, carregando tudo, exceto ela.- Fmgmda procurar moedas raras no pe-de-meia de uma senhora deMalakoff,. duas es.croques a lesaram em 1.800 francos das comuns.- Na pr~la de .Samte-Anne (Finistere), duas banhistas iam se afogandoU~ banhlsta atlrou-se ao mar. De modo que a sr. Etienne teve que salva!:tres pessoas.

ficante. E tambem a caso do familionario, exceto que este se inscreveem y, ao passo que a outro simplesmente se praduz urn pouco maisadiante.

Frederic Soulie traz alguma coisa que vai, evidentemente, nosenti do de situa-Io na vertente do [Eu], enquanto convoca Heine comotestemunha, na posis;ao de Outra. Sempre ha, no comes;o da tiradaespirituosa, essa invocas;ao do Outra como lugar da confirmas;ao. Taocerto, comes;ava Hirsch Hyacinth, quanta Deus me ha de dar tudo 0

que ha de hom. A referencia a Deus pode ser ironica, mas e funda-mental. Aqui, Soulie invoca urn Heinrich Heine que eu Ihes diria quee muito mais prestigioso do que ele - sem Ihes contar a historia deFrederic Sou lie, embora a verbete dedicado a ele pelo Larousse sejabem bonito. Soulie Ihe diz "Nao ve 0 senhor, meu caro mestre" etc.o apelo, a invocas;ao, puxa para a lado do [Eu] de Heinrich Heine,que e 0 eixo presente da historia.

Assim, passamos pel a [Eu] para voltar com a Bezerro de Duropara A, lugar dos usos e da metonimia, pais, em bora 0 Bezerra deOura seja uma metafora, ela e desgastada, anacronica na linguagem,e mostramos ha pouco, alias, suas fontes, suas origens, seu modo depradus;ao. Ela e, enfim, urn lugar-comum, que Soulie envia ao lugarda mensagem pelo caminho a - y classico. Temos aqui dais perso-nagens, mas voces sabem que eles poderiam igualmente ser urn so,ja que a Outra, pelo simples fato de existir a dimensao da fala, estaem todos nos. Alias, se Soulie qualifica a financista de Bezerra deOura, e par tel' presente no espfrito urn uso que nao mais nos pareceaceito, mas que encontrei no Littre: chama-se Bezerro de Oura aohomem que esta coberto de oura e que, pOl' essa razao, e objeto daadmiras;ao universal. Nao ha ambigLiidade, nem tampouco em alemao.

Nesse momenta, ou seja, aqui, entre yea, ha urn retorno damensagem ao cadi go, isto e, it linha da cadeia significante, e, comoque metonimicamente, a tenno e retomado num plano que ja nao eaquele no qual fora enviado, a que permite discernir perfeitamente aqueda, a redus;ao, a desvalorizas;ao do sentido efetuada na metonfmia.

E isso que me leva, no fim da lis;ao de hojc, a intraduzir isto,que talvez pares;a paradoxal: que vnetonfmia e, prapriamente falando,o lugar on de devemos situar a dimensao - primordial e essencial nalinguagem humana - que e oposta it dimensao do sentido: a saber,a dimensao do valor.

A dimensao do valor imp6e-se em contraste com a dimensao dosentido. E uma outra vertente, urn outra registra. Relaciona-se com

. 0 que provoca a riso? Temos af fatos conotados com urn rigorImpessoa~ e co~ a minimo possivel de palavras. Eu diria que a artetoda conslste, slmplesmente, na extrema redus;ao. 0 que ha de comicoquando lel~os que" Atras de um feretro ia caminhando Mangin, d~Verdu~. N~,o c~egou, nesse dla, ao cemiterio. A morte 0 surpreendeua canun,ho , ,nao conce~'~e de .modo algum ao caminhar que e 0 detodos nos pata 0 cemlteno, seJam quais forem as diversos metodose~pr~gados para p.ercorrer esse trajeto. Esse efeito nao apareceria seas ~Olsas fossem dltas de maneira mais extensa, au seja, se tudo issoestlvesse afogado num mar de palavras.

~ q~e chamei _aqui .de deslizamento do sentido e a que faz comque 11.te.I,al.m~ntenao smbamos onde parar, num momenta qualquerdessas hases, tal como as recebemos em seu rigor, para Ihes dar seucentro de gravldade, seu ponto de equilibria. E precisamente isso quecham~lel de descentramento dessas frases. Nao ha nelas nenhumamorahdade. Tudo a que poderia tel' urn carateI' de exemplo c objetode U,l~c.ntenos,o apagamento. Nisso esta toda a arte da redas;ao dessasNot/Lias em tres till/laS, a arte do desprendimento desse estilo. Aindaasslln, 0 que se narra c mesmo uma seqLiencia de acontecimentosSUJas coorde?~das nos sao dadas de maneira absolutamente rigorosa:E a outro mento desse estilo.

. Eis_a que visa quando tento mostrar-Ihes que 0 discurso, em suad1l1:ens~o h~n~o~tal de cadeia, e prapriamente este lugar-rinque depatma?ao, tao UtI! de estudar quanta as figuras da patinas;ao; nele sede~e~lOla a deshzamento de sentido - pista veloz, sem dlividamfllllta, e que talvez, pOl' ser tao reduzida, pares;a-nos inexistente'mas.q~e se apresenta na ordem da tirada espirituosa, com sua dimensa~dern~ona, degradante, desorganizadora.

, E ne,ssa. dimensao que se coloca a estilo da tirada espirituosa dovoo da Agula, au seJa, no encontra do discurso com a cadeia signi-

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a diversidade dos objetos ja constitufdos pela Iinguagem, on de seintroduz a campo magnetico da necessidade de cada um com suascontradir,;6es.

Alguns de voces esUio bastante familiarizados, creio, com DasKapital. Nao me refiro a obra integral - quem tera lido 0 capital!-, mas ao primeiro Iivro, que em geral todo a mundo leu. ProdigiosoIivro primeiro, superabundante, que mostra, coisa rara, alguem quesustenta um discurso filos6fico articulado. Per,;o-lhes que se reportema pagina em que Marx, no plano da formular,;ao da chamada teoriada forma particular do valor da mercadoria, revel a, numa nota, serum precursor do estadio do espelho.

Nessa pagina, Marx formula a proposigao de que nada podeinstaurar-se das relag6es quantitativas do valor sem a instituigao previade uma equivaIencia gera!. Nao se trata simplesmente de uma igual-dade entre tantas au quantas varas de tecido. E a equivalenciatecido-roupa que tem de ser estruturada, au seja, que roup as possamrepresentar a valor do tecido. Nao se trata mais, portanto, da roupaque voces possam usar, mas do fato de que a roupa po de tornar-se asignificante do valor do tecido. Em outras palavras, a equivalencianecessaria logo no infcio da analise, e sabre a qual se assenta 0

chamado valor, pressup6e, par parte dos dois termos em questao, aabandono de uma parcela muito importante de seu sentido.

E nessa dimensao que se situa a efeito de senti do da linhametonfmica.

o POUCO-SENTIDO Eo PASSO-DE-SENTIDO*

Os nos da significar;:iio e do prazerNecessidade, demanda, desejoDos beneficios da ingratidiioEquivoca<;iio [maldonne] e desconhecimentoA subjetividade

Tendo chegado a parte patetica de sua obra sabre a tirada espirituos~,a segunda, Freud se indaga sobre a origem do prazer que ela propOl-

ciona. t' . I osE cada vez mais necessario que voces tenham elto pe a menuma leitura desse texto. Far,;o esse lembrete para aqueles que ,se

h· d' sados E' a unica maneira de conhecerem esse lIVia,ac anam Ispen c. • _.', •

eSIllO A leia para voces aqUl, a que nao sella, CICIOa menos que eu m _ ...do seu agrado. Embora isso far,;a a nlvel de atengao .se redu~ll

eu, . . . h . d I ara voces pOlS esse e 0sensivelmente, extraneI alguns tlec as e e p ,unico meio de se darem conta de que as f6rmulas q~e lhes trago, ouque tento trazer-Ihes, frequentemente seguem mUlto de perto asperguntas que Freud se formula.

Veremos na sequencia para que serve 0 emprego do efeito de sentidonos dois registros, 0 da metafora e 0 da metonfmia. Ambos se referema uma dimensao essencial, que nos permite aproximar do plano doinconsciente - a dimensao do Outro, a quem 6 necessario queapelemos, na medida em que 0 Outro e 0 lugar, 0 receptor, 0 eixo datirada espirituosa.

E 0 que faremos da pr6xima vez.

dE t '!limo com sua evidente., No orio-inal Le peu-de-sens et Ie pas- e-se/1S. s e u '." b''" , . . d" em do sentI do mas tam emdubiedade, teria sua acepyao pnmelra e passag. '.. _

."" t'do" A oprao UgUl adotada segue a exphcltayao"nenhum sentldo , ou 0 sem-sen I . "dessa id6ia pelo proprio Lacan, mais adiante, na p.103. (N.E.)

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Tomem cuidado com isto, porem: 0 itinenirio de Freud e freqlien-temente SIl1UOso. Embora ele se refira a temas reconhecidos pordlversas razoes, psicologieas e outras, a maneira como se serve delesintroduz a uma temiitica implfcita, que c tao ou ate mais importantedo que os temas que the servem de referencia explfcita e que ele temem comum com seus leitores. Sua maneira de se servir deles evidenciacom efeito - e realmente c preciso nao ter aberto 0 texto para na~perceber isso -, uma dimensao que nunca tinha sido sugerida antesdele. Essa dimensao C, precisamente, a do significante. Destacaremosseu papel.

portanto, que reside a mola mestra do prazer do chiste? Se nisso seresumisse 0 que Freud nos oferece, a eoisa decerto pareceria muitosimples, mas esUi longe de ser assim.

Freud nos diz que af esta a origem do prazer, mas ele tambemnos mostra as vias por onde passa esse prazer - SaG vias itntigas, namedida em que ainda continuam ali, em potencia, virtuais, existentes,ainda sustentando alguma coisa. Sao elas que se veem Iiberadas pelaopera<;ao da tirada espirituosa, esse e seu privilcgio em l-ela<;ao ,asvias levadas ao primeiro plano do controle do pensamento do sUJeltopelo progresso deste para 0 estado adulto. ~assar POI:esses_ caminhosfaz 0 chiste entrar prontamente - e e l1lSS0 que mtervem tada aanalise anterior de Freud sobre seu fundamento e seus mecanismos- nas vias estruturantes que SaG as mesmas do inconsciel1te.

Em outras palavras, e e 0 proprio Freud quem se exprime dessamaneira 0 chiste tem duas faces.

Ha, 'por um lado, 0 exercfcio do significante, com a liberdade queleva ao maximo sua possibilidade de ambigliidade fundamental. Tro-cando em miudos, encontramos af 0 carater primitivo do significanteem rela<;ao ao sentido, a polivalencia essencial e a f~n<;~o criadoraque ele tem em rela<;ao a este ultimo, 0 toque de arbltranedade queele traz para 0 senti do.

A outra face e a face de inconsciente. Que 0 exercicio dosignificante evoca, por si mesmo, tudo que e da ordem do in~onsciente,isso e suficientemente apontado ao olhar de Freud pelo fato de queas estruturas que 0 chiste revela, sua constitui<;ao, sua cristaliza<;ao,seu funcionamento, nao sao outras senao aquelas que ele descobriuem suas primeiras apreensoes do inconsciente, no nfvel dos sonhos,dos atos falhos - ou bem-sucedidos, como voces quisereltl en tender- no nfvcl ate mesmo dos sintomas, e as quais procuramos dar umafOl:mula<;ao mais rigorosa, nas rubrieas da metafora e da metonfmia.Essas fm'mas sao equivalentes para qualquer exercfcio da Iinguagem,e tambem quanta ao que encontraremos de estruturante no incons-ciente. BIas SaG as formas mais gerais, das quais a condensa<;ao, 0deslocamento e os outras mecanismos que Freud destaca nas estruturasdo inconsciente nao passam como que de aplica<;oes. Conferir dessamaneira ao inconsciente a estrutura da fala talvez nao figure entrenossos habitos mentais, mas corresponde ao que ha de efetivamentedinamico em sua rela<;ao com 0 desejo.

Essa medida comum entre 0 inconsciente e a estrutura da fala,enquanto comandada pelas leis do significan.te, c precisamente aquilode que nos tentamos aproximar cada vez mms. E que tentatnos tornar

Irei diretamente ao assunto que nos ocupa hoje: Qual c, pergunta-seFreud, a fonte do prazer do chiste?

Numa linguagem muito difundida atualmente, e da qual algunsdecerto se serviriam, dirfamos que a origem do prazer do chiste deveser buscada em seu aspecto formal. Felizmente, nao e nesses termosque Freud se exprime. Ao contrario, chega atc a dizer, de maneirabe~n prec.isa, q.ue a verdadeira fonte do prazer proporcionado pelochlste resIde, sllnplesmente, na brincadeira.

Persiste, no en tanto, 0 fato de que 0 prazer que extrafmos nod~correr do exercfeio do ehiste esta centrado em outro lugar. Entaonao nos apereebemos da dire<;ao em que Freud proclll-a essa fonte, eao 101~~0de toda a sua a~alise? E a ambigliidade inerente ao proprioexerelCIO do chlste que taz com que nao percebamos de onde nosvem esse pr~zer, e c preciso 0 maximo esfor<;o de sua analise paranos mostrar ISSO.

E absolutamente essencial, nesse ponto, acompanhar 0 movimentoda manobra. De conformidade com um sistema de referencia explfcito,qu.e ~e.mostrara cada vez mais acentuado atc 0 fim do Iivro, a origempnmltIva do prazer e referida a um perfodo ILidico da atividade infantilaquela brincadeira precoce com as palavras que nos remete diretament~a aqu~s!<;ao da linguagem como puro significante, ao jogo verbal, aoexerclclO, que chamarfamos de quase puramente emissor, da formaverbal. Sera que se trataria, pura e simplesmente, de um retorno a umexercfcio do significante como tal, num perfodo anterior ao contra Ie,ao passo que a razao obrigaria 0 sujeito, progressivamente, por for<;ada educa<;ao e de todas as aprendizagens da realidade, a introduzir 0controle e a crftica no uso do significante? Sera nessa diferens;a,

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exemplar aU'aves de nosso recurso a obra de Freud sobre a tiradaespirituosa. E 0 que hoje tentaremos examinar mais de perto.

Enfatizar 0 que se poderia chamaI' de autonomia das leis dosignificante, dizer que elas sao primarias em relas;ao ao mecanismoda crias;ao do senti do, nao nos dispensa, e claro, de nos perguntarcomo conceber nao apenas 0 aparecimento do senti do, mas tambem,para parodiar uma formula que foi muito inabilmente produzida naescola l6gico-positivista, 0 sentido do sentido - nao que essa ex-pressao tenha algum sentido. 0 que queremos dizer quando se tratade sentido?

E pOl' isso que Freud, no capitulo sobre 0 mecanismo do prazer,nao para de se referir a esta formula tao freqi.ientemente difundida aproposito do chiste: 0 sentido no nonsense. Essa formula, propostadesde longa data pelos autores, destaca duas faces aparentes do prazer- 0 chiste causa impacto primeiramente pelo nonsense, nos envolvee depois recompensa-nos pelo aparecimento, nesse proprio nonsense,de sabe-sc la que senti do secreto, alias sempre tao diffcil de definir.

Segundo uma outra perspectiva, diremos que a passagem dosenti do e aberta pelo nonsense que nesse instante nos aturde e nossidera. Isso talvez esteja mais proximo do mecanismo, e Freudseguramente sc inclina a Ihe conceder mais propriedades. E que 0

nonsense tem 0 papel de nos enganar pOl' um instante, tempo suficientepara que um sentido ate entao desperccbido nos atinja aU'aves dacaptas;ao do chiste. Esse senti do, alias, passa muito depressa, e fugidio,e um sentido em lampejo, da mesma natureza da sideras;ao que nosretevc pOl' um breve instante no nonsense.

De fato, se olharmos as coisas mais de perto, perceberemos queFreud chega a repudiar 0 termo nonsense. E nisso que eu gostariaque nos dctivessemos hojc, pois c muito proprio dcssas aproximas;ocsevitar precisamente 0 ultimo termo, 0 fundamento ultimo do meca-nismo em jogo. Tais formulas tem a seu favor, sem duvida alguma,sua aparencia, sua seduC;ao psicologica, mas nao SaG propriamente asque convem.

Vou lhes propor que nao partamos de urn recurso a crianc;a.Sabemos que a crianc;a pode extrair algum prazer de seus jogos verbaise que, portanto, de fato podemos nos referir a alguma coisa dessaordem para dar sentido e peso a uma psicogenese do mecanismo daespirituosidade, conceder todas as grac;as a essa atividade ludicaprimitiva e distante, e nos darmos par satisfeitos. Mas, pensando deoutra maneira, sem obedecer a rotina estabelecida, talvez essa naoseja uma rcferencia que deva satisfazer-nos tanto, ja que, alias, nao

e certo que 0 prazer do dito espirituoso, do qual a crianc;a s6 participade muito longe, 'deva ser exaustivamente explicado par um recursoao devaneio.

Para conseguir dar 0 no que une 0 uso do significante e ~quil~que podemos chamaI' de uma satisfac;ao ou um prazer, vol,tare~ aqUla uma referencia que parece elementar. Se recorrermos a cnanc;a,mesmo assim sera preciso nao esquecer que a princfpio 0 significanteexiste para servir a alguma coisa - existe para exprimir uma demanda.Pois bem, detenhamo-nos par urn momenta na engrenagem da de-manda.

Que e a demanda? E aquilo que, a partir de uma ne~essi~ade, ,p~ssapar meio do significante dirigido ao Outro. Ja lhes assmalel, da ultimavez, que essa referencia justificava que tentassemos sondar seustempos.

Esses seus tempos SaG tao pouco sondados, que urn personagememinentemente representativo da hierarquia psicanalftica produziu urnartigo inteiro, de cerca de uma duzia de paginas - fiz alusao a eleem algum lugar, num de meus artigos -, para se deslumbrar com asvirtudes do que chamou de wording, palavra inglesa que correspondeao que, de maneira mais desajeitada, denominamos em frances depassagem ao verbal ou a verbalizac;ao. Evidentemente, e mais ele~anteem ingles. Singularmente, uma paciente se abismara com uma mter-venS;ao que ele fizera: ele havia proferido algo que significava maisou menos que a mosca tinha demands singulares, ou mesmo mtensas,o quc, em ingles, tcm um sabol' ainda mais accntuado do quc e~frances. Ela ficara literalmente transtornada, como par uma acusac;aoou uma denuncia. Mas, quando ele refizera a mesma interpretac;ao,momentos depois, servindo-se da palavra needs, ou seja, necessidades,havia deparado com alguem completamente docil na aceitaC;ao de suainterpretac;ao. E 0 autor se deslumbrou com isso.

o carateI' de montanha dado pelo autor em questao a essa desco-berta mostra-nos a que ponto a arte do wording ainda esta, no interiorda psicanalise, ou, pelo menos, de um certo cfrculo da psicanalise,em estado primitivo. Pois, na verdade, 0 impartante e isso: ademanda,par si so, e tao relativa ao Outro, que 0 Outro logo se descobre naposiC;ao de acusar 0 sujeito, de repeli-l0, ao passo que, ao evocar anecessidade, ele 0 autentica, assume, homologa, aproxima-o de si, ja

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come<;:a a reconhece-Io, 0 que e uma satisfa<;:ao essencial. 0 mecanismoda demanda faz com que 0 Outro, pOl' natureza, se oponha a ela, epoderfamos dizer que a demanda exige pOl' natureza, para se sustentarcomo demanda, que haja uma oposi<;:ao a ela. A introdu<;:ao dalinguagem na comunica<;:ao e ilustrada a todo instante pelo modo como'o Outro tem acesso a demanda.

Reflitamos bem. 0 sistema das necessidades entra na dimensaoda linguagem para ali ser remodelado, mas tambem para se despejarno complexo significante ao infinito, e e isso que faz com que ademanda seja, essencialmente, algo que se coloca por natureza comopodendo ser exorbitante. Nao e a toa que as crian<;:as pedem a lua.Elas pedem a lua pOl'que e da natureza de uma necessidade que seexprime por intermedio do sistema significante pedir a lua. Por isso,alias, nao hesitamos em promete-Ia, POI' isso, alias, estamos muitoperro de possuf-Ia. Mas, afinal, ainda nao possufmos a lua.

o essencial e pormos em relevo 0 seguinte: 0 que de satisfa<;:aode uma necessidade acontece na demanda? Atendemos a demand a,damos a nosso proximo 0 que ele nos pede, mas, por que buracos deagulha precisa ele passar? A que redu<;:ao de suas pretens6es ele precisareduzir-se, para que a demanda seja endossada?

E isso que coloca em destaque suficientemente 0 fenomeno danecessidade quando ele se desnuda, Eu diria ate que, para tel' acessoa necessidade como necessidade, precisamos nos referir, para alemdo sujeito, a sei la que Outro chamado Cristo, e que se identifica comos pobres. Isso se aplica aos que praticam a caridade crista, mas atemesmo '!-os demais. 0 homem do desejo, 0 Don Juan de Moliere, daao mendigo 0 que este Ihe demanda, e claro, e nao e a toa queacrescenta: por amor a humanidade. A resposta a demanda, 0 aten-dimento da demanda, e afinal deferido a urn outro para al6m daquelcque se encontra a sua frente. Uma das hist6rias em torno das quaisFreud faz girar sua analise do chiste, a da salada de salmao, e a melhorpara dar uma ilustra<;:ao disso.

Trata-se de um personagem que, depois de tel' dado a um men-dicante algum dinheiro, do qual este precisava para fazer face a sabe-sela que dfvidas nos devidos prazos, fica indignado ao ve-Io dar aoobjeto de sua generosidade um outro destino. E uma verdadeiraanedota. Sucede que, depois da boa a<;:ao,ele 0 encontra num restau-rante, regalando-se - 0 que e considerado 0 sinal da despesa suntuaria- com uma salada de salmao. Ha que acrescentar aqui um saborzinhovienense que 0 tom da historia requer. Ele the diz: - Mas, como, foipara isso que the dei 0 dinheiro? Para voce se regalar com salada

de salmao? 0 outro enta·o entra no chiste, respondendo: - Ora, naoi'ompreendo. Q~tando nCio tenho dinheiro, nao posso comer saladade salmao; quando tenho algum, tambem nao posso come-Ia. Afinal,quando vou comer salad' a de salmao?

Todo exemplo de chiste torna-se ainda mais significativo 1'01' suaparticularidade, pe~o que ha de especial na historia, e que nao podeser generalizado. E por essa particularidade que chegamos ao eixomais vivo do campo que estamos examinando.

A pertinencia dessa historia nao e menor que a de qualquer outrahistoria, pois todas semp re nos colocam bem no cerne do problema,isto e, a rela<;:ao entre 0 significante e 0 desejo. 0 desejo e profun-damente modificado em sua enfase, subvertido, tornado ambfguo elemesmo 1'01' sua pas sagelY) pelas vias de significante. Vamos entenderbem 0 que isso quer dizer. Toda satisfa<;:ao e permitida em nome deum certo registro que faz intervir 0 Outro para alem daquele quedemanda, e e exatamente isso que perverte profundamente 0 sistemada demanda e da resposta a demanda.

Vestir quem esta nu, alimental' quem tern fome, visitar os doentes- nao preciso recordar-Ihes os sete, oito ou nove atos de misericordia,Os proprios term os ja s ao bem claros. Vestir quem esta nu: se ademanda fosse algo a set' sustentado em seu sentido literal, 1'01' quenao dizer "vestir aqueles GU aquelas que estao nus na maison ChristianDior"? Isso acontece de vez em quando, mas, em geral, e pOl'quejustamente se come<;:ou IJor despi-Ios. Do mesmo modo, alimental'quem tem fome: - 1'01' que nao empanturni-Ios goela abaixo? Nao,isso nao se faz, isso Ihes faria mal, eles estao habituados a sobriedade,nao convem desarranja-Ios. Quanto a visitar os doentes, lembrarei 0

dito de Sacha Guitry: - fazer uma visita sempre d6 prazer, se naoquando se chega, pelo menos quando se vai embora.

A tematica da demanda, pOl'tanto, esta no cerne do que hojeconstitui nosso objeto. Assim, tentemos esquematizar 0 que acontecenesse tempo de suspensao que, de algum modo, 1'01' uma via singular,como que a ponta de faca, se assim podemos dizer, defasa a comu-nica<;:ao da demanda daqllilo que tange a seu acesso a satisfa<;:ao.

Para fazer uso desse esqueminha, pe<;:o-Ihes que se reportem auma coisa que, apesar de tao-somente mftica, nem 1'01' isso deixa deser profundamente verdadeira.

Suponhamos aquilo que, apesar de tudo, tern de existir em algumlugar, nem que seja em nos so esquema, isto e, uma demanda quepassa. Afinal de contas, tudo se resume nisso: se Freud introduziuuma nova dirensao em nossa considera<;:ao do homem, foi porque -

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eu nao diria que alguma coisa passa a despeito de tudo, mas quealguma coisa que est:'i destinada a passar - 0 desejo que deveriapassar deixa em algum lugar nao apenas vestigios, mas um circuitoinsistente.

Partamos, pois, desse algo que representaria a demanda que passa.Vma vez que existe inffmcia, podemos muito bem fazer refugiarcsenela a demanda que passa. A crian<,;a articula 0 que nela ainda eapenas uma articula<,;ao incerta, mas da qual extrai prazer - alias, ea isso que Freud se refere. 0 jovem sujeito dirige sua demanda. Deon de parte ela, ja que ainda nao entrou em jogo? Digamos que seesbo<,;a algo que parte desse ponto, que chamaremos de delta, ou Dmaiusculo, de Demanda.

o que isso nos descreve? Descreve-nos a fun<,;ao da necessidade.Exprime-se algo que parte do sujeito, e com 0 qual tra<,;amos a linhade sua necessidade. Ela termina aqui, em A, on de tambem cruza acurva do que isolamos como 0 discurso, que e feito da mobiliza<,;aode urn material preexistente. Nao inventei a linha do discurso, na qualo estoque do significante, reduzidissimo nesse momento, e posto ema<,;ao, na medida em que 0 sujeito articula correlativamente algumacoisa.

Antes do fim do segundo tempo, observem que estas duas linhasainda nao se cruzaram. Em outras palavras, quem diz alguma coisa,ao mesmo tempo diz mais e diz menos do que deve dizer. A referenciaao carater tateante da utiliza<,;ao primordial da Ifngua da crian<,;acncontra aqui a plenitude de seu emprego.

Ha uma progressao simultanea nas duas linhas e uma duplaconclusao no fim do segundo tempo. 0 que come<,;ou como necessidadeira chamar-se demanda, ao passo que 0 significante se fechara sobreaquilo que consuma, de maneira tao aproximativa quanto quiserem,o sentido da demanda, e que constitui a mensagem evocada pclo Outro- digamos, a mae, para de vez em quando admitir a existencia deboas maes. A institui<,;ao do Outro coexiste assim com a consuma<,;aoda mensagem. Ambos se determinam ao mesmo tempo, urn comomensagem, 0 outro como Outro.

Num terceiro tempo, veremos a curva dupla completar-se alemdo A e alem do M. Indicaremos, pelo menos a titulo hipotetico, comopodcmos dar nome a esses pontos terminais e situa-Ios na estrutura<,;aoda demanda que tentamos colocar na base do exercfcio primordial dosignificante na expressao do desejo.

Pediria que admitissem, ao menos provisoriamente, como a refe-rencia mais util para 0 que tentaremos desenvolver postcriormente, 0

casu ideal em que a demanda encontra, exatamente no tcrceirotempo,aquilo que a prolonga, isto e, 0 Outro que a retoma a proposito desua mensagem.

Ora, 0 que devemos considerar aqui, pelo lado da demanda, naopo de exatamente se confundir com a satisfa<,;ao da necessidade, poiso proprio exercfcio de qualquer significante transforma a manifesta<,;aodessa necessidade. Mediante 0 concurso do significante, introduz-sencsta urn minimo dc transforma<,;ao - de mctat'ora, numa palavra -quc faz com que aquilo que e significado seja algo para alem danecessidade bruta, que seja remodel ado pelo usa do significante. POl'conseguinte, desde 0 come<,;o, 0 que entra na cria<,;ao do significadonao e uma pura e simples tradu<,;ao da necessidade, mas uma retomada,reassun<,;ao, remodelagem da necessidade, cria<,;ao de urn desejo outroque nao a necessidade . .E a necessidade mais 0 significante. 0socialismo, dizia Lenin, provavelmente e uma coisa muito simpatica,mas a comunidade perfeita tern, alem disso, a eletricidade. Do mesmomodo, na expressao da necessidade, existe a mais 0 significante.

Do outro lado, do lado do significante, seguramente existe, noterceiro tempo, algo que cOlTesponde ao aparecimento miraculoso -de fato 0 supusemos miraculoso, plenamente satisfatorio - da satis-

Vejam bem. As coisas se desenrolam em dois pIanos, 0 dainten<,;ao, por mais confusa que a suponham, do jovem sujeito enquantodirige seu chamado, e 0 do significante, tambem pOl' mais desordenadoque possam supor seu usa, na medida em que ele e mobilizado nesseesfor<,;o, nesse chamado. 0 significante progride ao mesmo tempo quea intcn<,;ao, ate que os dois atingem estes cruzamentos, A e M, cujautilidade ja Ihes assinalei para a compreensao do efeito retroativo dafrase que se fecha.

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fagao, no Outro, dessa nova mensagem que foi criada. E isso quenormal mente desemboca no que Freud nos apresenta como 0 prazerdo exercfcio do significante como tal. No caso ideal de sucesso, 0

Outro surge no pr6prio prolongamento do exercfcio do significante.o que prolonga 0 efeito do significante como tal e sua resolugao numprazer pr6prio, aurentico, 0 prazer do uso do significante. Vocespodem registni-lo em alguma linha limite.

Pego-Ihes que admitam isto pOl' um instante, a titulo de hip6tese:o uso comum da demanda como tal e sustentado pOl' uma referenciaprimitiva ao que poderiamos chamaI' de pleno sucesso, ou sucessoprimeiro, ou sucesso mitico, ou forma arcaica primordial do exercfciodo significante. Essa hip6tese permanecera subjacente a tudo 0 quetentarmos conceber sobre 0 que se produz nos casos reais do exercfciodo significante.

Na medida em que ao mesmo tempo cria a mensagem eo Outro,a passagem com pleno sucesso da demanda para 0 real conduz, pOl'um lado, a um remanejamento do significado, que e introduzido pelouso do significante como tal, e, pOl' outro, prolonga diretamente 0

exercfcio do significante num prazer autentico. Ambos se equilibram.Ha, por um lado, 0 exercfcio do significante, que de fato encontramos,com Freud, inteiramente na origem do jogo verbal, e que constituium prazer original sempre pronto a surgir. POl' outro lado, ha 0 queacontece em oposigao a isso. Veremos agora do que se trata.

Quao disfargada c essa novidade, que aparece nao simplesmentena resposta a demanda, mas na pr6pria demanda verbal, esse algooriginal que complexifica e transforma a necessidade, que a colocano plano do que a partir dai chamaremos de desejo!

o que e 0 desejo? 0 desejo c definido pOl' uma defasagem essencialem relagao a tudo 0 que C, pura e simplcsmente, da ordem da diregaoimaginaria da necessidade - necessidade que a demanda introduznuma ordem OLltra, a ordem simb6lica, com tudo 0 que ela podeintroduzir aqui de perturbagoes.

Se Ihes pego que se refiram a esse mito primordial, C pOl'que serapreciso nos apoiarmos nele na sequencia, para que nao tornemosincompreensivel tudo 0 que nos for articulado por Freud a prop6sitodo mecanismo pr6prio do prazer do chiste, Essa novidade que apareceno significado pela introdugao do significante, vamos encontra-la pOl'toda parte como uma dimensao essencial, acentuada pOl' Freud emtodos os meandros do que constitui uma manifestagao do inconsciente.

Freud as vezes nos diz que surge alguma coisa, no plano dasformagoes do inconsciente, que se chama surpresa, Convem toma-la

nao como um acidente dessa descoberta, mas como uma dimensaofundamental de .sua essencia, 0 fenomeno da surpresa tem algo deoriginario - quer se produza no interior de uma formagao doinconsciente, na medida em que em si mesma ela choque 0 sujeitopOl' seu carateI' surpreendente, quer ainda quando, no momenta emque e feito para 0 sujeito 0 desvelamento, provoca-se nele 0 sentimentoda surpresa. Freud indica isso em toda sorte de ocasioes, seja em Aciencia dos sonhos, seja na Psicopatologia da vida cotidiana, sejaainda, e a todo momento, no texto de A tirada espirituosa em suasrelaf'oes com 0 inconsciente. A dimensao da surpresa e consubstancialao que acontece com 0 desejo, desde que ele tenha passado ao niveldo inconsciente.

Essa dimensao e 0 que 0 desejo traz consigo de uma condigaode surgimento que Ihe e pr6pria como desejo. Trata-se propriamenteda mesma pela qual ele e suscetivel de entrar no inconsciente. Comefeito, nem to do desejo e suscetivel de entrar no inconsciente. S6en tram no inconsciente os desejos que, pOl' terem sido simbolizados,podem, ao entrar no inconsciente, conservar-se em sua forma simb6-lica, isto c, sob a forma do trago indestrutivel cujo exemplo Freudretoma no Witz. Sao desejos que nao se desgastam, que nao tem 0

carater de impermanencia pr6prio a toda insatisfagao, mas que, aocontrario, SaG sustentados pela estrutura simb6lica, que os mantemnum certo nivel de circulagao do significante, aquele que Ihes aponteicomo devendo ser situado, nesse esquema, no circuito entre a men-sagem e 0 Outro, on de ele ocupa uma fungao variavel conforme asincidencias em que se produz. E por essas mesmas vias que devemosconceber 0 circuito rotativo do inconsciente, na medida em que eleesta sempre pronto a reaparecer.

E pela agao da metafora que se produz 0 surgimento do novosentido, ja que, tomando emprestados alguns circuitos originais, elavem incidir no circuito corrente, banal, comumente aceito, da meto-nimia. Na tirada espirituosa, e as claras que a bola e rebatida entre amensagem e 0 Outro, e que produz 0 efeito original que e pr6priodela.

Entremos agora em mais detalhes, para tentar apreende-lo econcebe-Io.

Se deixannos 0 nivel primordial, mftico, da primeira instauragao dademanda em sua forma pr6pria, como e que as coisas acontecem?

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Reportemo-nos a urn tema absolutamente fundamental ao Ion gode todas as historias de tiradas espirituosas. E so 0 que se ve: pedintesa quem se eoncedem coisas. Ou Ihes e concedido 0 que eles naopedem, ou, havendo obtido 0 que demandam, eles fazem outro usodisso, ou ainda comportam-se perante quem Ihes satisfez a demandacom uma insolencia toda especial, reproduzindo, na rela<;ao do pedintecom 0 solicitado, a bendita dimensao da ingratidao sem a qual seriareal mente insuportavel assentir em qualquer demanda. Observem, comefeito, como nos fez observar com muita pertinencia nosso amigoMannoni, num excelente Iivro, que 0 mecanismo normal da demandana qual assentimos e provocar demandas sempre renovadas.

Que e, afinal de contas, essa demanda, desde que encontre seuouvinte, a cujos ouvidos esta destinada? Fa<;amos aqui urn pouquinhode etimologia. Embora nao seja no uso do significante que residefor<;osamente a dimensao essencial a qual devemos referir-nos, urnpouco de etimologia faz bem para nos esclarecer. A demanda, muitomarcada pelos temas da exigencia, no emprego concreto do tenno, emais ainda em ingles do que em outras lfnguas, embora tambem emoutras Ifnguas, e, originalmente, demandare, se entregar.

Assim, a demanda se coloca no plano de uma comunhao deregistro e de linguagem e efetua uma entrega de to do 0 si mesmo, detodas as suas necessidades, a urn Outro de quem 0 proprio materialsignificante da demanda e tornado de emprestimo, para adquirir umaoutra cnfase. Esse deslocamento e imposto a demanda muito espe-cialmente por seu funcionamento efetivo. Nisso encontramos a origemdos materiais metaforicamente empregados, como voces podem verpelo progresso da Ifngua.

Esse fato e uti I para nos instruir sobre 0 que esta em questao nofamoso complexo de dependcncia que evoquei ha pouco. Com efeito,segundo os term os de Mannoni, quando quem demanda pode acharque, efetivamente, 0 Outro consentiu de verdade numa de suasdemandas, de fato nao ha mais limite - e normal que de Ihe confietodas as suas necessidades. Daf os beneffcios da ingratidao, queevoquei ha pouco, que poe termo ao que nao teria como acabar.

Mas, tambem, por experiencia, 0 pedinte nao tern 0 habito deapresentar sua demanda assim, inteiramente nua. A demanda nadatern de confiante. 0 sujeito sabe muito bem com que esta Iidando noespfrito do Outro, e e por isso que disfar<;a sua demanda. Ele pedealguma coisa de que tern necessidade, em nome de outra da qual asvezes tambem necessita, mas que sera mais facilmente aceita comopretexto para a demanda. Se necessario, nao tendo essa outra coisa,

" Ie a inventara, pura e simplesmente, e sobretudo levara em conta,[[;1 formula<;ao de sua demanda, 0 que e 0 sistema do Outro. Iradlrigir-se de uma certa maneira a senhora que faz obras de caridade,de outra ao banqueiro, de outra ao casamenteiro, de outra a este ou;tquele dos personagens que se perfilam de maneira tao divertida nolivro do Witz. Ou seja, seu desejo sera tornado e remanejado naoapenas no sistema do significante, mas no sistema do significante talcomo instaurado ou institufdo no Outro.

Sua demanda, assim, come<;ara a se formular a partir do Outro.Ela se reflete primeiramente naquilo que ha muito tempo pas sou paraa estado ativo em seu discurso, au seja, 0 [Eu]. Este profere a demandapara refleti-Ia no Outro e, atraves do circuito A-M, ela se consumacomo mensagem. Este e 0 apelo, a inten<;ao, este eo circuito secundarioda necessidade. Nao e indispensavel dar-Ihe muito a enfase da razao,mas a do controle - controle pelo sistema do Outro. E claro queisso ja implica toda sorte de fatores, os quais, unicamente nestemomento, temos motivos para qualificar de racionais. Digamos que,se e racional leva-Ios em conta, nem por isso esta implfcito em suaestrutura que eles sejam efetivamente racionais.

o que acontece na cadeia significante, segundo esses trcs temposque vemos descreverem-se aqui? Alguma coisa torna a mobilizar todoo aparelho e todo 0 material e chega primeiro aqui, a M. Em seguida,isso nao passa prontamente para 0 Outro, mas vem refletir-se aqui,nesse algo que, no segundo tempo, correspondeu ao apelo ao Outro,ou seja, 0 objeto. Trata-se do objeto aceitavel pelo Outro, do objetodo que () Outro quer desejar, em suma, do objeto metonfmico. Ao serefletir nesse objeto, isso vem, no terceiro tempo, convergir namensagem.

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Nao nos encontramos aqui, pOl"tanto, naquele afortunado estadode satisfa~ao que havfamos obtido ao cabo dos tres tempos da primeirarepresenta~ao mftica da demanda e de seu sucesso, com sua novidadesurpreendente c seu prazer, por si s6 satisfat6rio. Encontramo-nos, aocontnirio, retidos numa mensagem que traz em si um carateI' deambigLiidade. Essa mensagem e, com efeito, lima formula~ao que sealiena desde 0 ponto de partida, na medida em que parte do Outro e,por essa vertente, leva ao que e de certo modo desejo do Outro. Amensagem C 0 encontro dos dois. POI' um lado, e do pr6prio Outroque 0 apelo C evocado. POI' outro lado, em seu pr6prio aparelhosignificante c introduzida toda sorte de elementos convencionais, quecomp6em 0 que chamaremos de carateI' de comunhao ou de desloca-mento dos objetos, na medida em que estes sao profundamenteremanejados pelo mundo do Outro. E c notavel que, no terceiro tempo,como vimos, 0 discurso circule entre os dois pontos de chegada daf1echa. E justamente isso que pode levar ao que chamamos de lapso,tropec;o da fala.

Nao c garantido que a significac;ao assim formada seja unfvoca.E tao POllCO llnfvoca, alias, que a equivocac;ao [maldonne] e 0

desconhecimento sao 11111 carateI' fundamental da Iinguagem, consti-tuem dela lima dimensao essencial. E na ambiguidade dessa forma~aoda mensagem que trabalha 0 chiste. E a partir desse ponto que, pordiversas raz6es, sera formado 0 chiste.

Ainda nao sera hoje que yOU tra~ar a diversidade das fm"mas sobas quais essa mensagem, tal como constitufda em sua forma essen-cialmente ambfglla quanta a estrutura, pode ser retomada, para seguirum tratamento que tem, segundo nos diz Frcud, 0 objetivo de enfimrestabelecer 0 encaminhamento ideal, que devera levar a surpresa deuma novidade, pOl' um lado, e ao prazer do jogo do significante, pOl'outro. Esse c 0 objetivo do chiste. 0 objetivo do chiste, com efeito,c nos reevocar a dimensao pel a qual 0 desejo, se nao reconquista,pelo menos aponta tudo aquilo que perdeu ao percorrer esse caminho,ou seja, pOl' um lado, 0 que deixou de dejetos no nfvel da cadeiametonfmica, cpOI' outro, 0 que nao realizou plenamente no nfvel dametafora.

Se chamamos de meta/ora natural 0 que aconteceu ha pouco natransic;ao ideal do desejo que atinge 0 Outro, na medida em que elese forma no sujeito e se dirige para 0 Outro que 0 retoma, encontra-mo-nos aqui numa etapa mais evolufda. Com efeito, ja intervieramna psicologia do sujeito essas duas coisas chamadas [Eu], de um lado,e 0 objeto profundamente transformado que e 0 objeto metonfmico,

de outro. POl' conseguinte, nao estamos diante da metafora natural,Illas diante de seu exercfcio corrente, quer cia tenha exito ou fracasse11'1 ambiguidade da mensagem, a qual se trata agora de dar um destinoIlas condi~6es que permanecem em estado natural.

Toda uma parte do desejo continua a circular sob a forma dedejetos do significante no inconsciente. No caso da tirada espirituosa,par uma especie de pressao insistente, ela transmite a sombra feliz,() reflexo da antiga satisfa~ao. Sucesso espantoso, e puramente vei-culado pelo significante. Digamos que acontece alguma coisa que temcomo efeito, muito exatamente, reproduzir a prazer primordial dademanda satisfeita, ao mesmo tempo que cIa tem acesso a umanovidadc original. E isso que a tirada espirituosa, pOl' sua essencia,realiza. E realiza como?

Esse esquema po de nos servir para perceber que a conclusao dacurva primeira da cadeia significante prolonga tambem a que passada necessidade intencional para 0 discurso. Como assim? Atraves datirada espirituosa. Mas, como Vem a luz a tirada espirituosa? Aquireencontramos as dimens6es do senso e do contra-senso, mas devemoscxamina-Ias mais de perto.

Se as indica~6es que lhes dei da vez passada sobre a fun~aometonfmica almejavam alguma coisa, era justamente ao que, nosimples desenrolar da cadeia significante, produz-se de equaliza~ao,de nivelamento, de equivalencia. Ha um apagamento ou uma redu~aodo sentido, 0 que nao quer dizer que isso seja 0 nonsense. Eu haviausado, a esse respeito, a referencia marxista - empregar dais objetosda necessidade de tal maneira que um se tome a medida do valor dooutro, que apague do objeto, justamente, 0 que e a ordem da neces-sidade, e com isso a introduza na ordem do valor. Do ponto de vistado sentido, isso pode ser chamado, par uma especie de neologismoque alias apresenta uma ambiguidade, 0 des-senso [de-sens]. Hojevamos chama-Io simplesmente de 0 pouco-sentido [peu-de-sens]. Vmavez que voces disponham dessa chave, a significa~ao da cadeiametonfmica nao deixara de se lhes evidenciar.

o pouco-sentido e exatamente aquilo com que joga a maioria doschistes. Nao se trata do nonsense, pais, no chiste, nao somas aquelasalmas nobres que, imediatamente ap6s a grande deserto que as povoa,revel am-nos as grandes misterios do absurdo geral. 0 discurso daalma generosa, se nao conseguiu enobrecer nossos sentimentos, re-centemente nobilitou um escritor. Nem por isso seu discurso sabre anonsense deixa de ser 0 mais futil que ja ouvimos. Nao ha, de maneiranenhuma, uma a~ao/do nonsense toda vez que a equfvoco e introdu-

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zido. Se voces estao lembrados da historia do bezerro, daquele bezerrod? qual, na ultima vez, diverti-me em quase fazer a resposta de Heine,dlgamos que. ~sse bezerro nao vale mais nada* na ocasiao em que fa-lam dele. Alias, tudo 0 que voces possam encontrar nos jogos de pa-lavras, e, mais especialmente, naqueles a que chamamos jogos depal~vras do pensamento, consiste em jogar ~om 0 carateI' tenue das pa-Iavlas que, sustentam urn sentI do pleno. E esse pouco-sentido que,como. tal, e !'etomado, e e por af que passa alguma coisa que reduz asua dlmensao essa mensagem, na medida em que ela e sucesso efracasso ao mesmo tempo, sendo sempre a forma necessaria dequalquer for~nula<;ao da demanda. A mensagem vem interrogar 0

~utro a propOSltO do pouco-sentido. A dimensao do Outro e essencialDlSSO.

, F.reud se detem,. como coisa absolutamente primordial, presa apropl:la natureza da tirada espirituosa, no fato de que nao existe tirada~spmtuosa solit~ria. ~inda que nos mesmos a tenhamos fOljado,mventado - se e que mventamos a tirada espirituosa e que nao e elaque nos I~venta ---:-'.experimentamos a necessidade de prop6-la aoOutro. A tn'ada espmtuosa e solidaria do Outro que esta encarregadode autentica-Ia.

Qual e esse Outro? Por que esse Outro? Qual e essa necessidadedo Outro? Nao sei se teremos tempo suficiente hoje para defini-Io el~e dar sua estrutura e seus limites, mas, no ponto em que estamos,dlr~~os slmplesmente isto: 0 que e comunicado ao Outro na tiradaespm.tuosa articula-.se, essencialmente, de urn modo singularmentea~tuclOsO, com a dnnensao do pouco-sentido. Convem mantermosdtante. dos olhos 0 carateI' daquilo que esta em pauta. Nunca se trata,no Wztz, de provocar aquela invoca<;ao patetica de sabe-se la queabsurdo fundamental a qual aludi ha pouco, ao me referir a obra deu.ma das Gra~d:s C~be<;as_ Ocas de nossa epoca. 0 que sempre setlata de sugel:n' e a dlmensao do pouco-sentido, interrogando 0 valorcomo tal, mtlmando-o, por assim dizer, a realizar sua dimensao de,valor, ~ ~~ revela.r como valor verdadeiro. Observem bem que isso eurn artlflclO da lInguagem, pois, quanta mais ele se des velar comovalor verdadeiro, ma~s se desvelanl como estando apoiado no quechama .de po~co~sentido. EI: so pode responder no senti do do pou-co-sentido, e e DlSSOque esta a natureza da mensagem que e propria

da tirada espirituosa, isto e, no fato dc que aqui, no nfvcl da mensagem,retorno com 0 Outro a via interrompida da melonfmia e the fa<;o estainterroga<;ao: - Que quer dizer tudo isso:;

A tirada espirituosa so se complela para alcm desse ponto, ouseja, na medida em que 0 Outro acusa seu recebimenlo, reage a tiradaespirituosa e a autentica como tal. Para que haja lirada espiriluosa, Cpreciso que 0 Outro perceba 0 que esta ali, nesse vefculo da perguntasobre 0 pouco-sentido, de demanda de senti do, isto C, da evoca<;aode urn sentido mais alem * - alem do que fica inacabado. Em tudoisso, alguma coisa realmente fica pelo caminho, marcada pelo sinaldo Outro. Esse sinal, acima de tudo, marca com sua profunda ambi-gi.iidade qualquer formula<;ao do desejo, ligando-o como tal as neces-sidades e as ambigi.iidades do significante, a homonfmia - entenda-se,a homofonia. 0 Outro responde a isso no circuito superior, que vaide A a mensagem, autenticando - mas 0 que?

Cabera dizermos que ele autentica 0 que ha nisso de nonsense?Mais uma vez, insisto: nao ereio que se deva manter 0 tenno nonsense,que so tern sentido na perspectiva da razao, da crftica, isto e, preci-samente do que e evitado nesse circuito. Proponho-Ihes a forma dopasso-de-sentido [pas-de-sens] - da maneira como se diz a volta doparafuso [pas-de-vis], 0 pas-de-quatre, 0 Passo de Susa, 0 Pas deCalais.

Esse passo-de-sentido e, para falar com propriedade, 0 que serealiza na metafora. A inten<;ao do sujeito, sua necessidade, e 0 que,fora do uso metonfmico, fora do que se encontra na medida comum,nos valores aceitos para elc se satisfazer, introduz na metafora justa-mente 0 passo-de-sentido. Tomar urn elemento no lugar onde ele seencontra e substituf-Io por Olltro, eu diria quase pOl' qualquer urn,introduz esse para-alcm da necessidade, em relac;:ao a qualquer desejoformulado, que esta sempre na origem da metafora.

Que faz af a tirada espirituosa? Ela nao indica nada alem dapropria dimensao do passo como tal, propriamente dito. Ela e 0 passo,por assim dizer, em sua forma. E 0 pas so, esvaziado de qualquerespecie de necessidade. E isso que, na tirada espirituosa, po de mani-

* Au-de/a e Ulll termo fundamental para Lacan, sobretudo ncstc Scminario, em quee convocado insistentemente (cL par exemplo, p.156, 343-4,452) para esboc;ar umatopologia das relac;i5es entre 0 significante e 0 real. Optamos pOl' variaI' sua traduc;ao("mais alem", "para alem", "para-alem", "alem"), segundo as nuances e 0 contextoem que ocorre. (N.E.)

* L:can faz urn tro~adilho com veau (bezerro) e vaut (vale ou tern valor), que saohomofonos em frances. (N.E.)

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festar, apesar de tudo, 0 que em mim e latente de meu desejo, e eesse algo que pode encontrar eco no Outro, mas nao fon;osamente.Na tirada espirituosa, 0 importante e que a dimensao do passo-de-

. senti do seja retomada, autenticada.E a isso que corresponde um deslocamento. E somente para alem

do objeto que se produz a novidade, ao mesmo tempo que 0 passo-de-sentido, e no mesmo momenta para os dois sujeitos. Existe 0

sujeito e existe 0 Outro; 0 sujeito e aquele que fala ao Outro e queIhe comunica a novidade como tirada espirituosa. Depois de haverpercorrido 0 segmento da dimensao metonfmica, ele faz com que 0

pouco-sentido seja acolhido como tal, 0 Outro autentica neste 0

pass~-de-sentido, e 0 prazer se consuma para 0 sujeito.E na medida em que 0 sujeito consegue, com sua tirada espirituosa,

surpreender 0 Outro, que ele colhe 0 prazer, e este e, justamente, 0

mesmo prazer primitivo que 0 sujeito infantil, mftico, arcaico, pri-mordial que Ihes evoquei ha pouco havia extrafdo do primeiro usodo significante.

Vou deixa-Ios nesse passo. Espero que ele nao Ihes tenha parecidoartificial demais nem pedante demais. Pe<;o desculpas aqueIcs a quemeste tipo de pequeno exercfcio de trapezio da dar de cabega, mas naoporque nao os creia mentalmente capazes de captar essas coisas. Naocreio que 0 que Kant denomina de 0 Mutterwitz de voces, seu bomsenso, esteja tao adulterado pelos estudos medicos, psicologicos,analfticos e outros a que voces ten ham se dedicado, que Ihes sejaimpossivel acompanhar-me pOl' esses caminhos atraves de simplesalus6es. Nao obstante, as leis de meu ensino tampouco tom am ino-portuno que desvinculemos de alguma maneira essas etapas, essestempos essenciais do progresso da subjetividade na tirada espirituosa.

Subjetividade, e a essa palavra que passo agora, pois, ate 0 prescntee ainda hoje, ao manejar com voces os cncaminhamentos do signifi-cante, alguma coisa falta no meio disso tudo - falta nao sem razao,voces vao ver. Nao e a toa que, no meio de tudo isso, so vemossurgirem hoje sujeitos quase ausentes, uma especie de apoio paradevolver a bola do significante. E, no entanto, que ha de mais essencialpara a dimensao da tirada espirituosa do que a subjetividade?

Quando digo subjetividade, estou dizendo que em parte algumae apreensivel 0 objeto da tirada espirituosa. Ate 0 que ela designapara alem daquilo que formula, ate seu carater de alusao essencialde alusao intema, nao alude aqui a nada, a nao ser a necessidade d~passo-de-sentido. Todavia, nessa ausencia total de objeto, algumacoisa, afinal de contas, sustenta a tirada espirituosa, que e 0 mais

vivido do vivido, 0 mais assumido do assumido, 0 que a transformanuma coisa subjetiva. Como diz Freud em algum lugar, ha nela umacondicionalidade subjetiva essencial, e hi esta a palavra soberana asurgir nas entrelinhas. S6 e tirada espirituosa - diz Freud numadaquelas formulas de carater agu<;ado que nao se encontra;D em qu~s~nenhum au tar literario, nunca vi isso na pena de l11nguem -, so etirada espirituosa 0 que eu mesmo reconher,;o como tirada espirituosa.

E, no entanto, necessito do outro. Todo 0 capitulo seguinte ao doMecanismo do prazer, do qual acabo de Ihes falar hoje, ou seja, Osmotivos da espirituosidade, as tendencias sociais valorizadas pelaespirituosidade - traduziram isso em frances par ressorts [mobeis],nunca entendi pOl' que -, tem pOl' referencia essencial esse outro.Nao ha prazer da tirada espirituosa sem esse outro, ~ue ta~bem estaali como sujeito. Tudo repousa nas rela<;6es dos dOlS sUJeltos, aque-Ie que Freud denomina de primeira pesso~ da tirad~ espirituosa -aquele que a produz -, e aquele a quem, dlZ Freud, e absolutamentenecessario que cia seja comunicada.

Que ardem do outro isso sugere? Para dize-Io de uma vez, esseoutro realmente e, nesse nivel, propriamente falando, com tra<;oscaracteristicos que em parte alguma SaG apreensiveis com tamanhorelevo, 0 que chama de Outro com maiuscula.

Isso e 0 que espero mostrar-Ihes da proxima vez.

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nivel da mensagem - homologa a mensagem e constitui a tiradaespirituosa, na medida em que 0 Outro, havendo recebido 0 que seapresenta como um pouco-sentido, transforma-o no que denominamos,de maneira equivoca, ambigua, de passo-do-sentido.

o que frisamos com isso nao foi a ausencia de sentido nem 0

nonsense, mas exatamente 0 passo [pas] que cOlTesponde a visao geraldaquilo que 0 senti do mostra de seu procedimento, no que ele sempretem de metaf6rico e alusivo. Assim e que, a partir do momento emque ele passa pela dialetica da demanda introduzida pela existenciado significante, nut1Ca mais se toca na necessidade. Tudo 0 que dizrcspeito a linguagem procede pOl' uma scrie de passos semelhantesaqueles com que Aquiles nunca, nunca chega a tartaruga - tende areCI'iar um senti do pleno que, no entanto, nunca e atingido, que esuisempre em outro lugar.

Foi esse 0 esquema a que chegamos nos ultimos quinze minutosde nosso discurso da ultima vez. Este, ao que parece, estava meiocansado. Pelo que me disseram alguns, minhas frases nao eramterminadas. No entanto, a leitura de meu texto, nao achei que lhesfaltasse desfecho. E par eu estar tentando propelir-me passo a passonuma coisa diffcil de comunicar que esses trope<.;os se produzem. Pe<.;odesculpas se eles se repetirem hoje.

Ex:orcizar 0 tema do pensamentoQueneau me contou uma hist6riaA maquina de tiradas espirituosaso Outro entre 0 real e 0 simb6licoo espirito da par6quia

Tenho hoje coisas muito importantes a Ihes dizer.. J:Iaviamos p.arado, da ultima vez, na fun<.;ao do sujeito na tirada

espIrltuosa, sublmhando 0 peso da palavra sujeito. Atrevo-me a esperarque, a pretexto de nos servirmos muito dela aqui, nem par isso cIatenha-se.tornado para voces uma coisa com que limpar os pes. Quandonos. servnTIos. da ,palavra sujeito, isso costuma acarretar vivas rea<.;6esmLllto pessOals, as vezes emotivas, nos que se atem acima de tudo aobjetividade.

PO;" o.utro lado, haviamos chegado aqucIa especie de ponto deconfluencIa que se situa aqui e que chamamos de A - em outraspalavras, 0 Outro. <:=01;10 Jugal' do. c6digo, esse e 0 lugar a que chegaa mensagem cons.tltutda pelo chlste, tomando 0 caminho que, emnosso esquema, Val da mensagem ao Outro, onde se inscreve a simplessuce~sao da c~deia significante como fundamento do que se produzno mvel d~ dlscurso. Nesse nivel, emana do texto da frase aquelealgo essenClal que denominamos 0 pouco-sentido.

. A homologa<.;ao do pou~o-sentido da frase pelo Outro, semprema~s ~u menos mall/festa na tJrada espirituosa, foi algo que apontamosda ultll~a vez, s.e~ nos determos nisso. Contentamo-nos em dizer queo que e transmIt/do a partir do Outro - no circuito que retorna no

Estamos no ponto em que e preciso nos interrogarmos sobre a fun<.;aodesse Outro e, numa palavra, sobre sua essencia, nessa transposi<.;aoque indicamos suficientemente com 0 titulo de passo-do-sentido.

Esse passo-do-sentido 6, de certo modo, um resgate parcial daplenitude ideal da demanda, pura e simplesmente realizada, da qualpartimos como sendo 0 ponto de partida de nossa dialetica. Essepasso-do-sentido, pOl' qual transmuta<.;ao, transubstancia<.;ao ou opera-<.;aosutil de comunhao, pOl' assim dizer, pode ele ser assumido peloOutro? Qual e esse Outro?

Nossa interrogagao diz respeito ao ponto de articula<.;ao que esuficientemente indicado pela problemarica de Freud, quando ele nosfala do chiste com aquele poder de suspensao da questao que Ihe ecaracterfstico e que faz com que, incontestavelmente, pOl' mais queeu leia - e nao me privo de faze-lo - as diversas tentativas feitasao longo das eras para examinar de perto a questao-misterio do chiste,nao importa a que autar me dirija, mesmo remontando ao perfodo

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fecundo, 0 perfodo romantico, real mente nao vejo nenhum que tenhasequel' reunido os elementos primordiais, materiais, da questao.

Vejam isto, pOl' exemplo, em que Freud se detem. POI' urn lado,ele diz naquele seu tom soberano, que difere tao marcadamente dacostumeira timidez ruborizada dos discursos cientfficos, que 56 eespirituoso aquilo que eu reconher;o como tal. E 0 que ele chama deIrredutfvel condicionalidade subjetiva da espirituosidade. 0 sujeito,af, e real mente aquele que fala, diz Freud. Por outro lado, ele destacaque, tao logo possuo alguma coisa que e da ordem do espirituoso, sotenho uma pressa, que e a de coloc<i-la a prova pelo Outro - maisainda, de the transmitir seu contexto. Essa chega ate a ser a condis;aode que eu possa colher plenamente 0 prazer disso. E nao me seriadiffcil fazer aparecer em perspectiva 0 jogo de espelhos pelo qual,quando conto uma historia, e se real mente busco nela a realizas;ao, 0

repouso, a harmonia de meu prazer no consentimento do Outro,permanece no horizonte a ideia de que esse Outro, pOl' sua vez, vinia con tar essa historia, a transmiti-Ia a terceiros, e assim sucessivamente.

Tomemos as duas pontas da cadeia. Por urn lado, so e espirituosoo que eu mesmo sinto como tal. Mas, pOl' outro, nada em meu proprioconsentimento e suficiente nesse ponto - 0 prazer da tirada espirituosaso se completa no Outro e pelo Outro. Digamos - sob a condis;aode tomarmos muito cuidado com 0 que dizemos, para nao implicarnenhuma simplificas;ao nesse tenno - que 0 espfrito tern de sercomunicado. Isso sup6e que deixemos no termo comunicas;ao umaabertura a ser preenchida nao sabemos pelo que.

A observas;ao de Freud coloca-nos, pOI"tanto, diante dessa questaoessencial que ja conhecemos, a de saber 0 que e esse Outro que e decerto modo 0 correlato do sujeito. Aqui encontramos afirmada essacorrelas;ao numa verdadeira necessidade inscrita no fen6meno. Masa forma dessa relas;ao do sujeito com 0 Outro, nos ja a conhecemos,e conhecemos desde que insistimos no modo necessario pelo qualnOssa reflexao nos prop6e 0 termo subjetividade." Aludi aquela especie de objes;ao que poderia ocorrer a espiritosformados numa certa disciplina, e que tomaria como pretexto 0 fatode a psicanalise apresentar-se como ciencia para introduzir a exigenciade que nunca falemos senao de coisas objetivaveis, isto e, que possamtel' correspondencia com a experiencia. Pelo simples fato de falar dosujeito, a experiencia se tornaria uma coisa subjetiva e nao cientifica.Isso equivale a implicar no termo sujeito uma ideia que em certonivel esta mesmo inserida nele, qual seja, a de que 0 aquem do objeto- que permite fixar-Ihe seu suporte e que, alias, tanto esta para alem

do objeto quanta pOl' tras dele - nos apresentaria uma especie desubstancia incognoscfvel, algo refratario a objetivas;ao, da qual nossaeducas;ao, nos sa formas;ao psicologica, nos traria to do 0 armamentopara nos defendermos. Isso desemboca, naturalmente, em modos deobjes;ao ainda muito mais vulgares; refiro-me a identificas;ao do tennosubjetivo com os efeitos deturpadores do sentimento na experienciade urn outro, nao sem introduzir, alias, sabe-se la que miragemtransparente que fundaria 0 sujeito numa imanencia da propria cons-ciencia, na qual se confia urn pouco depress a demais, reduzindo a cIao tema do cogito cartesiano. Em suma, toda uma serie de estorvos.Eles so existem para se interpor entre nos e aquilo que designamosquando empregamos a subjetividade em nossa experiencia.

De nossa experiencia de analistas, a subjetividade e impossivelde eliminar. Sua nos;ao se afirma pOl' uma via que passa pOl' urn lugarinteiramente diferente daquele em que se poderiam erguer-Ihe obsta-culos. Para 0 analista, como para quem procede pela via de urn certodialogo, a subjetividade e 0 que ele tern de considerar em seus calculosquando lida com aquele outro que pode introduzir nos calculos deleseu proprio erro, e nao procurar provocar-se como tal. Essa e umaformula que lhes proponho, e que seguramente exprime algo desensfvel, que a mais fnfima refercncia a partida de xadrez, ou ate aojogo do par ou fmpar, e suficiente para garantir.

Enunciando assim seus termos, a subjetividade parece emergir-nao e util eu retomar aqui tudo aquilo que ja destaquei em OlItro lugar- em estado dual. Parece-nos, com certeza, vel' seu reflexo em as;aonaquilo que se produz a partir do momenta em que ha confronto oucamuflagem na luta ou na exibis;ao. Ilustrei isso, na ocasiao oportuna,com exemplos etologicos que nao creio tel' necessidade de retomar.A luta inter-animal ou atc mesmo a exibis;ao inter-sexual apresentam-nos fen6menos de aproximas;ao recfproca e de eres;ao fascinatoria,nos quais se manifesta uma especie de coaptas;ao natural. Observam-se,assim, condutas que tern urn carateI' recfproco e que convergem naatras;ao sexual, ou seja, no nivel motor que chamamos de behaviorista.o aspecto e realmente impressionante, do animal que parece executaruma dans;a.

Alias, e isso que, nesse caso, deixa algo de ambiguo na nos;ao deintersubjetividade, que, depois de haver surgido pOl' urn instante daoposis;ao dos dois sujeitos, pOl' assim dizer, pode se esvaecer de novopor urn esfors;o de objetivas;ao. 0 fascfnio recfproco pode llluito bemser concebido, simplesmente, como estando submetido a rcguJas;aode urn ciclo isolavel no processo instintivo, que, depois de \l11l estagio

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apetitivo, permite concluir a consuma<;:ao e realizar 0 fim buscado.Podemos aqui reduzir tudo a um mecanismo inato de revezamentoa ponto de apaga-Io na obscuridade geral da teleologia viva. '

. ": coisa e muito diferente quando introduzimos no problema umareslstencla qualquer sob a forma de uma cadeia significante. A cadeiasignificante como tal introduz uma heterogeneidade essencial. Enten-~a-s~ heterogeneidade com a enfase depositada no hetero, que significalnsplrado em grego, e cuja acep<;:ao propria em latim e a do resto, dor~sfd~.o' A partir do momenta em que fazemos entrar em jogo 0

slgnd.lcante, a partir do momenta em que dois sujeitos se dirigem es~ referem urn ao outro por intermedio de uma cadeia significante,ha um resto, e entao 0 que se instaura e uma subjetividade de outraordem, na medida em que esta referida ao lugar da verdade como tal.

A pa.rtir d~f, minha condutaja nao e de engodo, mas de provoca\;ao.Nela se mcIUI 0 A, que faz com que ate a mentira tenha de recorrera v~rdade, e com que a propria verdade possa parecer que nao e doreglstro da verdade. Lembrem-se deste exemplo: - Por que me dizesque estas indo a Cracovia, quando na verdade vais a Cracovia? Eo que po de fazer a verdade necessitar da mentira. Mais ainda, noexato momento em que baixo as cartas, minha boa-fe torna a mecolocar na dependencia da aprecia<;:ao do Outro, na medida em queele po de achar que esta surpreendendo meu jogo, quando, precisa-~ente, est,ou a Iho mostrar. A discrimina<;:ao entre 0 blefe e a tapea<;:aofIca tambem amerce da ma-fc do Outro.. Essas dimensoes essenciais sao evidenciadas em experiencias

sImples da expericncia cotidiana. Contudo, mesmo sendo urdidas emnossa vida do dia-a-dia, nem por isso somos levados a eludi-Ias ateque a expericncia analftica e a posic;ao freudiana venham nos mo~traressa hetero-dimensao do significante operando sozinha em sua auto-nomia. Enquanto nao 0 houvermos tocado, reconhecido, nao deixa-remos de acreditar que 0 significante existe para servir as efusoes daconsciencia.

. Todo 0 pen~am~nt? .freudiano acha-se impregnado da heteroge-nelda~e. da func;ao slgmflcante, ou seja, do carater radical da relac;aodo sUJelto com 0 Outro, na medida em que ele fala. Ora, isso foramascarado, ate F~'eud, pelo fato de que se tinha par certo que 0 sujeitofala, par asslm dlzer, de acordo com sua consciencia, boa ou ma, que~Ie nunca fala sem uma certa intenc;ao de significa<;:ao, e que essamtenc;ao esta por tras de sua mentira - ou de sua sinceridade tantofaz. Ora, essa inten<;:ao e derrisoria tanto 0 sujeito acredite ;nentir

quanta dizer a verdade, pois ele nao se engana menos em seu esforc;ode confissao ~o que no de enganac;ao.

A intenc;ao, ate aqui, era confundida com a dimensao da cons-ciencia, pois a conscicncia parecia ser inerente ao que 0 sujeito tinhaa dizer como significa<;:ao.

o mfnimo que se considerava afirmavel ate entao era que 0 sujeitosempre tinha uma significac;ao a dizer e que, por isso, a dimensao daconsciencia Ihe era inerente. As objec;oes ao tema do inconscientefreudiano sempre encontraram af seu ultimo recurso. Como preyer,antes de Freud, a existencia dos Traumgedanken, dos pensamentosdo sonho tal como ele os apresenta, e que sao aprcendidos pela intuic;aocomum como pensamentos que nao sao pens ados? Eis par que agarae necessario proceder a uma verdadeira cxorciza<;:ao do tema dopensamento.

Se 0 tema do cogito cartesiano certamente preserva toda a suafor<;:a, a sua nocividade, se assim posso dizer, isto se deve, no caso,a ele ser sempre infletido. Esse penso, logo existo e diffcil de apreenderna plenitude de sua far<;:a, e talvez nao passe, alias, de uma tiradaespirituosa. Mas, deixemo-Io em seu plano, pois nao estamos aquipara evidenciar as relac;oes da filosofia com a tirada espirituosa. 0cogito cartesiano nao e experimentado na consciencia de cada um den6s, efetivamente, como urn penso, logo existo, mas como um soucomo penso, 0 que naturalmcnte pressupoe, par tras, urn penso comoresplro.

Basta, quanto a isso, ter a mais fnfima experiencia ponderada doque sustenta a atividade mental daqueles que nos cercam. Uma vezque somos cientistas, falemos dos que esUio atrelados as grandes obrascientfficas. Podcmos, muito rapidamente, farmar a ideia de que, emmedia, sem duvida nao ha muito mais pensamentos em a<;:ao noconjunto desse corpo cogitante do que no de qualquer empregadadomestica industriosa, as voltas com as necessidades mais imediatasda vida. A dimensao do pensamento nao tern em si mesma absoluta-mente nada a vel' com a importancia do discurso veiculado. Pelocontrario, quanto mais esse discurso e coerente c consistente, maisele parece prestar-se a todas as formas de ausencia quanto ao que sepode razoavelmente definir como uma pergunta formuladapelo sujeitoa sua existencia enquanto sujeito.

No final das contas, eis-nos de novo confrontados com 0 seguinte:em nos ha urn sujeito que pensa, e pensa de acordo com leis quemostram ser as mesmas da organiza<;:ao da cadeia significante. Esse

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significante em a<;ao chama-se, em nos, inconsciente. E designadocomo tal por Freud. E e tido como tao original, tao separado de tudoo que c funcionamento da tendencia, que Freud nos repete de milmaneiras que se trata de uma outra cena pslquica. Essa expressao serepete a todo instante na Traumdeutung.

Essa expressao, na verdade, Freud a tomou emprestada de Fechner,e ja tive ocasiao de frisar a singularidade do contexto fechneriano,que esta longe de se reduzir a observa<;ao do paralelismo psicoffsico,e tampouco as estranhas extrapola<;6es a que ele se entregou por for<;ada existencia, por ele afirmada, do campo da consciencia. A expressaooutra cena pSlquica, que Freud retirou de sua leitura aprofundada deFechner, c sempre correlacionada por ele a estrita heterogeneidadedas leis concernentes ao inconsciente com respeito a tudo 0 que podeestar relacionado ao domfnio do prc-consciente, isto C, ao domfniodo compreensfvel, da significa<;ao.

Esse Outro de que se trata, e que Freud tambem chama derelerencia da cena pslquica, a proposito da tirada espirituosa, e aquelesobre quem devemos hoje nos questionar, aquele que Freud nos trazrepetidamente a proposito dos caminhos e do procedimento do chiste.

Para nos, assinala ele, nao ha possibilidade de emergencia dochiste sem uma certa surpresa. Isso e ainda mais marcante em alemao:seine volle Wirkung aul den Horer nur zu iiussern, wenn er ihm neuist, ihm als Uberraschung entgegentritt. Podemos traduzir: ele somanifesta seu eleito pleno no ouvinte quando e novo para ele, quandose apresenta a ele como uma surpresa.

Ha alguma coisa que deve tornar 0 sujeito alheio ao conteudoimediato da frase, e que se apresenta, vez por outra, par meio doaparente nonsense. Trata-se do nonsense em rela<;ao a significa<;ao,que leva pOl' um momenta a dizer Nao compreendo, estou desnorteado,nao 17(1 um verdadeiro conteLtdo nessa frase, marcando a ruptura doassentimento do sujeito com rela<;ao ao que ele assume. Essa e aprimeira etapa, diz Freud, da prepara<;ao natural do chiste, que depoisconstituira para 0 sujeito uma especie de gerador de prazer, deprazerogeno.

o que acontece nesse nfvel? Qual c essa ordem do Outro que einvocada no sujeito? Uma vez que h;i tambem algo de imediato nosujeito, que c posta em rota<;ao par meio do chiste, a tecnica dessemovimento giratorio deve informar-nos sobre 0 que deve ser atingidocomo forma do Outro no sujeito.

E nisso que nos deteremos hoje.

So me referi, ate aqui, as historias relatadas pelo proprio Freud, oupouca coisa mais. Agora YOUintroduzir uma historia cuja provenienciae outra. Ela tambem nao foi especialmente escolhida. Quando resolviabordar com voces, este ano, a questao do Witz ou do wit, iniciei umapequena pesquisa. Nao ha nada de surpreendente em que a tenhacomec;ado interrogando um poeta. Trata-se de um poeta que introduzem sua prosa, bem como em fonnas mais poeticas, a dimensao deum espfrito singularmente dan<;arino que habita sua obra, e que elefaz vibrar ate quando fala vez ou outra de matematica, pois e tambemmatem:itico. Estou me referindo a Raymond Queneau.

Quando trocavamos nossas primeiras ideias a esse respeito, eleme contou uma historia. Nao e so no interior da experiencia analfticaque as coisas nos caem como uma luva. Depois de eu haver passadoum ana inteiro a Ihes falar da fun<;ao significante do cavalo, eis queesse cavalo torn a a entrar, de maneira bastante estranha, em nossocampo de aten<;ao.

A historia que Queneau me contou voces nao conhecem. Ele atomou como exemplo do que podemos chamar de historias longas,em contraste com as historias curtas. Essa, na verdade, c uma c1assi-fica<;ao muito preliminar. A concisao, diz em algum lugar Jean-PaulRichter, citado par Freud, e 0 corpo e a alma da espirituosidade, aoque podemos acrescentar a frase de Hamlet que diz que, se a concisaoc a alma da espirituosidade, a prolixidade nao deixa de ser seu corpoe seu ornamento. As duas coisas SaG verdadeiras, os dois autoressabiam do que estavam falando. Voces van vcr se a denominac;ao"historia longa" convem aqui, pois a tirada espirituosa c veiculadaem algum lugar.

Vejamos a historia, pois. E a historia de um exame, de bacca-laureat, par exemplo. Temos 0 candidato e temos 0 examinador.

- Fale-me - diz 0 examinador - da batalha de Marengo.o candidato para par um instante, com ar pensativo: - A batalha

de Marengo ... ? Mortos! Uma coisa medonha ... Feridos! Assustador ...- Mas - diz 0 examinador - 0 senhor nao pode me dizer algo

mais especifico sobre essa batalha?o candidato reflete par um momenta e responde: - Um cavalo

empinado nas patas traseiras, e que relinchava.Surpreso, 0 examinador quer sonda-Io um pouco mais, e the diz:

- Cavalheiro, sendo assim, quer ter a bondade de me falar da batalhade Fontenoy?

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-A hatalha de Fontenoy? Mortos! POI' toda parte ... Eferidos!Uma porfao deles, um horror .

a exami~ador, interessado, diz: - Mas, sera que 0 senhor podeme dar uma zndlcafao mais especifica sohre essa hatalha de Fonte-noy?

--:- Oh! - diz 0 candidato, - um cavalo empinado nas patastraselras, e que relinchava.. Fazendo uma manobra, 0 examinador pede ao candidato que lhetale da batalha de Trafalgar. E ele responde: - Mortos! Uma c '_Ii. ., arm, lcma ... E feridos! As centenas ..,

- Mas, afinal, cavalheiro, 0 senhor nao pode me dizer nadamais especifico sobre essa batalha?

- Um cavalo ...- Desculpe, meu senhor, devo observar que a batalha de Tra-

falgar foi uma batalha naval.- 008! 008! - diz 0 candidato: - para tras, cavalinho!*

a comico, em que consiste ele7 Limitemo-nos, por enquanto, adizer que esta ligado a uma situas;ao dual. E na medida em que 0

candidato esta diante do examinador que se realiza essa justa, na qualcvidentemente as armas SaG radicalmente diferentes, e se gera essealgo que tende a provocar em nos 0 que chamamos de um vivodivertimento. Sera que e a ignorancia do sujeito que nos faz rir? Naocstou certo. abviamente, 0 fato de ele enunciar essas verdades pri-marias sobre 0 que se pode chamaI' de batalha, e que nunca SaG ditas,pelo menos quando se esta fazendo uma prova de historia, justificariaque nos detivessemos nisso par um instante, mas nao podemosenveredar par esse caminho, pois ele nos levaria a perguntas referentesa natureza do comico, e nao sei se teremos oportunidade de entrarnesse assunto, a nao ser para concluir 0 exame do livro de Freud.

Esse livro termina, com efeito, com um capitulo sobre 0 comicono qual e impressionante, de repente, vel' Freud cem pes abaixo desua perspicacia habitual, a ponto de se tratar antes de nos indagarmospar que ele nao tem mais a dizer do que 0 pior dos autores centradosna noS;ao mais elemental' do comico. POl'que ele teria como que serecusado a fazer mais do que isso. Provavelmente, isso nos dara maiarindulgencia para com os nossos cole gas psicanalistas aos quais tambemfalta 0 minimo senso do comico, a ponto de parecer que este estaexcluido do exercfcio da profissao,

Na medida em que participamos, com essa historia, de um efeitovivamente comico, 0 comico concerne a parte preparat6ria, referenteas batalhas, E contra esse pano de fundo que e desferido 0 golpefinal, que faz dela uma historia propriamente espirituosa.

Pes;o-lhes que observem 0 seguinte. Mesmo que voces, alguns devoces, nao sejam muito sensiveis ao que constitui 0 espirito dessahistoria, mesmo assim a espirituosidade esta contida nela, jaz numdeterminado ponto, que 6 a subita saida dos limites da epura, quandoo candidato faz uma coisa quase inverossimil, se nos colocarmos porum instante dentro da orientas;ao de situar essa hist6ria no seio deuma realidade vivida qualquer. Subitamente, 0 sujeito parece esticar-see puxar as redeas. Essa imagem assume ai, num lampejo, um valorquase fobico. Em todo caso, e um instante homologo, segundo nosparece, ao que se pode relatar de divers as experiencias infantls, queVaG desde a fobia a toda sarte de excessos da vida imaginaria, naqual, alias, temos muita dificuldade de penetrar. Nao e raro vermosrelatada na anamnese da vida de um sujeito a atra<;:ao pOl' um cavalogrande, a imagem desse mesmo cavalo saindo das tape<;:arias, ou aentrada desse cavalo num dormitorio onde 0 sujeito se encontra com

a valo~ dessa historia esta, a meu vel', em permitir decompor, creioeu, aqUIlo de que se trata na tirada espirituosa,

Penso que todo 0 carater espirituoso da hist6ria esta em seu~lf~ax. A historia em si nao tem razao alguma para terminar, ja quee sl1nplesI~e~te constituida por essa especie de jogo ou de justa emque os dOlS mterlocutores se op6em, e, alias, pOl' mais que voces aestendam, 0 efeito se produz imediatamente.

Antes do clfmax, 6 uma historia da qual rimos parque e comica.~em .quer~ entrar ~ais a fundo na questao do comico, porque, a esselespelto, Ja se protenu uma parS;ao de barbaridades particularmenteobscuras, ~esde que 0 sr. Bergson fez sobre 0 riso um livro do qualpodemos slmpIesmente dizer que e legiveI.

*A A expressao francesa aqui empregada, Arriere COCOlte', admite diferentes refe-:encIas aluslvas: na terminologia militar, 0 m~'iere remete ao recuo e a retaguarda, pOI sua etImologIa, faz lembrar a expressao vade relro

', que poderia tambem

estar refenda ao examinador, donde a 0p9ao de tradu9ao feita aqui; ja na Iinguaaemnaval, cOITesponde ao substantivo "popa" e pode remeter a ideia do ir em fre"ntede vento em popa; pOl'sua vez, 0 substantivo cocolte, entre outras acep90es, jncJusiv~a de tcrmo dc tratamento afetivo (como" gatinho" ou "fofinho", em portugues),tern na ,hnguagem Infantl! as de "coco" e "cavalinho", esta usada sobretudo naexpressao Hue cocolte!, de incentivo aos cavalos, equivalcnte ao nosso "Upa _vahnhol". (N.E.) , ca

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cinqtienta colegas. 0 desfecho, pOl"tanto, faz-nos participar da subitaemergencia da fantasia significante do cavalo nessa historia.

Essa historia, como quer que voces a chamem, engra~ada oupoctica, certamente merece ser chamada de espirituosa, se, como dizFreud, a soberania nessa materia for a de voces. Podemos, ao mesmotempo, qualifica-Ia como uma anedota. A verdade e que 0 fato de elaconvergir, por seu conteudo, para uma imagem aparentada com umaforma constatada, identificada no nivel dos fenomenos do inconsciente,nao deve surpreender-nos, pOl"tanto.

E isso, alias, que responde pelo valor dessa historia: que seuaspecto seja ta~ claro. E sera que estamos dizendo que isso basta parafazer dela uma tirada espirituosa?

Vejamos decompostos esses dois tempos, que chamarei de suaprepara~ao e seu climax final. Iremos ater-nos a isso? Poderiamosater-nos, nesse caso, ao nivel do que podemos chamar de analisefreudiana do Witz. Vma outra historia qualquer nao criaria maiordificuldade, creio eu, para valorizar esses dois tempos, esses doisaspectos do fenomeno, mas eles saG particularmente destacados nessa.

o que responde pelo carater nao simplesmente poetico ou engra-~ado da coisa, mas propriamente espirituoso, segue precisamente 0

caminho retrogrado ou retroativo do que designamos, em nossoesquema, como 0 passo-do-sentido. E que, por mais fugidio, maisinapreensivcl que seja 0 clfmax dessa hist6ria, mesmo assim ele sedirige para alguma coisa. Articular isso e for~ar urn pouco a situa~aosem duvida, mas, para mostrar sua dire<;:ao, eu preciso faze-Io, apesarde tudo: trata-se da particularidade a que 0 sujeito retorna, com umainsistencia que, em outro contexto, poderia ja nao ser espirituosidade,mas humor - qual seja, 0 cavalo erguido sobre as patas traseiras eque relinchava -, mas talvez esteja realmente nisso, com efeito, 0

verdadeiro tempero da hist6ria.De tudo 0 que integramos de historia em nossa experiencia, nossa

forma<;:ao, nossa cultura, diriamos que essa c a imagem mais essencial.E impossivel darmos tres passos num museu, olharmos os quadrosde batalhas, sem vcr esse cavalo erguido sobre as patas traseiras erelinchando. 0 cavalo entrou na historia da guerra com urn certobrilhantismo. Foi memaravel 0 momenta em que surgiram pessoasaptas a cavalgar esse animal. Isso significou na epoca, por ocasiaoda chegada dos aqueus em suas montarias, urn progresso verdadeiroe enorme. Essas pessoas tiveram, de uma hora para outra, umasuperioridade tMica extraordinaria, comparada ao cavalo atrelado aoscarros - isto atc a guerra de 19 I4, quando 0 cavalo desapareceu,

apagado par outros instrumentos que 0 deixaram praticamente forade uso. Portanto, .da epoca aqucia ate a guerra de 19 I4, 0 cavalo foi,efetivamente, algo de absolutamente essencial nesse intercambio in-ter-humano chamado guerra.

Que por isso ele tenha sido a imagem central de algumas con-cep~6es da historia, que podemos reunir sob a rubrica de historia-ba-talha, e urn fenomeno do qual, uma vez que esse periodo foi ficandopara tras, somos realmente levados a perceber 0 carater significante,que foi sendo decantado confonne progredia a disciplina historica.Afinal de contas, toda uma historia resume-se nessa imagem, que nosparece tola a luz da historieta. A indica~ao de sentido que ela encerraimplica que, afinal, nao ha muita necessidade de nos atormentarmosa respeito das batalhas, nem a de Marengo, nem a de Fontenoy, mastalvez urn pouco mais, justamente, a proposito da de Trafalgar.

N ada disso, e claro, esta na historieta. Nao se trata de extrair delauma sabedoria qualquer acerca do ensino da Hist6ria. Mas, semensinar, ela indica que 0 passo-do-sentido tern 0 sentido de umaredu<;:ao do valor, de uma exarciza<;:ao do elemento fascinante.

Em que senti do atua essa historia? E em que sentido nos satisfaz,nos da prazer?

A introdu<;:ao do significante em nossas significa~6es deixa umamargem que faz com que fiquemos escravos dele. AIguma coisa nosescapa para alem das Iiga~6es que a cadeia significante mantem paranos. 0 simples fato de a monodia repetida desde 0 come~o da historia- isto c, Mortos! Feridos! - nos fazer rir indica bastante bem 0

quanta nos e recusado 0 acesso a realidade, a partir do momento emque penetramos nela pelo vics do significante.

Essa hist6ria, nesta opartunidade, nos servira simplcsmente dereferencial. Freud assinala que, quando se trata da transmissao dochiste e da satisfa<;:ao que ele po de proporcionar, ha sempre trespessoas em jogo. 0 comico po de contentar-se com urn funcionamentoa dois, mas no chiste ha tres. 0 Outro que e 0 segundo fica situ adoem lugares diferentes. Ora ele e 0 segundo da historia, sem quesaibamos ou sequer precisemos saber se e 0 estudante ou 0 exami~ador.Ora e tambem voces, enquanto Ihes conto essa historia.

Com efeito, e preciso que, durante a primeira parte, voces sedeixem ludibriar urn pouco. A historia solicita, inicialmente, suasdiversas simpatias, quer pelo candidato, quer pelo examinador, e Ihesfascina ou Ihes coloca numa atitude de oposi~ao, ainda que, a bemda verdade, 0 que se busca nessa historia nao seja tanto nossa oposi~ao,mas uma certa capta~ao no jogo em que 0 candidato se ve as voltas

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com a examinador, e no qual este ira surpreende-Io. 0 mesmo jogoe igualmente esbor;ado em historias que sao tendenciosas de umaoutra maneira, as de tipo chula au sexual. Na verdade, trata-se menosde afastar a que ha em voces de resistencia au repugnancia do que,ao contrario, de comer;ar a coloca-Io em ar;ao. Longe de extinguir aque po de suscitar objer;oes em voces quando uma boa anedota e chula,alguma coisa, logo no inicio dela, ja Ihes indica que estaremos entrandonesse terreno. Entao, voces se preparam, seja para consentir, seja pararesistir, mas, com certeza, alguma coisa em voces coloca-se no planodual. E assim que voces se deixam apanhar pela vertente prestigio eexibicionismo anunciada pelo registro e pela ordem da historia.

Naturalmente, a que acontece de inesperado no desfecho coloca-sesempre no plano da Iinguagem. A vertente jogo de palavras e levadamuito mais longe aqui, e ate decomposta a tal ponto que vemos, deurn lado, um significante puro - 0 cavalo, no casu - e, de outro,a elemento jogo de significantes, que se apresenta sob a forma de umcliche muito mais diffcil de encontrar, mas sabre a qual fica evidente,ainda assim, que e apenas isso que existe na anedota. 0 que surpreendevoces e a ambigiiidade fundamental, a passagem de um sentido paraoutro, par intermedio de um suparte significante, como indicambastante bem as exemplos que dei anteriormente. Ha um furo ai, quefaz voces chegarem a etapa em que as atinge, como chiste, aquiloque lhes e comunicado.

Como regra geral, voces saG sempre atingidos em outro pontoque nao 0 lugar para onde foi inicialmente atraida e ludibriada suaatenr;ao - ou seu assentimento, ou sua oposir;ao -, e isso, sejamquais forem as efeitos em jogo - efeitos de nonsense, efeitos decomicidade, efeitos de participar;ao licenciosa numa narrativa sexual-mente excitante. Digamos que esse jogo dual nunca C outra coisasenao uma preparar;ao, que permite que se divida em dois polosopostos 0 que sempre ha de imaginario, de refletido, de simpatizantena comunicar;ao, 0 emprego de uma certa tendencia na qual 0 sujeitoe a segunda pessoa. Isso e apenas 0 suparte da anedota. Do mesmomodo, tudo 0 que atrai a atenr;ao do sujeito, tudo 0 que e despertadono nivel de sua consciencia, nao e mais do que a base destinada apermitir a passagem para um outro plano, que sempre se apresentacomo mais ou menos enigmatico. Entao vem a surpresa, e e a partirdai que nos situamos entao no nivel do inconsciente.

Vma vez que aquilo de que se trata esta sempre Iigado aomecanismo como tal da Iinguagem, num plano em que 0 Outro buscae e buscado, em que 0 Outro e tocado, em que 0 Outro e visado, em

que 0 Outro e atingido na tirada espirituosa - como entao definiresse Outro?

Detenhamo-nos par um instante em nosso esquema, para dizer coisasmuito simples e verdades primordiais.

Podemos fazer desse esquema uma grade au uma trama na qualsituar essencialmente, os elementos significantes como tais. QuandotomaI~os as diversas modalidades ou farmas a partir das quais epossIvel estabelecer classificar;oes da tirada espirituosa, s~mos levad.ose enumerar;oes como esta: 0 jogo de palavras, 0 trocadllho propna-mente dito, 0 jogo de palavras por transposir;ao ou deslocamento dosenti do, a tirada espirituosa par transposir;ao au deslocamento dosenti do, a tirada espirituosa pela pequena modificar;ao em uma palavraque basta para esclarecer alga e para fazer sur~~r u~~ dimensaoinesperada. Sejam quais forem os elementos c1assJflcaton~s escolhl-dos, tendemos, com Freud, a reduzi-Ios a termos que se mscrevemno registro do significante. Imaginemos, partanto, uma maquina.

A maquina situa-se em algum lugar em A au M. Recebe da~osque provem dos dois lados. Esta em condir;oes de decompo~ .as ~1~S

de acesso por on de se realizam tanto a formar;ao do termo fal1ullOnanoquanto a passagem do Bezerro de Ouro para a viteJ~ de ar;OU~~le.Suponhamos que seja suficientemente complexa para fazer a analiseexaustiva dos elementos de significante. Sera ela capaz de entendere de autenticar como tal uma tirada espirituosa? De calcular e responderque Isso Ii uma tirada espirituosa? Ou seja, de ratificar a mensagemem relar;ao ao codigo, como convcm para que fiquemos dentro doslimites, pelo menos possiveis, do que se denomina tirada espirituosa?

Essa imagem s6 e produzida aqui a tItulo puramente humoristico,e nem se trata de discuti-la, e evidente. Mas, que significa isso? seraque basta dizer que e preciso termos diante de nos urn homem? Talvezisso seja obvio, a que nos deixaria muito satisfeitos. Dize-lo corres-ponde aproximadamente, em bloco, a experiencia. Mas, dado que paranos existe a inconsciente com seu enigma, homem e uma res postaque precisamos decompor.

Comer;aremos dizendo que e preciso termos diante de nos urnsujeito real. E no sentido, com efeito, na direr;ao de sentido, que.~tirada espirituosa desempenha seu papeJ. Ora, esse sentldo, como Jaindicamos, so pode ser concebido em relar;ao a interar;ao entre urn

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significante e uma necessidadc. Logo, a ausencia da dimensao danecessidade numa maquina cria uma obje<;:ao e um obstaculo a queela possa de algum modo ratificar 0 chiste.

Sera possfvel dizermos, no entanto, que esse sujeito real deve ternecessidades homogeneas as nossas? Nao e for<;:osamente recomen-davel instaurar essa exigencia logo no infcio de nos so percurso. Comefeito, a necessidade nao e designada em parte alguma na tiradaespirituosa. Ao contrario, a tirada espirituosa aponta para a distanciaexistente entre a necessidade e 0 que e posta em jogo num discurso.o que se articula num discurso leva-nos, par isso mesmo, a uma seriede rca~oes que fica a uma distancia infinita do que e a necessidadepropriamente dita.

Eis, pOltanto, uma primeira defini<;:ao: e preciso que esse sujeitoseja um sujeito real. Deus, animal ou homem? Nao temos a menarideia.

o que estou dizendo e tao verdadeiro que as hist6rias do sobre-natural, que nao existem a toa no folclore humano, nao excluem ahip6tese de que se possa ser espirituoso com fada ou diabo, isto e,com um sujeito postulado como tendo em seu real rela<;:6es total mentediferentes das determinadas pel as necessidades humanas. Voces porcerto me dirao que esses seres verbais, de pensamento, de qualquermodo sao mais ou menos urdidos par imagens humanas. Nao discordo,e e disso mesmo que se trata. Com efeito, encontramo-nos entre osdois seguintes termos. Primeiro, lidar com um sujeito real, isto e, umser vivo. Por OLltro lado, que esse ser vivo entenda a linguagem e,mais do que isso, possua um estoque do que e verbal mente trocado- usos, empregos, locu<;:6es, termos -, sem 0 que nao haveria nenhummeio de entrarmos em comunica<;:ao com ele pela linguagem.

o que nos sugere a tirada espirituosa e em que, de certo modo,nos faz tocar?

Lembremos que as imagens apresentam-se na economia humananum estado de desconexao, com uma aparente liberdade entre si, quepermite todas as coalescencias, trocas, condensa<;:6es e deslocamentos,todo esse malabarismo que vemos no princfpio de tantas manifesta<;:6esque constituem, ao mesmo tempo, a riqueza e a heterogeneidade domundo humano em rela<;ao ao real biol6gico. Na perspectiva analftica,muitas vezes inscrevemos essa liberdade das imagens num sistemade referencia que nos leva a considera-Ia condicionada por uma certalesao primaria da inter-rela<;ao entre 0 homem e seu meio, a qualtentamos apontar na prematura<;ao do nascimento, e que faz com queseja atraves da imagem do outro que 0 homem encontre a unifica<;:ao

de seus movimentos, ate os mais elementares. Quer isso venha dafou de outro lugar, 0 certo e que essas imagens, em seu estado deanarquia caracterfstico na ordem humana, na especie humana, saotrabalhadas, tomadas, utilizadas pelo manejo significante. E nessacondi<;:ao que passam para 0 que esta em jogo na tirada espirituosa.

o que esta em jogo na tirada espirituosa sao essas imagens, namedida em que elas se tornaram elementos significantes mais oumenos usuais e mais ou menos ratificados no que chamei de tesourometonfmico. Esse tesouro, 0 Outro 0 detem. Sup6e-se que ele conhe<;aa multiplicidade das combina<;6es significantes, alias absolutamenteabreviadas, elididas, dirfamos ate purificadas quanta a significa<;ao.Todas as impJica<;oes metaf6ricas estao des de sempre empilhadas ecomprimidas na linguagem. Trata-se de tudo 0 que a linguagem trazem si, que se manifesta nos momentos de cria<;ao significativa, e queja esta neJa em estado nao ativo, latente. E isso que invoco na tiradaespirituosa, e isso que procuro despertar no Outro e cujo suporte lheconfio, de certo modo. Trocando em miudos, s6 me dirijo a ele namedida em que suponho ja repousar nele aquilo que fa<;o entrar emjogo em minha tirada espirituosa.

Tomemos um dos exemplos de Freud. Trata-se do dito de umhomem celebre e brilhante da sociedade de Viena, a prop6sito de urnescritor ruim que vinha inundando os jornais com suas produ<;6esinuteis e interminaveis sobre Napoleao e os napoleonistas. Tendo esseescritar uma particularidade ffsica, a de ser ruivo, 0 homem brilhanterotulou-o de rote Fadian, que significa ser ruivo e dizer tolicesinsfpidas - rouquinfilandreux [ru<;o filigranoso], como se traduziuem frances.

o que da 0 tempero dessa hist6ria e a referencia ao fio encarnado,roter Faden, por sua vez uma metafora poctica que, como vocessabem, Goethe tomou emprestada de uma pr<itica da marinha inglesa.Esse fio vermelho, com efeito, permitia reconhecer 0 men or peda<;ode cordame, mesmo roubado, e sobretudo se fosse roubado, das nausde Sua Majestade britanica, na epoca em que a navega~ao i vela faziaurn usa abundante de cOl-dames. 0 fio encarnado autenticava emcarater absoluto a procedencia desse material. Essa metafora e certa-mente mais celebre para os sujeitos german6fonos do que talvez sejapara n6s, mas presumo que urn numero bem grande de voces tenhaouvido falar, pelo menos atraves dessa cita<;ao, e talvez ate sem 0

saber, dessa passagem das Afinidades eletivas. E no jogo entre 0 fiovermelho e 0 personagem filigranoso que diz tolices que se encaixaessa replica, bem ao estilo da epoca, e que ha de ter provocado muitas

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risadas num certo momenta e num certo contexto - 0 qual, certo ouen'ado, chamaremos de cultural. E isso que faz com que uma coisapasse pOl' uma ironia bem-sucedida, par uma tirada espirituosa. E aisso que quero chegar.

No caso, Freud nos diz que, a sombra da tirada espirituosa,satisfez-se uma coisa que e a tendencia agressiva do sujeito. De outromodo, cia nao se manifestaria. Nao seria permitido falar tao grossei-ramente de urn confrade literato. A coisa so e possfvel sob a prote~aoda tirada espirituosa. Essa e apenas uma das facetas da questao, masfica claro que ha uma enorme diferen~a entre proferir urn insulto,pura e simplesmente, e 0 expressar-se nesse registro, pois expressar-senessc registro e recorrer, no Outro, a toda sarte de coisas quesupostamente fazem parte de seu uso, dc seu codigo mais corrcnte.

Foi para Ihes dar a pcrspectiva disso que tomei esse exemplo,extrafdo de urn momento especial da historia da sociedade de Viena.Nesse contcxto, a referencia ao fio cncarnado gocthiano, na verdade,fica imcdiatamente acessfvel a todo 0 mundo e, ate certo ponto,lisonjcia em cada urn 0 desejo de reconhecimento ao se oferecer comourn sfmbolo comum que todos sabem 0 quc c.

Ha ainda uma outra coisa indicada na dire~ao desse chiste, quenao poe em pauta apenas 0 personagem ridicularizado, mas tambemurn valor muito particular, de ordem cultural. Como sublinha Freud,o ensafsta que toma a historia pelo angulo dos acontecimentos tcm 0

habito de introduzir nela temas de fundo, nos quais so faz tornar-semuito visfvel a insuficiencia do autar, a pobrcza dc suas categoriasou ate 0 csgotamento de sua pena. Em suma, no limiar da anedota,divisa-se todo urn estilo filigranado cujas produ~6es atulhavam asrevistas da epoca. Sem duvida, essa dire~ao, bem caracterizada nessechistc, nao se consuma, nao chega a scu tenno, mas e cia que conferea esse dito seu alcance e seu valor.

Eis-nos portanto em condi~ao de dizer que, longe de 0 sujeitodiantc de nos tel' que ser urn vivente real, esse Outro e, essencialmente,urn lugar simbolico.

o Outro e, justamente, 0 lugar do tesouro, digamos, das frasesou ate das ideias feitas sem as quais a tirada espirituosa nao podeadquirir valor e aIcance. Mas, observe-se que, ao mesmo tempo, naoC nele que se visa seja la 0 que far que e precisamente acentuadocomo significa~ao. Ao contrario, esse tesouro comum de categoriasapresenta urn carateI' que podemos chamar de abstrato. Aludo aqui,muito precisamente, aquele elemento de transmissao que faz com quehaja nisso alguma coisa que, de certa maneira, e supra-individual, e

que se liga por uma comunhao absolutamente inegavel a tudo 0 qlle

foi prcparado desde a origem da cultura. Aquilo a que nos dirigimos.ao visar 0 sujeito no plano dos equfvocos do significante, tern, pOlassim dizer, urn carateI' singularmente imortal. E esse, na verdade, 0

outro termo da questao.A questao de saber quem e 0 Outro coloca-se entre dois palos.

Esse Outro, precisamos que ele seja muito real, que seja urn ser vivo,de carne, embara nao seja a sua carne que eu provoco. Mas, por outrolado, hi tambem af algo de quase anonimo, que esta presente naquiloa que me refiro para atingi-Io e para suscitar seu prazer ao mesmotempo que 0 meu.

Qual eo eixo que ha entre os dois, entre esse real e esse simbolico?E a fun~ao do Outro. E cia, propriamente falando, que e posta emjogo. Seguramente, ja falei dela 0 bastante para afirmar que esse Outroe realmente 0 Outro como lugar do significante, mas, desse lugar dosignificante, fa~o surgir tao-somente uma dire~ao de senti do, urnpasso-do-sentido em que esta verdadeiramente, e em ultima instancia,o eixo propulsor.

Podemos dizer que a tirada espirituosa apresenta-se aqui comourn albergue espanhol.* Ou, mais exatamente, trata-se do contrario,pois nos albergues espanhois so e preciso levar a comida, la encon-tramos vinho, ao passo que, aqui, sou eu quem devo trazer 0 vinhoda fala, pois nao 0 encontraria, mesmo que jantasse - imagem maisou menos bufa e comic a - meu adversario.

o vinho da fala esta sempre presente em tudo 0 que digo. Dehabito, a tirada espirituosa faz parte do ambiente em tudo 0 que estoucontando a partir do momento em que falo, pois falo for~osamenteno duplo registro da metonfmia e da metafara. 0 pouco-sentido e 0

passo-do-sentido estao 0 tempo todo se entrecruzando, a maneiracomo se cruzam e descruzam as milhares de navetas de que fala Freudna Traumdeutung. Mas, do mesmo modo, esse vinho da fala habi-tualmente se espalha pela areia. 0 que se produz entre mim e 0 Outro,no momenta da tirada espirituosa, e como uma comunhao toda especialentre 0 pouco-sentido e 0 passo-do-sentido. Sem duvida, cia c mai sespecificamente humanizante do que qualquer outra, mas, se c hlllll:!

* Lacan parece aludir a uma conhecida frase de Andre Maurois, 'I"!' till. 'I"" "( 't'ILI',

leituras parecem albergues espanh6is: nelas s6 se cnconlra :!'IlIdll 'I"" ,;,' In';1 1'''''1hi". (N,E.)

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nizante, e precisamente por partirmos de um nfvel que, dos dois lados,e nao-humano ao extremo.

Se convido 0 Outro para essa comunhao, e pOl'que tenho tantomais necessidade de seu concurso quanta mais ele proprio e 0 va soou 0 Graal. Esse Graal e vazio. 0 que quero dizer e que nao me dirijono Outro a nada de especffico, a nada que nos una numa comunhao,seja ela qual for, que tenda para um acordo qualquer de desejo ou dejulgamento. Trata-se unicamente de uma forma.

Atraves de que se constitui essa forma? Atraves daquilo de quesempre se trata a proposito da tirada espirituosa, e que em Freud echamado de inibi<;oes. Nao e it toa que, na prepara<;ao de minha tiradaespirituosa, evoco alguma coisa que ten de, no Outro, a consolida-Ionuma certa dire<;ao. Isso ainda nao passa de uma casca em rela<;ao aalgo de mais profundo, que esUi ligado ao estoque de metonfmias semo qual nao posso, nessa ordem, comunicar ao Outro absolutamentenada.

Em outras palavras, para que minha tirada espirituosa fa<;a 0 Outrorir, e preciso, como diz Bergson em algum lugar - e essa e a unicacoisa boa que existe em 0 riso -, que ele seja da paroquia.

Que quer dizer isso? 0 proprio termo paroquia nao e mau paranos ajudar a progredir na compreensao daquilo de que se trata. Naosei se voces conhecem a origem da palavra paroquia. E bem singular,mas, desde 0 momenta em que come<;aram a se debru<;ar sobre ela,os etimologistas nunca conseguiram saber por qual milagre uma coisaque no come<;o era parodia, isto e, aquelas pessoas que nao eram decasa, ou seja, da casa da terra, aquelas que vinham de um outromundo, que tinham suas rafzes em outro mundo - os cristaos, paraciUi-Ios nominalmente, pois 0 termo surgiu com 0 cristianismo -,metaforizou-se, por assim dizer, num outro termo, 0 qual inscreveuseu elemento significante num khi que e encontrado na parrocchiaitaliana, a saber, 0 napoxoc; em grego, isto e, 0 provedor, 0 intendentea quem os funcionarios do Imperio sabiam que tinham de se dirigirpara que Ihes fosse proporcionado quase tudo 0 que um funcionariodo Imperio podia desejar - e, naqueles tempos tao aben<;oados dapaz romana, isso podia ser um bocado.

Eis-nos, pois, no nfvel designado por esse ambfguo termo paro-quia, que destaca bem a limita<;ao do campo em que funciona umatirada espirituosa. Voces estao venda que nem todas as tiradas espi-rituosas surtem 0 mesmo efeito em toda parte e em todas as ocasioes,uma vez que a do fio vermelho produziu em voces apenas um efeito

fraco, comparado it anedota do candidato de ~a pouco. Do modo comovoces se constituem como publico, era perfeltamente natural que umacoisa tao da paroquia quanto 0 baccalaureat, ou o.utro exame qualquer,Fosse apropriada para servir de continente ao que tmha ~e ser velculad_o,isto e, uma dire<;ao de sentido. Sem duvida, na medlda em que naoatinge nenhum, essa dire<;ao e apenas a distancia que se.mpre penna-nece entre qualquer sentido realizado e 0 que eu podena chamar deum ideal de pleno-sentido. .

Vou acrescentar mais um jogo de palavras. A manelra como seconstitui esse Outro, no plano da tirada espirituosa, e 0 que c~nhecem.osatraves do uso de Freud, que ele chama de censura e que dlz respeltoao sentido*. 0 Outro constitui-se como um filtro que poe em ordeme cria obstaculos naquilo que pode ser aceito ou simples mente ouvido.Ha coisas que nao podem ser ouvidas, ou que de habito nunca maisSaD ouvidas, e que 0 chiste procura tornar audfveis em algum lugar,como um eco. Para torna-Ias audfveis num eco, ele se serve, Justa-mente, daquilo que Ihes cria obstaculos, como uma c.on~avidaderefletora qualquer. Trata-se ja da metafora a que cheg~~1 ha pouco,em cujo interior alguma coisa resiste, alguma COlsa que. e. mtelramentefeita de uma serie de cristaliza<;oes imaginarias no sUJelto.

Nao ficamos surpresos ao vcr as coisas se produzirem nes~e.nfvel.o pequeno outro, para chamar as coisas POl: seu nome, p~rt:Cl~a dapossibilidade da tirada espirituosa, mas e no mt~nor .da ~'eslstencIa dosujeito - que, por esta vez, e para nos isso e mUlto mstru.tIVO, ~uprocuro suscitar - que se fara ouvir algo que repercute mUlto malslonge, e que faz com que a tirada espirituosa va ressoar dlretamenteno inconsciente.

* Vale lembrar que 0 jogo de palavras a que Lacan se refere _ap6ia-s~ no primeirofonema de censure e de sens, utilizados aqui par Lacan, e que sao homofonos. (N.E.)

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Insisti, na ultima vez, no processo de imobiliza<;ao do Outro e dalorma<;ao do que,chamei de Graal vazio, Isso e 0 que e representado,em Freud, no que ele chama defachada do chiste. Ela desvia a aten<;aodo Outro do caminho pOl' onde passani 0 chiste, fixa a inibi<;ao emalgum lugar, a fim de deixar livre, num outro ponto, 0 caminho poronde pass ani a fala espirituosa.

Eis como mais ou menos se esquematizariam as coisas. Tra<;a-seo caminho da fala, aqui condensada como mensagem ao Outro a queme dirigida. E 0 embara<;o, 0 vazio, a falha da mensagem que eautenticado pelo Outro como chiste, mas com isso restitufdo ao propriosujeito, como constituindo 0 complemento indispensavel do desejocaracterfstico do chiste.

Eis, portanto, 0 esquema que habitualmente nos serve. Aqui estaoo Outro, a mensagem, 0 [Eu], 0 objeto metonfmico. Sao pontos jatranspostos, que suporemos conhecidos par voces. 0 Outro e indis-pensavel para 0 fechamento do circuito que 0 discurso constitui, namedida em que ele chega a mensagem em condi<;oes de satisfazer,ao menos simbolicamente, 0 carateI' fundamentalmente insoluvel dademanda como tal. Esse circuito e a autentica<;ao, pelo Outro, daquiloque, em suma, e uma alusao ao fato de que nada da demanda, desdeque 0 homem entrou no mundo simbolico, pode ser alcan<;adQ, a naoser pOl' uma sucessao infinita de passos-de-sentido. 0 homem, novoAquiles perseguindo uma outra tartaruga, esta fadado, em razao dacapta<;ao de seu desejo no mecanismo da linguagem, a essa aproxi-ma<;ao infinita e nunca satisfeita, ligada ao proprio mecanismo dodesejo, que chamaremos simplesmente de discursividade.

Apesar desse Outro ser essencial para 0 ultimo passo simbolica-mente satisfatorio, constituindo urn momenta instantaneo - 0 dochiste ao ser veiculado -, convem, mesmo assim, nos lembrarmosde que esse Outro tambem existe. Existe it maneira daquele a quemchamamos sujeito, que circula em algllm lugar como 0 jogo de passaro anel. Nao vao voces imaginal' que 0 sujeito, a princfpio, e anecessidade - a necessidade ainda nao C 0 sujeito. Entao, onde estaele? Talvez falemos mais desse assunto hoje.

o sujeito e todo 0 sistema, e talvez algo que se conclua nessesistema. 0 Outro e a mesma coisa, e construfdo da mesma maneira,e e justamente pOl' isso que pode retomar meu discurso.

Vou deparar com algumas condi<;oes especiais que nao devemdeixar de ser representaveis aqui, se mell esquema pode servir paraalguma coisa. Essas condi<;oes san aquelas que mencionamos da ultima

A duplicariio do grafoo riso, fe/Jomeno imaginarioUm Outro todo seuo retorno ao gozo em Arist6faneso amor c6mico

Da ultima vez falei do Gr'aal V ~ -.' , oces san 0 GraalconsolIdando atraves de toda sorte de at" ' ' que eu you'oe' " " '~ H,:amentos de suas contradr-<; s, no mtUlto de faze-Ios autenticarem em ,',' ., , espurto, se assrm ousome expressar, que Ihes estou enviando a mensagem A ~ . dG 'a I . . essencra esse

r a consrste em suas proprias falhas,, Como sempre convem retomar urn POllCO,ate mesmo ao que foi

mars blehmco.mpreen~i~o, you tratar de materializar no quadro-negroo que es drsse da ultIma vez.

00 q~e Ihes disse da vez passada concernia ao Outro esse bendI'touho que na c '- ', omuDlca<;ao do Witz vira com I t dmane' , , h' .~.' pear - e certa

d ,llap pleenc el. - a hiancia constitufda pel.a insolubilidade do~sleJo. o~em~s dizer que 0 Witz restitui 0 gozo it demanda essen-

CIa mente msatisferta sob 0 du 10 I" .d

' P aspecto, alas Identico da sUI'presae 0 prazer - ' d 'o plazer a surpresa e a surpresa do prazer.

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vez. Observem bem as direyoes dos segmentos. Aqui estao os vetoresque partem do [Eu] para 0 objeto e para 0 Outro, e os veto res quepartem da mensagem para 0 Outra e para 0 objeto, pois hi umaenorme relayao de simetria entre a mensagem e 0 [Eu], e a mesmatambem centrffuga, e a mesma centrfpeta entre 0 Outra como tal,como lugar do tesouro das metonfmias, e esse proprio objeto meto-nfmico, tal como c constitufdo no sistema das metonfmias.

o que lhes expliquei, na ultima vez, a proposito do que chameide preparayao do chiste'l As vezes, a melhor coisa c nao faze-la -mas c clara que nao c ruim fazc-la. Basta nos lembrarmos do queaconteceu quando nao a fiz - aconteceu que voces ficaram sem ayao.Uma coisa tao simples quanta 0 At, que um dia lhes contei, parecetel' deixado algumas pessoas desconcertadas. Se eu tivesse feito umapreparayao sobre as atitudes recfpracas do condezinho e da mOyabem-educada, talvez voces houvessem fieado suficientemente anima-dos para que 0 At superasse mais facilmente alguma coisa. Comoestavam prestando muita atenyao, uma parte de voces levou algumtempo para compreender. Inversamente, a historia do cavalo da ultimavez os divertiu com muito mais facilidade, porque comporta umalonga preparayao e, enquanto voces se deliciavam com as afirmayoesdo examinando, que lhes pareciam marcadas pela poderasa insolenciaque mora no fundo da ignorancia, descobriram-se bastante dispostosa vcr entrar 0 cavalo voador que desfecha a anedota e que the di seuverdadeira tempera.

o que praduzo com essa preparayao e 0 Outra. Com certeza, eisso que se chama Hemmung, inibiyao, em Freud. Trata-se simples-mente da oposiyao que e a base fundamental da relayao dual, e que,nesse caso, compos-se de tudo 0 que voces puderam opor de objeyoesao que eu estava apresentando como objeto. Isso e muito natural,voces estavam se colocando em condiyoes de suportar 0 choque, aapraximayao, a pressao dele. 0 que assim se organiza e 0 quehabitualmente chamamos defesa, que e a forya mais elemental'. Ejustamente disso que se trata nesses preludios, que podem ser feitosde mil maneiras. 0 nonsense as vezes vem desempenhar af um papelde preludio, a tftulo de pravocayao que atrai 0 olhar mental para umacerta direyao. Ele e um engodo nessa especie de tourada. As vezes eo comico, outras vezes, 0 obsceno.

Na verdade, trata-se de acomodar 0 Outra a um objeto. Digamosque, em sentido contnirio a metonfmia de meu discurso, trata-se deconseguir uma certa fixayao do Outra como discorrendo, ele proprio,

sobre um certo objeto metonfmico. De certa maneira, ele e qualquerum. Nao hi nenlmma obrigayao de que tenha a menor relayao comminhas proprias inibiyoes. Nao tem importancia, tudo serve, desdeque um certo objeto ocupe 0 Outra nesse momento. Foi isso que lhesexpliquei da vez passada ao lhes falar da consolidayao imaginiria doOutra, que c a posiyao primeira que permite a veiculayao do chiste.

Assim, e preciso colocarmos ern nosso esquema 0 homologo darelayao com 0 objeto no nfvel do Outra, que tomamos aqui comosujeito, razao pOI' que lhes fayo um Dutro sistema, que you desenharem azul. Trayo 0 homologo da linha que chamamos ~-~', relayao do[Eu] com 0 objeto metonfmico no primeira sujeito. Assim indicamosa superposiyao do sistema do Outra sujeito em relayao ao sistema doprimeira.

Para que 0 Outra tome lugar do sujeito e assuma a mensagemque autentica 0 chiste como tal, trata-se de que este revezamento sejatomado no proprio sistema de significantes do Outro, isto C, se assimposso dizer, de que 0 problema the seja remetido, de tal sorte que elemesmo, em seu sistema, autentique a mensagem como chisle.

Em outras palavras, meu ya pressupoe inscrito um y' a' par·aleJo,o que e exatamente colocado no esquema. Uma necessidade inerenteao chiste the di uma perspectiva teorica de reproduyao ad infinitum,dado que a boa anedota e feita para ser contada, que ela so ficacompIcta depois de contada e que os outras riram. 0 proprio prazerde conti-l a inclui 0 fato de os outros poderem, por sua vez, coloca-rem-na a prava com outras mais.

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Se nao ha nenhuma rela~ao necessana entre 0 que devo evocarno Outro de capta~ao metonfmica para dar livre passagem ao ditoespirituoso e este dito, por Olltro lado existe necessariamente umarela~ao entre os sistemas dos dois sujeitos. Isso 6 suficientementeevidenciado no esquema pela rela~ao que ha entre a cadeia significante,tal como esta se organiza no Outro - a que vai de 8'" para 8" _,e a que vai de 8' para 8. Deve haver uma rela~ao, e foi isso queexpressei da ultima vez, ao dizer que 0 Outro tern de ser da par6quia.Nao e suficiente que ele compreenda 0 frances em linhas gerais,embora essa ja seja uma primeira maneira de ser da par6quia. Se fa~ourn chiste em frances, para que ele se transmita e tenha sucesso, hamuitas outras coisas supostamente conhecidas de que 0 Outro deveparticipar.

POItanto, af estao, representadas no esquema, duas condi~6es quepoderfamos escrever assim: 0 ~" ~'" designa uma certa inibi~aoprovocada no Outro. Fa~o af urn sinal, composto de duas pequenassetas em sentido inverso uma it outra, que sao iguais e de sentidooposto a minha metonfmia, isto 6, a ya. Inversamente, ha uma especiede paralelismo entre y a e y' a', 0 que pode ser expresso dizendo-seque ya pode encontrar sua homologa~ao, 0 que assinalamos colocandourn acento entre parenteses no a' y'. 0 Outro 0 homologa comomensagem e 0 autentica como chiste.

Af esUi 0 que pelo menos tern a vantagem de fixar as ideias,visualizando-as, uma vez que esse e urn dos 6rgaos mentais maisfamiliares ao intelcctual. Isso lhes permite visualizar 0 que eu quisdizer quando lhes falei, da ultima vez, das condi~6es subjetivas dosucesso do chiste, ou seja, do que ele exige de outro imaginario paraque, no interior do corte representado pOl' esse Olltro imaginario, 0

Outro simbolico 0 entenda.Deixo aos espfritos engenhosos 0 cuidado de aproximar isso do

que, curiosamente, pude outrora dizer numa metafora, quando estavaocupado sobretudo com imagens imaginarias e com as condi~6es deaparecimento da unidade imaginaria numa certa retlexao organica.Eu devia mesmo tel' uma razao para me servir quase do mesmoesquema formal quando utilizei a imagem do espelho concavo aprop6sito do narcisismo. Mas nao vamos enveredar por uma aproxi-ma~ao que so poderia ser for~ada, ainda que possa ser sugestiva.

Faremos agora urn pequeno uso suplementar desse esquema, pois,qualquer que seja 0 interesse de eu lhes haver assim relembrado 0

senti do do que falei da ultima vez, isso seria muito pouco se nao noslevasse mais longe.

o esquema inicial de que nos servimos desde 0 come~o do anatransforma-se,. portanto, atraves do desenvolvimento que damos itformula do Outro como sujeito. Temos aqui y a para 0 sujeito e ~W para a rela~ao com 0 objeto metonfmico. Mais adiante, no escalaoseguinte, reproduz-se essa mesma disposi~ao, que faz com que 0 Outrotambem tenha uma rela~ao com 0 objeto metonfmico, W' W", enquantoy a se transforma, aqui, em y' a', e assim sucessivamente, adinfinitum. 0 ultimo arco, aquele pelo qual passa 0 relorno da neces-sidade para a satisfa~ao indefinidamente adiada, [elll de ser feitoatraves de todo 0 cireuito dos Outros, antes de voltar, aqui, para seuponto terminal no sujeito.

Logo logo vamos reutilizar esse esqucm;1. Ikll'1l h;llllo-nos. pOI' ora,num caso particular que Freud exalllina logo dcpois dc haver expostosua analise dos mecanismos do chiste. dos quais isto c apenas 0

comentario. Freud fala do que chama dc IlH')hcis sociais do chiste, edaf segue para 0 problema do cClInico.

E 0 que tentaremos abordar hojc. Sl'm csgotar 0 assun[o. Freuddiz expressamente que vai abord:l-Io apcllas pl'lo prisma do chiste,pois esse e urn campo realmente vasto dem;lis para quc the sejapossfvel sequel' pensar em enveredar pur e1c, ]lclo mcnos a partir desua experiencia. Para se introduzir na an:il ise do CClIllico. Freud colocaem primeiro plano aquilo que, no c6mico, mais se ;Iproxima do chiste.E notavel que, com a seguran~a de orientac;;[o c dc plTtincncia quelhe e propria, 0 que ele nos apresenta como scndo 0 mais proximodo chiste e justamente aquilo que, it primeira vista, poderia parecermais distante do espirituoso, ou seja, 0 ingenuo [Il(/ij].

o ingenuo, diz Freud, fundamenta-se na ignorancia, e, como enatural, ell' fornece exemplos retirados das crianc;as. hi Ihes evoqueiaqui a cena das crian~as que montaram, para uso dos adultos, todauma historieta muito divertida. Urn casal se separa, indo 0 maridoem busca da fortuna. Ao cabo de alguns anos ele volta, havendologrado alcan~ar a riqueza, e a mulher 0 acolhe em seu retorno, di-zendo-lhe: Como voce ve, eu me portei magnijlcamente, tambem naoperdi tempo durante sua ausencia - e the abre a cortina para umafileira de dez bonecas. E como uma pequena cena de marionetes. Ascrian~as ficam at6nitas, ou talvez simplesmente surpresas - e pro-

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vavel que saibam mais do que se sup6e - com 0 riso que explodeentre os adultos do publico.

Esse e 0 tipo do chiste ingenuo, tal como nos e apresentado porFreud. Ele 0 apresenta ainda sob uma forma tecnicamente maisproxima dos procedimentos da Iinguagem, na historia da menina quesugere a seu irmao, que esta sentindo urn pouco de dor na barriga,que tome urn Bubizin. Tendo ouvido falar num remedio Medizin, eja que Miidi designa as meninas e Bubi os meninos, ela acha que, seexiste urn Medizin para as meninas, deve haver tambem urn Bubizinpara os meninos. Essa e mais uma historia que, desde que disponhamosda chave, ou seja, que compreendamos 0 alemao, pode ser facilmenteapresentada no plano do espirituoso.

Embora a referencia a crian<;a nao seja despropositada, 0 essencialnao esta nisso, porem num tra<;o que nao diremos ser 0 da ignorancia,mas que Freud define de maneira muito especial, e cujo caraterfacilmente supletivo ele assinala no mecanismo do chiste. 0 que nosagrada nisso, diz Freud, e que desempenha precisamente 0 mesmopapel do que chamei ha pouco de fascina<;ao ou capta<;ao metonfmica,e sentirmos que nao ha inibi<;ao alguma em quem fala. E essadesinibi<;ao que nos permite transmitir ao outro a quem contamos ahistoria, e que por sua vez ja esta fascinado com essa falta de inibi<;ao,a essencia do chiste, ou seja, esse para-alem que ele evoca. Aqui, nacrian<;a, nos casos que acabamos de evocar, 0 essencial nao consistena gra<;a, mas na evoca<;ao daquele tempo da infancia em que a rela<;aocom a Iinguagem e tao fntima que par isso nos evoca diretamente arela<;ao da linguagem com 0 desejo que constitui a satisfa<;ao propriaao chiste.

Tomaremos urn outro exemplo retirado de urn adulto, que creioja haver citado num dado momento. Urn de meus pacientes, que emgeral nao se distinguia por circunvolu<;6es muito elaboradas, estavame contando uma daquelas historias meio tristes, como lhe sucediacom bastante freqiiencia. Havia marcado urn encontro com umamocinha que conhecera em suas peregrina<;6es e, como muitas vezesIhe acontecia, a dita mo<;a simplesmente Ihe impingira gato por lebre,dando-lhe urn bolo. E ele concluiu sua historia: -- Entendi muitobem, mais uma vez, que ela era uma mulher de niio-receber.*

Ele nao estava fazendo urn chiste; aehava que essa era umaexpressao conhecida, e estava dizendo uma eoisa bastante inocente,que tern, no entanto, seu carater picante, e satisfaz em nos algo quevai muito alcm da apreensao comic a do personagem em sua decep<;ao.

Embora essa historia evoque em n6s, 0 que c muito duvidoso,uma sensa<;ao de superioridade, certamente cia c bem inferior nesseaspecto. Aludo aqui a urn dos meeanismos que com freqiiencia setern promovido, indevidamente, a categoria de princfpio do fenamenodo camico, qual seja, 0 sentimento de ser superior ao outro. Isso eabsolutamente criticavel. Embara tenha sido urn homem cultfssimoquem tentou esbo<;ar 0 mecanismo camico nesse senti do, ou seja,Lipps, e inteiramente refutavel que resida af 0 prazer essencial docomico. Se ha alguem, nessa situa<;ao, que preserva toda a suasuperioridade, trata-se mesmo do nos so personagem, que en contranessa oportunidade urn material para atribuir urn motivo a umadecep<;ao que esta muito longe de atingir sua inabalavel autoconfian<;a.Se alguma superioridade se esbo<;a a proposito dessa historia, isso ebasicamente urn engodo. Tudo os envolve por urn momenta namiragem constitufda pela maneira como voces situam, ou como situampara si mesmos, aquele que conta a historia, mas 0 que acontece vaimuito alem disso.

Com efeito, por tras da expressao mulher de niio-receber, 0 quese desenha e 0 carater fundamental mente decepcionante, em si mesmo,de qualquer aproxima<;ao do desejo, muito alem da satisfa<;ao de umadada aproxima<;ao particular. 0 que nos diverte nisso e a satisfa<;aoencontrada em sua propria decep<;ao pelo sujeito que deixou escaparesse dito inocente. Sua decep<;ao, ela a julga suficientemente explicadapor uma locu<;ao que acredita ser a locu<;ao aceita, a metonfmia japronta para essas ocasi6es. Sua decep<;ao, em outras palavras, ele aencontra na cartola, sob a forma do coelho de pelucia que ele presumeser 0 coelho vivo da explica<;ao valida, e que e, na verdade, totalmenteimaginario. Esse coelho, que conslitui sua propria decep<;ao, ele estarasempre pronto a ve-Io apresentar-se de novo, inabalavel e con stante,sem se deixar afetar de nenhum outro modo, toda vez que se aproximardo objeto de sua miragem.

Voces estao vendo, portanto, que a lirada espirituosa do ignoranteou do ingenuo, daquele de quem tOlllO a palavra para fa/,er dela urnehiste, desta vez esta toda aqui, pOl' assim di/.er, no nlvel do Outro.Nao preciso mais provocar no Outro Ilada que constitua 0 corte solido,pois ele ja me e total mente dado pm aquele de cuja boea recolho 0

dito precioso cuja comunica<;ao cOllstituira urn chiste, eo qual elevo,

* No original, Unefemme de non-recevoir, que busca a assoniincia com a expressaofin de-non-recevnir, extrafda da linguagem jurfdica francesa (em que significa recusade uma intima<;:ao par improcedencia da queixa) e usada na linguagem corrente como senti do de recusa ou recusa peremptoria. (N.E).

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com isso, a dignidade de palavra-mestra atraves de minha historia.Em suma, toda a dialetica do chiste ingenuo cabe nesta parte azul doesquema. 0 que se trata de provocar no Outro, na ordem imaginaria,para que 0 chiste em sua forma comum se transmita e seja aceito, eaqui total mente constitufdo por sua ingenuidade, sua ignorancia, atesua enfatuac,;ao. E basta apenas que eu a aborde hoje para fazer essamancada passar a categoria de chiste, fazendo com que ela sejahomologada pelo terceiro, pelo grande Outro a quem a comunico.

A promoc,;ao do outro imaginario nessa analise das metonfmias,na satisfac,;ao pura e simples que ele en contra na linguagem, e queIhe serve para nem sequer perceber 0 quanta seu desejo e ludibriado,introduz-nos - e e por isso que Freud 0 coloca na articula<;ao dochiste com 0 comico - na dimensao do comico.

Nesse ponto, nao chegamos ao fim de nossos tormentos, porque,na verdade, quanta a essa questao do comico, nao faltou quemintroduzisse teorias que sao todas mais ou menos insatisfatorias, ecertamente nao e inutil nos perguntarmos por que elas 0 sao, e tambemporque foram promovidas. Elas foram apresentadas sob toda sorte deformas, as quais nao ha meio de soletrar aqui, mas sua adic,;ao, sua

. sucessao, seu historico, como se costuma dizer, nao nos colocaria napista de nada de fundamental. Ultrapassemos tudo isso para dizer que,em todos esses casos, a questao do comico e eludida toda vez que seprocura aborda-la, nem digo resolve-la, apenas no plano psicologico.

No plano psicologico, tanto a espirituosidade quanta 0 comicosao, evidentemente, faceis de reunir na categoria do risfvel, daquiloque provoca 0 riso. Ora, voces nao podem deixar de se espantar como fato de que, mesmo pontuando que 0 chiste e mais ou menosacolhido, assimilado, em virtude de voces 0 sancionarem com urnriso discreto, ou pelo menos com urn sorriso, nao abordei atc agoraa questao do riso.

A questao do riso se acha longe de estar resolvida. Todos secontentam em fazer dele uma caracterfstica essencial do que aconteceno espirituoso e tambem no comico, mas, quando se trata de fazer 0

ajuste com seu carater expressivo, ou ate, simplesmente, de conotara emo<;ao a que poderia corresponder esse fenomeno - do qual sepo de dizer, ainda que isso nao seja absolutamente cerro, que e propriod? h.omem -, geralmente entramos em coisas extremamente deplo-ravelS. Alguns, a gente percebe, procuram se aproximar, ro<;ando-ade leve, da rela<;ao do riso com os fenomenos que Ihe seriam corres-pondentes de maneira analogica. Mas ate os que disseram a esserespeito as coisas que parecem mais sustentaveis ou mais prudentes

so fazem assinalar, no fenomeno do riso, 0 que ele pode deixar detra<;os oseilatorios. Para Kant, 0 riso e urn movimento espasmodicocom uma certa oscilac.;ao mental, que seria a da passagem de umalensao a sua reduc.;ao a zero, uma oscilac.;ao entre uma tensao despertadae sua queda brusca diante da ausencia de algo que supostamentedeveria Ihe opor resistencia, apos seu despertar da tensao. Do mesmomodo, a brusca passagem de urn conceito para sua contradic.;aomanifesta-se num psicologo do seculo passado, Leon Dumont, queDumas menciona em seu artigo sobre a psicologia do riso - artigobem ao estilo de Dumas, muito fino e suti!, com cuja redac,;ao essehomem feliz nao se esfalfou, mas que merece ser lido pOl'que, mesmosem ter-se esfalfado, ele traz elementos muito interessantes.

Em suma, a questao do riso ultrapassa muito amplamente tantoa do espirituoso quanta a do comico.

Nao e raro vcr evocadas as variedades do fenomeno. Existe asimples comunicac.;ao do riso, 0 riso do riso. Ha 0 riso ligado ao fatode que nao convem rir. 0 riso incontido das crianc.;as em certassiluac.;5es tambem merece reter a atenc.;ao. Ha ainda urn riso de angusliae ate 0 da ameac.;a iminente, 0 riso nervoso da vftima que de repenlese sente ameac.;ada pOl' algo que ullrapassa ate mesmo os limites desua expectaliva, 0 riso do desespero. E ha ate 0 riso do lulo do qualse e bruscamente informado. Deixo para la, porque tralar de todasessas formas do riso nao e nosso assunto, nem e nos so objetivo faze I'uma teoria do riso.

Apenas pontuarei, de passagem, que nada esla mais longe desatisfazer-nos do que a teoria de Bergson, do mecanico que surge nomeio da vida. Seu discurso sobre 0 riso retoma, de maneira condensadae esquematica, 0 mito da harmonia vital, do ela vital, caraclerizadopor sua pretensa eterna novidade, sua criac.;ao permanenle. Nao sepode deixar de perceber 0 caraler extravaganle disso quando se Ieque uma das caracterfsticas do mecanico, como oposlO ao vilal, seriaseu carateI' repetitivo, como se a vida nao nos apresenlasse nenhumfenomeno de repetic.;ao, como se nao mijassemos lotios os dias damesma maneira, como se nao dormfssemos lotios os tlias tla mesmamaneira, como se reinventassemos 0 amor a catla vel. que lrepassemos.Hi realmente algo incrfvel nisso. A explicac,;ao pelo mecanieo mani-festa-se, ela mesma, ao longo de to do 0 livro, eomo uma explicac.;aomecanica, ou seja, cai numa estereotipia lamenUivel, que tleixa escaparpol' completo 0 essencial do fenomeno.

Se 0 mecanico fosse realmente 0 que esta na origem do riso, ondeirfamos acabar? Que farfamos dos comenUirios sutilfssimos de Kleist

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sobre as marionetes, que vao totalmente de eneontro ao pretensocarater risfvel e decadente do mecanieo? Ele assinala, com muitapropriedade, que um verdadeiro ideal de grac;:a se realiza com essasmaquininhas, que, ao serem meramente agitadas por alguns pedac;:osde fio, realizam movimentos cujo trac;:ado elegante esui ligado aconstancia do centro de gravidade de sua curvatura, bastando apenasque elas sejam um pouquinho bem construfdas, quer dizer, segundoas caracterfsticas estritas das articulac;:6es humanas. Nenhum bailarino,diz ele, e capaz de atingir a grac;:a de uma marionete movimentadacom destreza.

Deixemos de lado a teoria bergsoniana, depois de assinalar sim-plesmente a que ponto cia negligencia as apreens6es mais elementaresdo mecanismo do riso, antes mesmo que este seja implicado em algotao elaborado quanta 0 espirituoso ou 0 camico. 0 riso, com efeito,toca em tudo 0 que e imitac;:ao, dubie, sosia, mascara, e, se olharmosmais de perto, veremos que nao se trata apenas da mascara, mas dodesmascaramento, e isso conforme momentos que justificam que nosdetenhamos neles. Voces se aproximam de uma crianc;:a com 0 rostocoberto pOl' uma mascara e ela ri de um modo tenso, nervoso. Voceschegam um pouquinho mais pelto, e comec;:a alguma coisa que e umamanifestac;:ao de angustia. Voces tiram a mascara, a crianc;:a ri. Masse embaixo dessa mascara voces tiverem outra, cia nao rira de jeitonenhum.

Quero apenas indicar que aqui se faz necessario um estudo, 0

qual so pode ser experimental, mas que so podera se-Io se comec;:armosa tel' uma certa ideia do sentido em que deve ser dirigido. Enfim, essefenameno, como outros que eu poderia trazer para corroborar minhaafirmac;:ao, se fosse minha intenc;:ao enfatiza-Ia, mostra-nos que hauma relac;:ao muito intensa, muito estreita, entre os fenamenos do risoe a func;:ao do imaginario no homem.

A imagem tem, como tal, um carater cativante, que vai alem dosmecanismos instintivos que ihe sao correspondentes, como evidenciaa exibic;:ao, seja ela sexual ou de comb ate. A isso vem somar-se, nohomem, um toque suplementar, que se prende ao fato de que a imagemdo outro, para ele, esta muito profundamente ligada a tensao de queeu falava ha pouco, e que e sempre evocada pelo objeto ao qual sepresta atenc;:ao, 0 que leva a que ele seja colocado a uma eerta distancia,eonotada de desejo ou de hostilidade. Nos 0 relacionamos com aambigtiidade que esta na propria base da formac;:ao do eu e que fazcom que sua unidade fique fora dele mesmo, com que seja em relac;:ao

a seu semelhante que ele se erija, e com que de encontre aguclaunidade de defesa que e a de seu ser como ser narcfsico.

E nesse campo que 0 fenameno do riso deve ser situado. E afque se produzem essas quedas de tensao a que os autores atribuem 0

desencadear instanUlneo do riso. Se alguem nos faz rir pOl' simples-mente levar um tombo, e em func;:ao de sua imagem mais ou menospomposa, a qual, antes disso, nem sequel' prestavamos muita atenc;:ao.Os fenamenos de status e de prestfgio sao a tal ponto a moeda correntede nossa experiencia vivida que nem sequel' percebemos sua relevan-cia. 0 riso eclode na medida em que em nossa imaginac;:ao 0 perso-nagem imaginario continua sua marcha enquanto 0 que 0 sustenta dereal fica ali, plantado e esborrachado no chao. Trata-se sempre deuma libertac;:ao da imagem. Entendam isso nos dois sentidos dessetermo ambfguo - por um lado, alguma coisa e liberada da coerc;:a?da imagem, e pOl' outro, a imagem tambem vai passear sozinha. Epor isso que ha qualquer coisa de camico no pato cuja cabe<;a ecortada e que ainda da mais alguns passos no patio.

E pOl' essa razao que 0 camico, em algum ponto, entra em conexaocom 0 risfvel. Nos 0 situamos no nfvel da direc;:ao [Eu]-objeto, p P'ou, P" p'''. Certamente, na medidaem que 0 imaginario esta implicadoem algum lugar na relac;:ao com 0 simbolico, e nessa medida que seen contra, num nfvel mais elevado, e que nos interessa infinitamentemais do que 0 conjunto dos fenamenos do prazer, 0 riso comoconotac;:ao e acompanhamento do camico.

Passemos ao camico.

Para introduzir hoje a noc;:ao do camico, yOU partir novamente dahistoria do Bezerro de Ouro.

o dito de Soul ie, ao falar do Bezerro de Ouro a proposito dobanqueiro - que ja e quase um chiste, ou pelo menos uma metafora-, encontra em Heine est a resposta: Para um bezerro, ele me parecehaver passado um pouco da idade. Observem que, se Heine houvessedito isso ao pe da letra, e porque nao teria entendido nada, e seriacomo meu ignorante de ha pouco, que falou da mulher-de-recusarfemme de non-recevoir]. Nesse caso, sua replica seria camica.

E justamente isso que constitui os subterraneos desse chiste. Areplica de Heine, com efeito, e como que uma recusa categorica [fin

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de non-recevoir], remete Soulie a sua propria coloca<;ao, deixa-o numaposis;ao meio apertada, se assim ouso falar. Afinal, Soulie nao dissenada de muito engra<;ado e Heine 0 bota no chinelo, ao mostrar queaquilo po de ser feito de outra maneira. Ele levanta urn objeto meto-nfmico diferente do primeiro bezerro. Nisso, joga com 0 plano daoposi<;ao comica.

E impossfvel nao perceber desde logo uma diferen<;a essencial.Nos so apreendemos 0 comico por ocasiao de urn Witz em estadofugidio, num tra<;o, numa palavra, numa querela - mas 0 comico vaimuito alem disso. Vma tirada espirituosa, nao c preciso urn contatomuito demorado para que ela se transmita, ao passo que 0 comiconao se contenta com urn puro e simples encontro relampago. Dirijo-meaqui a voces todos, seja qual for sua situa<;ao atual, sem saber deonde voces vem, nem tampouco quem sao; ora, para haver rela<;6escomicas entre nos, seria necessaria uma rela<;ao que nos implicassemuito mais uns com os outros pessoalmente. E isso que voces ja veemesbos;ar-se na relas;ao de Soulie com Heine, e que eoncerne a urnmecanismo de sedu<;ao, pois a resposta de Heine, afinal, meio querepelc alguma coisa de Soulie.

Em suma, para que haja possibilidade do comico, e preciso quea rela<;ao da demanda com a satisfas;ao nao se inscreva num momentainstantaneo, mas numa dimensao que Ihe de sua estabilidade e cons-tancia, seu caminho na rela<;ao com urn outro determinado. Ora, seencontramos nas subjacencias do chiste a estrutura essencial da de-manda que faz com que, enquanto retomada pelo Outro, ela permane<;aessencialmente insatisfeita, ainda assim ha uma solu<;ao, a solu<;aofundamental, aquela que todos os seres humanos procuram desde 0

come<;o da vida ate 0 fim da existencia. Vma vez que tudo dependedo Outro, a solus;ao c ter urn Outro so para si. E a isso que se chamaamor. Na dialetica do desejo, trata-se de ter urn Outro todo seu.

Ocampo da fala plena, tal como 0 evoquei para voces no passado,e definido neste esquema pelas proprias condi<;6es em que acabamosde ver que pode e deve realizar-se algo que seja equivalente a satisfa<;aodo desejo. Temos uma indica<;ao de que ele so pode ser satisfeito nopara-alem da fala. 0 la<;o que une 0 Outro ao [Eu], ao objetometonfmico e a mensagem define a area onde deve situar-se a falaplena. Da mensagem caraeterfstica que a constitui, dei-Ihes umaimagem atraves do Tu is meu mestre ou Tu is minha mulher. Tu, tumesmo, 0 outro, is minha mulher. E dessa forma, dizia-Ihes eu entao,que 0 homem da 0 exemplo de fala plena na qual se comprometecomo sujeito, na qual se fundamenta como homem daquela com quem

fala, e Ihe anuncia isso sob essa forma invertida. Mostrei-Ihes tambemo carater estranhamente paradoxal disso. E que tudo repousa no quedeve fechar 0 circuito. A metonfmia que isso comporta, a passagemdo Outro para esse objeto unico que e constitufdo pela frase, demanda,afinal, que a metonfmia seja aceita, que alguma coisa se veicule emseguida de y para a, ou seja, que 0 tu de que se trata nao respondapura e simplesmente: - Nao, de modo algum.

Mesmo que ele nao responda isso, produz-se muito mais comu-mente uma outra coisa: e que, em razao mesma do fato de nenhumaprepara<;ao habilidosa como 0 chiste vir a fazer com que se confundaa linha W' P''' com a paralela no nfvel inferior, essas duas linhas semantem perfeitamente independentes. Tanto assim que 0 sujeito deque se trata conserva efetivamente seu sistema proprio de objetosmetonfmicos. Assim veremos produzir-se a contradi<;ao que se esta-belece no cfrculo dos quatro p, ou seja, tendo cada urn sua ideiazinha,como se costuma dizer, essa fala fundadora esbarra no que chamarei,ja que estamos diante de urn quadrado, de problema nao da quadraturado cfrculo, mas da circulatura das metonfmias, que se mantemperfeitamente distintas, mesmo no conjungo mais ideal. Existem bonscasamentos, mas nao os 17(1deliciosos, disse La Rochefoucauld.

Ora, 0 problema do Outro e do amor csta no centro do comico.Para saber disso, convem primeiramente nos lembrarmos de que, sequisermos informar-nos sobre 0 comico, talvez nao seja ma ideialermos comedias.

A comedia tern uma historia, a comedia tern ate uma origem,sobre a qual muito se tern debru<;ado. A origem da comedia estaestreitamente ligada a rela<;ao do isso com a linguagem.

o isso de que falamos de vez em quando, que vem a ser cle?Nao e, pura e simplesmente, a necessidade radical original, aquelaque esta na raiz da indi vidualizayao como organismo. 0 isso so eapreendido para alem de qualquer elabora<;ao do desejo na rede dalinguagem, ele so se realiza no limite. Aqui, 0 desejo humano nao einicialmente captado no sistema de linguagem que 0 adia indefinida-mente e que nao deixa margem alguma para que 0 isso se constituae se nomeie. No entanto, para alem de toda essa elabora<;ao dalinguagem, ele e 0 que representa a realiza<;ao daquela necessidadeprimaria que, pelo menos no homem, nao tern a menor possibilidadede ser sequer conhecida. Nao sabemos 0 que e 0 isso de urn animal,e sao muito poucas as chances de que algum dia venhamos a sabe-Io,mas 0 que sabemos e que 0 isso do homem esta inteiramente engajado

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na dialetica da linguagem, e que ele veicula e conserva a existenciaprimordial da tendencia.

Dc onde vem a eomedia? Dizem-nos que cIa provem daquelebanquete no qual, em sfntese, 0 homem diz sim numa especie de orgia- deixemos a essa palavra toda a sua impreeisao. 0 banquete econstitufdo por oferendas aos deuses, isto e, aos Imortais da linguagem.Afinal, todo 0 processo de elabora~ao do desejo na linguagem seresume e se conjuga na consuma~ao de urn banquete. Todo esse desvioserve apenas para retornar ao gozo, e ao mais elementar. E por issoque a comedia faz sua entrada no que podemos considerar, com Hegel,a face estetica da religiao.

o que nos mostra a comedia antiga? Seria conveniente, de vezem quando, que voces fu~assem urn pouco em Arist6fanes. E sempreo momenta em que 0 isso faz uma reviravolta em proveito proprio,cal~a as botas da linguagem para seu uso, 0 mais elementar. E sabidoque, .em As nuvens, Aristofanes zomba de Eurfpides e Socrates,particularmente de Socrates, mas, de que forma nos mostra ele? Elenos mostra que toda a bela dialetica socnitica serve para que urn velhosatisfa~a suas vontades pOl' toda sorte de truques - escapar dos~redores, fazer com que Ihe deem dinheiro -, ou serve para que urnrapaz fuja a seus compromissos, descumpra todos os seus deveres,ridicularize seus antepassados etc. Trata-se do retorno da necessidadeem sua forma mais elementar. 0 que entrou originalmente na dialeticada linguagem, ou seja, muito especial mente, todas as necessidades dosexo, todas as necessidades ocultas em gera!, e isso que voces veemproduzir-se em primeiro plano na cena aristofiinica. E a coisa vailonge.

Recomendo a sua aten~ao, muito especialmente, as pe~as refe-rentes as mulheres. Nesse retorno a necessidade elemental' que esubjacente a to do 0 processo, ha urn papel especial reservado asmulheres, na medida em que e pOl' intermedio delas que Arist6fanesnos convida, no momento de comunhao imaginaria representado pelacomedia, a nos apercebermos daquilo que so pode ser percebidoretroativamente: que, se 0 Estado existe, e a polis, e para nos bene-ficiarmos deles, e para que se estabele~a na agora urn banqueteluxuriante no qual, alias, ninguem acredita. Depois de 0 born sensotel' sido contrariado pela evolu~ao perversa da cidade submetida atodas as tens6es de urn processo dialetico, volta-se a esse born sensopOl' intermedio das mulhei'es, as unicas que realmente sabem do queo homem necessita, e isso assume naturalmente as formas maisexuberantes.

Isso so e picante pelo que nos revel a da vioJencia de algumasimagens. Faz-nos tambem imaginal' urn mundo no qual as mulherestalvez nao fossem exatamente 0 que imaginamos delas atraves dosautores que nos pintam uma Antigtiidade policiada. Na Antigtiidade,pareceu-me, as mulheres - estou falando das mulheres reais, nao daVenus de Milo - deviam tel' muitos pelos e nao cheirar muito bern,a julgarmos pela insistencia colocada na fun~ao da navalha e emalguns perfumes.

Seja como for, ha nesse crepusculo aristofanico, especialmenteno que concerne a vasta insurrei~ao das mulheres, algumas imagensreal mente belas, e que nao deixam de impressionar. Ha uma que seexprime de estalo na frase de uma mulher diante de suas companheirasque estao nao apenas vestindo-se de homens, mas tambem colocandobarbas pOl' conta da onipoWncia;* a questao e apenas saber de quebarba se trata. Ela ri e Ihes diz: - Que engra(:ado, parece umaassembleia de sepias grelhadas com barbas. Essa visao de penumbraparece bastante adequada para nos sugerir todo arcabou~o oculto dasrela~6es na sociedade antiga.

Para onde evoluiu essa comedia? Para a Comedia Nova, aquelaque come~ou com Menandro e prossegue ate hoje. 0 que e a ComediaNova? Ela nos mostra as pessoas comprometidas, em geral da maneiramais fascinada e mais obstinada, com algum objeto metonfmico. Todosos tipos humanos se en con tram ali. Os personagens sao os mesmosque encontramos na comedia italiana. Sao definidos por uma certarela~ao com urn objeto. Alguma coisa ocupou 0 lugar da irrup~ao dosexo, coisa esta que e 0 amor - 0 amor denominado como tal, 0

amor que chamaremos de amor ingenuo, 0 amor inocente, 0 amorque une duas pessoas jovens, em geral bastante insossas. E isso queforma 0 pivo da trama. 0 amor desempenha 0 papel de eixo em tornodo qual gira toda a comicidade da situa~ao, e assim continuaria ateo surgimento do romantismo, que hoje deixaremos de lado.

o amor e urn sentimento comico. 0 apogeu da comedia e per-feitamente localizavel. A comedia, em seu sentido proprio, no sentidocomo a promovo aqui, diante de voces, en contra seu apogeu numaobra-prima fmpar.

Esta situa-se, na historia, no momento-articulatorio em que aapresenta~ao das rela~6es entre 0 isso e a linguagem, sob a forma de

" Lacan alude aqui a um lrecho da Escola de lJlulheres, de Moliere, alo III, cenaII, pe<;:aque sera cilada logo adianle. (N .E.)

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urn apoderamento da linguagem pelo isso, da lugar a introdus;ao dadialetica das relas;6es do homem com a linguagem de uma formacega, fechada, que se consuma no romantismo. Isso e muito importante,no sentido de que, sem que 0 saiba, 0 romantismo revela-se umaintrodus;ao confusa a dialetica do significante como tal, da qual apsicanalise, em sfntese, e a forma articulada. Mas, na linhagem dacomedia, digamos, classica, 0 apogeu acontece no momenta em quea comedia de que estou falando, que e de Moliere e se chama Escolade mulheres, coloca 0 problema de maneira absolutamente esquema-tica, uma vez que se trata de amor, mas 0 amor se faz presente comoinstrumento da satisfas;ao.

Moliere prop6e-nos 0 problema de urn modo que fornece suadecodificas;ao. E de uma limpidez absolutamente comparavel a urnteorema de Euclides.

Trata-se de urn cavalheiro chamado Arnolfo. Na verdade, 0 rigorda coisa nem sequel' exigiria que fosse urn cavalheiro de uma ideiaso. Verifica-se que e melhor assim, mas so pela maneira pel a qual,na tirada espirituosa, a metonfmia serve para nos fascinar. Vemo-Ioentrar em cena, logo no infcio, com a obsessao de nao ser cornudo.E~sa e sua paixao principal. E uma paixao como outra qualquer. Todasas paix6es se equivalem, todas sao igualmente metonfmicas. 0 prin-cfpio da comedia e expo-Ias como tais, isto e, central' a atens;ao numisso que acredita inteiramente em seu objeto metonfmico. Confia nele,o que nao quer dizer que a ele esteja ligado, pois e tambem uma dascaracterfsticas da comedia que 0 isso do sujeito comico, seja ele quemfor, saia sempre ileso. Tudo 0 que acontece durante a comedia passapOl' ele como a agua nas penas de urn pato. A Escola de mulherestermina com urn Vja! de Arnolfo, e so Deus sabe os paroxismos porque ele passou.

Tentarei lembrar-Ihes sucintamente do que se trata. Da-se queArnolfo reparou numa menina pOl' seu ar doce e ajuizado, que meinspirou 0 amor por ela desde os quatro anos. Assim, ele escolhesua mocinha e profere desde logo 0 Tu es minha mulher. E justamentepOl' essa razao que entra em profunda agitas;ao ao vel' que esse anjodileto esta para the ser arrebatado. E que, no ponto em que se encontra,diz Arnolfo, a mos;a ja e sua mulher, ele ja a instaurou socialmentecomo tal, e resolveu elegantemente a questao.

Ele e urn homem esclarecido, diz seu parceiro, 0 chamado Cri-saldo, e de fato e esclarecido. Nao precisa ser 0 personagem mono-gamico de que falavamos no comes;o: retirando-Ihe essa monogamia,trata-se de urn educador. Os velhos sempre cuidaram da educas;ao das

meninas e, para isso, ate institufram princfpios. No caso, Arnolfodescobriu urn princfpio muito feliz, que consiste em conserva-Ia emestado de completa idiotia. Ele mesmo pres creve os cuidados quesupostamente concorrerao para esse fim. E nem podes imaginar a queponto isso chega, diz ele a seu amigo: nao e que um dia desses elame perguntou se nao se jaziam jilhos pela ore/hat Era justamenteisso que deveria ter-Ihe colocado a pulga aU'as da dita orelha, pois,se a mos;a tivesse uma conceps;ao fisiologica mais sadia das coisas,talvez fosse menos perigosa.

Es minha mulher e a fala plena euja metonfmia sao os deveresdo casamento, convenientemente explicados, que ele manda a pequenaAgnes ler. Ela e completamente idiota, diz Arnolfo, e acredita poderfundamental' nisso, como todos os educadores, a garantia de suaconstrus;ao.

o que nos mostra 0 desenrolar da historia? Poderfamos chama-Iode Como a inteligencia [l'esprit] vem as mOfas. A singularidade dopersonagem de Agnes parece haver proposto urn verdadeiro enigmaaos psicologos e aos crfticos - sera ela uma mulher, uma ninfoma-nfaca, uma coquete, uma isto, uma aquilo? Nada disso: ela e urn sera quem ensinaram a falar, e que e articulada.

Agnes c captada pelas palavras do personagem, alias completa-mente insignificante, do rapazinho. Esse Horacio entra em jogo nahistoria quando, na grande cena em que Arnolfo Ihe prop6e arrancara metade dos cabelos, ela Ihe responde, tranqi.iilamente - Com duaspalavras, Horacio jaria melhor do que vas. Com isso, ela pontuaperfeitamente 0 que esta presente ao longo de toda a pes;a, ou seja,que 0 que Ihe aconteceu no encontro com 0 personagem em questaoreside exatamente em que ele diz coisas espirituosas e doces de ouvir,arrebatadoras. 0 que ele disse, Agnes e incapaz de nos dizer, e tambemde dizer a si mesma, mas e algo que veio atravcs da fala, isto e,daquilo que rompeu 0 sistema da fala aprendida e da fala educativa.E dessa maneira que eia foi cativada.

A especie de ignorancia que e uma das dimens6es de seu ser estasimplesmente ligada ao fato de que, para ela, nao existe outra coisaa nao ser a fala. Quando Arnolfo Ihe explica que 0 outro Ihe estreitouas maos e os bras;os, ela pergunta: - E existe outra coisa alem disso?- e fica muito interessada. E uma deusa da razao, essa Agnes. POl'isso, a palavra "raciocinadora" vem sufocar Arnolfo pOl' um momento,quando ele a censura pOl' sua ingratidao, sua falta de sentimento dodever, sua trais;ao, e ela Ihe responde com admiravel pertinencia: -

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Mas, 0 que eu vos devo? Se e unicamente 0 ter-me tornado burra,voss as despesas vos serao reembolsadas.

Assim, verno-nos, no come<;o, diante do raciocinadar frente aingenua, eo que constitui 0 gatilho camico c que, a partir do momentoem que 0 espfrito penetra na mo<;a, vemos surgir a raciocinadoradiante do personagem que, ele sim, transforma-se no ingenuo, parque,com palavras que nao deixam nenhuma ambigi.iidade, diz-Ihe entaoque a ama, e 0 diz de todas as maneiras, e 0 diz a tal ponto que 0

clfmax de sua declara<;ao consiste em Ihe dizer mais ou menos 0

seguinte: Faras exatamente tudo 0 que quiseres, tambem teras Horaciode vez em quando, se quiseres. No final das contas, 0 personageminverte atc mesmo 0 princfpio de seu sistema, prefere atc ser cornudo,o que fora seu principal ponto de partida na historia, a perder 0 objetode seu amor.

o amor, eis 0 ponto em que digo situar-se 0 ponto forte dacomedia c1<issica. 0 amor esta presente nela. E curioso vcr ate queponto ja nao 0 percebemos senao atraves de toda sarte de paredesque 0 sufocam, de paredes romanticas, ao passo que ele e urn recursoesscncialmente camico. E precisamente nesse sentido que Arnolfo e

, urn verdadeiro apaixonado, muito mais autenticamente enamorado doque 0 chamado Horacio, que, por sua vez, esta em perpetua vacila<;ao.A mudan<;a de perspectiva romantica que se produziu em torno dotermo amor faz com que nao mais possamos concebe-Io com facili-dade. E urn fato: quanto mais a pe<;a e encenada, quanta mais Arnolfoe encenado em seu toque de Arnolfo, mais as pessoas se curvam edizem umas as outras: Esse Moliere, tao nobre e tao profundo, quandoacabamos de rir com ele, deverfamos chorar. As pessoas ja quasenao acham compatfvel 0 camico com a expressao autentica e inundantedo amor como tal. No cntanto, quando e 0 amor mais autenticamenteamor que se declm'a e se manifesta, 0 amar e camico.

E esse, pOitanto, 0 esquema da historia. E convem que eu Ihesindique aqui 0 que fecha seu circuito.

A historia se fecha gra<;as a bun"ice do personagem terceiro, istoe, Horacio, que, no caso, porta-se como urn bebe, chegando ate adevolver aquela a quem acaba de arrebatar as maos de seu legftimodono, sem sequer conseguir identifica-Io como 0 ciumento cuja tiraniaAgnes suporta e, ainda por cima, como 0 confidente a quem escolheupara si. Pouco importa, esse personagem e secundario, mas, por queesta ali? Para que 0 problema seja colocado nos seguintes termos:para que a todo momenta Arnolfo seja informado, hora a hora, minutoa minuto, exatamente par aquele que e seu rival, do que esta aconte-

cendo na realidade, e, por outro lado, de maneira tambem inteiramCllll'autcntica, informado por sua propria pupila, a dita Agnes, que naoIhe dissimula nada.

Efetivamente, como Arnolfo deseja, cIa e completamente idiota,so que no sentido de nao tel' absolutamente nada a esconder, de dizertudo, e de simplesmente 0 dizer da maneira mais pertinente. Mas, apartir do momenta em que cIa se acha no mundo da fala, seja qualfor 0 poder da forma<;ao educativa, seu desejo esta para alem. Seudesejo nao esta simplesmente referido a Horacio, a quem nao duvi-damos que, no futuro, cIa leve a sofrer 0 destino tao temido parArnolfo. Simplesmente, par ela estar no campo da fala, seu desejoesta para alem, Agnes fica sob 0 encanto das palavras, sob 0 encantodo espfrito de inteligencia, e, na medida em que ha alguma coisa alemda atualidade metonfmica que tentam Ihe impor, ela foge. Emborasempre dizendo a verdade a Arnolfo, ela 0 engana, pois tudo 0 quefaz equivale a engana-Io.

o proprio Horacio percebe isso, ao contar que ela Ihe atirou suapedrinha pelajanela dizendo-Ihe: - Va embora, nao quem mais ouvirsuas conversas, e aqui esta minha resposta, 0 que dava a impressaode querer dizer Aqui esta a pedra que the atiro, so que a pedra foitambem 0 vcfculo de uma cartinha. Horacio observa muito bem que,para uma mo<;a a quem ate entao haviam querido manter na maisextrema ignorancia, essa e uma ambigi.iidade bastante bem achada,esbo<;o dos duplos sentidos e de to do urn jogo do qual e posslvelaugurar 0 melhor no futuro.

E nesse ponto que eu queria deixa-Ios hoje. 0 isso, pOl' natureza, estapara alem da capta<;ao do desejo na linguagem. A rela<;ao com 0 Outroe essencial, uma vez que 0 caminho do desejo passa necessariamentepor ele, mas nao porque 0 Outro seja 0 objeto unico, e sim na medidaem que 0 Outro e 0 fiador da linguagem e a submete a toda suadialetica.

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A sra. Pankow expoe 0 double bindA tipograjia do inconscienteD Dutro dentro do DutroA psicose entre c6digo e mensagemTrit'ingulo simb6lico e trit'ingulo imaginario

Tenho a impressao de te-Ios deixado um pouco sem f6lego no ultimotrimeslre - tive algumas repercuss6es. Nao me dei conta disso, casocontnirio, nao 0 teria feito. Tambem tenho a impressao de me haverrepelido, de haver me arrastado. Isso, alias, talvez nao tenha impedidoque algumas das coisas que eu queria leva-Ios a entender ficassemno caminho, 0 que justifica uma pequena volta atras, digamos, umolhar sobre a maneira como abordei as coisas este ano.

o que venho tentando mostrar a prop6sito da tirada espirituosa, daqual destaquei um certo esquema cuja utilidade pode nao se haverevidenciado prontamente, e como as coisas se encaixam, como seengrenam com 0 esquema precedente. Voces devem, afinal, perceberuma especie de con stante no que Ihes ensino - embora convenha, eclaro, que essa con stante nao seja simplesmente como uma bandeirinhano horizonte pela qual voces se orientam, e que voces compreendampara on de isso as leva, e par quais des vios. Essa constante e que julgo

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fundamental para compreender 0 que ha em Freud: assinalar a im-portiincia da linguagem e da fala. Isso nos dissemos desde 0 inicio,pOl'em, quanta mais nos aproximamos de nos so objeto, mais nosapercebemos da importiincia do significante na economia do desejo,digamos, na formas;ao e na informas;ao do significado.

Voces puderam perceber isso em nossa sessao cientffica de ontema noite, ao ouvir 0 que nos trouxe de interessante a sra. Pankow.Verifica-se que, na America, as pessoas se preocupam com a mesmacoisa que Ihes explico aqui. Elas tentam introduzir na determinas;aoeconomica dos disturbios psiquicos 0 fato da comunicas;ao e daquiloque eventualmente chamam de mensagem. Voces puderam ouvir asra. Pankow lhes falar de alguem que esta longe de tel' nascido ontem,ou seja, do sr. Bateson, antropologo e etnografo, que nos trouxe algoque nos faz refletir urn pouco alem da ponta do nariz sobre 0 queconcerne a as;ao terapeutica.

Este tenta situar e formular 0 princfpio da genese do disturbiopsicotico em alguma coisa que se estabelece no plano da relas;ao entrea mae e 0 filho, e que nao e simplesmente urn efeito elemental' defrustras;ao, tensao, retens;ao, e de relaxamento, satisfas;ao, como se a'relas;ao inter-humana se desse na ponta de urn elastico. Ele introduzdesde 0 princfpio a nos;ao da comunicas;ao como centrada nao apenasnum contato, num relacionamento, num meio, mas numa significas;ao.E isso que ele situa no princfpio do que originariamente acontece dediscordante, de dilacerante nas relas;6es da crians;a com sua mae. 0que ele designa como 0 elemento discordante essencial dessa relas;aoe 0 fato de a comunicas;ao se apresentar sob a forma de urn doublebind, uma relas;ao dupla.

Como lhes disse muito bem a sra. Pankow, ontem a noite, ha namensagem em que a crians;a decifra 0 comportamento da mae doiselementos. Estes nao se definem urn em relas;ao ao outro, no senti dode urn se apresentar como a defesa do sujeito em relar,;ao ao que 0

outro quer dizer, 0 que constitui a ideia comum que voces tern domecanismo da defesa quando praticam a analise. Voces consideramque aquilo que 0 sujeito diz tern por fim desconhecer 0 que ha designificas;ao em algum lugar dele, e que, de esguelha, ele indica -a si mesmo e a voces - suas intens;6es. Nao e disso que se trata.Trata-se de alguma coisa que concerne ao Outro, e que e aceita pelosujeito de tal maneira que, se ele responder a respeito de uma coisa,sabe que, pOl' isso mesmo, sera acuado acerca de outra. E como 0

exemplo usado pela sra. Pankow: se respondo a declaras;ao de amor

que minha mae me faz, provoco seu afastamento, e, se nao Ihe dOli

ouvidos, isto e, se nao the respondo, eu a perco.Eis-nos introduzidos, com isso, numa verdadeira dialetica do duplo

senti do, na medida em que este ja concerne a urn terceiro elemento.Nao se trata de dois sentidos, urn pOl' tras do outro, com urn queestaria alem do primeiro e teria 0 privilegio de ser 0 mais autenticodos dois. Ha duas mensagens simultiineas na mesma emissao, porassim dizer, de significar,;ao, 0 que cria no sujeito uma situar,;ao talque ele se ve num impasse. Isso Ihes prova que, mesmo na America,esta havendo um enorme progresso.

E estaremos dizendo que isso e suficiente? A sra. Pankow apontoumuito bem 0 que essa tentativa tinha de rasteiro, de empfrico, diriamos,embora nao se trate em absoluto de empirismo, e claro. Se naohouvesse na America, paralelamente, trabalhos importantfssimos naestrategia dos jogos, 0 sr. Bateson nao teria pensado em introduzirna analise 0 que e, afinal, uma reconstrLJ(;ao do que supostamenteocorreu na origem, e em determinar essa posis;ao do sujeito profun-damente dilacerado, em equilibrio instavel, perante 0 que a mensagemtern de constitutivo para ele. Digo constitutivo porque, se essa con-ceps;ao nao implicasse que a mensagem e constitutiva para 0 sujeito,seria diffcil entender como se poderia atribuir efeitos tao grandes aesse double bind primitivo.

A quesrao que se coloca a proposito das psicoses e saber 0 queacontece com 0 processo da comunicas;ao quando, justamente, ele naochega a ser constitutivo para 0 sujeito. Esse e um outro referencialque convem buscar. Ate 0 momento, ao ler 0 sr. Bateson, voces veemque tudo se centra, em sum a, nessa dupla mensagem, sem duvida,mas na dupla mensagem como dupla significas;ao. E exatamente aique 0 sistema peca, e justamente porque essa conceps;ao negligenciao que 0 significante tern de constitutivo na significas;ao.

Ontem a noite eu havia feito, assim assim, uma nota que agorame falta, na qual havia colhido uma afirmas;ao da sra. Pankow sobrea psicose, que se resume mais ou menos nisto: nao existe, dizia ela,a palavra que funda a fala como ato. Entre as palavras, e precisohaver uma que funde a fala como ato no sujeito. Isso esta bem nocaminho do que you abordar agora.

Ao assinalar 0 fato de haver, em algum lugar da fala, algumacoisa que a fundamenta como verdadeira, a sra. Pankow manifestouuma exigencia de estabilizas;ao de todo 0 sistema. Ela recorreu, paraesse fim, a perspectiva da personalidade, 0 que tern ao menos 0 merito

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de atestar sua sensa~ao de insuficiencia de urn sistema que nos deixainseguros e nao nos permite uma dedu~ao e uma constru~ao suficientes.

Nao creio, de maneira alguma, que seja dessa maneira quepodemos formuUi-lo. Essa referencia personalista, nao a creio psi co-logicamente fundamentada, a nao ser no sentido de que nao podemosdeixar de sentir e pressentir que as significa~6es criam esse impassesupostamente desencadeador do profundo desconeerto do sujeito quan-do ele e esquizofrenico. Mas tambem nao podemos deixar de sentire pressentir que deve haver alguma coisa no princfpio desse deficit,e que cIa nao c simplesmente a experiencia impressa dos impassesdas significa~6es, pOl'em a falta de alguma coisa que funda a pr6priasignifica~ao, e que e 0 significante - e mais alguma coisa, que ejustamente 0 que vou abordar hoje. Nao se trata de algo que simples-mente se coloque como personalidade, como aquilo que funda a falacomo ato, como dizia ontem it noite a sra. Pankow, mas de algumacoisa que se coloea como conferindo autoridade it lei.

Aqui ehamamos de lei aquilo que se articula prapriamente nonfvel do signifieante, ou seja, 0 texto da lei.

Nao e a mesma coisa dizer que uma pessoa deve estar presentegara sustentar a autenticidade da fala e dizer que ha alguma coisa queautoriza 0 texto da lei. Com deito, 0 que autoriza 0 texto da lei sebasta por estar, ele mesmo, no nfvel do significante. Trata-se do queehamo de Nome-do-Pai, isto e, 0 pai simb6Iieo. Esse C urn tenno quesubsiste no nivel do signifieante, que, no Outra como sede da lei,representa 0 Outra. E 0 significante que da esteio it lei, que pramulgaa lei. Esse C 0 Outra no Outra.

E precisamente isso que c expresso por esse mito necessario aopensamento de Freud que e 0 mito de Edipo. Examinem-no mais deperto. E necessario que ele mesmo forne~a a origem da lei sob essaforma mftica. Para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja

. fundada no pai, e preciso haver 0 assassinato do pai. As duas coisasestao estreitamente Iigadas - 0 pai como aquele que pramulga a leieo pai morto, isto C, 0 sfmbolo do pai. 0 pai morto e 0 Nome-do-Pai,

. que se constr6i af sobre 0 eonteudo.Isso e absolutamente essencial. Vou relembrar-lhes por que.Em torno de que centrei tudo 0 que lhes ensinei, dois anos atras,

sobre a psicose? Em torno do que chamei de Verwerfung. Tentei fazercom que voces a sentissem como distinta da Verdrdngung, isto e, dofato de a cadeia significante continuar a se desenrolar ease ordenarno Outra, quer voces 0 saibam ou nao, 0 que constitui, essencialmente,a des cobert a freudiana.

A Verwerfung, dizia-lhes eu, nao e simplesmente 0 que esta alcmde seu alcance, ou seja, 0 que esta no Outra como recalcado e comosignificante. Essa c a Verdrdngung, e e a cadeia significante. A pravaesta em que cIa continua a agir sem que voces the atribuam a menorsignifica~ao, em que ela determina a significa~ao, por menor que seja,sem que voces a conhe~am como cadeia significante.

Eu tambem lhes disse haver uma outra coisa que, nessa ocasiao,c verworfen. Pode haver, na cadeia dos significantes, um significanteou uma letra que faIta, que sempre falta na tipografia. 0 espa~o dosignificante, 0 espa~o do inconsciente, e real mente urn espa~o tipo-grafico, que e preciso tratar de definir como se constituindo de acordocom linhas e pequenos quadrados, e correspondente a leis topol6gicas.Pode faltar alguma coisa numa cadeia dos significantes. Voces pre-cisam compreender a importancia da falta desse significante especialdo qual acabo de falar, 0 Nome-do-Pai, no que ele funda como tal 0

fato de existir a lei, ou seja, a articula~ao numa certa ordem dosignificante - complexo de Edipo, ou lei do Edipo, ou lei da proibi~aoda mae. Ele e 0 significante que significa que, no interior dessesignificante, 0 significante existe.

E esse 0 Nome-do-Pai, e, como vcem, ele C, no interior do Outra,urn significante essenciaI, em torno do qual pracurei centra-los noque acontece na psicose - a saber, que 0 sujeito tern de suprir a faltadesse significante que e 0 Nome-do-Pai. Tudo 0 que ehamei de rea~aoem cadeia, ou de debandada, que se produz na psicose, ordena-se emtorno disSQ.

o que devo fazer aqui? Devo enveredar de imediato pela recorda~aodo que Ihes falei a prap6sito do Presidente Schreber'? Ou sera queconvem lhes mostrar, primeiro, de maneira ainda mais precisa, emdetalhe, como articular no nfvel do esquema deste ana 0 que acabode apontar?

Para minha grande surpresa, esse esquema nao interessa a todomundo, mas, de qualquer modo, interessou a alguns. Ele foi construfdo,nao se esque~am, para representar 0 que acontece num nfvel quemerece 0 nome de tecnica, e que c a tecniea do chiste. Trata-se af dealgo bem singular, uma vez que 0 Witz pode ser manifestamentefabricado pelo sujeito, da maneira mais inintencional do mundo. ComoIhes mostrei, a tirada espirituosa e, as vezes, apenas 0 avesso de

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urn lapso, e a experiencia mostra que muitos dos chistes nascem dessamaneira - percebe-se a posteriori que se teve espirito, mas aconteceupor si s6. Poderia, em alguns casos, ser tornado exatamente pelocontrario, por urn sinal de ingenuidade, e fiz alusao, da ultima vez,ao chiste ingenuo.

o chiste, com a satisfa<;ao que dele resulta e que Ihe e peculiar,foi aquilo em tomo do qual, no (tltimo trimestre, procurei organizareste esquema. Tratava-se de identificar como conceber a origem dasatisfa<;ao que ele traz. Isso nos fez remontar a nada menos do quea dialetica da demanda a partir do ego.

Lembrem-se do esquema do que eu poderia chamar de momentasimb6lico ideal primordial, que e totalmente inexistente.

o momento da demanda satisfeita e representado pela simulta-neidade da inten<;ao, na medida em que eia se manifeste comomensagem, e da chegada dessa mensagem como tal ao Outro. 0 sig-nificante - e dele que se trata, uma vez que essa cadeia e a cadeiasignificante - chega no Outro. A iclentidade perfeita, a simuitanei-dade, a superposi<;ao exata entre a manifesta<;ao da inten<;ao, uma vezque ela e a do ego, e 0 fato de 0 significante ser como tal ratificado'no Outro acham-se no princfpio da pr6pria possibilidade da satisfa<;aoda fala. Se esse momento, que chama de momento primordial ideal,existe, ele deve ser constituido pela simultaneidade, pela coextensi-vidade exata do desejo, na medida em que ele se manifesta, e dosignificante, na medida em que ele 0 porta e 0 comporta. Se essemomento existe, a sequencia, ou seja, 0 que sucede a mensagem, asua passagem para 0 Outro, e ao mesmo tempo realizado no Outro eno sujeito, e corresponde ao que e necessario para que haja satisfa<;ao.,'Esse e, muito precisamente, 0 ponto de partida que convem para voces::compreenderem que isso nunca acontece.

Ou seja, c da natureza e do efeito do significante que 0 queacontece aqui, em M, se apresente como significado, isto e, comoalguma coisa que e caracteristica da transforma<;ao, da refra<;ao dodesejo por sua passagem pelo significante. E por essa razao que estas

\,duas linhas se entrecruzam. Isso e para faze-Ios sentir 0 fato de queo desejo se exprime e passa pelo significante.

o desejo cruza a linha significante e, no nivel de seu cruzamentocom a linha significante, encontra 0 que? Encontra 0 Outro. Veremosdentro em pouco, ja que sera preciso voltar a isso, 0 que e 0 Outronesse esquema. Ele encontra 0 Outro, disse-Ihes eu, nao como umaRe_s.soa,mas 0 encontra como tesouro do significante, como sede doc6digo. E al que se produz a refra<;ao do desejo pelo significante. 0

desejo chega como significado, portanto, diferente do que era IlU

come<;o, e e par isso nao que sua mulher e muda, mas que seu descjue sempre cOl'nudo. Ou melhor, e voce quem e cornudo, Voce pr6prioe traIdo, uma vez que seu desejo deitou-se com 0 significante. Naosei como me conviria articular melhor as coisas para faze-Ios com-preende-Ias. Toda a significa<;ao do esquema esta em faze-Ios visuali-zarem 0 conceito de que a passagem do desejo - como emana<;ao,como ressalto do ego radical - pela cadeia significante introduz, porsi s6, uma mudan<;a essencial na dialetica do desejo.

Esta bastante claro que, no que concerne a satisfa<;ao do desejo,tudo depende do que acontece nesse ponto A, inicialmente definidocomo lugar do c6digo, e que, ja por si s6, ab origine, pela simplesrealidade de sua estrutura de significante, traz uma modifica<;aoessencial para 0 desejo no nivel de sua transposi<;ao de significante.Ai esta implicado todo 0 resto, uma vez que nao ha somente 0 c6digo,mas ha uma coisa bem diferente. Nisso eu me situo no nivel maisradical, porem, e claro, existe a lei, existem as proibi<;6es, existe 0

supereu etc. Contudo, para compreender como se edificam essesdiversos niveis, e preciso compreender que, ja no nivel mais radical,a partir do momento em que se fala com alguem, existe urn Outro,urn outro Outro em si, como sujeito do c6digo, e que ja nos encon-tramos submetidos a dialctica de "cornea<;ao" do desejo. Logo, tudodepende, como se constat a, do que acontece nesse ponto de cruza-mento, A, nesse nivel de transposi<;ao.

Verifica-se que qualquer satisfa<;ao possivel do desejo humanovai depender da concordancia entre 0 sistema significante, tal comoarticulado na fala do sujeito, e, como Ihes diria 0 sr. de la Palice,*do sistema do significante como assentado no codigo, isto e, no nivel·do Outro como lugar e sede do c6digo. Vma crian<;a pequena, ouvindoisso, ficaria convencida, e nao tenho a pretensao de que 0 que acabode lhes explicar nos fa<;a dar qualquer passo a mais. Mesmo assim,e preciso articula-Io.

E al que iremos abordar a articula<;ao que quero fazer-Ihes, entreesse esquema e 0 que ha pouco Ihes anunciei de essencial acerca daquestao do Nome-do-Pai. Voces 0 verao preparar-se e se desenhar,

" Jacques II de Chabannes, Seigneur de La Palice (1470-1525), militar cujo nome,par conta de uma canqao simpl6ria que alguns soldados fizeram em sua homenagem,tornou-se sin6nimo do que ehamarfamos de "6bvio ululante" e deu origem ao tennolapalissade (trufsmo, obviedade). (N.E.)

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nao engendrar-se, nem sobretudo engendrar a si mesmo, pois ele devedar urn saIto para chegar a se constituir. Nem tudo se passa nacontinuidade, e 0 tfpico do significante e, justamente, ser descontfnuo.

o que nos traz a t6cnica do chiste para a experiencia? Foi issoque tentei leva-los a perceber. Mesmo nao compartando nenhumasatisfar;ao particular imediata, 0 chiste consiste em acontecer no Outroalguma coisa que simboliza 0 que poderfamos chamaI' de condir;aonecessaria de qualquer satisfar;ao. Ou seja, que voces sejam ouvidospara alem do que dizem. Em nenhum caso, com efeito, 0 que vocesdizem pode realmente fazer com que sejam ouvidos.

A tirada espirituosa desenvolve-se como tal na dimensao dametafara, isto C, para alClh do significante como aquilo atraves doqual voces procuram expressar alguma coisa, e atraves do qual, apesarde tudo, expressam sernpre uma coisa diferente. E justamente namedida em que se apreSenta como troper;o do significante que vocesficam satisfeitos, simplesmente porque, par esse sinal, 0 Outro reco-nhece a dimensao para alelh onde devera se expressar 0 que esta emcausa, e que voces nao COnseguem expressar como taL E essa dimensaoque a tirada espirituosa nos revela.

Esse esquema, pOitanto, e baseado na experiencia. Tivemos ne-cessidade de construf-lo para explicar 0 que se passa na tiradaespirituosa. Aquilo que, na tirada espirituosa, supre 0 fracasso dacomunicar;ao do desejo pela via do significante, a ponto de nos daruma especie de felicidade, realiza-se da seguinte maneira: 0 Outroratifica uma mensagem Como troper;ada, fracassada, e nesse pr6priotroper;o reconhece a dirnensao de urn para-alem no qual se situa 0

verdadeiro desejo, isto e, aquilo que, em razao do significante, naoconsegue ser significado.

Voces estao venda que a dimensao do Outro amplia-sc urnIpouquinho aqui. Com efeito, ele ja nao e unicamente a sede do c6digo,\ mas intervem como sujeito, ratificando uma mensagem no c6digo eI complicando-a. Ou seja, ele ja esta no nfvel daquele que constitui alei como tal, uma vez qUe C capaz de the acrescentar esse trar;o, essamensagem, como suplernentar, isto e, como ela mesma designando 0

para-alem da mensagem.Foi pOl' essa razao que, quando se tratou das formar;oes do

inconsciente, comecei este ana a lhes falar da tirada espirituosa.Tratemos agara de examinar mais de perto - e numa situar;ao menosexcepcional que a da tirada espirituosa - esse Outro, ja que estamosprocurando descobrir em sua dimensao a necessidade desse signifi-cante que funda 0 significante, como 0 significante que instaura a

legitimidade da lei ou do c6digo. Retomemos, pois, nossa dialeticado desejo. .

Quando nos dirigimos ao outro, nao nos exprimimos 0 tempotodo par intermedio da tirada espirituosa. Se pudcssemos faze-lo, decerta maneira, serfamos mais felizes. Isso, durante 0 curto espac;o detempo do discurso que lhes dirijo, e 0 que procuro fazer. Nem sempreo consigo. Se e par culpa de voces ou minha, C absolutamenteindiscernfvel pOl' esse ponto de vista. Mas, enfim, no plano terra-a-terrado que acontece quando me dirijo ao outro, ha uma palavra que nospermitc funda-lo da maneira mais elemental', e que e absolutamentemaravilhosa em frances, se pensarmos em todos os equfvocos que elapermite, todos os trocadilhos - dos quais eu ficaria ruborizado seme servisse aqui, a nao ser da maneira mais discreta. Quando eudisser essa palavra, voces se lembrarao imediatamente da evocac;ao aque me refiro. Trata-se da palavra Tu.

Esse Tu e absolutamente essencial no que chamei, em diversasocasioes, de fala plena, a falacomo fundadora na hist6ria do sujeito,o Tu do Tu es meu mestre ou Tu es minha mulher. Esse Tu e 0

significante do apelo ao Outro, e lembro aqueles que tiveram a bondadede acompanhar toda a cadeia de meus seminarios sobre a psicose 0

uso que fiz dele, a demonstrar;ao a qual tentei dar vida, diant~ ~evoces, em torno da distancia entre 0 Tu es aquele que me segulras,com s, e 0 Tu es aquele que me seguira. 0 que abardei com vocesja naquele momento, e no qual tentei faze-los pensarem, foi precisa-mente isso a que farei alusao agora e ao qual ja tinha dado seu nome.

Ha nessas duas frases, com suas diferenc;as, urn apelo. Ele estamais em uma do que na outra, e ate completamente em uma e nemurn pouco na outra. No Tu es aquele que me seguiras, ha uma coisaque nao esta no Tu es aquele que me seguira, e e a isso que se chamainvocac;ao. Quando digo Tu es aquele que me seguiras, estou invo-cando voce, atribuindo-lhe a func;ao de ser aquele que me seguira,suscito em voce 0 sim que diz Estou contigo [je suis a toil, entrego-mea ti, sou aquele que te seguira. Mas, quando digo Tu es aquele queme seguira, nao fac;o nada parecido: anuncio, constato, objetivo e ate,vez par outra, rechac;o. Isso pode querer dizer: Tu es aquele que meseguira sempre, e estou farto disso. Da maneira mais comum e maisconseqiiente de proferir essa frase, ela C uma recusa. A invocar;aoexige, e claro, uma dimensao inteiramente diversa, ou seja, que eufac;a meu desejo depender do teu ser, no senti do de te convidar aentrar na via desse desejo, seja ele qual far, de maneira incondicional.

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Esse e 0 processo da invocac,:ao. Essa palavra quer dizer que euapelo para a voz, isto e, para aquilo que sustenta a fala. Nao para afala, mas para 0 sujeito como pOltador dela, e e por isso que, nesseponto, encontro-me no plano do que ha pouco chamei de nfvelpersonalista. E justamente por isso que os personalistas usam e abusamcorn voces do Tu, tu, tu, tu, 0 dia inteiro, tu e contigo. 0 sr. MartinBuber, por exemplo, cujo nome a sra, Pankow pronunciou de passa-gem, e, nesse registro, urn nome eminente.

Naturalmente, ha nisso urn nfvel fenomenologico essencial, e naopodemos deixar de passar por ele. Tambem nao convem ceder a suamiragem, ou seja, nos prosternarmos. A atitude personalista - essee 0 perigo corn que nos deparamos no nfvel dela - resulta, corndemasiada facilidade, na prosternac,:ao mfstica. E por que nao? Naorecusamos nenhuma atitude a ninguem, apenas pleiteamos 0 direitode compreender essas atitudes, 0 que, alias, nao nos e recusado pelavertente personalista, mas nos e recusado pela vertente cientffica: sevoces comec,:arem a atribuir alguma autenticidade a posic,:ao mfstica,haYed quem considere que tambem estao caindo numa complacenciaridfcula.

Toda estrutura subjetiva, seja qual for, na medida ern que conse-guimos acompanhar 0 que ela articula, e estritamente equivalente aqualquer outra, do ponto de vista da analise subjetiva. Somente oscretinos imbecis, do tipo do sr. Blondel, 0 psiquiatra, podem levantarobjec,:6es, ern nome de uma pretensa consciencia morbida inefavel davivencia do outro, ao que nao se apresenta como inefavel, mas comoarticulado, e que como tal deveria ser recusado, ern razao de umaconfusao que provem de as pessoas acreditarem que 0 que nao searticula esta mais alem, quando nao e nada disso: 0 que esta maisalem se articula. Ern outras palavras, nao ha por que falar de inefavelquanta ao sujeito, seja ele delirante ou mfstico. No plano da estruturasubjetiva, estamos na presenc,:a de algo que nao pode se apresentar deoutra maneira senao daquela como se apresenta, e que, como tal,apresenta-se, por conseguinte, corn todo 0 seu valor, ern seu nfvel decredibilidade.

Se existe 0 inefavel, quer no delirante, quer no mfstico, pordefinigao ele nao fala disso, uma vez que e inefavel. Entao, naotemos que julgar 0 que ele articula, ou seja, sua fala, a partirdaquilo de que ele nao pode falar. Apesar de se supor que existao inefavel, e nos 0 supomos de born grado, nunca nos recusamosa apreender 0 que se demonstra como estrutura numa fala, seja

ela qual for, a pretexto de existir 0 inefavel. Podemos perder-nosnela e, entao, renunciar a ela. Mas, caso nao nos percamos, aordem demonstrada e revelada por essa fala deve ser tomada comotal. Percebemos, ern geral, que e infinitamente mais fecundo apreen-de-Ia como tal e procurar articular a ordem que ela instaura, desdeque tenhamos referenciais seguros - e e para isso que nos esfor-c,:amos aqui. Se partfssemos da ideia de que a fala e essencialmentefeita para representar 0 significado, ficariamos imediatamente con-fusos, pOl'que isso seria recair nas oposic,:6es precedentes, ou seja,que nao conhecemos 0 significado.

o Tu de que se trata e aquele que invocamos. Atraves da invocac,:ao,e claro, e a impenetrabilidade pessoal subjetiva que fica implicada,mas nao e nesse nivel que procuramos atingi-la. 0 que esta ern causaern qualquer invocac,:ao? A palavra invocac,:ao tern urn emprego his-torico. Ela e 0 que se produzia numa certa cerimonia que os antigos,que tinham mais sabedoria do que nos quanto a certas coisas, prati-cavam antes do combate. Essa cerimonia consistia ern fazer 0 quefosse preciso - eles sabiam 0 que era, provavelmente - para colocara seu lade os deuses dos outros. E exatamente isso que quer dizer apalavra invocac,:ao, e e nisso que reside a relac,:ao essencial, a qual osremeto agora, dessa etapa secundaria, a do apelo, necessaria para queo desejo e a demanda sejam satisfeitos.

Nao basta simplesmente dizer ao Outro tu, tu, tu, e obter umaparticipac,:ao do corac,:ao. Trata-se de Ihe dar a mesma voz que dese-jamos que cle tenha, de cvocar cssa voz, que esta presente na tiradaespirituosa justamente como sua dimensao propria. A tirada espirituosae uma provocac,:ao que nao executa corn perfeic,:ao 0 esforc,:o grandioso,que nao atinge 0 grande milagre da invocac,:ao. E no nivel da fala, epor se tratar de que essa voz se articule de conformidade corn nossodescjo, que a invocac,:ao se coloca.

Verificamos nesse nivel que toda satisfac,:ao da demanda, namedida em que depende do Outro, fica, pois, na dependencia do queacontece aqui, nesse vaivem giratorio da mensagem para 0 c6digo edo c6digo para a mensagem, e que permite que minha mensagem sejaautenticada pelo Outro no codigo. Retornamos ao ponto anterior, ouseja, aquilo que constitui a essencia do interesse que dedicamos juntos,este ano, a tirada espirituosa.

Vou simplesmente faze-Ios observar, de passagem, que, se vocesdispusessem desse esquema, isto e, se eu houvesse conseguido, naoda-Io a voces, mas que voces 0 houvessem forjado na ocasiao do

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seminario sobre as psicoses, se tivcssemos chegado juntos, no mesmomomento, a mesma tirada espirituosa, eu poderia ter-Ihes feito aimagem, aqui em cima, do que acontece essencialmente com 0

Presidente Schreber, na medida em que ele se torn a presa, sujeitoabsolutamente dependente de suas vozes.

doentes. Apreendeu-se muito bem em que momenta a frase resmungada pela paciente, Eu venho do salsicheiro, resvalou para 0 outrolado. Foi quando apareceu em aposic;:ao a palavra porca. Nao sendomais assumIvel, integravel pelo sujeito, ela pendeu, par seu movimentoproprio, pOI' sua propria inercia de significante, para 0 outro lado dotravessao da replica, para dentro do Outro. Foi uma pura e simplesfenomenologia elementar. Em Schreber, 0 que resulta da exclusao dasligac;:oes entre a mensagem e 0 Outro? 0 resultado se apresenta soba forma de duas gran des categarias de vozes e alucinac;:oes.

Primeiro ha a emissao, no nfvel do Outro, dos significantes daquiloque se apresenta como a Grundsprache, a lfnguaJundamental. Trata-sede elementos originais do codigo, articulaveis uns em relac;:ao aosoutros, pois essa Ifngua fundamental e tao bem organizada que abrangeIiteralmente 0 mundo com sua rede de significantes, sem que nenhumaoutra coisa seja segura e certa nela, a nao ser que se trata da significac;:aoessencial, total. Cada uma dessas palavras tern seu peso proprio, suaenfase, sua pesagem de significante. 0 sujeito as articula relacionan-do-as entre si. Toda vez que elas sao isoladas, a dimensao propriamenteenigm<itica da significac;:ao, pOI' ser infinitamente menos evidente doque a certeza que ela comport a, e real mente impressionante. Em outraspalavras, 0 Outro so faz emissoes aqui, pOI' assim dizer, para alemdo codigo, sem nenhuma possibilidade de integral' nelas 0 que possaprovir do lugar onde 0 sujeito articula sua mensagem.

POI' urn outro lado, basta que voces restabelec;:am as setinhas aqui,surgem mensagens. Elas de modo algum sao autenticadas pelo retornodo Outro, como suporte do codigo, sobre a mensagem, nem integradasno codigo com esta ou aquela intenc;:ao, mas provem do Outro comoqualquer mensagem, uma vez que nao ha meio de uma mensagempartir senao do Outro, ja que ela e feita de uma lfngua que e a doOutro - mesmo quando parte de nos como reflexo do outro. Essasmensagens, portanto, partirao do Outro e abandonarao esse referencialpara se articular neste tipo de formulac;:oes: - E agora, querodar-lhes ... Especialmente, quero para mim ... Agora, no entanto, issodeve ...

Que e que esta faltando? 0 pensamento principal, aquele quese exprime no nIvel da Ifngua fundamental. As proprias vozes,que conhecem toda a teoria, tambcm dizem: - Falta-nos a reflexiio.Isso quer dizer que partem do Outro, com efeito, mensagens daoutra categoria de mensagens. Trata-se de urn tipo de mensagensque nao c possfvel ratificar como tais. A mensagem manifesta-se,

Observem atentamente 0 esquema que esta atras de mim e supo-nham simplesmente que esteja verworfen tudo aquilo que pode, sejade que maneira for, responder, no Outro, no nfvel que chama aqueledo Nome-do-Pai, que encarna, especifica, particulariza 0 que acabode lhes explicar, isto c, representa no Outro 0 Outro como aquele queda alcance a lei. Pois bern, se voces supuserem a Verwerjimg doNome-do-Pai, isto e, se presumirem que esse significante esta ausente,irao perceber que as duas Iigac;:oes que enquadrei aqui, a ida e voltada mensagem para 0 codigo e do cadi go para a mensagem, ficarao,por isso mesmo, destrufdas e impossfveis. Isso Ihes permite transporpara esse esquema os dois tipos fundamentais de fen6menos de vozesexperimentados pelo Presidente Schreber como substituic;:ao dessadeficiencia, dessa falta.

Esclarec;:o que, se esse oco ou esse vazio aparece, e porter sidoevocado ao menos uma vez 0 Nome-do-Pai - e na medida em queo que foi chamado num dado momenta no nIvel do Tu foi, justamente,o Nome-do-Pai como aquele que e capaz de ratificar a mensagem, eque, pOI' isso mesmo, c a garantia de que a lei como tal se apresentecomo auronoma. E esse 0 ponto de bascula, de virada, que precipitao sujeito na psicose, e deixo momentaneamente de lado 0 como, emqual momenta e pOI' que.

Naquele ano, comecei meu discurso sobre a psicose partindo deuma frase que extraf para voces de uma de minhas apresentac;:oes de

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aqui, na dimensao pura e rompida do significante como algo queso comporta sua significa'(ao para alem de si mesmo, algo que,por nao poder participar da autentica'(ao pelo Tu, manifesta-secomo nao tendo outro objetivo senao apresentar como ausente aposi'(ao do Tu, onde a significa'(ao se autentica. E claro que 0

sujeito se esfor'(a por complctar essa significa'(ao, e assim, fornececomplemcntos de suas frases: ~ Agora nao quero ~ dizem asvozes, mas em outro lugar ele diz a si mesmo que ele, Schreber,nao pode confessar que e uma ... A mensagem permanece rompidaaqui, por nao poder passar pela via do Tu, por so poder chegarao ponto gama como mensagem interrompida.

Creio lhes haver indicado suficientemente que a dimensao doOutro como lugar do deposito, do tesouro do significante, comporta,para que ele possa exercer plenamente sua fun'(ao de Outro, que eletenha tambem 0 significante do Outro como Outro. Tambem 0 Outrotern, alem dele, esse Outro capaz de dar fundamento it lei. Essa e umadimensao que, e claro, 15 igualmente da ordem do significante, e quese encarna em pessoas que sustentam essa autoridade. Que essaspessoas faltem, vez por outra, ou que haja carencia paterna, por~xemplo, no sentido de 0 pai ser imbecil demais, nao e 0 essencial.Oessencial e que 0 sujeito, seja por que lado for, tenha adquirido adimensao do Nome-do-Pai.

Acontece efetivamente, c claro, e voces podem levan tar nasbiografias, que 0 pai, muitas vezes, esta presente para lavar a lou'(ada cozinha com 0 avental da mulher. Isso nao basta, em absoluto,para determinar uma esquizofrenia.

aces so a ele ~ nao mais do que it satisfa'(ao do desejo, a pnnctpIOcOl'nudo, de que lhes falei ha pouco. Por isso e que, no ato, no famosoato da fala de que on tern nos falou a sra. Pankow, e na dimensao quechamamos metaforica que se realiza concretamente, psicologicamente,a invoca'(ao de que acabo de falar.

Em outras palavras, e preciso ter 0 Nome-do-Pai, mas e tambempreciso que saibamos servir-nos dele. E disso que 0 destino e 0

resultado de toda a historia podem depender muito.Existem palavras reais que acontecem em torno do sujeito, espe-

cialmente em sua infancia, mas a essencia da metafora paterna, quehoje lhes anuncio e da qual falaremos mais longamente da proximavez, consiste no seguinte triangulo:

Agora yOU colocar no quadro 0 esqueminha com 0 qual pretendointroduzir 0 que yOU lhes dizer da proxima vez, e que nos permitirafazer a articula'(ao da distin'(ao, que talvez lhes pare'(a meio escolas-tica, entre 0 Nome-do-Pai e 0 pai real ~ 0 Nome-do-Pai tal comopode faltar, ocasionalmente, e 0 pai que nao da a impressao de termuita necessidade de estar presente para nao faltar. Assim, youintroduzir 0 que sera objeto de minha aula da proxima vez, ou seja,o que desde ja intitulo de metafora paterna.

Urn nome nunca e mais do que urn significante como os outros.Certamente e importante te-Io, mas isso nao quer dizer que tenhamos

Tudo 0 que se realiza no S, sujeito, depende do que se coloca designificantes no A. Se 0 A e realmente 0 lugar do significante, elemesmo tern que trazer algum reflexo do significante essencial quelhes represento af nesse ziguezague, e que chamei, em outro lugar,em meu artigo sobre A carta roubada, de esquema L.

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Tres desses quatro pontos cardeais sao dados pelos tres termossubjetivos do complexo de Edipo como significantes encontrados emcada vertice do triangulo. Voltarei a isso da proxima vez, mas, pOl'enquanto, pec;o-lhes que aceitem 0 que estou dizendo, para abrir seuapetite.

o quarto termo e 0 S. Ele - nao apenas lhes admito isso, comoe daf que pat-timos - e, com efeito, inefavelmente esttipido, pois naotern seu significante. Esta fora dos tres vertices do triangulo edipianoe depende do que venha a acontecer nesse jogo. E 0 marto da partida.

\;E justamente pelo fato de a partida se estruturar dessa maneira - ouseja, de nao se realizar somente como uma partida particular, mascomo uma partida que se institui como regra - que 0 sujeito sedescobre dependente dos tres palos cham ados Ideal do eu, supereu erealidade.

Mas, para compreender a transfarmac;ao da primeira trfade naoutra, e preciso vel' que, par marto que seja, 0 sujeito, uma vez queha sujeito, esta na partida as suas proprias custas. Do ponto naoconstitufdo em que se encontra, ele tera de participar dela - se naocom seus trocados, pois talvez ainda nao os tenha, pelo menos comsua pele, isto e, com suas imagens, sua estrutura imaginaria e tudo 0que se segue. Assim e que 0 quarto termo, 0 S, vem representar-seem algo de imaginario que se op6e ao significante do Edipo, e quetambcm deve ser, para que isso funcione, ternario.

E claro que ha todo urn estoque, toda a bagagem das imagens.Para conhece-Ia, abram os livros do sr. lung c sua escola, e vocesverao que ha imagens a rodo - e coisa que brota e vegeta pOl' todaparte: existem a serpente, 0 dragao, as lfnguas, 0 olho flamejante, aplanta, 0 vasa de flores, a zeladara do predio. Todas sao imagensfundamentais, incontestavelmente carregadas de significac;ao, so quenao ha rigorosamente nada a fazer com elas, e, se voces ficaremperambulando nesse nfvel, so conseguirao perder-se com sua lanternana flaresta vegetante dos arquetipos primitivos.

Quanto ao que nos interessa, ou seja, a dialetica intersubjetiva,ha tres imagens selecionadas - estou articulando meu pensamentomeio depressa - que assumem 0 papel de guias. Isso nao e diffcilde compreender, uma vez que algo e como que totalmente preparadonao apenas para ser 0 hom610go da base do triangulo mae-pai-filho,mas para se confundir com ele - e a relac;ao do carpo despedac;adoe, ao meSillO tempo, envolto num born ntimero dessas imagens de quefalavamos, com a func;ao unificadora da imagem total do carpo. Em

outras palavras, a relac;ao do eu com a imagem especular ja nos fornccca base do triangulo imaginario, aqui indicado pelo pontilhado.

<P r-----------------------

,

o outro ponto c precisamente on de veremos 0 efeito da metaforapaterna.

Esse outro ponto, eu 0 trouxe a voces em meu seminario do anopassado sobre a relac;ao de objeto, mas agara voces 0 verao assumirseu lugar nas formac;6es do inconsciente. Esse ponto, creio que voceso reconheceram pelo simples fato de ve-Io aqui como terceiro com amae e 0 filho. Aqui voces 0 veem numa outra relac;ao, que de modoalgum lhes mascarei no ana passado, uma vez que terminamos narelac;ao com 0 Nome-do-Pai daquele que fizera surgir a fantasia docavalinho em nosso Pequeno Hans. E~~(?terceiroponto - finalmenteo denomino, e acho que todos voces·o tern na ponta da lfngua - !laoe outro senao 0 falo. E e par isso que 0 falo ocupa urn lugar de objetotao central na economia freudiana.

Isso basta, por si so, para nos mostrar onde esta a errancia dapsicanalise de hoje. E que ela se afasta cada vez mais dele. Elude afunc;ao fundamental do falo, com 0 qual 0 sujeito se identificaimaginariamente, e 0 reduz a ideia de objeto parcial. Isso nos levade volta a comedia.

Vou deixa-Ios com isso pOl' hoje, depois de haver mostrado parquais caminhos 0 discurso complexo no qual tento reunir tudo 0 quelhes apresentei se ajusta e se mantem unido.

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voces a veem presentificada. Freud introduziu-a logo de inicio, umavez que 0 complexo de Edipo aparece desde A ciencia dos sonhos.o que 0 inconsciente revela, no principio, e, acima de tudo, 0 complexode Edipo. A importancia da revelal;ao do inconsciente e a amnesiainfantil, que incide sobre 0 que? Sobre a existencia dos desejos infantispela mae e sobre 0 fato de esses desejos serem recalcados. E naoapenas eles sao reprimidos, como se esquece que esses desejos saoprimordiais. E nao apenas sao primordiais, como estao sempre pre-sentes. Foi dai que pat"tiu a analise e e a partir dai que se articula urncerto numero de indagal;oes clinicas.

Tentei ordenar para voces, num certo numero de direl;oes, asquestoes que se colocaram na historia da analise a proposito do Edipo.

Supereu, Realidade, Ideal do euVariedade da carencia paternaA delicada questao do Edipo invertidoD falo como significadoAs dimensoes da Dutra coisa

Distingo tres polos historicos, que you situar resumidamente.No primeiro inscrevo uma questao que marcou epoca. Tratava-se

de saber se 0 complexo de Edipo, inicialmente promovido comofundamental na neurose, mas que a obra de Freud transformava emalgo universal, encontrava-se nao somente no neurotico, mas tambemno normal. E por uma boa razao: a de 0 complexo de Edipo ter umafunl;ao essencial de normalizal;ao. Assim, podia-se, por urn lado,considerar que era um acidente do Edipo que provocava a neurose,mas, por Olltro, formular a pergunta: existem neuroses sem Edipo?

Algumas observal;oes, com efeito, parecem indicar que 0 dramaedipiano nem sempre desempenha 0 papel essencial, cabendo este,por exemplo, a relal;ao exclusiva do filho com a mae. A experiencia,pOltanto, obrigava a admitir que podia haver sujeitos que apresentas-sem neuroses em que nao houvesse Edipo algum. Lembro-Ihes que"Neurose sem complexo de Edipo?" e precisamente 0 titulo de urnartigo de Charles Odier.

A ideia da neurose sem Edipo e correlata do conjunto das perguntasformuladas sobre 0 que se denominou de supereu materno. Nomomento em que foi levantada a questao da neurose sem Edipo, Freudja havia formulado que 0 supereu era de origem paterna. Houve entaoquem se interrogasse: sera que 0 supereu e mesmo unicamente deorigem paterna? Nao havera na neurose, por tras do supereu paterno,urn supereu materna ainda mais exigente, mais opressivo, mais de-vastador, mais insistente?

Excepcionalmente, anunciei 0 titulo daquilo de que lhes falarei hoje,ou seja, a metafora paterna.

Nao faz muito tempo, alguem, urn pouquinho inquieto, imagino,com 0 rumo que eu daria as coisas, perguntou-me: - De que 0 senhorespera nos Jalar na continua<;iio do ano? E respondi: - Esperoabordar questoes de estrutura. Desse modo, nao me comprometi. Noentanto, e realmente de questoes de estrutura que tenciono lhes falareste ano a proposito das formal;oes do inconsciente. Para dize-Io emtermos simples, trata-se de colocar no lugar as coisas de que vocesfalam todos os dias, e com as quais se atrapalham todos os dias, aponto de ja nem sequer incomoda-Ios.

A meUifora paterna, pois, concerne a fun<;:ao do pai, como se diriaem termos de rela<;:oes inter-humanas. Todos os dias voces se deparamcom complica<;:oes em sua maneira possivel de fazer uso dela, comourn conceito que adquiriu urn certo ar familiar desde 0 tempo em quevoces come<;:aram a falar dele. Trata-se, justamente, de saber se vocesfalam disso sob a forma de urn discurso realmente coerente.

A fun<;:ao do paL tern seu lugar, urn lugar bastante grande, nahistoria da analise. Esta no centro da questao do Edipo, e e ai que

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Nao quero estender-me demoradamente, pois temos um longocaminho a percorrer. POl"tanto, esse e 0 primeiro p610, no qual seagrupam os casos excepcionais e a rela\;ao entre 0 supereu paterno eo supereu materno.

Agora, 0 segundo polo.Independentemente da questao de saber se 0 complexo de Edipo

existe ou falta num dado sujeito, houve quem se indagasse se to doum campo da patologia que vem se oferecer a nossos cuidados emnossa jurisdi\;ao nao poderia estar referido ao que chamaremos decampo pre-edipiano.

Existe 0 Edipo, esse Edipo e considerado representante de umafase e, quando ha maturidade num certo momenta da evolu\;ao dosujeito, 0 Edipo esta sempre presente. Mas 0 que 0 pr6prio Freudhavia afirmado muito rapidamente, nos primeiros momentos de suaobra, cinco anos depois de A ciencia dos sonhos, nos Tres ensaiossobre a teoria da sexualidade, era de molde a deixar claro que 0 quese passa antes do Edipo tambem tinha sua importancia.

Em Freud, com certeza, isso assume sua importancia, mas atravesdo Edipo. So que, nessa cpoca, a no\;ao da retroa\;ao, de umaNachtriiglichkeit do Edipo, para a qual voces sabem que 0 tempo todochama aten\;ao aqui de maneira insistente, nunca, nunca fora valori-zada. Essa ideia parecia escapar ao pensamento. Pensava-se apenasnas exigencias do passado temporal.

Algumas partes de nosso campo de experiencia relacionam-seespecialmente com esse campo das ctapas pre-edipianas do desenvol-vimento do sujeito, quais sejam, a perversao, de um lado, e a psicose,de outro.

A perversao era, para alguns, 0 estado primario, 0 est ado bruto.Gra\;as a Deus, ja nao estamos nesse ponto. Se, nos prim6rdios, essaconcep\;ao foi legitima, pelo menos a titulo de uma aproxima\;ao daquestao, certamente ela 0 e menos em nossos dias. A perversao eraconsiderada essencialmente uma patologia cuja etiologia devia serespecificamente referida ao campo pre-edipiano, e que extraia seucondicionamento de uma fixa\;ao anormal. Foi por essa razao, alias,que a perversao foi considerada apenas como a neurose invertida, ou,mais exatamente, como a neurose mantida patente, nao tendo sidoinvertida. 0 que se invertera na neurose era visto as clm"as na perversao.Posto que a perversao nao teria sido recalcada nem passado peloEdipo, 0 inconsciente ficava exposto a ceu aberto. Essa e umaconcep\;ao na qual ninguem mais se detem, 0 que nao quer dizer, noentanto, que estejamos mais avan\;ados nisso.

Assinalo, pois, que em torno da questao do campo prc-edipianoreunem-se a .questao da perversao e a da psicose.

Tudo de que se trata ai po de agora se esclarecer para nos dediversas maneiras. Quer consideremos a perversao ou a psicose,sempre se trata da fun\;ao imaginaria. Mesmo sem ter sido especial-mente introduzido no manejo que dela fazemos aqui, qualquer umpo de perceber a importancia especial da imagem nesses dois registros,sob angulos diferentes, e claro. Uma invasao endofasica, feita depalavras ouvidas, nao e 0 carater estorvador parasitario, de umaimagem numa perversao, mas, em ambos os casos, trata-se de mani-festa\;aes patol6gicas nas quais 0 campo da realidade e profundamenteperturb ado por imagens.

A historia da psicanalise nos atesta que c especial mente ao campoprc-edipiano que a experiencia, a preocupa\;ao com a coerencia e amaneira como a teoria c fabricada e se mantem de pc fizeram comque fossem atribufdas as perturba\;aes, profundas, em alguns casos,do campo da realidade pela invasao do imaginario. 0 termo imaginario,alias, parece render mais servi\;os do que 0 termo fantasia, que seriai111proprio para falar das psicoses e perversaes. Toda uma dire\;ao daanalise enveredou pelo sentido da explora\;ao do campo prc-edipiano,a ponto de ate podermos dizer que foi nesse caminho que se fizeramtodos os progressos essenciais desde Freud.

Destaco, a esse respeito, 0 paradoxo, essencial para nosso temade hoje, constitufdo pela obra da sra. Melanie Klein.

Numa obra, assim como em qualquer produ\;ao em palavras,existem dois pIanos. Por um lado, ha 0 que ela diz, 0 que ela formulaem seu discurso, 0 que ela quer dizer, na medida em que ha em seusentido, separando 0 quer e 0 dizer, sua inten\;ao. Alem disso, nosnao serfamos analistas, no sentido como tento fazer as coisas serementendidas aqui, se nao soubcssemos que, as vezes, ela diz umpouquinho mais do que isso. De habito, alias, c nisso que consistenossa abordagem - em captar 0 que e dito para alcm do que se querdizer. A obra da sra. Melanie Klein diz coisas que tem toda a suaimportancia, mas pOl' vezes simplesmente pel as contradi\;aes internasde seus textos, os quais podem estar sujeitos a algumas crfticas, quealias foram feitas. E ha tambcm 0 que ela diz sem querer dizer, euma das coisas mais impressionantes a esse respeito c a seguinte.

Essa mulher, que nos trouxe visaes profundas, muito esclarece-doras, nao apenas sobre 0 tempo pre-edipiano, mas sobre as crian\;asa quem examinou e analisou numa etapa supostamente pre-edipiana,numa primeira aproxima\;ao da teoria, essa analista, que abordou

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necessariamente temas nessas crianc;as em termos as vezes pre-verbais,quase que no surgimento da fala - pois bem, quanta mais ela remontoua epoca da pretensa historia pre-edipiana, mais enxergou nesta, maiscontinuou aver 0 tempo todo como algo permanente, a interroga\;aoedipiana.

Leiam seu artigo que concerne, precisamente, ao Edipo. Ali, eladescreve uma etapa extremamente precoce do desenvolvimento, achamada etapa da formac;ao dos maus objetos, que e anterior a chamadafase paranoide-depressiva, que esui ligada ao aparecimento do corpoda mae em sua totalidade. A ouvirmos 0 que ela diz, 0 papelpredominante na evoluc;ao das primeiras rela\;6es objetais infantisseria desempenhado pelo interior do corpo da mae, que concentrariatoda a aten\;ao da crianc;a. Ora, voces constatarao com surpresa que,baseando-se em desenhos, em ditos e em toda uma reconstruc;ao dapsicologia da crianc;a nessa etapa, a sra. Melanic Klein nos atesta que,entre os maus objetos presentes no corpo da mae - dentre eles, todosos rivais, 0 corpo dos irmaos e irmas, passados, presentes e futuros-, ha, muito precisamente, 0 pai, representado sob a forma de seupenis.

Esse e realmente um achado que justifica que nos detenhamosnele, uma vez que se situa nas primeiras etapas das relac;6es imagi-narias, as quais podem vincular-se as func;6es propriamente esquizo-frenicas e psicoticas em geral. Essa contradic;ao tem todo 0 seu valor,considerando-se que a intenc;ao da sra. Melanie Klein era explorar osestados pre-edipianos. Quanto mais ela recua no plano imaginario,mais constata a precocidade - muito diffcil de explicar, se nosativermos a uma ideia puramente historica do Edipo - do apareci-mento do terceiro termo paterno, e isso desde as primeiras fasesimaginarias da crianp. E nisso que digo que a obra diz mais do quepretende dizer.

Af estao, pOI'tanto, ja definidos, dois palos da evoluc;ao do interesseem to}'no do Edipo - primeiro, as quest6es do supereu e das neurosessem Edipo, e segundo, as quest6es concernentes as perturba~6es quese produzem no campo da realidade.

Terceiro polo, que nao e menos merecedor de comentarios: arelac;ao do complexo de Edipo com a genitaliza~ao, como se costumadizer. Nao se trata da mesma coisa.

Por um lado - ponto que muitas explora~6es e discuss6es nahistoria fizeram passar para 0 segundo plano, mas que continuaimplfcito em todas as clfnicas -, 0 complexo de Edipo tem umafun~ao normativa, nao simplesmente na estrutura moral do sujeito,

nem em suas relac;6es com a realidade, mas quanta a aSSUn\;aOde sellsexo - 0 que,. como voces sabem, sempre persiste, na analise, dentrode uma certa ambigliidade. POI' outro lado, a fun~ao propriamentegenital e objeto de uma maturac;ao, apos uma primeira onda sexualde ordem organica, para a qual se buscou um apoio anatomico nadupla onda dos testfculos e na forma~ao dos espermatozoides. Arela~ao entre essa onda organic a e a existencia do complexo de Edipona especie humana permanece como uma questao filogenetica sobrea qual paira muita obscuridade, a ponto de ninguem mais se arriscara escrever artigos sobre 0 assunto. Mas, enfim, nem por isso a questaodeixou de estar presente na historia da analise.

A questao da genitaliza~ao e dupla, portanto. Ra, por um lado,um ,saIto que comporta uma evolu~ao, uma matura~ao. Por outro, hano Edipo a assun~ao do proprio sexo pelo sujeito, isto e, para darmosos nomes as coisas, aquilo que faz com que 0 homem assuma 0 tipoviril e com que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconhe\;acomo mulher, identifique-se com suas fun~6es de mulher. A virilidadee a feminiza\;ao SaG os dois termos que traduzem 0 que e, essencial-t;lente, a fun~ao do Edipo. E_ncontramo-nos, af, no nfvel em que 0

Edipo esta diretamente ligado a fun~ao do Ideal do eu - ele nao temoutro senti do.

Sao esses, portanto, os tres capftulos nos quais voces poderaoclassificar todas as discuss6es que se produziram em torno do Edipo,e, ao mesmo tempo, em torno da func;ao do pai, pois se trata de umaunica e mesma coisa. Nao existe a questao do Edipo quando naoexiste 0 pai, e, inversamente, falar do Edipo e introduzir como essenciala fun~ao do pai.

Repito, para aqueles que tom am notas. Com respeito ao temahis5orico do complexo de Edipo, tudo gira em torno de trcs palos -o Edipo em relac;ao ao supereu, em rcIac;ao a realidade e em rela<;aoao Ideal do eu. Ideal do eu na medida em que a genitaliza<;ao, ao serassumida, torna-se um elemento do Ideal do eu. E realidade na medidaem que se trata das rela<;6es do Edipo com as afecc;6es que comportamuma subversao da rela~ao com a realidade - a perversao e a psicose.

Resumo isso no quadro, com um complemento cuja significa<;aovoces verao mais adiante.

Supereu RjRealidade S ~ S'.r

Ideal do eu I.s

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mais grave quando ele era extremamente gentil. As escolas fmallJ

feitas com Jentidao, e agora, pOl·tanto, estamos no extrema oposto, anos interrogar sobre as carencias paternas. Existem os pais fracos, ospais submissos, os pais abatidos, os pais castrados pela mulher, enfim,os pais enfermos, os pais cegos, os pais cambaios, tudo 0 que quiserem.Conviria ten tar perceber 0 que se depreende de tal situas;ao, e encontrarformulas minimas que nos permitissem progredir.

Primeiro, a questao de sua presens;a ou de sua ausencia, con creta,como elemento do meio ambiente. Se nos colocarmos no nivel emque se desenrolam essas pesquisas, isto e, no nivel da realidade,poderemos dizer que e perfeitamente possivel, concebivel, exeqiiivel,palpavel pela experiencia, que 0 pai esteja presente mesmo quandonao esta, 0 que ja deveria nos incitar a uma certa prudencia no manejodo ponto de vista ambientalista no que concerne a funs;ao do pai.Mesmo nos casos em que 0 pai nao esta presente, em que a crians;ae deixada sozinha com a mae, complexos de Edipo inteiramentenormais - narmais nos dois sentidos: normais como normalizadares,par urn lado, e tambem normais no que se desnormalizam, isto e, pOl'seu efeito neurotizante, pOl' exemplo - se estabelecem de maneiraexatamente homologa ados outros casos. E 0 primeiro ponto que nosdeve chamaI' a atens;ao.

No que concerne a carencia do pai, gostaria simplesmente de lhesassinalar que nunca se sabe em que 0 pai e carente. Em certos casos,dizem-nos que ele e meigo demais, 0 que parece dizer que the conviriaser malvado. Par outro lado, 0 fato de ele poder ser muito mau,manifestamente, implica que mais valeria talvez, de tempos emtempos, que fosse meigo. Finalmente, faz muito tempo que esgota-ram-se as voltas desse pequeno carrossel. Vislumbrou-se que 0 pro-blema da carcncia do pai nao concernia diretamente a crians;a emquestao, mas, como ficou evidente desde 0 inicio, que era possivelcomes;ar a dizer coisas urn pouco mais eficazes acerca dessa carencia,tomando 0 pai como aquele que tern de manter seu lugar como membrodo trio fundamental da famnia. Nem par isso, entretanto, conseguiu-seformular melhar aquilo de que se tratava.

Nao quero me estender longamente a esse respeito, mas ja falamos,no ana passado, a proposito do Pequeno Hans. Vimos as dificuldadesque tivemos para esclarecer bern, unicamente do ponto de vistaambientalista, em que residia a carencia do personagem paterno, postaque ele estava longe de ser carente em sua familia - estava ali, aolado da mulher, sustentava seu papel, discutia, ate se fazia mandaI' iras favas pela mulher, mas, enfim, cuidava muito do filho, nao era

Estando suficientemente presentes para sua aprecias;ao esses conjuntosmacis;os, globais, sublinhados pela historia, avans;aremos para 0 que,no terceiro capitulo - a funs;ao do Edipo como repercutindo direta-',mente na assuns;ao do sexo -, concerne a questao do complexo de'Icastras;ao no que cia tern de pouco elucidado., E comum tomarmos as coisas pela vertente da clfnica, perguntandoa nos mesmos a respeito dos casos, com toda a boa-fe: - Mas, e 0

pai? Que estava fazendo 0 pai enquanto isso? Em que esta implicadonessa historia?

A questao da ausencia ou da presens;a do pai, do carateI' beneficoou malefico do pai, certamente nao e velada. Ate vimos aparecer,recentemente, a expressao "carencia paterna", 0 que equivaleu aprocurar enfrentar urn ass unto nada insignificante; saber 0 que se p6dedizer a esse respeito, e se foi algo capaz de se sustentar, ja e umaoutra questao. Mas, enfim, essa carencia paterna, quer a chamemosou nao dessa maneira, e urn ass unto da ordem do dia numa evolus;aoda analise que vai se tornando cada vez mais ambientalista, comotambem se costuma dizer.

Nem todos os analistas incorrem nessa mania, gras;as a Deus.Muitos analistas a quem voces levarem informas;6es biograficas inte-ressantes, do tipo Mas os pais nao se entendiam, havia um desenten-dimento conjugal, isso explica tudo, lhes responderao, inclusive aque-les com quem nem sempre estamos de acordo: - E daf? [sso naoprova absolutamente nada. Nao devemos ater-nos a nenhuma especiede efeito particular - e terao razao.

Dito isso, ao procurarmos a carencia paterna, pelo que nosinteressamos no que concerne ao pai? As perguntas acumulam-se noregistro biografico. 0 pai estava ou nao estava presente? Sera queviajava, que se ausentava, sera que voltava com freqiiencia? E tambem- sera que urn Edipo pode constituir-se narmalmente quando naoexiste pai? Trata-se de perguntas que san muito interessantes em si,e digo mais, foi pOl' essa maneira que se introduziram os primeirosparadoxos, os que levaram a formulas;ao das perguntas que vieramdepois. Percebeu-se entao que urn Edipo podia constituir-se muitobern, mesmo quando 0 pai nao estava presente.

Bern no comes;o, achava-se sempre que era algum excesso depresens;a paterna, ou excesso de pai, que engendrava todos os dramas.Foi a epoca em que a imagem do pai aterrarizante era consideradaurn elemento lesivo. Na neurose, logo se percebeu que isso era ainda

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ausente, e era Uio pouco ausente que ate mandou analisa-lo, 0 que Co melhor ponto de vista que se pode esperar de urn pai, pelo menosnesse sentido.

A questao da carencia do pai merece que retornemos a ela, mas,neste ponto, entramos num mundo tao movedi<,;o que e preciso ten tarfazer uma distin<,;ao que permita vel' em que peca a pesquisa. Ela pecanao pelo que deseobre, mas pelo que procura. Creio que 0 erro deorienta<,;ao e este: confundem-se duas coisas que estao relacionadas,mas que nao se confundem - 0 pai como normativo e 0 pai comonormal. Q pai pode, e claro, ser muito desnormatizador, na medidaem que ele mesmo nao seja normal, mas isso e rejeitar a questao parao nlvel da estrutura - neur6tica, psic6tica - do pai. Logo, anormalidade do pai e uma questao, e a de sua posic;ao normal nafamflia e outra.

Terceiro ponto que proponho: a questao de sua posi<,;ao na famflianao se confunde com uma defini<,;ao exata de seu papel normatizador.Falar de sua carencia na famflia nao e falar de sua carencia nocomplexo. De fato, para falar de sua carencia no complexo, e precisointroduzir uma outra dimensao que nao a dimensao realista, definidapelo modo caracterol6gico, biogr:ifico ou outro de sua presenc;a nafamilia.

E nessa direc;ao que daremos 0 passo seguinte.

IllI i Ilconsciente, que ele realiza a interdic;ao da mae. Voces esUio(':'lln;lI1do que eu diga: sob a amea(:a de castra(:ilo, E verdade, convemdl/.C'lo, mas isso nao e tao simples. E certo que a castrac;ao tern nissoIII1I papel manifesto e cada vez mais confirmado. 0 vinculo dal;lslra<;ao com a lei e essencial, mas, vejamos como isso se apresenta;1 Ill')S clinicamente. Sou obrigado a lhes recordar isso, porque minhasl( doca<;6es sem duvida despertam em voces toda sorte de evocac;6esIl'xluais.

Tomemos, primeiro, 0 menino. A rela<,;ao entre 0 menino e 0 pai(' dominada, como se sabe, pelo medo da castrac;ao. 0 que e esseIllcdo da castrac;ao? Por que vertice devemos aborda-lo? N6s 0

ahordamos na primeira experiencia do complexo de Edipo, mas, sobqual forma? Como uma represalia no interior de uma relac;ao agressiva.Essa agressao parte do filho, na medida em que seu objeto privilegiado,a mae, the e proibido, e se dirige ao pai. E retorna para ele em fun<,;aoda relac;ao dual, uma vez que ele projeta imaginariamente no paiintenc;6es agressivas equivalentes ou refor<,;adas em relac;ao as suas,mas que tem como ponto de partida suas pr6prias tendencias agres-sivas. Em suma, 0 medo experimentado diante do pai e nitidamentecentrlfugo, quer dizer, tern seu centro no sujeito. Essa apresentac;aoe simultaneamente con forme a experiencia e a hist6ria da analise. Foisob esse angulo que a experiencia nos ensinou, com muita rapidez,que era preciso mediI' a incidencia do me do experimentado no Edipoem relac;ao ao pai.

Apesar de profundamente ligada a articulac;ao simb6lica da proi-bic;ao do incesto,a castrac;ao manifesta-se, pOl'tanto, em toda a nos saexperiencia, e particularmcnte, nos que sao seus objetos privilegiados,ou seja, os neur6ticos, no plano imaginario. E al que tern seu pontode partida. Ela nao parte de uma ordem do tipo da formulada pelalei de Manu - Aquele que deitar com sua mile tera que cortar seusproprios orgilos genitais e, segurando-os com a milo dire ita - ouesquerda, ja nao me lembro muito bem -, ira diretamente para 0

Oeste, ate que sobrevenha a morte. Essa e a lei, mas essa lei naochegou especial mente como tal aos ouvidos de nossos neur6ticos. Emgeral, e ate mais deixada na sombra. Existem, alias, outros meios deescapar-lhe, mas nao tenho tempo de me estender sobre isso hoje.

Logo, a maneira como a neurose encarna a ameac;a de castrac;aoest a ligada a agressao imaginaria. E uma retaliac;ao. Na medida emque Jupiter e perfeitamente capaz de castrar Cronos, nossos pequenosJupiteres temem que 0 pr6prio Cronos comece fazendo 0 trabalho.

Agora que voces estao venda mais ou menos 0 estado atual da questao,YOU tentar colocar urn pouco de ordem para situar os paradoxos.Passcmos a introduzir mais corretamentc 0 papcl do pai. Se e seulugar no complexo que nos po de indicar a direc;ao pol' onde avan<,;are enunciar uma formulac;ao correta, interroguemos agora 0 complexo,e comecemos relembrando 0 be-a-ba.

Para comec;ar, 0 pai terrlvel. Apesar de tudo, a imagem resumealguma coisa muito mais complexa, como indica 0 nome. 0 paiintervem em diversos pIanos. Antes de mais nada, interdita a mae.Esse e 0 fundamento, 0 principio do complexo de Edipo, e al que 0

pai se liga a lei primordial da proibic;ao do incesto. E 0 pai, recor-dam-nos, que fica encarregado de representar essa proibic;ao. As vezes,tem de manifesta-Ia de maneira direta, quando a crianc;a se deixa levarpOl' suas expans6es, manifestac;6es e pendores, mas e para alem dissoque ele exerce esse papel. E pOl' toda a sua presenc;a, pOl' seus efeitos

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o exame do complexo de Edipo, a maneira como ele foi apre-sentado pela experiencia, como foi introduzido por Freud, como foiarticulado na teoria, traz-nos ainda outra coisa, que e a questao delicadado Edipo invertido. Nao sei se isso Ihes parece evidente, mas, a lermoso artigo de Freud, ou qualquer artigo de qualquer autor sobre 0 assunto,toda vez que e abordada a questao do Edipo, sempre ficamos impres-sionados com 0 papel extremamente m6vel, cambiante, desconcertan-te, desempenhado pela fun<;ao do Edipo invertido.

Esse Edipo invertido nunca esui ausente da fun<;ao do Edipo, istoe, nao se pode eludir dele 0 componente do amor pelo pai. E ele queproporciona 0 termino do complexo de Edipo, seu declfnio, numadialetica, que se mantem muito ambfgua, do amor e da identifica<;ao,da identifica<;ao como enraizada no amor. Identifica<;ao e amor naosao a mesma coisa - podemos identificar-nos com alguem semama-Io, e vice-versa -, mas, ainda assim, os dois termos sao estrei-tamente ligados e absolutamente indissociaveis.

Leiam no artigo de Freud sobre 0 declfnio do complexo, DerUntergang des Odipuskomplex, de 1924, a explica<;ao que ele fornecesobre a identifica<;ao terminal que constitui sua solu<;ao. E na medidaem que 0 pai e amado que 0 sujeito se identifica com ele, e queencontra a solu<;ao terminal do Edipo numa composi<;ao do recalqueamnesico com a aquisi<;ao, nele mesmo, do termo ideal gra<;as ao qualele se transforma no pai. Nao estou dizendo que desde logo eimediatamente ele scja urn pequeno macho, mas ele po de tornar-sealguem, ja esta com seus tftulos de propriedade no bolso, com a coisaguardada, e, quando chegar 0 momento, se tudo correr bern, se 0 gatonao come-Io, no momenta da puberdade, ele tel'a seu penis prontinho,junto com seu certificado - Ai esta papai que no momento certo 0

conferiu a mim.Isso nao acontece dessa maneira quando eclode a neurose, justa-

mente pOl'que ha alguma irregularidade no tftulo em questao. S6 queo Edipo invertido tambem nao e simples assim. E pelo mesmo caminho,o do amor, que pode produzir-se a posi<;ao de inversao, ou seja, aoinves de uma identifica<;ao benefica, 0 sujeito se descobre afetado poruma bela posi<;aozinha apassivada no plano inconsciente, que nomomenta certo fara seu reaparecimento, colocando-o numa especiede bissetriz de angulo squeeze-panic." Trata-se de uma posi<;ao que

captura 0 sujeito, que ele descobre sozinho e que e muito vantajosa.Ela consiste nisto: ante esse pai temfvel, que proibiu muitas coisas,mas que, por outro lado, e muito gentil, colocar-se em boas condi<;6esde cair em suas gra<;as, isto e, de se fazer amar pOl' ele. Entretanto,uma vez que fazer-se amar pOl' ele consiste em passar, primeiramente,para a categoria de mulher, e, como cada urn sempre conserva seupequeno amor-pr6prio viril, essa posi<;ao, como nos explica Freud,comport a 0 perigo da castra<;ao, donde aquela forma de homossexua-lidade inconsciente que coloca 0 sujeito numa situa<;ao conflitante,com multiplas repercuss6es: pOl' urn lado, 0 retorno con stante daposi<;ao homossexual em rela<;ao ao pai, e pOl' outro, sua suspensao,isto e, seu reealque, em razao da amea<;a de castra<;ao que essa posi<;aocomporta.

Nada disso e muito simples. Ora, estamos justamente tentandoelaborar uma coisa que nos permita concebe-Io de maneira maisrigorosa e formular melhor nossas perguntas em cada casu particular.

Resumamos entao. Como ha pouco, 0 resumo consistira emintroduzir urn certo numero de distin<;6es que sao 0 preltidio dafocaliza<;ao do ponto que nao funciona. Ja ha poueo nos havfamosaproximado disto, de que era em torno do Ideal do eu que a perguntanao tinha sido formulada. Tratemos, aqui tambem, de fazer a redu<;aoque acabamos de abordar. Proponho-lhes 0 seguinte: nao e avan<;ardemais dizer, desde logo, que 0 pai aparece aqui na posi<;ao deinc6modo. Nao simplesmente pOl'que seria urn estorvo em decorrenciade seu volume, mas pOl'que ele profbe. 0 que profbe ele, precisamente?

Retomemos e distingamos. Devemos fazer entrar em jogo 0

aparecimento da pulsao genital e dizer que ele profbe, em primeirolugar, sua satisfa<;ao real? POI' urn lado, esta realmente parece intervirantes. Mas tambem fica claro que alguma eoisa se articula em tornodo fato de ele proibir 0 menininho de se servir de seu penis nomomenta em que 0 referido penis come<;a a manifestar veleidades.Diremos, pois, que se trata da proibi<;ao do pai em rela<;ao a pulsaoreal.

Mas, pOl' que 0 pai? A experiencia prova que a mae tambem 0

faz tao bem quanto ele. Lembrem-se da observa<;ao do Pequeno Hans,onde e a mae quem diz: - Ponha isso para dentro, isso niio se taz.

corrente, e 0 ate de exercer pressao para arrancar uma concessao ou vantagem, Lacancunhou squeeze-panic, que poderia traduzir-se por algo como "obten~ao de vantagensatraves do panico". (N.E.)

* Talvez inspirado na expressao inglesa squeeze play, que design a, no bridge, 0

lance com que se for~a 0 adversario a se desfazer de urn trunfo, e que, na linguagem

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Em geral, na maioria das vezes, e a mae quem diz: - Se vocecontinuar a fazer isso, vamos chamar 0 doutor para corta-lo fora.Convem, portanto, assinalar que 0 pai, na medida em que profbe nonfvel da pulsao real, nao e muito essencia!. Retomemos, a prop6sitodisso, 0 que eu Ihes trouxe no ana passado - como veem, isso sempreacaba servindo -, meu quadro em tres patamares:

sc torna urn objeto preferfvel a mae, seja por que vertente for, pelolado da fon;a ou pelo da fraqueza, que pode estabelecer-se a identi-lical;ao final. A questao do complexo de Edipo invertido e de sua11I1ll;ao se estabelece nesse nfve!' Direi mais: e af que se centra aqllcstao da diferen~a do efeito do complexo no menino e na menina.

Isso nao traz dificuldades quando se trata da menina, e e pOl' essarazao que se diz que a fun~ao do complcxo de castra~ao e dissimetrica110menino e na menina. E na entrada que fica a dificuldade para ela,ao passo que, no fim, a solu~ao e facilitada, pOl'que 0 pai nao terndificuldade de se fazer preferir a mae como portador do falo. Para 0

menino, em contrapartida, e uma outra hist6ria, e e af que fica abertaa hiancia. Como e que 0 pai se faz preferir a mae, na medida em quec por af que se produz a safda do complexo de Edipo? Estamos dianteda mesma dificuldade com que havfamos deparado a prop6sito dainstaura~ao do complexo de Edipo invertido. POl' isso, parece-nos que,para 0 menino, 0 complexo de Edipo e sempre 0 que ha de menosnormatizador, ao pas so que, ainda assim, ele fica implicado. Dizemate que ele e 0 mais normatizador, visto que e pela identifica~ao como pai que a virilidade e assumida.

Por fim, 0 problema e saber como a fun~ao essencialmenteproibidora do pai nao conduz, no menino, ao que e a conclusaoclarfssima do terceiro plano, isto e, a priva~ao correlacionada com aidentifica<;ao ideal, que tende a se produzir tanto no menino quantana menina. E na medida em que 0 pai se torn a 0 Ideal do eu que seproduz na menina 0 reconhecimento de que ela nao tern falo. Masisso e 0 que ha de born para ela - ao passo que, para 0 menino,seria urn resultado absolutamente desastroso, e as vezes e. Aqui, 0

agente e I, enquanto 0 objeto e s - Ls.Em outras palavras, no momenta da safda normatizadora do Edipo,

a crian~a reconhece nao ter - nao tel' realmente aquilo que tern, nocasu do menino, e aquilo que nao tern, no casu da menina.

o que acontece no nfvel da identifica~ao ideal, nfvel em que 0

pai se faz preferir a mae e ponto de safda do Edipo, deve levar,literalmente, a priva~ao. Para a menina, esse resultado e total menteadmissfvel e totalmente gerador de conformidade, embora nunca sejacompletamente atingido, pois sempre Ihe fica urn pequeno amargo naboca, ao qual se da 0 nome de Penisneid, prova de que isso naofunciona de maneira realmente rigorosa. tvIas_'_l1ocaso em que issotern de funcionar, se nos ativermos a esse esquema, 0 menino, porsua vez, deveria ser sempre castrado. Ha, portanto, alguma coisa quenao bate, algo que falta em nossa explica~ao.

Castra<;ao

Frustra~ao

Priva~ao

De que se trata, no plano da amea~a de castra~ao? Trata-se dainterven~ao real do pai no que concerne a uma amea~a imagimiria,R.i, pois e muito raro suceder que ele Ihe seja realmente cortado.Ressalto que, neste quadro, a castra~ao e urn ato simb61ico cujo agentee algucm real, 0 pai ou a mae, que Ihe diz Vamos mandar corta-lo,e cujo objeto c urn objeto imaginario - se 0 menino se sente cortado,

; e por imaginal' isso. Vou assinalar-Ihes que isso c paradoxal. Vocespoderiam objetar-me: - Esse e propriamente ° nivel da castra<;ao,e 0 senhor diz que 0 pai nao e tao lltil assim! Pois e justamente 0

que digo, isso mesmo.Por outro lado, 0 que 0 pai profbe? Esse foi 0 ponto de que

par"timos - ele profbe a mae. Como objeto, ela e dele, nao e do filho.E nesse plano que se estabelece, pelo menos numa certa etapa, tantono menino quanta na menina, aquela rivalidade com 0 pai que, porsi mesma, gera uma agressao. 0 pai efetivamente frustra 0 filho daposse da mae.

Eis urn outro patamar, 0 da frustral;ao. Nesse, 0 pai intervemr como detentor de urn direito, e nao como personagem real. Mesmoque nao esteja presente, mesmo que telefone para a mae, por exemplo,o resultado e identico. Nesse ponto, C 0 pai como simb6lico queintervem numa frustra<;ao, ato imaginario concernente a urn objetomuito real, que e a mae, na medida em que a crian~a necessita dela,S' .r.

Por fim vem 0 terceiro nfvel, 0 da priva~ao, que intervem naarticula~ao do complexo de Edipo. Trata-se entao do pai como aqueleque se faz preferir em lugar da mae, dimensao que voces SaG abso-lutamente for~ados a fazer intervir na fun~ao terminal, aquela queleva a forma~ao do ideal do eu, S f-- S'.r. E na medida em que 0 pai

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Tentemos agora introduzir a sOluC;ao.Que e 0 pat? Nao digo na famnia, porque, na famnia, ele e tudo

o que quiser, e uma sombra, e urn banqueiro, e tudo 0 que tern deser, ele 0 e ou nao e, 0 que as vezes tern toda a sua importancia, mastambem pode nao tel' nenhuma. A questao toda e saber 0 que ele eno complexo de Edipo.

Pois bern, 0 pai, af, nao e urn objeto real, mesmo que tenha deintervir como objeto real para dar corpo a castraC;ao. Mas, se ele naoe urn objeto real, e 0 que?

Ele tampouco e unicamente urn objeto ideal, pOl'que, pOl' esseaspecto, so podem ocorrer acidentes. Ora, 0 complexo de Edipo, afinal,nao e unicamente uma catastrofe, uma vez que e a base de nossarelac;ao com a cultura, como se costuma dizer.

Entao, naturalmente, voces dirao, 0 pai e 0 pai simh6lico, vocejri disse. De fato, ja Ihes disse isso 0 bastante para nao tel' de repeti-Io! hoje. 0 que Ihes trago hoje, justamente, daum pouco mais deexatidao:a ideia de pai simbolico. E isto: 0 pai e uma metafora.

Uma metafora, que vem a ser isso? Digamos desde logo, paracoloca-Io neste quadro, 0 que nos permitira retificar as conseqlicncias

[

i escabrosas do quadro. Uma metafora, como ja lhes expliquei, c urnsignificante que surge no lugar de outro significante. Digo que issoe 0 pai no complexo de Edipo, ainda que isso venha a aturdir osouvidos de alguns.

Digo exatamente: 0 pai e urn significante que substitui urn outrosignificante. Nisso esta 0 pilar, 0 pilar essencial, 0 pilar unico da

,intervenC;ao do pai no complexo de Edipo. E, nao sendo nesse nfvelque voces procuram as carencias paternas, nao irao encontra-Ias emnenhum outro lugar.

A func;ao do pai no complexo de Edipo c ser um significante quesubstitui 0 primeiro significante introduzido na simbolizac;ao, 0 sig-nificante materno. Segundo a formula que urn dia Ihes expliquei sera da metafora, 0 pai vem no lugar da mac, S em lugar de S', sendoS' a mae como ja ligada a alguma coisa que era 0 x, ou seja, 0

significado na relac;ao com a mae.

qllc cia vai e que ela vem. Em outras palavras, eu a sinto ou nao:,llllo, 0 mundo varia com sua chegada e pode desaparecer.

A pergunta e: qual e 0 significado? 0 que quer essa mulher af?I ':1I bem que gostaria que fosse a mim que ela queI', mas esta muitoclaro que nao e so a mim que ela quer. Ha outra coisa que mexe comL'la - e 0 x, 0 significado. E 0 significado das idas e vindas da maeL;0 falo.

Para Ihes resumir meu seminario do ana passado, e pura besteiracolocar no centro da relac;ao de objeto 0 objeto parcial. Para comec;ar,c pdo fato de a propria crianc;a ser 0 objeto parcial que ela e levadaa se perguntar 0 que querem dizer as idas e as vindas da mae - e 0

que isso quer dizer e 0 falo.A crianc;a, com maior ou menor astucia ou sorte, pode conseguir

vislumbrar desde muito cedo 0 que e 0 x imaginario, e, uma vez tendocompreendido, fazer-se de falo. Mas a via imaginaria nao e a vianormal. Alias, e pOl' essa razao que ela acarreta as chamadas fixac;6es.Ademais, ela nao e normal porque, afinal de contas, nunca e pura,nunc a e completamente acessfvel, deixa sempre alguma coisa deaproximativo e insondavel, ou ate de dual, que gera todo 0 polimor-fismo da perversao.

Qual e a via simb6lica? E a via metaforica. Exponho desde ja eIhes explicarei depois, uma vez que estamos quase chegando ao finalde nos sa con versa de hoje, 0 esquema que nos servira de guia: e namedida em que 0 pai substitui a mae como significante que vem a seproduzir 0 resultado comum da metafora, aquele que se expressa naformula que esta no quadro.

o elemento significante intermediario cai, e 0 S se apodera, pel avia metaforica, do objeto do desejo da mae, que entao se apresentasob a forma do falo.

Nao digo que Ihes esteja apresentando a soluc;ao sob uma formaja transparente. Apresento-a a voces em seu resultado, a fim de Ihesmostrar para onde iremos. Veremos como se vai por af e para queserve tel' ido, isto e, tudo 0 que essa soluc;ao resolve.

Deixo-Ihes nas maos esta afirmac;ao bruta - e minha pretensaoque toda a questao dos impasses do Edipo pode ser resolvida em se

E a mae que vai e que vem. E por eu ser urn serzinho ja tornadopelo simbolico, e por haver aprendido a simbolizar, que podem dizer

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postulando a intervengao do pai como a substituigao de um significantepor outro significante.

III1',ar, it floresta virgem ou ao deserto, ele comega a se fechar. Scprcciso fosse, como Cami, levaria consigo duas portas para criarcorrentes de ar entre elas. Trata-se de um instalar-se no interior, masnao e simples mente uma ideia de interior e de exterior, e a ideia do()utro, daquilo que e Outro como tal, do que nao e 0 lugar onde secsta bem enfurnado.

Digo mais: se voces explorassem a fenomenologia, digamos, darcclusao, percebcriam a que ponto e absurdo limitar a func;ao do me doa relagao com um perigo real. A ligagao estreita entre 0 medo e ascguranga deveria manifestar-se para voces pela fenomenologia darobia. E voces perceberiam que, no f6bico, seus momentos de angustiase produzem quando ele percebe que perdeu seu medo, quando vocescomegam a Ihe retirar um pouco de sua fobia. E nesse momenta queele diz a si mesmo: - Opa, isso niio funciona. Niio sei mais oslugares onde devo me deter. Ao perder meu medo, perdi minhaseguranr;:a. Em suma, tudo aquilo que eu Ihes disse no ana passadosobre 0 Pequeno Hans.

Ha tambem uma dimensao na qual voces nao pensam muito, estouconvencido, porque a vivenciam como se estivessem em seu ambientenatal, e que se chama tedio. Talvez voces nunca tenham refletidomuito sobre 0 quanta 0 tedio e, tipicamente, uma dimensao da Outracoisa, que ate chega a se formular como tal da maneira mais clara- quer-sc uma Outra coisa. A gente podc ate comer merda, contantoque nao seja sempre a mesma. Esses saG tipos de alibis, de alibisformulados, ja simbolizados, da relagao essencial com Outra coisa.

Voces hao de estar achando que, de um minuto para outro, estoucaindo no romantismo e na nostalgia. Vao vendo isso - 0 desejo, areclusao, a vigilia, eu ja ia quase Ihes dizendo a oragao, ja que estavancssc proccsso, pOl' que nao? - c sc perguntam: Para onde ele estaindo? Para onde esta resvalando? N ada disso.

Eu gostaria, para terminal', de chamar sua atengao para as diversasmanifestag6es da presenga da Outra coisa no que elas sao institucio-nalizadas. Voces podem classificar as formag6es humanas instaladaspelos homens on de quer que eles vao, e por toda pa11e - as chamadasformag6es coletivas - em func;ao da satisfagao que elas dao aosdifcrentes modos da relagao com a Outra coisa.

Assim que chega a algum lugar, 0 homem constr6i uma prisao eum bordel, ou seja, 0 lugar on de esta verdadeiramente 0 desejo, efica esperando alguma coisa, um mundo melhor, um mundo futuro,ele fica ali, de vigilia, it espera da revolugao. Mas, acima, acima detudo, assim que ele chega a algum lugar, e extremamente importante

Para comegar a Ihes explicar um pouco as coisas, introduzirei umaobservagao que, segundo cspero, ira deixar-Ihes com que alimental'seus sonhos da semana.

A mctMora situa-se no inconscicnte. Ora, sc existc uma coisarealmente surpreendente, e nao sc haver descoberto 0 inconscientemais cedo, ja que ele estava la desde sempre c, alias, continua cstando.Sem duvida, e porque foi preciso saber que estava no interior paraperceber que esse lugar existia.

Eu gostaria de Ihes dar, simplesmente, algo com que voces, quevao pelo mundo como, espero eu, ap6stolos da minha fala, possamapresentar a questao do inconsciente a pessoas que nunc a ouviramfalar dele. Voces lhes dirao: - Como e espantoso que, desde que 0

mundo e mundo, nenhuma dessas pessoas que se intitulam fil6sofosj,amais tenha pensado em produzir, pelo menos no perfodo classico- agora andamos meio distrafdos, mas ainda ha um caminho apercorrer -, essa dimensao essencial da qual lhes falei sob 0 nomede Dutra coisa.

Ja lhes falei do desejo de Outra coisa - nao como voces talvezo estejam sentindo agora, 0 desejo de ir comer uma salsicha, em vezde me escutar, mas, seja la como for e do que quer que se trate, 0

desejo de Outra coisa como tal.Essa dimensao nao esta unicamente presente no desejo. Acha-se

presente em muitos outros estados, que saG permanentes. A vigilia,pOl' exemplo, nao se pensa muito na chamada vigilia. Velar, diraovoces, e daf? Velar e 0 que Freud evoca em seu estudo sobre 0

Presidente Schreber, ao nos falar de "Antes do romper do dia",capftulo do Zaratustra de Nietzsche. Esse e justamente 0 tipo de notasrapidas que nos revela a que ponto Freud vivia nessa Outra coisa.Quando, tempos atras, falei-lhes do dia, da paz do entardecer e deoutras coisinhas assim, que Ihes foram mais ou menos transmitidas,foi inteiramente centrado nessa indicagao. Antes do romper do dia,sera que e 0 sol propriamente dito que ira aparecer? Ha Outra coisaque esta latente, que e esperada no momento de vigilia.

E ha tambem a reclusao. Nao e essa, enfim, uma dimensaoessencial? A partir do momento em que um homem chega a algum

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que todas as suas ocupac;:6es exalem 0 tedio. Uma ocupac;:ao so comec;:aa se tarnar seria quando aquilo que a constitui, isto e, em geral, aregularidade, torna-se perfeitamente entediante.

Em particular, pensem em tudo aquilo que, em sua pnitica ana-Iftica, e exatamente a conta certa para que voces se entediem. Ente-diar-se, tudo se resume nisso. Uma grande parte, pelo menos, do quechamamos de regras tecnicas a serem observadas pelo analista naosao outra coisa senao meios de dar a essa ocupac;:ao as garantias deseu padrao profissional - mas, se voces olharem bem no fundo dascoisas, perceberao que isso se da na medida em que elas ratifieam,alimentam, sustentam a func;:ao do tedio como estando no cerne dapratica.

Essa foi uma pequena introduc;:ao. Ela ainda nao os faz entraremno que lhes direi da proxima vez, quando lhes mostrar que e no niveldesse Outro como tal que se situa a dialetica do significante, e quee par ai que convem abardar a func;:ao, a incidencia, a pressao exata,o efeito indutor do Nome-do-Pai, igualmente como tal.

Do Nome-do-Pai ao JaloA chave do declinio do EdipoSer e tero capricho e a leiA crian~a assujeitada

Vamos continuar nosso exame do que chamamos de metafora paterna.Chegamos ao ponto em que afirmei que na estrutura que promo-

vemos como sendo a da metafara residiam todas as possibilidades de<trri<;:lll9:rclaramente 0 rcomplexo de Edipcl"e seu mobil, isto e, 0

complexo de castrac;:ao:'Aqueles que possam espantar-se por demorarmos tanto a articular

uma questao tao central na tearia e na prMica analfticas, responderemosque era impossivel faze-Io sem ter provado a voces, em diversosterrenos, tanto teoricos quanta prMicos, 0 que tem de insuficientes asformulas de que atualmente nos servimos na analise e, acima de tudo,sem ter-lhes mostrado em que podemos fornecer formulas maissuficientes, par assim dizer. Para comec;:ar a articular os problemas,trata-se, primeiramente, de habitua-Ios atraves do exemplo a pensaremem termos de sujeito.

Qglle e urn sujeito? Sera alguma coisa que se confunde, pura esimplesmente, com a realidade individual que esta diante de seusolhos quando voces dizem 0 sujeito? Ou sera que, a partir do momentaem que voces 0 fazem falar, isso implica necessariamente uma outracoisa? Quero dizer, sera que a fala e como que uma emanac;:aa quepaira acima dele, au sera que ela desenvalve, que imp6e par si so,

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sim ou nao, uma estrutura como aquela que tenho comentado longa-mente, a qual os habituei? - e que diz que, quando ha urn sujeitofalante, nao ha como reduzir a urn outro, simplesmente, a questao desuas rela<;5es como alguem que fala, mas ha sempre urn terceiro, agrande Outro, que e constitutivo da posi<;ao do sujeito enquanto alguemque fala, isto e, tambem como sujeito que voces analisam.

Nao se trata de uma simples necessidade teorica suplementar. Issotraz toda sorte de facilidades, quando a questao e compreender ondese situam as efeitos com que voces lidam, isto e, a que acontecequando voces encontram no sujeito a exigencia, as desejos, umafantasia - a que nao e a mesma coisa - e, alem disso, aquilo queparTce, em suma, ser a mais incerto, 0 mais diffcil de captar e definir,uma realidade.

Teremos a oportunidade de vel' ate que ponto avan<;amos agorapara explicar a expressao met:ifora paterna.

'ilil'siao sociologica -, mas seu nome de pai. Que 0 pai seja, por('\('mplo, a verdadeiro agente da procria<;ao nao e, de maneira alguma,1IIIIa verdade da experiencia. Na epoca em que as analistas aindadisclIliam coisas serias, sucedeu assinalarem que, numa determinadaIrilm primitiva, a procria<;ao era atribufda a nao sei a que, uma fonte,lima pedra, au a encontro com urn espfrito em lugares afastados. 0SI. Jones, com muita pertinencia alias, fez a esse respeito a observa<;aode que era absolutamente impensavel que esta verdade da experiencial'scapasse a seres inteligentes - e em todo ser humano supomos urnmfnimo dessa inteligencia. Esta bastante claro que, salvo exce<;5es -l:xce<;5es muito excepeionais -, uma mulher nao engravida se naohouver praticado urn caito, e tambem num prazo muito preciso. Mas,ao tecer esse comentario particularmente pertinente, a sr. Ernest Jonessimplesmente deixou de lado tudo a que e importante nessa questao.

o importante, com efeito, nao e as pessoas saberem perfeitamenteque uma mulher so pode engravidar quando pratica urn caito, massancionarem num significante que aquele com quem ela praticou acoito e 0 pai. Isso pOl"que, se assim nao fosse, tal como se constituipOl' natureza a ordem do sfmbolo, absolutamente nada obstaria a queaquele alga que e responsavel pela procria<;ao continuasse a sermantido, no sistema simbolico, como identico a uma coisa qualquer,uma pedra, uma fonte, ou 0 encontro com urn espfrito num localafastado.

A posi<;ao do pai como simbolico nao depende do fato de aspessoas haverem mais ou menos reconhecido a necessidade de umacerta seqiiencia de acontecimentos tao diferentes quanta urn caito eurn parto. A posi<;ao do Nome-do-Pai como tal, a qualidade do paicomo procriador, e uma questao que se situ a no nfvel simbolico. Podematerializar-se sob as diversas formas culturais, mas nao dependecomo tal da forma cultural, elJma necessidade da cadeia significante.Pelo simples fato de voces institufrem uma ordem simbolica, algumacoisa corresponde au nao a fun<;ao definida pel a Nome-do-Pai, e nointerior dessa fun<;ao voces colocam significa<;5es que podem serdiferentes con forme os casas, mas que de modo algum dependem deoutra necessidade que nao a necessidade da fun<;ao paterna, a qualcorresponde 0 Nome-do-Pai na cadeia significante.

Creio ja haver insistido bastante nisso. E isso, portanto, quepodemos chamar de triangulo simbolico, como institufdo no real apartir do momenta em que ha uma cadeia significante, a articula<;aode uma fala.

D,e que se lrata na mel:ifora paterna? Ha, propriamente, no que foirconstitufdo pOl' uma simboliza<;ao primordial entre a crian<;a e a mae,'a coloca<;ao substitutiva do pai como sfmbolo, au significante, nolugar da mae. Veremos a que quer dizer esse no lugar da, que constituia ponto axial, a nervo motor, a essencia do progresso representadopelo complexo de Edipo.

Os termos que propus para voces no ana passado, acerca dasrela<;5es entre a crian<;a e a mae, estao resumidos no trianguloimaginario que lhes ensinei a manejar. Admitir agora como funda-mental 0 triangulo filho-pai-mae e introduzir alga que e real, semduvida, mas que ja insere no real, como que institufda, digamos, umarela<;ao simbolica. Ele a insere objetivamente, se assim posso dizer,na medida em que podemos, pOl' nossa vez, fazer dela urn objeta,examina-la.

A primeira rela<;ao de realidade desenha-se entre a mae e 0 filho,e e af que a crian<;a experimenta as primeiras realidades de seu contatocom a meio vivo. E para desenhar objetivamente essa situa<;ao quefazemos 0 pai entrar no triangulo, embora, para a crian<;a, ele aindanao tenha entrado.

o pai, para nos, e, ele e real. Mas, nao nos esque<;amos de queele so e real para nos na medida em que as institui<;5es the conferem,eu nem diria seu papel e sua fun<;ao de pai - nao se trata de uma

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Digo que ha uma relac;ao entre esse ternario simb6lico e 0 quetrauxemos aqui, no ana passado, sob a forma do ternario imaginario,

I para lhes apresentar a relac;ao da crianc;a com a mae, na medida emque a crianc;a revela depender do desejo da mae, da primeira simbo-lizac;ao da mae como tal, e de nada mais. Atraves dessa simbolizac;ao,a crianc;a desvincula sua dependencia efetiva do desejo materna dapura e simples vivencia dessa dependencia e alguma coisa se institui,sendo subjetivada num nlvel primario ou primitivo. Essa subjetivac;aoconsiste, simplesmente, em instaurar a mae como aquele ser primordialque pode estar ou nao presente. No desejo da crianc;a, em seu desejopr6prio, esse ser e essencial. 0 que deseja 0 sujeito? Nao se trata dasimples apetencia das atenc;6es, do contato ou da presenc;a da mae,mas da apetencia de seu desejo.

AjJartir dessCl prirneira simbolizac;ao em que se afirma 0 desejoda crianc;a esboc;am-se todas as complicac;6es posteriores da simboli-zac;ao, na medida em que seu desejo e 0 desejo do desejo da mae.Em vista disso abre-se uma dimensao pela qual se inscreve virtual-mente 0 que a pr6pria mae deseja em termos objetivos como ser quevive no mundo do slmbolo, num mundo em que 0 slmbolo esta

'presente, num mundo falante. Mesmo que ela s6 viva nele parcial-mente, mesmo que seja, como sucede ocorrer, urn ser mal adapt adoa esse mundo do slmbolo, ou que tenha recusado alguns de seuselementos, essa simbolizac;ao primordial abre para a crianc;a, aindaassim, a dimensao do que a mae po de desejar de diferente, como sediz, no plano imaginario.

E assim que 0 desejo de Outra coisa, do qual falei oito dias atras,faz sua entrada, de maneira confusa e inteiramente virtual - nao damaneira substancial que permitiria reconhece-Io em toda a sua gene-ralidade, como fizcmos no ultimo seminario, mas de urn modoconcreto. I-I;Ln_el~Q_(I~~ejo de O\ltra coisa que nao 0 satisfazer meupr6prio desejo, que comeya a palpitar para a vida.

Nesse caminho, simultaneamente ha acesso e nao ha acesso. Nessarelac;ao de miragem pela qual 0 ser primordial Ie ou antecipa asatisfac;ao de seus desejos nos movimentos esboc;ados pelo outra,nessa adaptac;ao dual da imagem a imagem que e feita em todas asrelac;6es inter-animais, como conceber que possa ser lido, como quenum espelho, tal como se exprimem as Escrituras Sagradas, 0 que 0

sujeito deseja de Outra?Seguramente, isso e ao mesmo tempo diffcil de pensar e muito

dincil de efetuar, pois justamente al reside to do 0 drama do queacontece nesse nlvel primitivo de entrancamento das pervers6es. E

algo dincil de efetuar no senti do de que isso se efetua de maneirafalha, ainda que mesmo assim se efetue. Certamente, nao se efetuasem a intervenc;ao de urn pouco mais do que a simbolizac;ao primordialdessa mae que vai e vem, que e chamada quando nao esta presentee que, quando esta presente, e repelida para que seja posslvel chama-Ia.Esse algo mais, que e preciso que exista, e exatamente a existencia,por tras dela, de toda a ordem simb61ica de que ela depende, e a qual,como esta sempre mais ou menos presente, permite urn certo acessoao objeto de seu desejo, 0 qual ja e urn objeto tao especffico, taomarc ado pela necessidade instaurada pelo sistema simb6lico, que eabsolutamente impensavel de outra maneira quanto a sua prevalencia.Esse objeto chama-se falo, e foi em tomo dele que fiz girar toda anossa dialetica da relac;ao de objeto no ana passado.

Por que? Por que esse objeto se faz necessario nesse lugar? S6po de ser porque e privilegiado na ordem simb6lica. E nessa questaoque queremos entrar agora, com maiores detalhes.

Ha nesse desenho uma relac;ao de simetria entre falo, que estaaqui no vertice superior do temario imaginario, e pai, no verticeinferior do temario simb6lico. Veremos que nao ha al uma simplessimetria, mas uma ligac;ao. Como e que ja se faz posslvel eu adiantarque essa ligac;ao e de ordem metaf6rica?

Ora, isso e justamente 0 que nos leva para a dialetica do complexode Edipo. Tentemos articular passo a passo do que se trata, como fezFreud e como fizeram outras depois dele.

Nem sempre tudo esta perfeitamente clara nisso, nem claramentesimbolizado. N6s tentaremos ir mais longe, e nao apenas para satis-fac;ao de nosso esplrito. Se articularmos passo a passo essa genese,se assim posso dizer, que faz com que a posic;ao do significantepaterno no 51mbolo seja fundadora da posic;ao do falo no plano

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imagimirio, se conseguirmos distinguir claramente os tempos 16gicos,. por assim dizer, da constitui<;:ao do falo, no plano imagimirio, comoobjeto privilegiado e preponderante, e se da distin<;:ao entre eles resultarque possamos orientar-nos melhor, interrogar melhor tanto 0 doenteem exame quanta 0 senti do da clfnica e da condu<;:ao da analise,consideraremos nossos esfor<;:os justificados. Dadas as dificuldadescom que deparamos na clfnica, 0 interrogat6rio, 0 exame e a manobraterapeuticos, esses esfor<;:os estao justificados de antemao.

Observemos esse desejo do Outro, que e 0 desejo da mae e quecomporta um para-alem. 56 que para atingir esse para-aJem e neces-saria uma media<;:ao, e essa media<;:ao e dada, precisamente, pel aposi<;:ao do pai na ordem simb6lica.

Em vez de proceder dogmaticamente, interroguemo-nos sobre amaneira como a questao se coloca no concreto. Vemos que existemestados muito diferentes, casos e tambem etapas em que 0 filho seidentifica com 0 falo. Isso foi objeto do caminho que percorremos noana passado. Mostramos no fetichismo uma perversao exemplar, nosentido de que, nele, a crian<;:a tem uma certa relayao com 0 objetodo alem do desejo materno, em cuja prevalencia e valor de excelencia,pOl' assim dizer, cia reparou, e ao qual se liga por intermedio de umaidentifica<;:ao imaginaria com a mae. Tambem indicamos que, emoutras formas de perversao, em especial no travestismo, e na posi<;:aocontraria que a crian<;:a passa a assumir a dificuldade da rela<;:aoimaginaria com a mae. Dizem que ela mesma se identifica com a maefalica. Creio ser mais correto dizer que e propriamente com 0 faloque ela se identifica, como escondido sob as roupas da mae.

Lembro-Ihes isso para mostrar que ~L~lagaodofilho com 0 falo. seestabelece na medida eil1queo faloeaobjeto-dodesejodq mae.

AlCm disso, a experiencia nos prova que esse elemento desempenhaum papel ativo essencial nas rela<;:6es que 0 filho mantem com 0 casalparental. N6s a recordamos da ultima vez, no plano te6rico, naexposi<;:ao do declfnio do complexo de Edipo em rela<;:ao ao chamadoEdipo invertido. Freud nos assinala os casos em que, na medida emque se identifica com a mae, a crian<;:a, havendo adotado essa posi<;:aoa um tempo significativa e promissora, teme sua conseqiiencia, ouseja, a priva<;:ao que resultara para ela, se for um menino, de seu 6rgaoviril.

Essa e uma indica<;:ao, mas a coisa vai muito mais longe. Aexperiencia analftica nos prova que 0 p<ii, como aquele que priva amae do objeto de seu desejo, a sab~;-, 0 objeto falico, desempenhaum papel absolutamente essencial, nao direi nas pervers6es, mas em

'111:J1querneurose e em todo 0 desenrolar, por mais facil e mais normal'111l' seja, do. complexo de Edipo. Voces sempre constatarao, nanllcriencia, que 0 sujeito posicionou-se de uma certa maneira, numIllOlllento de sua infancia, quanta ao papel desempenhado pelo pai noI :110 de a mae nao tel' falo. Esse momenta nunca e elidido.

Nossa recapitula<;:ao, da ultima vez, deixou a questao do desfechoI :Ivoravel OU desfavoravel do Edipo suspensa em torno de tres pIanos,o da castra<;:ao, 0 da frustra<;:ao e 0 da priva<;:ao exercidas pelo pai.Trata-se aqui do nivel da priva<;:ao. Nesse nivel, 0 pai priva alguemd~lqLliloque, afinal de contas, ele nao tem, isto e, de algo que s6 tem"xistencia na medida em que se faz com que surja na existencia comosimbolo.

Esta bastante claro que 0 pai nao castra a mae de uma coisa quecia nao tem. Para que fique postulado que cIa nao 0 tem, e precisoque isso de que se trata ja esteja projetado no plano simb61ico comosfmbolo. Mas ha de fato uma priva<;:ao, Lima vez que toda priva<;:aoreal exige a simboliza<;:ao. Assim, e no plano da priva<;:ao da mae que,Ilum dado momenta da evolm,;ao do Edipo, coloca-se para 0 sujeitoa questao de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo, de darvalor de significa<;:ao a essa priva<;:ao da qual a mae revela-se 0 objeto.Essa priva<;:ao, 0 sujeito infantil a assumeou nao, aceita ou recusa.Esse ponto e essencial. Voces 0 encontrarao em todas as encruzilhadas,a cada vez que sua experiencia os levar a um certo ponto que agoratentamos definir como nodal no Edipo.

Vamos chama-Io £(J_nto nodel!, ja que isso acaba de me ocorrer.Nao me atenho essencialmente a esse termo, 0 que quero dizer e queele nao coincide, longe disso, com 0 momenta cuja chave buscamos,que e 0 declinio do Edipo, seu resultado, seu fruto no sujeito, ou seja,a identifica<;:ao do filho com 0 pai. Mas ha 0 momenta anterior, noqual 0 pai entra em fun<;:ao como privador da mae, isto e, perfila-sepor tras da rela<;:ao da mae com 0 objeto de seu desejo como aqueleque castra, coisa que digo apenas entre aspas, pois 0 que e castrado,no caso, nao e 0 sujeito, e sim a mae.

Esse ponto nao e muito novo. A novidade, precisamente, eaponta-Io, e voltar 0 olhar de voces para esse ponto, na medida emque ele nos permite compreender 0 que vem antes, sobre 0 qual jadispomos de alguns esclarecimentos, e 0 que vira depois.

Nao duvidem disso, ja que e algo que voces poderao controlar econfirmar toda vez que tiverem a oportunidade de ve-Io. A experienciaprova que, na medida em que a crian<;:a nao ultrapassa esse pontonodal, isto e, nao aceita a priva<;:ao do falo efetuada na mae pelo pai,

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el(l man tern em pauta - a correlac;ao se fundamenta na estrutura -uma certa forma de identificac;ao com 0 objeto da mae, esse objetoque Ihes apresento desde a origem como urn objeto-rival, para em-pregar a palavra que surge af, e isso ocorre, quer se trate de fobia,de neurose ou de perversao. Ele e urn ponto-referencial - talvez nao

f haja palavra melhor - em torno do qual voces poderao agrupar oselementos das observac;6es, fazendo a si mesmos esta pergunta emGada caso particular: qual e a configurac;ao especial da relac;ao coma mae, com 0 pai e com 0 1'£110que faz com que a crianc;a nao aceiteque a mae seja privada, pelo pai, do objeto de seu desejo? Em quemedida, num dado caso, e preciso apontar que, em correlac;ao comessa rclac;ao, a crianc;a mantem sua identificac;ao com 0 falo?

Existem graus, e claro, e essa relac;ao nao e a mesma na neurose,na psicose e na perversao. Mas essa configurac;ao, de qualquer modo,e nodal. Nesse nfvel, a questao que se coloca e ser au mia ser, ta bear nat ta be 0 1'£110.No plano imaginario, trata-se, para 0 sujeito, deser ou nao ser 0 1'£110. A fase a ser atravessada coloca 0 sujeito nasituac;ao de escolher.

Ponham tambem esse escalher entre aspas, pOl"que 0 sujeito e tao,passivo quanta ativo nisso, pela simples razao de que nao e ele quemmanipula as cordinhas do simb6lico. A frase foi comec;ada antes delc,foi comec;ada por seus pais, e aquilo a que pretendo conduzi-los eprecisamente a relac;ao de Gada urn desses pais com essa frasecomec;ada, e a maneira como convem que a frase seja sustentada poruma certa posic;ao recfproca dos pais em relac;ao a ela. Mas, diga-mos, uma vez que convem nos exprimirmos bem, que existe, emtermos neutros, uma alternativa entre ser ou nao ser 0 1'£110.

Voces hao de estar sentindo que ha urn passo consideravel a darpara compreender a diferenc;a entre essa alternativa e aquela de quese trata num Olltro momento, e que afinal de contas e preciso espe-rarmos encontrar - a do ter au naa ter, para nos basearmos numaoutra citac;ao literaria. Dito de outra maneira, ter ou nao ter 0 penisnao sao a mesma coisa. Entre os dois, nao 0 esquec;amos, ha 0

complexo de castrac;ao. Aquilo de que se trata no complexo decastrac;ao nunca e articulado e se faz quase completamente misterioso.

{ Sabemos, no entanto, que e dele que dependem estes dois fatos: que,(I de um lado, 0 menino se transforme em homem, e de outro, a meDina

se transforme em mulher. Em ambos os casos, a questao do ter ounao ter e regida - mesmo naquele que, no fim, tem 0 direito de te-lo,ou seja, 0 varao -~ por intermedio do complexo de castrac;ao. Issosup6e que, para te-lo, e preciso que haja urn momenta em que nao

';(' tem. Nao chamarfamos 0 que esta em jogo de complexo de castrac;ao,'x, de certa maneira, isso nao pusesse em primeiro plano que, para1(~lo, primeiro e preciso que tenha sido instaurado que nao se po det,'lo, de modo que a possibilidade de ser caw"ado e essencial na;Issunc;ao do fato de ter 0 1'£110.

Esse e urn passo a ser transposto, e no qual tem de intervir, em;t1gum momento, eficazmente, real mente, efetivamente, 0 pai.

Me aqui, como indicava 0 pr6prio fio de meu discurso, pude falar:;omente a partir do sujeito, dizendo-lhes: ele aceita ou nao aceita, e,Iia medida em que nao aceita, isso 0 leva, homem ou mulher, a ser,) 1'£110. Agora, pOl'em, para 0 passo seguinte, e essencial fazermosIlltervir efetivamente 0 pai.

Nao digo que ele ja nao interviesse efetivamente antes, mas meudiscurso po de deixa-Io, ate 0 momenta, em segundo plano, ou ateprescindir dele. A partir de agora, quando se trata do ter ou nao ter,somos forc;ados a faze-lo entrar em considera<;ao. Para comec;ar,convem assinalar que ele e, fora do sujeito, constitufdo ~omo sfmbolo.(sso porque, se assim nao for, ninguem podera intervir realmentecomo revestido desse sfmbolo. E como personagem real, revestidodesse sfmbolo, que ele passa entao a intervir efetivamente na etapaseguinte.

o que acontece com 0 pai real, na medida em que ele pode serportador de uma proibiC;ao') Ii observei a esse respeito que, no quetange a proibir as primeiras manifestac;6es do instinto sexual que(-!Jegam a sua .primeira maturidad,e no s~jeito, qU)ll.do este ,comec;a adestacar seu lllstrumento, ou ate a eXlbl-lo, a oferecer a mae osprcstimos dele, nao temos nenhuma necessidade do pai. Eu diria ateIl1ais: quando 0 sujeito se mostra para a mae e Ihe faz ofertas, momenta;Iinda muito pr6ximo do da identificaC;ao imaginaria com 0 1'£110, 0

que acontece desenrola-se, na maioria das vezes - vimos isso no;1110 passado, a prop6sito do Pequeno Hans --, no plano da depreciaC;aoIll1aginaria. A mae e perfeitamente capaz de mostrar £10 fi Iho 0 quanto" insuficiente 0 que ele Ihe oferece, e tambem e suficiente para proferir;\ proibiC;ao do usa do novo instrumento.

No entanto, 0 pai entra em jogo, isso e certo, como portador dalei, como proibidor do objeto que e a mae. Isso, como sabemos, elundamental, mas esta total mente fora da questao, tal como esta c

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efetivamente introduzida para a crian~a. Sabemos que a fun~ao dopai, 0 Nome-do-Pai, esta ligada it proibi~ao do incesto, mas ningue.:njamais pensou em colocar no primeiro plano do complexo de castra~aoo fato de 0 pai promulgar efetivamente a lei da proibi~ao do incesto.As vezes a dizemos, mas isso nunca e proferido pelo pai, digamos,como legislador ex cathedra. Ele e urn obstaculo entre a filho e amac, C a portador da lei, mas isso de direito, ao passo que, nos fatos,intervem de outra maneira, e e tambem de outra maneira que semanifesta a falta de sua interven~ao. E nisso que tocamos aqui. Emoutras palavras, a pai como aquele que e\~ulturalmenteportador dalei, .0 pai como investido pelo significante do pai, intervem noc()mplexo de Edipo de maneira mais con creta, mais escalon ada, porassim dizer, e e isso que queremos articular hoje. Esse c a nfvel emque e mais diffcil compreender alguma c<?isa, embor~ seja aquele emque nos dizem que se encontra a chave do Edipo, ou seJa, seu desfecho.

E aqui que a esqueminha que comentei com voces durante todoo primeiro trimestre, para enorme pregui~a de alguns, ao que parece,revela, contudo, que nao deve ser completamente inutil. .

Lembro-lhes aquilo a que sempre convem voltar: e somente depOlsde haver atravessado a ordem desde sempre constitufda do simb6licoque a inten~ao do sujeito, quero dizer, seu desejo ja passado ao estadode demanda, encontra aquilo a que se dirige, seu objeto, seu obJetoprimordial - nomeadamente, a mae. 0 desejo e uma coisa que searticula. 0 mundo no qual ele entra e progride, este mundo aqui, estebaixo mundo, nao e simplesmente urn Umwelt no sentido de nele sepoderem encontrar meios de saciar as n~cessidades, m~s e ,urn mundoon de impera a fala, que submete 0 deseJo de cada urn a lei do des~Jodo Outro. A demanda do jovem sujeito, portanto, cruza com malOrou menor felicidade a linha da cadeia significante, que esta ali, latentee ja estruturante. Por esse simples fato, a primeira experienc!a queele tern de sua rela~ao com 0 Outro, ele a tern com ess~ Outro pnmelro9.l!~e sua mae, na medida em que ja a simbolizou. E par ja have-~asimbolizado que ele se dirige it mae de urn modo que, por ser malsau menos vagido, nem por isso e menos articulado, porque essaprimeira simboliza~ao esta ligada as primeiras articula~6es,. que r::-conhecemos no Fort-Da. Portanto, e na medida em que essa mten~aoQU essa demanda atravessa a cadeia significante que ela po de impor-sejunto ao objeto materno. , ' _ ' '.

Nessa medida, a crian~a, que constltulU sua mae como sUJeltocom base na primeira simboliza~ao, ve-se inteiramente submetida aoque podemos chamar, mas unicamente por antecipa~ao, de lei. Isso

" apenas uma metafora. E preciso desdobrar a metafora contida nesselermo, lei, para Ihe dar sua verdadeira situa~ao no momento em que;1 emprego.

A lei da mae, e claro, e 0 fato de que a mae e urn ser falante, eISSO basta para legitimar que eu diga a lei da mae, Nao obstante, essaki e, por assim dizer, uma lei nao controlada. Reside simplesmente,;10 menos para 0 sujeito, no fato de que alguma coisa em seu desejo(' completamente dependente de alguma outra coisa, que sem duvidaFi se articula como tal, e que e realmente da ordem da lei, s6 que('ssa lei esta, toda ela, no sujeito que a sustenta, isto e, no bem-querer(HI malquerer da mae, na mae boa ou ma.

E isso que me faz propor-Ihes urn novo termo, que, como vocesVl'raO, nao e tao novo assim, ja que basta for~a-Io urn pouquinho parahzc-Io ir ao encontro de alguma coisa que a Ifngua nao descobriupor acaso.

Par"tamos do princfpio que formulamos aqui, 0 de que nao hasujeito se nao houver um significante que 0 funde. E na medida emque existem as primeiras simboliza~6es, constitufdas pelo par signi-lieante do Fort-Da, que 0 primeiro sujeito e a mae. Diante desseprincfpio, 0 que acontece com a crian~a no infcio da vida? Pergun-lamo-nos se existem para ela realidade ou nao realidade, auto-erotismollll nao auto-erotismo. Voces verao as coisas se esclarecerem singu-larmente a partir do momenta em que centrarem suas perguntas nalTian~a como sujeito, como aquele de quem provem a demanda, aquelelll1de se forma 0 desejo - e toda a analise e uma dialetica do desejo.

Pois bern, digo que a crian~a se esbo~a como assujeito. Trata-sedl~ urn assujeito pOl'que, a princfpio, ela se experimenta e se sente,'omo profundamente assujeitada ao capricho daquele de quem de-pel1dc, mesmo quc esse capricho seja urn capricho artiCjlado.

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o que estou formulando e imperativo em toda a nossa experienciae, para ilustni-lo, tomo 0 primeiro exemplo que me vem a mente.Voces puderam vel', no ana passado, 0 Pequeno Hans encontrar umdesfecho atfpico para seu Edipo, que nao e 0 desfecho que agoratentaremos designar, mas uma supl6ncia. Ele precisou, com efeito, deseu cavalo pau-para-toda-obra a fim de suprir tudo 0 que the faltounaquele momento de virada, que nao era outro senao a etapa daassun<;:ao do simb6lico como complexo de Edipo a qual os conduzohoje. Ele supriu isso, pOl'tanto, com aquele cavalo que era, ao mesmotempo, 0 pai, 0 falo, a irmazinha, tudo 0 que quisermos, mas quecorrespondia essencialmente ao que yOU mostrar agora.

Lembrem-se de como Hans saiu disso, e de como essa safda foisimbolizada no ultimo sonho. 0 que ele convocou no lugar do paifoi aquele ser imagimirio e onipotente chamado encanador. Esseencanador apareceu, justamente, para des-assujeitar alguma coisa, poisa angustia do Pequeno Hans era, essencialmente, como eu lhes disse, aangustia de um assujeitamento. Literalmente, a partir de um certomomento, ele percebeu que, ficando assujeitado assim, era impossfvelsaber para onde aquilo poderia leva-Io. Voces estao lembrados doesquema da carro<;:a que se afastava, e que encarnava 0 centro de seumedo. E justamente a partir desse momenta que 0 Pequeno Hansinstaura em sua vida um certo numero de centros de medo, em tornodos quais ira girar precisamente 0 restabelecimento de sua seguran<;:a.

'0 medo, algo que tem sua origem no real, e urn elemento deassegura<;:ao do menino, Gra<;:as a seus medos, ele da um para-alemao assujeitamento angustiante do qual se apercebe no momenta emque aparece a faHa desse domfnio externo, desse outro plano, Para

;que ele nao seja pura e simplcsmente um assujeito, e necessario queapare<;:a alguma coisa que Ihe meta medo.

E aqui que convem assinalar que 0 Outro a quem ele se dirige,isto e, claramente a mae, tem uma certa rela<;:ao com 0 pai. Todo 0

mundo percebe que de suas rela<;:6es com 0 pai dependem muitascoisas, visto que - como nos provou a experiencia - 0 pai naodesempenha seu papel, como se costuma dizer. Nao preciso lembrarque lhes falei, da ultima vez, de todas as formas de carencia paternaconcretamente designadas em termos de rela<;:6es inter-humanas. Aexperiencia, com efeito, imp6e que seja assim, mas ninguem articulasuficientemente do que se trata. Nao se trata tanto das rela<;:6es damae com 0 pai, no senti do vago de haver entre eles uma especie derivalidade de prestfgio, que convergiria no sujeito da crian<;:a. Semduvida alguma, esse esquema de convergencia nao e falso, e a

dllJlliL'idade das instancias e mais do que exigfvel, uma vez que sem"I;I Ilao pode:ria haver 0 ternario, mas isso nao basta, mesmo que,I'illilo que acontece entre um e outro, como todo 0 mundo admite,',"1;1 essencial.

(:hegamos, neste ponto, aos la<;:os de amor e respeito em torno,I"s quais ha quem fa<;:a girar a analise inteira do caso do PequenoIJ;lIlS, ou seja: sera que a mae era suficientemente meiga, afetuosa,'I,', com 0 pai? E assim recafmos no rame-rame da analise sociol6gica;llllhicntai. Ora, trata-se menos das rela<;:6es pessoais entre 0 pai e aIII;IC, ou de saber se ambos estao ou nao a altura, do que de umIllOI11Cntoque tem que ser vivido como tal, e que concerne as rela<;:6esII;\()apenas da pessoa da mae com a pessoa do pai, mas da mae com;1 palavra do pai - com 0 pai na medida em que 0 que ele diz nao", de modo algum, igual a zero.

o que importa e a fun<;:ao na qual intervem, primeiro, 0 Nome-doPai, 0 unico significante do pai, segundo, a fala articulada do pai," tcrceiro, a lei, considerando que 0 pai esta numa rela<;:ao mais ouIIIel10S fntima com ela. 0 essencial e que a mae funde 0 pai comoIllcdiador daquilo que esta para alem da lei dela e de seu capricho,Oil seja, pura e simplesmente, a lei como tal. Trata-se do pai, portanto,'01110 Nome-do-Pai, estreitamente ligado a enuncia<;:ao da lei, comotodo 0 desenvolvimento da doutrina freudiana no-Io anuncia e pro-Iliove. E e nisso que ele e ou nao e aceito pel a crian<;:a como aqueleque priva ou nao priva a mae do objeto de seu desejo,

Em outras palavras, para compreender 0 complexo de Edipo,devemos considerar tres tempos, que tentarei esquematizar com a;ljuda do nosso pequeno diagrama do primeiro trimestre.

Primeiro tempo. jO que a crian<;:a busca, como desejo de desejo, epoder satisfazer 0 desejo da mae, isto e, to be or not to be 0 objetodo desejo da mae. Assim, cIa introduz sua demanda aqui, no L1, e 0I'ruto, 0 resultado desta aparecera ali, no L1' . .fIJ~~s~caIninho colocam-sedois pontos, este aqui, que cOlTesponde ao que e ego, e, em frente aele, aquele ali, que e seu outro, aquilo com que a crian<;:a se identifica,csse algo diferente que cIa vaiprocurar ser, ou seja, 0 objeto satisfat6riopara a mae. A partir do momenta em que alguma coisa come<;:a a sercmexer em seu baixo-ventre, cIa come<;:a a mostra-Ia a mae, no intuito

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de saber se sou mesmo capaz de alguma coisa, com as decep~6es dese seguem. ~Iaa procura e a encontra na medida em que a mae einterrogada pela demanda da crian~a. Tambem a mae, pOI' sua vez,esta em busca de seu proprio desejo, e em algum lugar pOI' af situam-seos componentes deste.

,I, I, ',I Ii, ccrlos aspcctos, 0 Outro do Outro, ou seja, sua propria lei.I ", ','d' IIIvel quc sc produz 0 que faz com que aquilo que retorna a, , 1,1111,;1,s,'j:l, pura e simplesmente, a lei do pai, tal como imaginaria-111,"11','ollCcbida pclo sujeito como privadora da mae. Esse C 0 estadio,,1''',IIII'',S, l10dal e negativo, pelo qual aquilo que desvincula 0 sujeito,1',11:1 idcl1tirica~ao liga-o, ao mesmo tempo, ao primeiro apareci-"" III" da Ici, sob a forma desse fato de que a mae e dependente de11111,,1,jdO, que ja nao e simplesmente 0 objeto de seu desejo, mas um,,1'1"10 quc 0 Outro tem ou nao tem.

A cstreita liga~ao desse remeter a mae a uma lei que nao e a.I, 1:1,Illas a de um Outro, com 0 fato de 0 objeto de seu desejo ser!l1lt'ral1amente possufdo, na realidade, por csse mesmo Outro a cuja

1,1 t'la remete, fornece a chave da rela~ao do Edipo. Qgue constitui',"II carateI' decisivo deve ser isolado como rela~ao nao com 0 pai,III;IScom a palavra do pai.

Lembrem-se do Pequeno Hans no ana passado, 0 pai e tudo 0

'1'1t' hi de mais agradavel, e tudo 0 que ha de mais presente, e tudo" quc ha de mais inteligente, e tudo 0 que ha de mais amistoso paraILII1S,nao parece ser nem um pouco imbecil eleva 0 Pequeno Hans;1 !"I"cud - 0 que, afinal, na epoca, era dar mostras de um espfrito,',sc!arecido; mas, com tudo isso, ele e total mente inoperante, na medida'"Ill que aquilo que diz e precisamente sem efeito - junto a mae,quero dizer. Isso fica perfeitamente claro, sejam quais forem asrcla~6es entre os dois personagens parentais.

A mae, observem, em rela~ao ao Pequeno Hans, acha-se numaposi~ao ambfgua. E proibidora, desempenha 0 papel castrador quepoderfamos ver atribufdo ao pai no plano real, diz-lhe: Nao mexa ai,isso e nojento - 0 que nao a impede, no plano pratico, de deixar 0

filho entrar em sua intimidade, e nao apenas de Ihe permitir que exer~aa fun~ao de seu objeto imaginario, mas de encoraja-Io a isso. Ele,com efeito, presta-Ihe os melhores servi~os, encarna perfeitamente 0

falo para eIa, e assim se ve mantido na posi~ao de assujeito. Eleeassujeitado, e essa e toda a fonte de sua angustia e sua fobia.

Existe um problema, na medida em que a posi~ao do pai e postaem duvida pelo fato de nao ser sua palavra que serve de lei para amae. Mas nao e so isso - parece que, no caso do Pequeno Hans, 0

que deveria produzir-se no terceiro tempo fica faltando. Foi por essarazao que assinalei, no ano passado, que 0 desfecho do complexo deEdipo, no caso do Pequeno Hans, foi desfigurado. Apesar de 0 meninohaver safdo dele gra~as a sua fobia, sua vida amorosa ficou comple-

No primeiro tempo e na primeira etapa, portanto, trata-se disto:o sujeito se identifica especularmente com aquilo que e objeto dodesejo de sua mae. Essa e a etapa falica primitiva, aquela em que ametafora paterna age por si, uma vez que a primazia do falo ja estainstaurada no mundo pela existencia do sfmbolo do discurso e da lei.Mas a crian~a, pOl' sua vez, so pesca 0 resultado. Para agradar a mac,se voces me permitem andar depressa e empregar palavras figuradas,e necessario e suficiente ser 0 falo. Nessa etapa, muitas coisas sedetem e se fixam num certo senti do. Conforme a maneira mais oumenos satisfatoria de a mensagem se realizar em M, pode fundar-seum certo numero de disturbios e perturba~6es, dentre eles as identi-fica~6esque qualificamos de perversas.

/Segundo tempo\' Eu Ihes disse que, no plano imaginario, 0 paiinte~:vem efetivamente como privador da mae, 0 que significa que ademanda endere~ada ao Outro, caso transmitida como convem, serael1(;_aminhadaaum tribunal superior, se assim posso me expressar.

Com efeito, aquilo sobre o qual 0 sujeito interroga 0 Outro, namedida em que ele 0 percorre por inteiro, sempre en contra dentro

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tamente marcada pelo estiJo imaginario cujos prolongamentos aponteino caso de Leonardo da Vinci.

A tercejraetCipa e tao importante quanta a segunda, pois e delaque depende a safda do complexo de Edipo. 0 falo, 0 pai atestouda-Io em sua condic;ao e apenas em sua condic;ao de pOl"tador ou desuporte, diria eu, da lei. E dele que depende a posse ou nao dessefalo pelo sujeito materno. Na medida em que a etapa do segundotempo e atravessada, epreciso entao, no terceiro tempo, que aquiloque 0 pai prometeu seja mantido. Ele pode dar ou recusar, posta queo tern, mas 0 fato de que ele, 0 pai, tem 0 falo, disso ele tern que darprovas. E por intervir no terceiro tempo como aquele que tem 0 falo,e nao que 0 e, que se po de produzir a bascula que reinstaura a instanciado falo como objeto desejado da mae, e nao mais apenas como objetodo qual 0 pai pode privar.

o pai onipotente e aquele que priva. Esse e 0 segundo tempo.Era nesse estagio que se detinham as analises do compIexo de Edipo,na epoca em que se achava que todas as devastac;6es do complexodecorriam da onipotencia paterna. Pensava-se apenas nesse segundotempo, so que nao se frisava que a castrac;ao exercida af era a privac;aoda mae, e nao do filho.

(0 terceiro tempo e estq 0 pai pode dar a mae 0 que ela deseja,e po de dar porque 0 possui. Aqui intervem, pOl"tanto, a existi3ncia dapotencia no sentido genital da palavra - digamos que 0 pai e umpai potente. POl' causa disso, a relac;ao da mae com 0 pai torn a apassar para 0 plano real.

A identificac;ao que pode ser feita com a instancia paterna reali-za-se aqui, portanto, nesses tres tempos.

Em primeiro lugar, a instancia paterna se introduz de uma formavelada, ou que ainda nao aparece. Isso nao impede que 0 pai existana realidade mundana, ou seja, no mundo, em virtude de neste reinara lei do sfmbolo. POl' causa disso, a questao do falo ja esta colocadaem algum lugar da mae, onde a crianc;a tern de situa-Ia.

Em segundo lugar, 0 pai se afirma em sua presenc;a privadora,como aqueIe que e 0 suporte da lei, e isso ja nao e feito de maneiravelada, porem de urn modo mediado pefamie-, que e quem 0 instauracomo aquele que Ihe faz a lei.

Em terceiro lugar, 0 pai se reveIa como aquele que tern. E a safdado complexo de Edipo. E~a safda e favoravel na medida em que aidentificac;ao com 0 pai e feita nesse terceiro tempo, no qual eleintervem como aqueIe que tern 0 falo. Essa identificac;ao chama-seIdeal do eu. Ela vem inscrever-se no triangulo simbolico no polo em

I pll' esta 0 filho, na medida em que e no polo materna que comec;a,I se constituif tudo 0 que depois sera realidade, ao passo que e noIllvel do pai que comec;a a se constituir tudo 0 que depois sera 0

Sll Jlereu.

No terceiro tempo, portanto, 0 pai intervem como real e potente.Esse tempo se sucede a privac;ao ou a castrac;ao que incide sobre amae, a mae imaginada, no nfvel do sujeito, em sua propria posic;aoimaginaria, a deIa, de dependencia. E par intervir como aquele quetem 0 falo que 0 pai e internalizado no sujeito como Ideal do eu, eque, a partir daf, nao nos esquec;amos, 0 compIexo de Edipo declina.

Que quer dizer isso? Nao quer dizer que 0 menino va tomar possede todos os seus poderes sexuais e exerce-los, como voces bem sabem.Muito pelo contrario, ele nao os exerce nem urn pouco, e poderfamosdizer que, aparentemente, decai do exercfcio das func;6es que haviamcomec;ado a despertar. Nao obstante, se 0 que Freud articuIou ternalgum sentido, a crianc;a detem consigo todas as condic;6es de se servirdelas no futuro. A mctafora paterna desempenha nisso urn pape! queC exatamente 0 que poderfamos esperar de uma metatora - leva ainstituic;ao de alguma coisa que e da ordem do significante, que ficaguardada de reserva, e cuja significac;ao se desenvolvera mais tarde.o menino tern todo 0 direito de ser homem, e 0 que the possa sercontestado, mais tarde, no momenta da puberdade, devera ser rela-cionado a alguma coisa que nao tenha cumprido completamente aidentificac;ao metaforica com a imagem do pai, na medida em queessa identificac;ao se houver constitufdo atraves desses tres tempos.

RessaIto-lhes que isso quer dizer que, na medida em que e viriI,urn homem e sempre mais ou menos sua propria metatora. E isso,alias, que coloca sobre 0 tenno virilidade a sombra de ridfculo que,enfim, convem destacar.

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Tambem Ihes saliento que 0 desfecho do complexo de Edipo,como todos sabem, e diferente na mulher. Para ela, com efeito, essaterccira etapa, como sublinha Freud - leiam seu artigo sobre 0

declfnio do Edipo -, e muito mais simples. Ela nao tern de fazeressa identifica<;ao nem guardar esse tftulo de direito a virilidade. Ela,a mulher, sabe onde ele esta, sabe onde deve ir busca-Io, 0 que e dolado do pai, e vai em dire<;ao aquele que 0 tern.

Isso tambem indica por que uma fcminilidade, uma feminilidadeverdadeira, tern sempre 0 toque de uma dimensao de alibi. Nas ver-dadeiras mulheres ha sempre algo meio extraviado.

Essa e uma sugestao que Ihes fa<;o, unicamente, para ressaltar adimensao coner"eta desse desenvolvimento.

Hoje isso ainda nao passa, como voces scntem perfeitamcntc, de urndiagrama. Voltaremos a falar de cada uma dessas etapas, e veremoso que se prende a elas. Concluirei justificando meu termo metafora.

Observem bem do que se trata aqui, que e, no nivel maisfundamental, exatamente a mesma coisa que a longa metafora comumno terreno manfaco. De fato, a formula da metafora que lhcs fomecinao quer dizer nada senao isto: existem duas cadeias, os S do nfvelsuperior, que sao significantcs, ao passo que encontramos abaixo delestudo 0 que circula de significados ambulantes, porque eles estaosempre deslizando. A amarra<;ao de que falo, 0 ponto de basta, e taosomente uma historia mfstica, pois ninguem jamais pode alinhavaruma significa<;ao num significante. Em contrapartida, 0 que se po defazer e atar urn significante num sign-ificante ever no que da. Nessecaso, sempre se produz alguma coisa de novo, a qual, as vezes, e taoinesperada quanta uma rea<;ao quimica, ou seja, 0 surgimento de umanova significa<;ao.

o pai e, no Outro, 0 significante que representa a existencia dolugar da cadeia significante como lei. Ele se coloca, por assim dizer,acima desta.

SSSSSS

E nessa medida que 0 terceiro tempo do complexo de Edipo podeser transposto, isto e, a etapa da identifica<;ao, na qual se trata de 0

menino se idcntificar com 0 pai como possuidor do penis, e de a me-nina reconhecer 0 homem como aquele que 0 possui.

Veremos a continua<;ao da proxima vez.

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Nao fui eu quem inventou que ele nao se introduz nisso sem que;11 venha desempenhar urn papel de primeirissimo plano 0 orgao sexualmasculino. Este e 0 centro, 0 eixo, 0 objeto de tudo 0 que se relacionacom a ordem de acontecimentos, bastante confusos e mal discernidos,convem dizer, a que chamamos complexo de castras;ao. Nem pOl' issose deixa de continual' a faze I' mens;ao a ele em termos que e espantosoque nao acarretem uma insatisfaS;ao maior no publico.

De minha parte, nessa especie de fulminas;ao psicanaiftica a queme entrego aqui, procuro dar-Ihes uma letra que nao se obscures;a,isto e, distinguir atraves de conceitos os diversos niveis daquilo deque se trata no complexo de castraS;ao.

Temos de faze-Io intervir tanto no nivel de uma perversao quechamarei de primaria, no plano imaginario, quanta no de uma per-versao da qual talvez falemos urn pouco mais hoje, e que estaintimamente ligada it conclusao do complexo de Edipo, a homosse-xualidade.

Para tentar enxergar com clareza, YOU retomar, ja que isso ehastante novo, a maneira como articulei da ultima vez 0 complexooe Edipo, tendo pOl' centro 0 fenomeno ligado it funS;ao particular deobjeto nele desempenhada pelo orgao sexual masculino. Depois quehouver retomado esses passos para deixa-Ios claros, eu Ihes mostrarei,como anunciei, que isso traz alguns esclarecimentos sobre os feno-menos, bastante conhecidos porem mal situados, da homossexualidade.

o desejo de desejoo Jalo metonimicoo linda bilhete de La ChatreInjeto e adjetoCl£nica da homossexualidade masculina

Estou falando da metafora paterna. Espero que tenham Se dado contade que falo do complexo de castras;ao. Nao e pOl' eu falar da metaforapaterna que estou falando do Edipo. Se minha colocaS;ao estivessecentrada no Edipo, isso implicaria uma enormidade de quest6es, enao posso dizer tudo de uma vez.

o esquema que apresentei da ultima vez assemelha-se ao quetentei faze-Ios entenderem sob 0 titulo de tres tempos do complexode Edipo. Trata-se, como digo a todo instante, de Uma estruturaconstituida em outro lugar que nao a aventura do sujeito, e na qualele tern de se introduzir. Outros alem de nos podem se interessar porisso, pOl' diferentes raz6es. As raz6es dos psicologos que projetam asrelas;6es individuais no campo inter-humano, ou interpsicologico, ousocial, ou nas tens6es dos grupos, eles que tentem inscrever isso emseus esquemas, se puderem. Do mesmo modo, os sociologos deveraolevar em conta relas;6es estruturais que nisso constituem nosso deno-minador comum, pela simples razao, que e a raiz derradeira, de quea existencia mesma do complexo de Edipo e socialmente injustificavel,isto e, nao pode ser fundamentada em nenhuma finalidade social.Quanta a nos, achamo-nos na situas;ao de vel' como t;m sujeito devese introduzir nessa relaS;ao que e a do complexo de Edipo.

Nos esquemas que proponho a voces e que SaG extraidos do sumo dacxpericncia, procuro produzir tempos. Eles nao sao, fors;osamente,tempos cronologicos, mas isso nao vem ao easo, ja que tambem ostempos logicos so podem desenrolar-se numa certa sucessao.

Voces tern num primeiro tempo, portanto, como Ihes disse, arelas;ao da erians;a nao com a mae, como se eostuma dizer, mas como desejo da mae. E urn desejo de desejo. Tive a oportunidade de meoar conta de que essa nao era uma formula muito usual, e de quealgumas pessoas tinham eerta dificuldade de se acertar com a icteiaoe que e diferente desejar alguma coisa au desejar 0 desejo de urnsujeito. 0 que eabe eompreender e que esse desejo de desejo implicaque estejamos lidando com 0 objeto primordial que e a mae, comcfeito, e que a tenhamos constituido de tal maneira que seu desejopossa ser desejado por urn outro desejo, 0 do filho, nomeadamente.

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Onde se situa a dialetica dessa primeira etapa? A crianc;a ficaparticularmente isolada nela, desprovida de qualquer outra coisa quenao 0 desejo desse Outro que ela ja constituiu como sendo 0 Outroque po de estar presente ou ausente. Tentemos discernir bem de pertoqual e a relac;ao da crianc;a com a coisa de que se trata, ou seja, 0objeto do desejo da mae. 0 que e preciso transpor e isto aqui, D, ouseja, 0 desejo da mae, esse desejo que e desejado pela crianc;a, D (D).Trata-se de saber como ela podera ir ao encontro desse objeto, postaque este e constituido de maneira infinitamente mais elaborada nonivel da mae, a qual ja avanc;ou um pouco mais na vida do que acrianc;a.

Esse objeto, nos postulamos que ele e 0 falo como eixo de todaa dialetica subjetiva. Trata-se do falo como desejado pela mae. Doponto de vista da estrutura, ha diversos estados diferentes da relac;aoda mae com 0 falo. Ele desempenha um papel primordial na estrutu-rac;ao subjetiva da mae e pode achar-se em diferentes estados comoobjeto - 0 que e justamente 0 que produzira toda a complicac;ao doque vira depois. Por ora, entretanto, contentemo-nos em toma-lo talequal, pois pensamos so po del' introduzir ordem e uma perspectivacorreta em tudo 0 que e fen6meno analitico partindo da estrutura eda circulac;ao significantes. Se nossos referenciais saG sempre estaveise seguros, e pOl' serem estruturais, por estarem ligados as vias deconstruc;6es significantes. E isso que nos serve para nos conduzirmos,e e por isso que quase nao temos que nos embarac;ar aqui com 0 quee 0 falo para uma mae efetiva num caso determinado. Sem duvida,ha coisas pOl' diferenciar af. Voltaremos a elas.

A confiarmos simplesmente em nosso esqueminha habitual, 0 falositua-se aqui, e e um objeto metonimico.

No significante, podemos contentar-nos em situa-Io assim - elIm objeto metonimico. Em virtude da existencia da cadeia significante,de circula de todas as maneiras, como 0 anel no jogo de passar 0ancI, par toda parte do significado - sendo, no significado, aquiloque resulta da existencia do significante. A experiencia nos mostraque esse significado assume para 0 sujeito urn papel preponderante,que e 0 de objeto universal.

E isso 0 surpreendente. E isso que escandaliza aqueles quegostariam que a situac;ao concernente ao objeto sexual fosse simetricaem ambos os sexos. Assim como 0 homem tern que descobrir e,depois, adaptar a uma serie de aventuras 0 usa de seu instrumento, 0mesmo deveria acontecer com a mulher, isto e, que 0 cunnus ficasse110 centro de toda a sua dialetica. Mas nao e nada disso, e foiprecisamente essa a descoberta da analise. Essa e a melhor sanc;ao deque existe um campo que e 0 campo da analise, que nao e 0 dodesenvolvimento instintivo mais ou menos vigoraso, 0 qual, noconjunto, superp6e-se a anatomia, isto e, a existencia real dos indi-vfduos.

Como conceber que a crianc;a que tern 0 desejo de ser objeto dodesejo de sua mae atinja a satisfa~ao? Evidentemente, nao ha outrameio senao surgir no lugar do objeto do desejo dela.

o que quer dizer isso? Ai esta a crianc;a, em C. Ja tivemos querepresenta-Ia, em muitas ocasi6es, pela relac;ao de sua demanda coma existencia da articulac;ao significante como tal, que nao esta apenasI1cla, mas a qual ela encontra.

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No ponto assinalado [Eu] ainda nao ha nada, pelo menos aprincipio. A constituic;ao do sujeito como [Eu] do discurso ainda naose diferenciou marcantemente, embora ja esteja implicada desde aprimeira modulaC;ao significante. Nao e obrigatorio que 0 [Eu] sedesigne como tal no discurso para ser suporte dele. Numa interjeiC;ao,numa ordem - Venha! -, num chamado - Voce -, existe urn[Eu], so que latente. Poderiamos exprimi-lo colocando apenas umalinha pontilhada entre De [Eu]. Do mesmo modo, 0 objeto metonimico,em frente, ainda nao se constituiu para a crianc;a.

Em D yem 0 desejo esperado da mae. Em [rente a ele coloca-seo que sera 0 resultado do en contra de urn chamado da crianc;a coma existencia da mae como autra, isto e, uma mensagem. a que epreciso para que a crianc;a consiga vir a coincidir com 0 objeto dodesejo da mae, que, ja nesse nivel, podemos representar como 0 queesta imediatamente a seu alcance atingir?

Comecemos colocando em pontilhado - so que por raz6esdiferentes, pois isso the e completamente inacessivel - 0 que e 0

para-alem da mae.E necessario e suficiente que 0 [Eu] latente no discurso da crianc;a

yenha aqui, em D, constituir-se no nivel do autra que e a mae -que 0 [Eu] da mae torne-se 0 autra da crianc;a, que 0 que circula nonivel da mae em D, na medida em que ela mesma articula 0 objetode seu desejo, venha em M cumprir sua funC;ao de mensagem para acrianc;a, 0 que sup6e que, no final das contas, esta renuncie momen-taneamente a seja la 0 que for que e sua fala propria, mas nao hadificuldade nisso, porque sua fala propria, nesse momento, ainda estabasicamente em formac;ao. A crianc;a, portanto, recebe em M amensagem bruta do desejo da mae, ao passo que, abaixo, no nivelmetonfmico em relaC;ao ao que a mae diz, efetua-se sua identificaC;aocom 0 objeto dela.

Isso e extremamente teorico, mas, nao sendo apreendido logo deinfcio, torna-se impossivel conceber 0 que deve acontecer depois, ouseja, a entrada em jogo do para-alem da mae, que e constituido pel arelaC;ao dela com urn outra discurso, 0 do pai.

Portanto, e na medida em que a crianc;a assume inicialmente 0

desejo da mae - e ela so 0 assume como que de maneira bruta, narealidade desse discurso - que ela se abre para se inscrever no lugarda metonimia da mae, isto e, para se transformar no que lhes designei,outra dia, como seu assujeito.

Voces viram em que deslocamento se baseia 0 que chamaremos,nesta ocasiao, de identificaC;ao primitiva. Ele consiste na traca que

faz 0 [Eu] do sujeito surgir no lugar da mae como autra, enquantoo [Eu] da mae. transforma-se no autra dele. E isso que pretendecxpressar essa subida de urn degrau na escadinha de nosso esquema,que acaba de ser efetuada nesse segundo tempo.

Esse segundo tempo tern como eixo 0 momento em que 0 pai sefaz pressentir como proibidor. Ele aparece mediado no discurso damae. Agora ha pouco, na primeira etapa do complexo do Edipo, 0

discurso da mae era captado em estado bruto. Dizer agora que 0 dis-curso do pai e mediado nao significa que fac;amos intervir novamenteo que a mae faz da palaYra do pai, mas que a fala do pai intervemefetiYamente no discurso da mae. POltanto, ele entao aparece menosvelado do que na primeira etapa, mas nao e completamente revel ado.E a isso que corresponde 0 uso do tenno mediado, nessa ocasiao.

Nessa etapa, 0 pai intervem a titulo de mensagem para a mae.Detem a palavra em M, e 0 que ele enuncia e uma praibiC;ao, urn mioque se transmite no nfvel em que a crianc;a recebe a mensagem esperadada mae. Esse niio e uma mensagem sobre uma mensagem. E umaforma particular de mensagem sobre uma mensagem - que, paraminha enorme surpresa, os lingtiistas nao distinguem como tal, noque se ve que ha real mente urn interesse em que fac;amos nossaarticulaC;ao com eles -, isto e, a mensagem de praibiC;ao.

Essa mensagem nao e simplesmente 0 Niio te deitaras com tuamiie, ja nessa epoca dirigido a crianc;a, mas urn Niio reintegraras teu!Jroduto, que e enderec;ado a mae. Assim, san todas as conhecidas

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!ormas do chamado instinto materna que deparam aqui com urnobstaculo. Com efeito, a forma primitiva do instinto materno, comolodos sabem, manifesta-se - talvez mais ainda em alguns animaisdo que nos homens - pela reintegra<;ao oral, como dizemos elegan-temente, daquilo que saiu por outro lado.

Essa proibi<;ao chega como tal em A, on de 0 pai se manifestacomo Outro. Em vista disso, a crian<;a e profundamente questionada,abalada em sua posi<;ao de assujeito - potencialidade ou virtualidadesalutar, afinal. Em outras palavras, e na medida em que 0 objeto doclesejo da mae e tocado pela proibi<;ao paterna que 0 cfrculo nao sefecha completamente em torno da crian<;a e ela nao se torn a, pura esimplesmente, objeto do desejo da mae. 0 processo poderia serinterrompido na primeira etapa, dado que a rela<;ao da crian<;a com amae comporta uma triplicidade implfcita, uma vez que nao e a maeque ela deseja, mas seu desejo. Essa ja e uma rela<;ao simb6lica, quepermite ao sujeito 0 fechamento de urn primeiro circuito do desejode desejo e urn primeiro sucesso - a descoberta do objeto do dese-jo da mae. Nao obstante, tudo e question ado pel a proibi<;ao paterna,que deixa a crian<;a em suspenso quanta a seu balizamento do desejodo desejo da mae.

Essa segunda etapa e urn pouco menos feita de potencialidadesdo que a primeira. E sensivel, perceptivel, mas essencialmente ins-tantanea, pOl' assim dizer, ou, pelo menos, transit6ria. Nem pOl' issoe menos capital, pois e ela, afinal de contas, que constitui 0 amago~o que podemos chamaI' de momenta privativo do complexo de Edipo.E na medida em que a crian<;a e desalojada, para seu grande beneficio,da posi<;ao ideal com que ela e a mae poderiam satisfazer-se, e naqual ela exerce a fun<;ao de ser 0 objeto metonimico desta, que po dese estabelccer a terccira rcla<;ao, a ctapa scguinte, quc e fecunda. Nela,com efeito, a crian<;a torna-se outra eoisa, pois essa etapa comportaa identifiea<;ao com 0 pai de que lhes falei da ultima vez, e 0 titulode propriedade virtual que 0 pai tern./ Se lhes fiz da ultima vez urn rapido esbo<;o dos tres tempos doEdipo, foi para nao tel' dc recome<;a-Io hoje, ou, mais exatamente,para dispor de todo 0 tempo de hoje para retoma-Io passo a passo.

A maneira como 0 pai intervem nesse momento na dialetica doEdipo, e extremamente importante de considerar. '

Voces vedo isso com mais clareza no artigo que entreguei parao pr6ximo numero da revista La Psychanalyse, que apresenta urnresumo do que eu disse no ana em que falamos das estruturasfreudianas da psicose. 0 nivel dc publiea<;ao que ela representa naome permitiu fornecer 0 esquema precedente, que teria exigido expli-ca<;6es em demasia, mas, quando lerem esse artigo, dentro de naomuito tempo, espero, voces poderao retomar em suas anota<;6es 0 queyou indicar-Ihes agora.

Na psieose, 0 Nome-do-Pai, 0 pai como fun<;ao simb6liea, 0 paino nivel do que acontece aqui, entre mensagem e c6digo e c6digo emensagem, e, precisamente, verworfen. Por causa disso, nao existeaqui 0 que representei em pontilhado, isto e, aquilo mediante 0 qualo pai intervem como lei. Existe a interven<;ao bruta da mensagem naona mensagem da mae para 0 filho. Essa mensagem, posta queinteiramente bruta, e tambem fonte de urn e6digo que esta para alemda mae. Isso e perfeitamente identificavel nesse esquema de condu<;aodos significantes.

Reportando-nos ao caso do Presidente Schreber, este, porter sidoinstigado a urn desvio vital cssencial, 0 de fazer 0 Nome-do-Pairesponder em seu lugar, isto e, ali de on de ele nao pode responderporque nunca esteve, ve nesse lugar surgir essa estrutura. Ela sematerializa pela interven<;ao maci<;a, real, do pai para alem da mae,na medida em que de modo algum e sustentada pOl' ele comoprovocador da lei. Dai resulta que, no ponto alto e fecundo de suapsicose, 0 Presidente Schreber ouve ... 0 que? Exatamente, dois tiposfundamentais de alucina<;ao, que nunea sao isolados como tais nosmanuais classicos.

Para compreender alguma coisa sobre a alucina<;ao, mais vale lero livro excepcional de urn psic6tico como 0 Presidente Schreber doque leI' os melhores autorcs psiqui<itricos quc abordaram 0 problemada alucina<;ao, trazendo no bolso, ja prontinha, a famosa escala escolaraprendida nas aulas de filosofia - sensa<;ao, percep<;ao, percep<;aosem objeto e outras futilidades.

o Presidente Schreber distingue ele pr6prio muito bem duasordens de coisas.

Primeiro, existem as vozes que falam na lfngua fundamental ccujo tra<;o caracteristico e ensinar 0 c6digo ao sujeito atravcs dcssapr6pria fala. As mensagens que ele recebe na lfngua fundamclltal,rcitas de palavras que, neol6gicas ou nao, continuam a scr pa!;\vr:l.s,

Detenhamo-nos aqui pOl' urn instante, para dar margem ao que e quaseurn parentese, mas importante, e que concerne a psicose.

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a sua maneira, consistem em ensinar ao sujeito 0 que elas sao numnovo codigo, aquele que Ihe repete literal mente urn novo mundo, urnuniverso significante. Em outras palavras, uma primeira serie dealucina<;oes e feita de mensagens sobre urn neocodigo, que se apresentacomo proveniente do Outro. Isso e 0 que ha de mais terrivelmentealucinatorio.

POl' outro lado, ha uma outra forma de mensagem, a mensageminterrompida. Voces estarao lembrados desses pedacinhos de frases- Ele deve, especialmente ... , Agora, quero ... etc. Sao come<;os deordens e, em alguns casos, ate verdadeiros axiomas - Acabar umacoisa quando se comec;ou, e assim por diante. Em suma, essasmensagens se apresentam como mensagens puras, ordens ou ordensinterrompidas, como puras for<;as de indu<;ao no sujeito, e sao perfei-tamente localizaveis dos dois lados, mensagem e codigo, como dis-sociadas.

.§pjssQ que se resume a interven<;ao do discurso paterno quandoe abolido desde a origem, quando nunc a e integrado na vida do sujeito,aquilo que produz a coerencia do discurso, a saber, a auto-san<;aomediante a qual, havendo conclufdo seu discurso, 0 pai retorna a elee 0 sanciona como lei.. Passemos agora a etapa seguinte do complexo de Edipo, quepressupoe, em condi<;oes normais, que 0 pai entre em jogo, comodissemos da ultima vez, como aquele que tern. EIe intervem nessenfvel para dar 0 que esta em causa na priva<;ao falica, termo centralda evolu<;ao do Edipo e de seus tres tempos. Aparece, efetivamente,no ato de doa<;ao. Ja nao e nos vaivens da mae que ele esta presente,e portanto, ainda semivelado, mas aparece em seu proprio discurso.De certo modo, a mensagem do pai torna-se a mensagem da mae, namedida em que agora ele permite e autoriza. Meu esquema da ultimavez nao quer dizer outra coisa senao que essa mensagem do pai, porse encarnar como tal, pode produzir a subida de urn degrau no esquema,

, de modo que 0 sujeito pode receber da mensagem do pai 0 que haviatentado receber da mensagem da mae. Por intermedio do dom ou dapermissao concedidos a mae, ele afinal consegue isto: que Ihe sejapermitido tel' urn penis para mais tarde. Af esta 0 que e efetivamenterealizado pel a fase de declfnio do Edipo - ele realmente carrega,como dissemos da (Iltima vez, 0 tftulo de posse no bolso.

Para evocar uma cita<;ao historica e divertida: uma mulher cujomarido queria certificar-se de que cIa Ihe era fiel deu-lhe pOl' escritourn atestado de que era fiel, e desde entao come<;ou a se espalhar pelomundo, dizendo: - Ah! que linda bilhete tem ° La Chatre! Pois bern,

esse La Chiltre e nosso pequeno castrado [chatre] sao realmente damesma ordem, ,levando tambem, no fim do Edipo, esse lindo bilheteque nao e pouca coisa, uma vez que e nele que repousara, mais tarde,a possibilidade de 0 menino assumir tranqiiiIamente, nos casos maisl"cIizes, a posse de urn penis, ou, em outras palavras, de ser alguemidcntico a seu pai.

Mas essa e uma etapa cujas duas vertentes, como voces estaovendo, sao sempre suscetfveis de reverter uma na outra. Ha algo deabstrato, e, contudo, de dialetico, na rela<;ao dos dois tempos de queacabo de lhes falar, aquele em que 0 pai intervem como proibidor eprivador, e aquele em que intervem como permissivo e doador -doador no nfvel da mae. Podem acontecer outras coisas e, paraexamina-las, devemos agora colocar-nos no nfvel da mae e nosinterrogarmos novamente sobre 0 paradoxo representado pelo caratercentral do objeto falico como imaginario .

A mae e uma mulher que supomos haver chegado a plenitude desuas capacidades de voracidade feminina, e a obje<;ao feita a fun<;aoimaginaria do falo e inteiramente valida. Se a mae e assim, 0 falonao e pura e simplesmente isso, esse belo objeto imaginario, pois jafaz algum tempo que cIa 0 engoliu. Em outras palavras, 0 falo, nonfvel da mae, nao e unicamente urn objeto imaginario, mas e tambem,perfeitamente, uma coisa que cumpre sua fun<;ao no nfvel instintivo,como instrumento normal do instinto. E 0 injeto, se assim posso mecxprimir - com uma palavra que nao quer simplesmente dizer quecIa 0 introduz em si, mas que ele the e introduzido. Esse in assinalaigualmcnte sua fun<;ao instintiva.

E pelo fato de 0 homem ter de atravessar toda a floresta dosignificante, para se reunir ascus objetos instintivamente validos eprimitivos, que lidamos com toda a diaICtica do complcxo de Edipo.Isso nao impede que, de qualquer modo, de tempos em tempos elechegue la, gra<;as a Deus, caso contrario, as coisas ter-se-iam extin-guido ha muito tempo por faha de combatentes, dada a enormedificuldade de ir ao encontro do objeto real.

Essa e uma das possibilidades pe1a vertente da mae. Existemoutras, e seria preciso tratar de vel' 0 que significa para ela sua rela<;aocom 0 falo, na medida em que, como acontece com todo sujeitohumano, este tern para ele especial importilncia. Podemos distinguir,por exemplo, ao lado da fun<;ao de injeto, a de adjeto. ~sse termodesigna 0 pertencimento imaginario de alguma coisa que, no nfvelimaginario, e-Ihe dada ou nao, que ela tern permissao de desejar comotal, e que the faha. 0 falo intervem entao como faha, como ohjcto

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de que cIa foi privada, como objeto da Penisneid, da priva<,;ao sempresentida cuja incidencia conhecemos na psicologia feminina. Mas eletambem po de intervir como objeto que afinal Ihe e dado, mas, de laonde esta, entrando em considera<,;ao de maneira muito simb6lica.Essa e uma outra fun<,;ao do adjeto, ainda que possa confundir-se coma do injeto primitivo.

Em suma, se cIa tem todas as dificuldades implicadas no fato deter que se introduzir na dialetica do simbolo para conseguir integrar-sena famnia humana, a mulher tem, por outro lado, todos os acessos aalgo de primitivo e instintivo, que a estabelece numa rela<,;ao diretacom 0 objeto nao mais de seu desejo, mas de sua necessidade.

Elucidado isso, falemos agora dos homossexuais.

Creio que somente essa maneira de esquematizar 0 problemapermite apontar de onde provem a dificuldade de abalar sua posi<,;aoe, mais do que isso, apontar por que, uma vez deslocada esta, a analisecostuma fracassar. Nao e em razao de uma impossibilidade internadessa posi<,;ao, mas em virtude de que toda sorte de condi<,;oes eexigivel e de que e preciso caminhar pelos desvios por onde suaposi<,;ao veio a se tornar preciosa e primordial para ele.

Ra um certo numero de tra<,;os que podemos assinalar no homos-sexual, a come<,;ar pOI' uma rela<,;ao profunda e perpetua com a mae.A mae nos e apresentada, segundo a media dos casos, como tendono casal parental uma fun<,;ao diretiva, eminente, e como havendocuidado mais do filho que do pai. Tambem se costuma dizer, e issoja e outra coisa, que ela teria cui dado do filho de maneira muitocastradora, que teria tom ado um cuidado enorme, muito minucioso emuito prolongado com sua educa<,;ao. Ninguem parece desconfiar queessas coisas nao vao, todas elas, no mesmo senti do. E preciso acres-centar alguns pequenos elos suplementares, para chegar a supor queo efeito de uma interven<,;ao tao castradora teria como resultado, nofilho, uma supervaloriza<,;ao do objeto, sob a forma geral como estacostuma se apresentar no homos sexual, de tal sorte que nenhumparceiro passivel de Ihe despertar 0 interesse pode ser privado desseobjeto.

Nao quero leva-Ios a se impacientar, nem dar a impressao de Ihesestar propondo adivinha<,;oes. Creio que a chave do problema concer-nente ao homossexual e esta: se 0 homossexual, em todas as suasnuances, atribui um valor preponderante ao bendito objeto, a pontode fazer dele uma caracteristica absolutamente exigivel do parceirosexual, e na medida em que, de alguma forma, a mae dita a lei aopai, no senti do como Ihes ensinei a distingui-lo.

Eu Ihes disse que 0 pai intervem na dialetica edipiana do desejopOI' ditar a lei a mae. Aqui, 0 que esta em pauta, e que pode revestir-sede formas diversas, sempre se resume nisto: e a mae que mostra tersido a lei para 0 pai num momenta decisivo. Isso quer dizer, muitoprecisamente, que, no momento em que a interven<,;ao proibidora dopai deveria tel' introduzido 0 sujeito na fase de dissolu<,;ao de suarela<,;ao com 0 objeto do desejo da mae, e cortado pela raiz qualquerpossibilidade de ele se identificar com 0 falo, 0 sujeito encontra naestrutura da mae, ao contrario, 0 suporte, 0 refor<';Qque fazcom queessa crise nao ocorra. No momenta ideal, no tempo dialetico em quea mae deveria ser apreendida como privada do adjeto, de tal modoque 0 sujeito literal mente nao soubesse mais para que santo apelar a

Fala-se dos homossexuais. Trata-se dos homossexuais. Nao se curamos homossexuais. E 0 mais impressionante e que nao saG curados, adespeito de serem absolutamente curaveis.

Se ha uma coisa que se destaca das observa<,;oes da maneira maisclara, e que a homossexualidade masculina - a outra tambem, mashoje vamos limitar-nos ao homem, pOI' razoes de clareza - e umainversao quanta ao objeto, que se estrutura no nivel de um Edipopleno e acabado. Mais exatamente, mesmo realizando a terceira etapade que falavamos ha pouco, 0 homossexual a modi fica muito sensi-velmente. Voces me dirao: - Isso nos ja sabfamos, ele realiza 0

Edipo de forma invertida. Se isso Ihes basta, voces podem ficar pOI'af, nao os obrigo a me seguirem, mas considero que temos 0 direitode tel' exigencias maiores do que dizer: - Por que suafilha e muda?- Porque a Edipo e invertido.

Temos que investigar, na pr6pria estrutura do que a clinica mostraa prop6sito dos homossexuais, se nao podemos compreender muitomelhor em que ponto exato se situa a conclusao do Edipo. Devemosconsiderar, primeiramente, sua posi<,;ao, com todas as suas caracteris-ticas, e, em segundo lugar, 0 fato de ele se apegar extremamente acitada posi<,;ao. 0 homossexual, com efeito, des de que Ihe sejamoferecidos os meios e a facilidade para isso, agarra-se extremamentea sua posi<,;ao de homos sexual, e suas rela<,;oes com 0 objeto feminino,muito longe de serem abolidas, sao, ao contrario, profundamenteestruturadas.

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esse respeito, ele depara, ao contnirio, com a seguran<.;a dela. Issopermite aguentar 0 tranco perfeitamente, por ele ter experimentadoque e a mae que e a chave da situa<.;ao, e que ela nao se deixa privarnem despojar. Em outras palavras, 0 pai po de continuar a dizer 0 quequiser, que isso para eles nao fede nem cheira.

Isso nao quer dizer, no entanto, que 0 pai nao tenha entrado emjogo. Freud, ja se vai muito tempo - pe<.;o-lhes que se reportem aosTres ensaios sobre a teoria da sexualidade -, disse que nao era raro- e ele nao se exprime ao acaso, nao foi por indolencia que disseque niio e raro, foi por te-Io visto com frequencia - uma inversaoser determinada pela Wegfall, pela derrocada de um pai demasiada-mente proibidor. Ha nisso os dois tempos, isto e, a proibi<.;ao, masve-se tambem que essa proibi<.;ao fracassou, OU, em outras palavras,que foi a mae quem acabou ditando a lei.

Isso tambem lhes explica por que, em casos inteiramente diferen-tes, quando a marca do pai proibidor e quebrada, 0 resultado eexatamente 0 mesmo. Em particular, nos casos em que 0 pai amaexcessivamente a mae, nos quais parece, por seu amor, ser demasia-damente dependente dela, 0 resultado e exatamente 0 mesmo.

; Nao estou dizendo que 0 resultado seja sempre 0 mesmo, masque, em alguns casos, ele e 0 mesmo. 0 fato de 0 pai amar demaisa mae pode ter um resultado diferente de uma homossexualidade. Naoestou de modo algum refugiando-me na constitui<.;ao, mas apenassalientando de passagem que e preciso estabelecer diferen<.;as, e quepodemos observar, por exemplo, um efeito do tipo neurose obsessiva,como veremos numa outra ocasiao. Por ora, simplesmente assinaloque causas diferentes podem ter um efeito comum, ou seja, que noscasos em que 0 pai e apaixonado demais pela mae, ele fica, de fato,na mesma posi<.;ao daquele para quem a mae dita a lei.

Ha ainda casos - 0 interesse dessa perspectiva e reunir casosdiferentes - em que 0 pai, como lhes atesta 0 sujeito, permaneceusempre como um personagem muito distante, cujas mensagens s6chegavam por intermedio da mae. Mas a analise mostra que, narealidade, ele esta longe de estar ausente. Em particular, por tras darela<.;ao tensa com a mae - muito comumente marcada por toda sortede acusa<.;6es, de queixas, manifesta<.;6es agressivas como se costumadizer -, que constitui 0 texto da analise de um homossexual, apresen<.;a do pai como rival, nao, em absoluto, no senti do do Edipoinvertido, mas do Edipo normal, e revelada da maneira mais clara.Nesse caso, contentamo-nos em dizer que a agressividade contra 0

pai foi transferida para a mae, 0 que nao fica muito claro, mas pelo

menos tem a vantagem de aderir aos fatos. 0 que se trata de saber epor que isso acont,ece.

Acontece pOl'que, na situa<.;ao crftica em que 0 pai era efetivamenteuma amea<.;a para ele, 0 filho encontrou uma solu<.;ao, aqueJa queconsistiu na identifica<.;ao representada pela homologia desses doistrifmgulos.

o sujeito considerou que a maneira certa de agiientar 0 trancoera identificar-se com a mae, porque esta, por sua vez, nao se deixavaabalar. Desse modo, e na posi<.;ao da mae assim definida que ele seencontra.

Por um lado, ao lidar com um parceiro que c um substituto dopersonagem paterno, trata-se, para ele, como frequentemente aparecenas fantasias e nos sonhos dos homossexuais, de desarma-Io, humi-Iha-Io, ou ate, de um modo perfeitamente claro em alguns, de inca-pacitar esse personagem substituto do pai de se impor perante umamulher ou as mulheres.

Por outro lado, a exigencia do homossexual de encontrar em seuparceiro 0 6rgao peniano corresponde precisamente a que, na posi<.;aoprimitiva, aquela ocupada pel a mae que dita a lei ao pai, 0 que elJuestionado - nao resolvido, mas posta em questao - e saber se,na verdade, 0 pai tem ou nao tem, e e exatamente isso que e exigidoJlelo homossexual a seu parceiro, acima de qualquer outra coisa, e de11m modo preponderante em rela<.;ao as outras coisas. Depois se vera

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o que tera de ser feito com isso, mas trata-se, antes de mais nada, deele mostrar que tern.

Irei ate mais longe, indicando-Ihes aqui em que consiste 0 valorde dependencia representado para a crian~a pelo amor excessivo dopai pela mae. Voces estao lembrados, espero, da formula que escolhiem sua homenagem, ou seja, que amar e sempre dar 0 que nao setern, e nao dar 0 que se tern. Nao retomarei as raz6es pelas quais lhesdei essa formula, mas estejam certos dela, e tomem-na como umaformula chave, como uma pequena passarela que, a urn toque da mao,os levara ao andar certo, mesmo que voces nao entendam nada, e e

-:muito melhor que nao entendam nada. Amar e dar a alguem que, porsua vez, tern ou nao tern 0 que esta em causa, mas e certamente daro que nao se tern. Dar, ao contrario, tambem e dar, mas e dar 0 quese tern. A diferen~a esta toda nisso.

Em todos os casos, na medida em que 0 pai se mostra verdadei-ramente apaixonado pela mae, ele fica sob a suspeita de nao tel', e esob esse angulo que 0 mecanismo entra em jogo. Observo-Ihes, a esserespeito, que as verdades nunca SaG completamente obscuras nemdesconhecidas - quando nao articuladas, pelo menos SaGpressentidas.Nao sei se voces notaram que esse tema melindroso nunca e abordadopelos analistas, embora seja pelo menos tao interessante saber se 0

pai amava a mae quanto se a mae amava 0 pai. A questao e semprecolocada nesse sentido - 0 filho teve uma mae falica, castradora eo que mais voces quiserem, que tinha em rela~ao ao pai uma atitudeautoritaria, desamor, desrespeito etc. -, mas e muito curioso ver quenunca enfatizamos a rela~ao do pai com a mae. Nao sabemos muitobem 0 que pensar disso e, em suma, nao nos parece posslvel dizeralguma coisa realmente normativa a esse respeito. POl' isso, deixamoscuidadosamente de lado, pelo menos ate hoje, esse aspecto do pro-blema, ao qual e muito provavel que eu tenha de voltar.

Outra conseqUencia. Ha tambem uma coisa que aparece muitofreqiientemente, e que nao e dos paradoxos menos significativos daanalise dos homossexuais. A primeira vista, parece paradoxa!, emrela~ao a exigencia do penis no parceiro, que eles tenham urn medopavoroso de ver 0 orgao da mulher, porque, segundo nos dizem, issolhes sugere ideias de castra~ao. Talvez seja verdade, mas nao damaneira que se sup6e, pois 0 que os paralisa diante do orgao damulher e precisamente a suposi~ao, em muitos casos, de que eleingeriu 0 falo do pai, e 0 que e temido na penetra~ao e justamente 0

encontro com esse falo.

Ha sonhos - you citar-Ihes alguns - bem registrados na litera-lura, e que tamberri SaGencontrados em minha pratica, que evidenciamda maneira mais clara que 0 que ocasionalmente emerge, no posslvelcncontro com uma vagina feminina, e urn falo que se desenvolvecomo tal e que representa qualquer coisa de insuperavel, diante daqual nao somente 0 sujeito tern de se deter, mas e tambem invadidopor toda sorte de temores. Isso confere ao perigo da vagina urn sentidointeiramente diferente daquele que se julgou dever colocar na categoriada vagina dentada, que tambem existe. Trata-se da vagina temida porconter 0 falo hostil, 0 falo paterno, 0 falo simultaneamente fantaslsticoc absorvido pela mae, e cuja verdadeira potencia ela detem no orgaofeminino.

Isso articula de modo suficiente toda a complexidade das rela~6esdo homossexual. Trata-se de uma situa~ao estavel, de modo algumdual, uma situa~ao cheia de seguran~a, uma situa~ao com tres pes. Eprecisamente pOl' nunea ser considerada senao sob 0 aspecto de umarela~ao dual, e por nunca se penetrar no labirinto da posi~6es dohomossexual, que, por culpa do analista, a situa~ao nunca vem a serinteiramente elucidada.

Mesmo havendo as mais estreitas rela~6es com a mae, a situa~aoso tern importancia pela rela~ao com 0 pai. 0 que deveria ser amensagem da lei e justamente 0 contrario e, ingerido ou nao, mostraestar nas maos da mae. A mae detem a chave, porem de urn modomuito mais complexo do que 0 implicado pela no~ao global e maci~ade que ela e a mae provida de urn falo. Se 0 homossexual se identificacom ela, nao e, de modo algum, pura e simples mente por ela ter ounao ter 0 adjeto, mas por deter as chaves da situa~ao particular queprevalece na salda do Edipo, onde se julga a questao de saber qualdos dois, afinal de contas, de tern 0 poder.Naq urn poder qualquer,mas, muito precisamente, 0 poder do amor, e na medida em que osvfnculos complexos da edifica~ao do Edipo, tal como lhes SaG apre-scntados aqui, permitem-Ihes compreender como a rela~ao com af()r~a da lei repercute, metaforicamente, na rela~ao com 0 objetofantaslstico que e 0 falo, como 0 objeto com 0 qual, Dum dadomomento, deve fazer-se a identifica~ao do sujeito.

Examinarei, da proxima vez, urn pequeno comentario anexo aoque se denominou de estados de passividade do falo - a expressaoo de Lowenstein - para fornecer 0 motivo de certos disturbios daJ10lcncia sexual. Isso se insere aqui com demasiada naturalidade paraque eu nao 0 fa~a. Depois, YOU mostrar-Ihes como, atraves dasdi I"crentes metamorfoses do mesmo objeto, des de 0 princfpio, ou seja.

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desoe sua fun<;:ao como objeto imaginario oa mae ate 0 momenta emque ele e assumido pelo sujeito, podemos esbo<;:ar a classifica<;:ao gerale definitiva das diferentes formas em que ele intervem. Isso e 0 quefaremos dentro de oito dias.

Na vez seguinte, depois da qual yOU deixa-los por tres semanas,concluiremos 0 que concerne a rela<;:ao do sujeito com 0 falo, de umamaneira que talvez Ihes interesse menos diretamente, mas da qualfa<;:omuita questao.

Com efeito, terminei meu ultimo trimestre com 0 que Ihes trouxea respeito da comedia. Quando Ihes disse que a essencia da comediaera quando 0 sujeito retomava toda a questao dialetica na mao e dizia,Afinal, toda essa historia dramatica, a tragedia, os conflitos entre 0

pai e a mae, nada disso equivale ao amor, e agora vamo-nos divertir,entremos na orgia, far;amos cessarem todos os conflitos, afinal, issotudo foi feito para 0 homem, isso nao foi muito bem ingerido. Fiqueibastante espantado pOl' haver surpreendido ou ate escandalizado al-gumas pessoas. Vou fazer-Ihes uma confidencia: isso esta em Hegel.

POI' outro lado, introduzirei nesse assunto algo novo, e que meparece muito mais demonstrativo do que tudo 0 que ja foi elaboradosobre os diversos fenomenos da espirituosidade. E que, ao seguir essecaminho, deparamos com uma surpreendente confirma<;:ao do quevimos formulando, ou seja, 0 carateI' crucial, para 0 sujeito e paraseu desenvolvimento, da identifica<;:ao imaginaria com 0 falo.

Marco, pOl·tanto, urn encontro com voces para 0 ultimo dia desteperiodo, a fim de Ihes mostrar a que ponto isso se aplica, a que pontoe demonstrativo, a que ponto e sensacional - para fornecer umachave, urn termo unico, uma explica<;:ao univoca para a fun<;:ao dacomedia.

DA IMAGEM AO SIGNIFICANTENO PRAZER E NA REALIDADE

A conexiio dos dois principioso paradoxo de WinnicottImpasses do kleinismoDa Urbild ao IdealA mo(:a que quer ser chicoteada

A simboliza<;:ao preocupa 0 mundo. Saiu urn artigo no InternationalJournal, em maio-junho de 1956, sob 0 titulo "Symbolism and itsRelationship to the Primary and Secondary Processes" , no qual 0 s1'.Charles Rycroft tenta dar sentido ao simbolismo, no ponto da psica-nalise em que nos encontramos. Aqueles de voces que leem inglestirariam proveito de tomar conhecimento desse artigo, on de verao asdificuldades que se apresentam desde sempre a proposito do sentidoa ser dado, na analise, nao apenas a palavra simbolismo, mas a ideiaque fazemos do processo de simboIiza<;:ao.

Desde 191 I, quando 0 s1'. Jones fez a esse respeito 0 primeirotrabalho importante de conjunto, a questao passou pOl' diversas fases,e deparou e continua a deparar com enormes dificuldades naquilo queconstitui atualmente a posi<;:ao mais articulada sobre 0 assunto, isto6, a que provem das considera<;:6es da sra. Melanie Klein sobre 0

papel do simbolo na forma<;:ao do eu.Aquilo de que se trata tem a mais estreita rela<;:ao com 0 que liles

venho explicando, e gostaria de faze-Ios sentir a utilidade 00 pOlliode vista que tento comunicar-Ihes para par um pouquinho oe cLIll'/;1

em dire<;:6es obscuras.

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Nao sei por quallado yOU toma-Io hoje, pois nao tenho urn planoquanta ao modo como Ihes you apresentar as coisas. Vma vez queesta e uma antepenultima sessao e que Ihes anunciei que 0 seminarioda p.roxima vez tel' a como eixo 0 falo e a comedia, eu gostaria, hoje,d~ sl~plesmente marcar urn ponto de suspensao, e de mostrar em que~Ire~oes. 0 que Ihes expus acerca do complexo de castra~ao permitemtroduzlr pontos de interroga~ao.

Vou come~ar tomando as teses tal como aparecem. Nem semprese pode introduzir nesse assunto uma ordem rigorosa, sobretudoquando se trata, como hoje, de urn ponto-encruzilhada.

~ evidente que nao poderia tratar-se de outra coisa, mas esse pontonao e la muito defi\lido -, uma tendencia para a satisfa~ao alucinatoriado desejo. Essa seria uma possibilidade virtual e como que constitutivada posi~ao do sujeito perante 0 mundo.

Penso que isso nao os surpreende, pois encontramos abundante-mente expressa em todos os autores essa referencia a uma experienciaprimitiva, baseada num modelo do arco refiexo. Antes mesmo decorresponder a uma ineita~ao interna do sujeito, que desencadeia 0

cicio instintivo, 0 movimento, mesmo descoordenado, do apetite e,em seguida, a busca e a orienta~ao na realidade - a necessidadesatisfaz-se atraves dos tra~os mnemicos daquilo que ja respondeu aodesejo. A satisfa~ao tende, assim, a se reproduzir, pura e simplesmente,no plano alucinatorio.

Essa ideia, que se tornou quase consubstancial a nossas concep~6esanalftieas, e da qual nos servimos quase que implicitamente toda vezque falamos do princfpio de prazer, nao Ihes parece ela suficientementeexorbitante para justificar urn esclarecimento? Pois, afinal, se e danatureza do cicio dos processos psiquicos erial' sua satisfa~ao para simesmo, pOl' que as pessoas nao se satisfazem?

Naturalmente, a necessidade continua a insistir. A satisfa~ao daI'antasia nao tem como atender a todas as necessidades. Mas sabemosmuito bem que, na ordem sexual, seguramente em todos os casos, ela~ eminentemente passivel de fazer face a necessidade, caso se tratede necessidades pulsionais. Com a fome, a coisa e outra. Desenha-seno horizonte que a questao, afinal de contas, e 0 carater muitopossivelmente ilus6rio do objeto sexual.

Essa concep~ao da rela~ao da necessidade com sua satisfa~aoexiste e pode real mente sustentar-se, pelo menos num certo nivel -u da satisfa~ao sexual. Ela impregnou tao profundamente todo 0

pensamento analftico que vieram para 0 primeiro plano as gratifica~6esuu satisfag6es primordiais, bem como as frustrag6es que se produzemnos primordios da vida do sujeito, isto e, nas relag6es do sujeito coma mae. Assim, em seu conjunto, a psicanalise ingressou cada vez maisnuma dialetica da necessidade e de sua satisfagao, a medida que seinteressou mais e mais pelos estagios primitivos do desenvolvimentodo sujeito. POl' esse caminho, chegou-se a formula~6es das quais eugostaria de Ihes apontar 0 carater nao menos necessario do que.significativo.

Na perspectiva kleiniana, que e a que estou designando nestemomento, toda a aprendizagem, pOl' assim dizer, da realidade pelosujeito e primordialmente preparada e sustentada pela constitui~ao

No titulo do artigo de Rycroft, voces acabam de vel' surgirem ostermos processo primario e secundario, dos quais nunc a falei em suapresenga, a tal ponto que, algum tempo atras, houve quem se sur-preendesse pOl' eles terem surgido a proposito de uma definigao devocabulario.

A oposi~ao entre 0 processo primario e 0 processo secundariodata do tempo da Traumdeutung e, sem ser completamente identicaa elas, superp6e-se as ideias opostas de princfpio de prazer e princfpiode realidade. A esses dois termos aludi mais de uma vez diante devoces, e sempre para Ihes assinalar que 0 uso que se faz deles eincompleto, quando eles nao sao relacionados urn com 0 outro equando sua liga~ao, sua oposigao, nao e sentida como constitutiva daposigao de cada urn.

Abordarei de imediato 0 x da questao.Quando se isola a nogao de princfpio de prazer como princfpio

do processo primario, chega-se ao que faz Rycroft - para definir 0

processo primario, ele acredita tel' que afastar todas as suas caracte-rfsticas estruturais e colocar em segundo plano a condensagao, 0

deslocamento etc., tudo aquilo que Freud comegou pOl' abordar aodefinir 0 inconsciente, para caracteriza-Io pelo que e trazido pel aelaboragao terminal da teoria freudiana na Traumdeutung. Ou seja,Rycroft faz dele urn mecanismo originario, primordial - quer voceso entendam como etapa historica ou como subjacencia, fundamento-, sobre 0 qual alguma coisa diferente teve de se desenvolver. Eleseria uma especie de base, de profundeza psiquica, ou, entendido nosenti do logico, urn ponto de partida obrigatorio da refiexao. Emresposta a incitagao pulsional, haveria sempre, no sujeito humano _

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csscncialmente alucinatoria e fantasfstica dos primeiros objetos, clas-sificados como objetos bons e maus, na medida em que eles fixamuma primeira rela<;;ao primordial que, na sequencia da vida do sujeito,forneceni os tipos principais de seus modos de rela<;;aocom a realidade.Chegamos, assim, a ideia de que 0 mundo do sujeito e construfdo poruma rela<;;ao fundamental mente irreal entre ele e objetos que naopassam do reflexo de suas puls6es fundamentais.

E em torno da agressividade fundamental do sujeito, por exemplo,que se orden a, numa serie de proje<;;6es das necessidades do sujeito,o mundo da phantasy, tal como se utiliza esse conceito na escolakleiniana. E na superffcie desse mundo que intervem uma serie deexperiencias mais ou menos felizes, e e desejavel que elas sejambastante felizes. Desse modo, pouco a pouco, 0 mundo da experienciapermite uma certa demarca<;;ao razoavel daquilo que, nesses objetos,e, como se costuma dizer, objetivamente definfvel como correspon-dente a uma certa realidade, mantendo-se absolutamente fundamentala trama de irrealidade.

Af esta algo que podemos realmente chamar de uma constru<;;aopsicotica do sujeito. 0 sujeito normal e, em suma, dentro dessaperspectiva, uma psicose que deu certo, uma psicose afortunadamenteharmonizada com a experiencia. 0 que lhes estou enunciando nao euma reconstru<;;ao. 0 autor de que you falar agora, 0 sr. Winnicott,exprime-o rigorosamente dessa maneira, num texto que escreveu sobrea utiliza<;;ao da regressao na terapeutica analftica. Nele, a homogenei-dade fundamental da psicose com a rela<;;ao normal com 0 mundo eabsolutamente afirmada como tal.

Enormes dificuldades surgem dessa perspectiva, nem que sejapara conseguir concebe-la. Nao sendo a fantasia [fantaisie]* nada alemda trama subjacente ao mundo da realidade, qual pode ser a fun<;;aoda fantasia reconhecida como tal, no sujeito acabado e em estadoadulto, e que teve exito na constitui<;;ao de seu mundo? Esse e tambemo problema que se apresenta a qualquer kleiniano que se preze, istoe, a qualquer kleiniano confesso, e tambem, podemos dizer atualmente,a quase qualquer analista, na medida em que 0 registro no qual eleinscreve a rela<;;ao do sujeito com 0 mundo torna-se, cada vez maisexclusivamente,o de uma sucessao de aprendizagens do mundo, feitas

com base numa serie de experiencias mais ou menos bem-sucedidasde frustra<;;ao.

Pe<;;o-lhes que se reportem ao texto do sr. Winnicott que se en contra110 volume 26 do International Journal of Psycho-analysis, sob 0

tftulo de "Primitive Emotional Development". Nele, 0 autor se em-penha em identificar 0 motivo do surgimento do mundo da fantasia,tal como conscientemente vivido pelo sujeito e tal como ele equilibrasua realidade, como e preciso constatar no proprio texto da experiencia.Que os que se interessarem por isso se apoiem numa observa<;;ao doautor, cuja necessidade podemos sentir, a tal ponto ela conduz a urnparadoxa sumamente curioso.

o surgimento do princfpio de realidade, isto e, do reconhecimentoda realidade, a partir das rela<;;6es primordiais da crian<;;a com 0 objetomaterno, objeto de sua satisfa<;;ao e tambem de sua insatisfa<;;ao, naopermite perceber como pode brotar daf 0 mundo da fantasia em suaforma adulta - a nao ser por urn artiffcio, do qual 0 Sr. Winnicottcsta ciente, e que sem duvida permite urn desenvolvimento bastantecoerente da teoria, mas ao pre<;;o de urn paradoxa que quero leva-los;1 perceber.

Ha uma discordancia fundamental entre a satisfa<;;ao alucinatoriada necessidade e 0 que a mae oferece ao filho. E nessa propriadiscordancia que se abre a hiancia que permite a crian<;;a obter urnprimeiro reconhecimento do objeto. Isso pressup6e que 0 objeto, adcspeito das aparencias, mostre-se decepcionante. Entao, para explicarcomo pode nascer aquilo em que se resume, para 0 psicanalistall1oderno, tudo 0 que acontece com 0 mundo da fantasia e da imagi-l1a<;;ao,ou seja, 0 que se chama em ingles wishful thinking e preciso,)bservar 0 seguinte.

Suponhamos que 0 objeto materna chegue na hora exata parasatisfazer a necessidade. Mal a crian<;;a come<;;a a reagir para tel' 0

scio, que a mae 0 ofere<;;a a ela. Winnicott detem-se, com justa razao,l' levanta 0 seguinte problema: 0 que permite a crian<;;a, nessascondi<;;6es, estabelecer uma distin<;;ao entre a satisfa<;;ao alucinatoriadc seu desejo e a realidade? Em outras palavras, com esse ponto departida, chegamos estritamente a seguinte equa<;;ao: na origem, a:t1ucina<;;ao e absolutamente impossfvel de distinguir do desejo com-pleto. 0 paradoxa dessa confusao nao tern como deixar de impres-.sionar.

Numa perspectiva que caracterize rigorosamente 0 processo pri-Jl1ario como devendo ser naturalmente satisfeito de maneira alucina-I,'lria, chegamos a que, quanta mais satisfatoria e a realidade, menos

* Lacan, provavelmente para marcar a especificidade da elabora<;:aokleiniana, uti-liza aqui e em toda esta passagem, em vez do falltasme habitual, 0 termo falltaisie,que aproxima "fantasia" de "devaneio", "imagina<;:ao". (N.E.)

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cia constitui uma experiencia da realidade - dal a ideia de onipotcnciana crians;a se fundamentar, na origem, em tudo que pode haver debem-sucedido na realidade.

Essa conceps;ao po de sustentar-se de certa maneira, mas admitamque, em si mesmo, isso apresenta urn certo aspecto paradoxa!. Apropria necessidade de recorrer a tal paradoxo, para explicar urn pontoaxial do desenvolvimento do sujeito, presta-se a retlexao ou aoquestionamento.

Mas, por mais paradoxal que seja, e francamente paradoxal, essaconceps;ao nao deixa de tel' algumas conseqi.iencias, que ja Ihes aponteino ana passado ao fazer alusao a esse mesmo artigo do sr. Winnicott.E que ela nao tem outro efeito, na seqi.iencia de sua antropologia,senao 0 de faze-Io classificar no mesmo registro dos aspectos fanta-sisticos do pensamento quase tudo 0 que se pode chamar de especu-las;ao livre. Ele assimila completamente a vida fantaslstica tudo 0 quee da ordem do especulativo, pOl' mais extraordinariamente elaboradoque seja, isto e, tudo 0 que podemos chamar de convics;6es - quasequalquer uma - polfticas, religiosas ou outras. Esse e urn ponto devista que se insere bem no humor anglo-saxao, tanto numa certaperspectiva de respeito mutuo, de tolerancia, como numa de retrai-rnento. Ha uma serie de coisas das quais so se fala entre aspas, oudas quais nao se fala entre pessoas bem-educadas. No entanto, saocoisas de certa importancia, uma vez que fazem parte do discursointerno, que estamos longe de poder reduzir ao wishful thinking.

Mas, deixemos as resultantes da coisa. Simplesmente quero agoramostrar-Ihes 0 que, face a isso, uma outra conceps;ao pode colocar.

Com isso, a porta estava aberta. Por ela preCIpltaram-se osI',;iqlliatras, que desde longa data vinham procurando formal' limaIdl;ia sobre as relas;6es perturbadas do sujeito com a realidade no,,,"lfrio, referindo-o, por exemplo, a estruturas analogas as do sonho.1\ perspectiva que acabei de Ihes apresentar nao introduz nenhumaIlllldificas;ao essencial nesse ponto.

No ponto em que nos encontramos, e on de vemos as dificuldades" impasses suscitados pela conceps;ao de uma relas;ao puramente'1llaginaria do sujeito com 0 mundo como estando na base do desen-volvimento de sua relas;ao com a chamada realidade oposta, e impor-I:llIte retomarmos 0 esqueminha do qual nao paro de me servir.

Retomo-o em sua forma mais simples, e lembro, ainda que pares;aIl'pisa-Io um pouquinho como urn realejo, do que se trata.

Aqlli .~ncontramos uma coisa ques~ pode chamaI' de ,necessidade,III;IS que desde 19Ro_.c;hamQ_c:l~.c!e.s~i<:l, porque nao eXiste-'ert~dOs~s"originario nem estado de necessidade pura. Desde a origem, a neces-<;idade tem sua motivas;ao no plano do desejo, isto e, de alguma coisa'11iC se destina, no homem, a tel' uma certa relas;ao com 0 significante.i\ I esta a travessia pela intens;ao desejante do que se coloca para 0

_<'1ljcitocomo a cadeia significante - quer a cadeia significante jakllha imposto suas exigencias na subjetividade dele, quer, bem na'lrigem, ele so a encontre sob a forma disto: de ela estar desde logolonstitulda na mae, de ela Ihe impor, na mae, sua exigencia e sua!>arreira. 0 sujeito, como voces sabem, depara inicialmente com a';Ideia significante sob a forma do Outro, e ela desemboca nessaIlarreira sob a forma da mensagem - da qual, nesse esquema, trata-se,k ver apenas a projes;ao.

Para comes;ar, estara assim tao claro que podemos, pura e simples-mente, chamar de satisfas;ao 0 que se produz no nivel alucinatorio, enos diferentes registros em que podemos encarnar a tese fundamentalda satisfas;ao alucinatoria da necessidade primordial, no nlvel doprocesso primario?

Ja introduzi em varias ocasi6es esse problema. Diz-se vejam 0

sonho, e sempre nos reportamos ao sonho da crians;a. E 0 proprioFreud quem nos indica 0 caminho quanta a isso. Na perspectivaexplorada por ele, a do carater fundamental do desejo no sonho, Freudfoi levado a nos dar, com efeito, 0 exemplo do sonho da crians;a comotipico da satisfas;ao alucinatoria.

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Onde se situa, nesse esquema, 0 prinClplO de prazer? Podemosconsiderar, sob certas incidencias, que encontramos uma manifestac;aoprimitiva dele sob a forma do sonho. Tomemos 0 sonho mais primitivo,o mais confuso, 0 do cao. Percebe-se que 0 cao, quando esta dorm indo,mexe as patas de vez em quando. Deve estar sonhando, pOltanto, etalvez tenha tambem uma satisfac;ao alucinatoria de seu desejo. Po-demos nos concebe-Io? Como situa-Io no homem? Vejam entao 0 queIhes proponho, para que pelo menos isso exista como um termo de -'"possibilidade em seu espirito, e para que voces se deem conta, naocasiao oportuna, de que isso se aplica de maneira mais satisfatoria.

o que constitui uma resposta alucinatoria a necessidade nao e 0

surgimento de uma realidade fantasistica no fim do circuito inauguradopela exigencia da neeessidade. Ao cabo dessa exigencia que comec;aa ser suscitada no sujeito, desse movimento em direc;ao a algumacoisa, que deve efetivamente designar para ell' algum lineamento, 0

que aparece, e claro, nao deixa de estar relacionado com a necessidadedo sujeito, nao deixa de estar relacionado com um objeto, mas estanuma relac;ao tal com objeto que ele mereee ser chamado de signifi-cante. Trata-se, com efeito, de algo que tem uma relac;ao fundamentalcom a ausencia do objeto, e que ja apresenta um carMer de elementodiscreto, de signo.

Se voces consultarem a carta 52 a Fliess, ja citada por mim, veraoque, quando ele se empenha em articular 0 nascimento das estruturasinconscientes, no momento em que para ele comec;a a se formular ummodelo do aparelho psiquico que permite esclarecer precisamente 0

processo primario, 0 proprio Freud nao pode fazer outra coisa senaoadmitir, na origem, que a inscric;ao mncmica que corresponderaalucinatoriamente a manifestac;ao da neeessidade nao e nada alem deum signo, um Zeichen.

Dm signa nao se caracteriza unicamente por sua relac;ao com aimagem, na teoria dos instintos. Nao e 0 tipo de engodo que possabastar para despertar a necessidade, mas tampouco para satisfaze-Ia.Ele se situa numa certa relac;ao com outros significantes - pOl'exemplo, com 0 significante que the e diretamente oposto, e queexpressa sua ausencia. Ele se situa num conjunto ja organizado comosignificante, ja estruturado na relac;ao simb6lica, na medida em queaparece na conjunc;ao de um jogo da presenc;a com a ausencia, daausencia com a presenc;a - um jogo, pOl' sua vez, comumente ligadoa uma articulac;ao vocal em que ja aparecem elementos discretos, quesao significantes.

De fato, a experiencia que temos dos sonhos mais simples dacrianc;a nao e a de uma simples satisfac;ao, como quando se trata da

Iwccssidade da fome. Ela e algo que ja se apresenta com um carMer.1<- cxcesso, como exorbitante. Aquilo com que sonha a pequena AnnaI'lcud e justamente 0 que Ihe foi proibido - cerejas, morangos,/lI/lI1boesas, pudim, tudo 0 que ja entrou numa caracteristica propria-111l'l1tesignificante, por tel' sido proibido. Ela nao sonha simplesmente., 1m 0 que atenderia a uma necessidade, mas com 0 que se apresenta:I maneira de um banquete, ultrapassando os limites do objeto natural'[;1 satisfac;ao da necessidade.

Esse tras;o e essencial. E encontrado em absolutamente todos osIlivcis. Esta presente, seja qual for 0 nlvel em que voces tomem 0

'1IICse apresenta como satisfas;ao alucinat6ria.Ao contrario, tomando as coisas pelo extrema oposto, pela vertente

do delfrio, voces podem ficar tentados - na falta de coisa melhor,durante algum tempo, antes de Freud - a tambem procurar faze-Io,orresponder a uma especie de desejo do sujeito. Chegam a isso por:i1guns apanhados, alguns .flashes meio de vies, como aquele em quelima coisa pode efetivamente parecer que representa a satisfac;ao dodcsejo. Mas, porventura nao e evidente que 0 fenomeno principal, 0

lliais impressionante, 0 mais macic;o, 0 mais invasivo de todos osknamenos do delfrio, nao e, de modo algum, um fenameno que seIrlacione com um devaneio de satisfac;ao do desejo, mas, antes, algoI~IO marcado quantl) a alucinas;ao verhal?

Perguntamo-nos em que nivel se produz essa alucinac;ao verbai,,c ha neia, no sujeito, como que um reflexo interno, sob a forma da;ducinac;ao psicomotora, que e excessivamente importante de constatar,,c ha uma projec;ao ou outra coisa etc. Mas, acaso nao se evidencia,dcsde 0 comec;o, que 0 que predomina na estruturac;ao dessa alucina-,:;10, e que deve servir de primeiro elemento de ciassi[ic(l(,'ao, C suacstrutura significante? As alucinac;oes sao fenamenos estruturados noIlivel do significante. Nao podemos, nem sequer por um instante,Ilcnsar na organizac;ao dessas alucinac;oes sem vel' que a primeiracoisa a ser sublinhada nesse fenameno e que ele constitui um fenamenodc significante.

Eis, pOl·tanto, uma coisa que deve sempre lembrar-nos que, se evcrdade que podemos abordar 0 principio de prazer sob 0 angulo dasatisfac;ao fundamentalmente irreal do desejo, 0 que caracteriza a sa-lisfac;ao alucinat6ria do desejo e que ela se propoe no campo dosignificante e implica, como tal, um certo lugar do Outro. Alias, naosc trata forc;osamente de um Outro, mas de um certo lugar do Outro,l1a medida em que ele e exigido pela proposic;ao da instancia do.,ignificante.

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,ltlaptados, tenha uma experiencia do ~u~~o com~ que com suas. ' m~aos'l 0 f'ato de existir 0 slgDlf!cante e absolutamenteI'ropnas. ." ' .' ~ .

"sscncial nisso, e 0 principal mtermedlano de sua expell~nCla dalralidade - e quase uma banalidade, uma tolice dize-l? - e, apesartlos pesares, a voz. 0 ensinamento que ele recebe provem-Ihe, essen-tialmente, da fala do adulto.

Mas 0 espa<;o importante que Freud conqui~ta nesse elemen,to dacxperiencia e este: antes mesmo que a aprendlzagem da hnguagemscja elaborada no plano motor e no plano auditivo, e ,no p_Iano de queell' compreenda 0 que the e dito, ja existe a sl.mbohza<;ao -., des,~ea origem, desde as primeiras rela<;6es com 0 objeto, ~esde ~,plll~enarela<;ao da crian<;a com 0 objeto m~t,:rn~ como objeto pllmOldlal,primitivo, do qual depende sua subslstenCla no mundo .. Esse ?bje!o,com efeito, ja esta introduzido como tal no processo de sl~b~hza<;ao,e desempenha urn papel que introduz no mundo a eXIstenCla dosignificante. E isso, num estagio ultraprecoce. .

_ Digam claramente: a partir do momento em.9u: a cn.an<;a c,ome<;asimplesmente a poder opor dois fonemas, eles ja ~ao dOlS vocabulos.E posta que existem dois, aquele que os pronunCla e aquele a quemel'es sao dirigidos, isto e, 0 objeto, a mae, ja ~xistem af qm~tr~)elementos, 0 que e suficiente para conteI' em Sl vl.rtual,~nente toda acombinat6ria da qual ira surgir a organiza<;ao do slgDlf!cante.

Voces notarao que, neste pequeno esquema aqui, vemos a neces-sidade entrar em jogo nessa parte como que externa do circuito, quee constitufda pela parte da direita. A necessidade manifesta-se sob aforma de uma especie de cauda da cadeia significante, como algo ques6 existe no limite, mas onde voces sempre reconhecerao a caracte-rfstica do prazer como estando ligada a ell'. E 0 que acontece todavez que aIguma coisa chega a esse nfvel do esquema.

Se e a urn prazer que leva a tirada espirituosa, e na medida emque ela exige que 0 que se realiza no nfvel do Outro s6 se conclua,virtual mente, ao tender para 0 alem do senti do, que comporta em siuma certa satisfa<;ao.

Se e na parte extern a do circuito que 0 princfpio de prazer vema se esquematizar, e na parte oposta que se situa 0 princfpio derealidade. No que concerne ao sujeito humano, tal como lidamos comele ern nos sa experiencia, nao ha outra apreensao nem defini<;aopossivel do princfpio de realidade, uma vez que ell' entra ai no niveldo processo secundario. Como desconsiderar, em se tratando darealidade, que 0 significante entra efetivamente em jogo no realhumano como uma realidade originaria? Existe linguagem, ha fala nomundo e, pOl' causa disso, ha toda uma serie de coisas, de objetos,que san significados, e que de modo algum 0 seriam se nao existissesignificante no mundo.

A introdu<;ao do sujeito numa realidade qualquer nao e pensavel,de maneira alguma, a partir da pura e simples experiencia seja la doque for - frustra<;ao, discordancia, choque, queimadura e 0 que maisquiserem. Nao existe urn soletrar pas so a passo do Umwelt, exploradode maneira imediata e tateante. No animal, 0 instinto vem ern seusocorro, gra<;as a Deus. Se Fosse preciso 0 animal reconstruir 0 mundo,ele nao disporia de vida suficiente para faze-Io. Entao, pOl' quepretender que 0 homem, que, pOl' sua vez, tern instintos muito pouco

Passarei agora a urn outro esqueminha novo, que ~~ias)a foi esbo<;adoaqui, e que lhes mostrara quais serao as consequen~las d~ que ~hesenunciei, sempre lhes recordando 0 que os procurel fazel sentn naultima Ii<;ao.

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Dissemos que, primordial mente, tfnhamos a rela~ao da crian~acom a mae. Se e no eixo C-M que pretendemos que se constitua aprimeira rela~ao de realidade, e se fazemos a constitui~ao da realidadedep~nder unicamente das rela~6es do desejo da crian~a com 0 objeto,con forme este 0 satlsfa~a ou nao 0 satisfa~a, essa realidade permanecenao dedutfvel, e so pode ser reconstrufda na experiencia com a ajudade passes de magica perpetuos.

Se podemos, em ultima instancia, encontrar alguma coisa quecorresponda a isso num certo numero de casos de psicose precoce, esempre, no final das contas, a fase dita depressiva do desenvolvimentoda crian~a que nos reportamos toda vez que fazemos intervir essadialetica. Mas, na medida em que essa dialetica comporta urn desen-volvimento posterior, infinitamente mais complexo, trata-se, de fato,de algo completamente diferente - a crian~a nao tern rela~ao sim-plesmente com urn objeto que a satisfaz ou nao a satisfaz, mas, gra~asao mfnimo de espessura de irrealidade dado pel a primeira simboliza-~ao, ja existe urn referenciamento triangular da crian~a, uma rela~aonao com aquilo que traz satisfa~ao para sua necessidade, mas umarela~ao com 0 desejo do sujeito materna que ela tem diante de si.

A crian~a so e capaz de conseguir situar sua posi~ao na medidaem que a dimensao do sfmbolo ja foi inaugurada. Esta dimensao erepresentada aqui como 0 chamado eixo das coordenadas na analisematematica. E isso que permite conceber que a crian~a tenha de sesituar em rela~ao a dois palos. E justamente em torno disso, alias,que tateia a sra. Melanie Klein, sem conseguir fornecer a formula.De fato, e em torno de urn duplo polo da mae - que ela chama demae boa e mae ma - que a crian~a come~a a tomar posi~ao. Nao eo ?bjeto que ela situa, mas a si mesma, para come~ar. Depois, elaval situar-se em toda sorte de pontos que se encontram nesse eixo,~ara ten tar unir-se ao objeto do desejo da mae, atender a seu desejo.E esse 0 elemento essencial, e isso po de durar urn tempo extremamentelongo.

Na verdade, nenhuma especie de dialetica e possfvel, a se consi-~~rar tao:somente ~ rela~ao da crian~a com a mae, primeiro pOl·quee Impossivel deduzir qualquer coisa daf, depois porque e igualmenteimpossfvel, segundo a experiencia, conceber que a crian~a esteja nomundo ambfguo que nos apresentam os analistas kleinianos, no qualnao existe realidade a nao ser a da mae. 0 mundo primitivo da crian~a,segundo eles, e ao mesmo tempo refem desse objeto e inteiramenteauto-erotico, uma vez que a crian~a esta tao estreitamente ligada aoob]eto materno, que forma com ele, literalmente, urn cfrculo fechado.

Com efeito, como todos sabem, e para isso basta ve-la viver, acrian~a pequ((na nada tern de auto-erotica. Interessa-se normalmente,como qualquer animalzinho - e ja que e, acima de tudo, urn bichinhomais especialmente inteligente do que os outros - interessa-se portoda sorte de outras coisas na realidade. Evidentemente, essas nao SaDcoisas quaisquer. Existe uma a qual conferimos uma certa importancia,e que, no eixo das abscissas, que e aqui 0 eixo da realidade, apresenta-seno limite dessa realidade. Nao se trata de uma fantasia, mas de umapercep~ao.

A sra. Melanie Klein podemos perdoar tudo, porque ela e umamulher de talenta, mas, em seus alunos, e particularmente naquelesque SaD instrufdos em materia de psicologia, como Susan Isaacs, queera psicologa, isso e imperdoavel: seguindo a sra. Melanie Klein, elaacabou articulando uma teoria da percep~ao de tal ordem que nao hanela a menor possibilidade de distinguir a percep~ao de uma introje~ao,no sentido analftico do termo.

Nao posso, assim de passagem, apontar-lhes todos os Impassesdo sistema kleiniano; apenas tento dar-lhes urn modelo que lhespermita articular com mais clareza 0 que acontece.

o que acontece no nfvel do estadio do espelho? 0 estadio doespelho e 0 encontro do sujeito com aquilo que e propriamente umarealidade e, ao mesmo tempo, nao 0 e, ou seja, com uma imagemvirtual, que desempenha urn papel decisivo numa certa cristaliza~aodo sujeito a qual dou 0 nome de sua Urbild. Coloco isso em paralelocom a rela~ao que se produz entre a crian~a e a mae. Grosso modo,e disso mesmo que se trata. A crian~a conquista af 0 ponto de apoiodessa coisa no limite da realidade, que se apresenta para ela demaneiraperceptiva, mas que, por outro lado, podemos chamar de uma imagem,no senti do de que a imagem tern a propriedade de ser um sinalcativante que se isola na realidade, que atrai e captura uma certalibido do sujeito, um certo instinto gra~as ao qual, com efeito, urncerto numero de referenciais, de pontos psicanalfticos no mundo,permite ao ser vivo ir organizando mais ou menos suas condutas.

No ser humano, no final das contas, parece que esse e 0 unicoponto que subsiste. Ele desempenha 0 seu papel, e 0 faz na medidaem que e enganador e ilusorio. E nisso que ele vem em socorro deuma atividade a qual, desde logo, 0 sujeito so se entrega por ter desatisfazer 0 desejo do Outro, e pOitanto, almejando iludir esse desejo.Esse e todo 0 valor da atividade jubilatoria da crian~a diante de seuespelho. A imagem do corpo e conquistada como algo que, ao mesmotempo, existe e nao existe, e em rela~ao ao qual ela situa seus proprios

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movimentos, bem como a imagem daqueles que a acompanham diantedesse espelho. 0 privih~gio dessa experiencia esti em oferecer aosujeito uma realidade virtual, irrealizada, captada como tal, a serconquistada. Qualquer possibilidade de que a realidade humana seconstrua passa literalmente por af.

Sem duvida, 0 falo, na medida em que e 0 objeto imaginario comque a crianga tern de se identificar para satisfazer 0 desejo da mae,ainda nao pode situar-se em seu lugar. Mas a possibilidade disso egrandemente enriquecida pela cristalizagao do eu nesse referencia-mento, que abre todas as possibilidades do imaginario.

A que assistimos? A urn movimento duplo. Por urn lado, aexperiencia da realidade introduz, sob a forma da imagem do corpo,urn elemento ilusorio e enganador como fundamento essencial doreferenciamento do sujeito em relagao a realidade. Por outro, a mm'gemque essa experiencia oferece a crianga da-lhe a possibilidade derealizar, numa diregao contraria, suas primeiras identificag6es do eu,entrando num outro campo.

Ocampo da experiencia da realidade e aqui representado pelotriangulo M-i-m, que se apoia no eixo das abscissas anteriormentedefinido, enquanto 0 triangulo homo logo e inverso, M-m-C, maisenigmatico, da ao sujeito seu campo, na medida em que ele tern quese identificar, definir, conquistar, subjetivar.

a faz entrar no trapezio m-i-M-C, na medida em que a crianga seidentifica por elementos multiplicados de significante na realidade,Atraves de todas as suas identificag6es sucessivas no segmento m-C,a propria crianga assume 0 papel de uma serie de significantes, leia-seaqui, de hieroglifos, tipos, formas e representag6es que pontuam suarealidade com urn certo numero de referenciais, para fazer dela uma rea-lidade recheada de significantes.

o que constitui 0 limite da serie e, em C, a formagao a que sechama Ideal do eu, E com isso que 0 sujeito se identifica, ao ir emdiregao ao simbolico. Ele parte do referenciamento imaginario - quee, de certo modo, instintivamente pre-formado na relagao dele mesmocom seu proprio corpo -, para enveredar por uma serie de identifi-cag6es significantes cuja diregao e definida como oposta ao imaginario,e que 0 utilizam como significante. Se a identificagao do Ideal do euse faz no nfvel paterno, e precisamente porque, nesse nfvel, 0 desapegoe maior no que concerne a relagao imaginaria do que no nfvel darelagao com a mae.

Essa pequena edificagao de esquemas, uns por cima dos outros,esses pequenos dangarinos que montam uns com as pernas sobre osombros do outro, e disso mesmo que se trata.

o terceiro desses pequenos andaimes e 0 pai, na medida em queele intervem para proibir. E por isso que ele faz passar a categoriapropriamente simbolica 0 objeto do desejo da mae, de tal sorte queeste deixa de ser somente urn objeto imaginario - passa a ser, aindapor cima, destrufdo, proibido, E na medida em que, para desempenharessa fungao, 0 pai intervem como personagem real, como [Eu], queesse [Eu] vem ~ se tornar urn elemento eminentemente significante,constituindo 0 nucleo da identificagao maxima, resultado supremo docomplexo de Edipo. E por isso que e ao pai que se refere a formagaochamada de Ideal do eu.

As oposig6es do Ideal do eu em relagao ao objeto do desejo damae SaD express as nesse esquema, A identificagao virtual e ideal dosujeito com 0 falo, como objeto do desejo da mae, situa-se no apicedo primeiro triangulo da relagao com a mae. Ele se situa ali virtual-mente, ao mesmo tempo sempre possivel e sempre ameagado, taoameagado que sera efetivamente destrufdo pela intervengao do puroprincfpio simbolico representado pelo Nome-do-Pai.

Este se encontra ali, em estado de presenga velada. Sua presen<;:ase des vela nao progressivamente, mas por uma intervengao desde logodecisiva, na medida em que ele e 0 elemento proibidor.

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,

o que e esse triangulo, M-m-C? Qual e esse campo? E como essetrajeto, que parte da Urbild especular do eu, em m, vai permitir quea crianga se conquiste, se identifique, progrida? Como podemosdefini-lo? De que se constitui ele?

Resposta. A Urbild do eu e essa primeira conquista ou dominiodo eu que a crian<;:a realiza em sua experiencia, a partir do momentaem que desdobra 0 polo real em rela<;:ao ao qual tern de se situar. Ela

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Em que intervem ele? Nessa especie de busca tateante do sujeito,que, sem tal intervenr;ao, acabaria - e acaba, em alguns casos _numa relar;ao exclusiva com a mae. Essa relar;ao exclusiva nao e umapura e simples dependencia, mas se manifesta em toda sorte deperversoes por uma certa relar;ao essencial com 0 falo, quer 0 sujeitoo assuma sob diversas formas, quer far;a dele seu fetiche, quer, ainda,encontremo-nos, nesse ponto, no nivel do que podemos chamar deraiz primitiva da relar;ao perversa com a mae.

De maneira geral, 0 sujeito pode, com efeito, numa certa fase,fazer urn movimento de aproximar;ao da identificar;ao de seu eu como falo. E na medida em que e carregado para a outra direr;ao que eleconstitui e estrutura uma certa relar;ao - marcada pelos pontos-ter-minais que estao aIi, no eixo da realidade, em i-M - com a imagemdo proprio corpo, isto e, 0 imaginario puro e simples, ou seja, a mae.

Por outro lado, como termo real, seu eu e suscetivel nao apenasde se reconhecer, mas tambem, em se havendo reconhecido, de setomar, ele mesmo, urn elemento significante, e nao mais simplesmenteo elemento imaginario em sua relar;ao com a mae. E assim que sepodem produzir, em m-C, as identificar;oes sucessivas que Freud nosarticula da maneira mais firme, e que saD 0 objeto de sua teoria doeu. Esta nos mostra, com efeito, que 0 eu se compoe de uma seriede identificar;oes com urn objeto que esta alem do objeto imediato,o pai que esta para alem da mae.

Esse esquema e algo essencial a conservar. Ele lhes mostra que,para que isso se produza corretamente, de maneira completa e nadirer;ao certa, tern de haver uma dada relar;ao entre a direr;ao dosujeito, sua retidao, seus acidentes, e 0 desenvolvimento semprecrescente da presenr;a do pai na dialetica da relar;ao da crianr;a coma mae.

Esse esquema comporta urn duplo movimento de bascula. Por urnlado, a realidade e conquistada pelo sujeito humano na medida emque chega a urn de seus Iimites sob a forma virtual da imagem docorpo. De maneira correspondente, e pelo fato de 0 sujeito introduzirem seu campo de experiencia os elementos irreais do significante queele consegue ampliar 0 campo dessa experiencia ate a medida em queele e ampliado para 0 sujeito humano.

Esse esquema e de utiIizar;ao constante. Se voces nao se referirema ele, iraQ deslizar perpetuamente por uma serie de confusoes e,literalmente, misturar alhos com bugalhos - confundindo uma idea-Iizar;ao com uma identificar;ao, uma ilusao com uma imagem, toda

sorte de coisas que estao longe de ser equivalentes, e as quais teremosde voltar mais tarde, referindo-nos a esse esquema.

Esta muiro claro, por exemplo, que a concepr;ao que podemos terdo fenomeno do delirio e facilmente indicada pela estrutura manifestanesse esquema. 0 delirio e urn fenomeno que certamente merece serchamado de regressivo, mas nao a titulo de reprodur;ao de urn estadoanterior, 0 que seria absolutamente abusivo. A icteia de que a crianr;avive num mundo de delirio, ideia essa que parece implicada pelaconcepr;ao kleiniana, e uma das coisas mais diffceis que existem parase admitir, pela simples razao de que, se essa fase psicotica e exigidapelas premissas da articular;ao kleiniana, nao temos nenhuma especiede experiencia, na crianr;a, de seja la 0 que for que possa representarurn estado psicotico transitorio.

Em contrapartida, 0 delirio e perfeitamente concebivel no planode uma regressao estrutural, e nao genetica, que 0 esquema permiteilustrar atraves de urn movimento inverso ao descrito aqui pelas duassetas. A invasao da imagem do corpo no mundo dos objetos e patentenos delirios de tipo schreberiano, ao passo que, inversamente, todosos fenomenos de significante saD reunidos em torno do eu, a pontode 0 sujeito nao mais ser sustentado como eu senao por uma tramacontinua de alucinar;oes verbais, que constitui urn recuo para umaposir;ao inicial da genese de seu mundo ou da realidade.

Vejamos qual foi hoje a nos sa meta. Nossa meta e situar definitiva-mente 0 sentido da pergunta que formulamos a proposito do objeto.

A questao do objeto, para nos, analistas, e fundamental. Temosconstantemente a experiencia dela, e so com isso que lidamos, comque nos ocupamos. Essa questao e, essencialmente, a seguinte: quale a fonte e a genese do objeto ilusorio? Trata-se de saber se podemoster uma concepr;ao suficiente desse objeto como ilusorio, referindo-nossimplesmente as categorias do imaginario.

Eu Ihes respondo: nao, isso e impossivel. 0 objeto ilusorio, noso conhecemos ha urn tempo imensamente longo, desde que existegente e gente que pensa, filosofos que tentam exprimir 0 que acontececom a experiencia de todo 0 mundo. 0 objeto ilusorio, faz muitotempo que se fala dele, trata-se do veu de Maia. Sabemos muito bemque a necessidade sexual reaIiza, manifestamente, objetivos que estaopara alem do sujeito. Nao foi preciso esperar por Freud para isso; ja

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o sr. Schopenhauer, e muitos outros antes dele, viram um artiffcio danatureza no fato de 0 sujeito acreditar que esta beijando uma dadamulher, quando esta, pura e simplesmente, submetido as necessidadesda especie., 0 carateI' fundamentalmente imaginario do objeto, muito espe-

cIalmente do obJeto da necessidade sexual, foi reconhecido ha muitotempo. 0 fato de 0 sujeito so ser senslvel a imagem da feme a de suaespecie, isso eI~ Iin,has muito gerais, tem um carateI' de en go do queparece, pOl' aSSlm dlzer, realizar-se na natureza - mas isso nao nosfez dar um unico passo na compreensao de um fato que, nao obstantee es~encial, ou seja, 0 de que um sapatinho de mulher po de ser, mUit~preCIsamente: 0 que provoca num homem 0 surgimento daquelaenergla que dlzem estar destinada a reprodu<;ao da especie. 0 problemaesta to do af.

, ,E~e s~ se resolve sob a condi<;ao de percebermos que 0 objetoIlusono. nao exerce sua fun<;ao no sujeito humano como imagem _pOl' maIS enganosa, pOl' mais natural mente bem organizada comoen go do que voces a suponham. Ele a exerce como elemento signifi-cante, preso numa cadeia significante.

Estamos, hoje, no fim de uma li<;ao talvez muito especialmenteabstrata. Pe<;o-Ihes desculpas pOl' isso, mas, se nao situarmos essestermos, ja,m~is poderemos. conseguir compreender 0 que esta aqui eo que esta la, 0 que eu dIgO e 0 que eu nao digo, 0 que digo paracontradlzer outras pessoas, e 0 que os outros dizem, muito inocente-mente, sem se aperceber de suas contradi<;6es. E realmente necessariop~ssar p~r i.sso, pela fun<;ao exercida pOl' um dado objeto, fetiche ounao, ~ ate, sImplesmente, pOl' toda a instrumenta<;ao de uma perversao.

E real mente preciso alguem tel' a cabe<;a sabe-se la on de para secont~ntar, par exemplo, com termos como masoquismo e sadismo, 0

qu~ fo.rnece toda sort~ de considera<;6es admiraveis sobre as etapas,os mstmtos, e sobre 0 fato de existir sabe-se la que necessidade motoraagressiva, para que se consiga chegar, simplesmente, ao objetivo domtercurso sexual genital. Mas, afinal, pOl' que, nesse sadismo e nessemasoquismo, 0 fato de ser sun'ado - ha outras maneiras de exercero sadismo e 0 masoquismo - com uma bengala, muito precisamente,ou co~ .al~uma coisa analoga, desempenha um papel essencial? POl'que mmUTIIzar a importancia, na sexualidade humana, do instrumentoa que se costuma chamaI' de chi cote, de maneira mais ou menoselidida, simb6lic.a, generalizada? E, no entanto, af esta uma coisa quemerece ser conslderada.

o sr. Aldous Huxley pintou-nos um mundo futuro no qual tudo',n,\ tao bem organizado, no que concerne ao instinto de reprodu<;ao,'!IIC os pequeninos fetos serao pura e simplesmente engarrafados,dl'jXJis de se haverem escolhido aqueles que estarao destin ados alornecer os melhores embri6es. Tudo vai cOlTendo muito bem e 0

Illundo se torna particularmente satisfatorio. 0 sr. Huxley, em razaodc suas preferencias pessoais, declara-o entediante. Nao tomamospartido, mas 0 interessante e que, ao se entregar a certos tipos deprevis6es as quais, de nossa parte, nao damos a mInima importancia,('Ic faz renascer 0 mundo que conhece, e nos tambem, pOl' intermediodc um personagem que nao e qualquer um - uma mo<;a que manifestasua necessidade de ser chicoteada. Parece-Ihe, sem duvida alguma,haver nisso algo que esta estreitamente ligado ao carateI' de humani-dade do mundo.

Apenas Ihes assinalo isso. 0 que e acessfvel a um romancista,que sem duvida alguma tem experiencia quanta a vida sexual, deveriaarinal deter-nos, a nos, analistas.

Considerem a guinada da historia da perversao na analise. Paradescartar a no<;ao de que a perversao era, pura e simplesmente, apulsao ern sua emergencia, isto e, 0 contrario da neurose, esperou-sepelo sinal do maestro, ou seja, pelo momento ern que Freud escreveuI~in Kind wird geschlagen, texto de uma sublimidade total, do qualtudo 0 que se disse desde entao nao passa de ninharia. Foi atraves daanalise dessa fantasia de chicote que Freud realmente fez a perversaocntrar ern sua verdadeira dialetica analftica. Ela nao aparece como amanifesta<;ao pura e simples de uma pulsao, mas revel a estar ligadaa um contexto dialetico tao suti!, tao composto, tao rico de compro-missos e tao ambfguo quanta 0 de uma neurose.

A perversao, pOl·tanto, nao deve ser classificada como uma cate-goria do instinto, de nossas tendencias, mas deve ser articulada,precisamente, ern seus detalhes, em seu material, e, para dizer a palavracxata, ern seu significante. Toda vez, alias, que voces lidam com umaperversao, e urn desconhecimento nao vel' quao fundamentalmenteligada ela esta a uma trama de fabula<;ao que e sempre passfvel desc transformar, de se modi ficaI', de se desenvolver, de se enriquecer.Em alguns casos, a experiencia permite vel' que a perversao liga-sequimicamente, da maneira mais estreita, ao aparecimento, ao desapa-recimento, a to do 0 movimento compensatorio de uma fobia, a qual,pOl' sua vez, evidentemente mostra um direito e um avesso, mas nUI11senti do bem diferente, no senti do de dois sistemas articulados secomporem e se compensarem, e se alternarem UI11COI110 outro. E 0

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quanta basta para nos incitar a articular a pulsao num campo totalmentediferente do puro e simples campo da tendencia.

Chama particularmente a aten~ao de voces, uma vez que se trata,no momenta, do objeto, para a peso de significante que tern aselementos, a material da perversao em si.

Que quer dizer tudo isso? Temos urn objeto, urn objeto primordial,e que continua, sem duvida alguma, a dominar a continua~ao da vidado sujeito. Temos alguns elementos imaginarios que desempenhamurn papel cristalizador e, particularmente, todo a material do aparelhocorporal, as membros, a referencia do sujeito a domina~ao deles, aimagem total. Mas, a verdade e que a objeto e articulado a fun~aodo significante.

Constitui-se aqui uma rela~ao entre duas series, uma serie de S,S', S" , que 'simboliza para nos a existencia de uma cadeia significante,e uma serie de significa~6es, na parte inferior. Enquanto a cadeiasuperior avan~a num certo sentido, 0 alga que esta nas significa~6esavan~a em senti do contrario. Ha uma significa~ao que sempre desliza,escoa e se furta, a que faz com que, no final das contas, a rela~aointrfnseca do homem com toda a significa~ao seja, em virtude daexistencia do significante, urn objeto de urn tipo especial. A esseobjeto eu dou 0 nome de objeto metonfmico.

Qual e seu princfpio, na medida em que a sujeito tern uma rela~aocom ele? 0 sujeito se identifica imaginariamente com ele de urn modoabsolutamente radical, e nao com esta au aquela das fun~6es de objetoque atenda a essa au aquela tendencia parcial, como se costuma dizer.Alguma coisa exige que, nesse nfvel, haja em algum lugar urn poloque represente no imaginario aquilo que sempre se furta, aquilo quese induz de uma certa corrente de fuga do objeto para a imaginario,em razao da existencia do significante. Esse polo c urn objeto. Elc caxial, central, em toda a dialetica das pervers6es, das neuroses e ate,pura e simplesmente, do desenvolvimento subjetivo. Ele tern urn nome.Chama-se falo.

E 0 que terei a ilustrar-lhes da proxima vez.

A FANTASIA PARA ALEMDO PRINCIPIO DE PRAZER

Leitura de Bate-se em uma crianc;ao hieroglijo do chicote, a lei da SchlagA rea(:iio terapeutica negativaA dol' de sero pretenso l1lasoquisl1lo jel1linino

A tftulo de indica~6es bibliogrMicas, aponto~lhes tre~ artigos aos quai,s. t "dade de l"a"Zei'referencia 0 pnmelro e de Ernest Jones,lerel opor Ul1l '.

"The Phallic Phase", publicado no InternatIOnal Journal, volumeXIV, de 1933, e reproduzido em sua coletanea, conclufda_ por ,e~,intitulada Papers on Psycho-analysis. ~, segundo eAem alemao ~ e eH S h "Genese der Perversion , que voces encontrarao noanns ,ac s, 'I .nono volume do Zeitschrijt fiir Psychoanalyse, de 1923. Por u tI~~,dou-lhes a referencia ingJesa do terceiro, "PerversIon and NeurosIsde Otto Rank, no UP do mesmo ano. ". "

Acrescento a eles a artigo inicial de Freud, de 1919, " Em Kmdwird geschlagen" , que foi 0 sinal que ele deu de uma reviravolta auurn passo adiante em seu proprio pensamento e, ao me:r.n0 tempo,em todo 0 desenvolvimento teorico do pensamento analItIco que seseguiu, no tocante as neuroses e as pervers6es.

Olhando de perto, a melhor formula~ao que se pode dar do queaconteceu nesse momento e uma formula~ao que ap~nas permitefornecer 0 registro que estou tentando desenvolver a_qll1,mostrand~)~lhes a instancia essencial do significante na forma~ao dos smtOIndS

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- com efeito, trata-se da interven<;ao, em Freud, da no<;ao designificante.

A partir do momenta em que Freud mostrou isso, evidenciou-seclaramente que 0 instinto, a pulsao, nao tern direito algum de serpromovido como se estivesse, digamos, mais desnudado na perversaodo que na neurose. Todo 0 artigo de Hanns Sachs sobre a genese daspervers6es serve para mostrar que, em toda forma<;ao dita perversa,seJa ela qual for, ha exatamente a mesma estrutura de compromisso,de elusao, de dialetica do recalcado e de retorno do recalcado que hana neurose. Essa e a essencia desse artigo notaveI, e ele forneceexemplos absolutamente convincentes. Ha sempre, na perversao, aI-guma coisa que 0 sujeito nao quer reconhecer, com 0 que esse quercomporta em nossa Iinguagem - 0 que 0 sujeito nao quer reconhecers6 e concebfvel como estando articulado nela, mas, apesar disso, naosomente desconhecido par elc, como tambem recalcado, pOl' razoesessenciais de articula<;ao.

E essa a mol a do mecanismo analftico do recalque. Se 0 sujeitoreconhecesse 0 recalcado, ele seria for<;ado a reconhecer, ao mesmotempo, uma serie de outras coisas, as quais Ihe sao propriamenteintoleraveis, 0 que constitui a fonte do recalcado. 0 recalque s6 podeser concebido como ligado a uma cadeia significante articulada. Todavez que voces tern urn recalque na neurose, e na medida em que 0sujeito nao quer reconhecer alguma coisa que necessitaria ser reco-nhecida, e esse termo, necessitaria, sempre comporta urn elementode articula<;ao significante que nao e concebfvel senao numa coerenciadiscursiva. Pois bern, na perversao da-se exatamente a mesma coisa.Eis que, em 1923, depois do artigo de Freud, Sachs e todos ospsicanalistas perceberam que, examinada de perto, cIa comportavaexatamente os mesmos mecanismos de elisao dos termos fundamen-tais, isto e, edipianos, que encontramos na analise das neuroses.

Se, apesar disso, existe uma diferen<;a, ela merece ser discernidamuito de perto. Nao podemos contentar-nos, de modo algum, comuma oposi<;ao sumaria como a que consistiria em dizer que, na neurose,a pulsao e evitada, ao passo que, na perversao, ela se declar'a em suanudez. A pulsao aparece nela, mas nunca aparece senao parcialmente.Aparece em alguma coisa que, em rela<;ao ao instinto, e urn elementodesligado, urn signa propriamente dito, e, podemos ate chegar adize-Io, urn significante do instinto. Foi pOl' isso que ao me despedirde voces, da vez passada, insisti no elemento instrumental que ha emtoda uma serie de fantasias ditas perversas - para nos limitarmos aelas, pOl' ora.

Convem, com efeito, partirmos do concreto, e nao de uma certaId"ia geral que pQdemos tel' da chamada economia instintiva de umal<'l\sao, agressiva ou nao, de seus reflexos, retornos e refra<;oes. PeloIlll'110S, nao e ela que nos explicara a prevalencia, a insistencia, a[llCdominancia de elementos cujo carateI' e nao apenas emergente,lilas isolado na farma assumida pelas perversoes sob a aparencia deI ;ll1tasias, isto e, naquilo que faz com que elas comportem uma:;alisfa<;ao imaginaria.

POI' que tern tais elementos esse Iugar privilegiado? Falei, daIillima vez, do sapato e do chicote - e nao podemos liga-Ios a umaIlura e simples economia biol6gica do instinto. Esses elementosIl1strumentais SaG isolados de uma forma que, evidentemente, e sim-1J(jlica demais para que possa ser desconhecida par urn so instante, apartir do momento em que abordamos a realidade da vivencia daperversao. A constancia de determinado elemento, atraves das trans-lorma<;oes que pod em ser mostradas, no curso da vida de urn sujeito,pela evolu<;ao de sua perversao - ponto no qual Sachs tambem insiste-, e apropriada para sublinhar a necessidade de admiti-Io nao apenas

como urn elemento primordial, derradeiro, irredutfveI, cujo lugardevemos discernir na economia subjetiva, mas tambem como urnclemento significante da perversao.

Passemos ao artigo de Freud.

Freud parte de uma fantasia isolada pOl' ele num conjunto de oitopacientes, seis mo<;as e dois rapazes, que apresentavam formas pato-16gicas bastante diferenciadas, dentre as quais uma parcela bemimportante, em termos estatfsticos, era neurotica, mas nao a totalidade.

Trata-se de urn estudo sistematico e cuidadosfssimo, acompanhadopasso a passo com urn escrupulo que, dentre todas, distingue asinvestiga<;oes feitas pelo proprio Freud, Partindo desses sujeitos, parmais variados que fossem, ele se empenhou em acompanhar, atravesdas etapas do complexo de Edipo, as transforma<;oes da economia dafantasia bate-se em uma crianr;a, e come<;ou a articular 0 que depoisviria a se desenvolver como 0 momento de investiga<;ao das perversoesem seu pensamento, 0 qual nos mostraria cada vez mais, insisto, aimportancia do jogo do significante nessa economia.

So posso assinalar de passagem que urn dos ultimos artigos deFreud, "Constru<;oes em analise" - nao sei se voces terao reparado

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nele -'. mos~ra a importancia central da id6ia da rela<;:ao do sUJeltocom 0 slgmflcante para conceber 0 mecanismo da rememora<;:ao naanalise. Nesse artigo, fica claramente admitido que esse mecanismoesta ligado, como tal, a cadeia significante. Do mesmo modo, a ultimaobra que Freud nos legou, 0 ultimo de seus artigos do qual dispomos,de 1938, aquele que foi traduzido nos Collected Papers com a tituloSplitting of the Ego in the Process of Defence, que eu traduzo pOl' Adivisiio ou A fragmentar;iio do ell no mecanismo do sintoma analftico,e cujo titulo alemao 6 Die lchspaltllng im Abwehrvorgang, aqueIe no~ual Freud parou, caindo-Ihe a pena das maos - a artigo ficoul~ac~~ado -, esse t~xto liga estreitamente a economia do ego adlaletlca do reconhecllnento perverso, por assim dizer, de urn certotema com que a sujeito se ve confrontado. Urn no indissoluvel reunea fun<;:ao do ego a rela<;:ao imaginaria nos cantatas do sujeito com arealidade, e a faz na medida em que essa rela<;:ao imaginaria e utilizadacomo integrada no mecanismo do significante.

Tomemos agora a fantasia Bate-se ern lima crianr;a.Freud detem-se no que significa essa fantasia, na qual parece estar

absorta, se nao a integra, ao menos uma parte importante das satis-fa<;:6es libidinais do sujeito. Ele insiste no fato de a haver encontradoem sua grande maioria, em sujeitos femininos, e com menos freqi.ienci~em sujeitos masculinos. Nao se trata de uma fantasia sadica au perversaqualquer, mas de uma fantasia que culmina e se fixa sob uma formacujo tema a sujeito revela de maneira muito reticente. Parece queuma carga muito grande de culpa esta ligada a propria comunica<;:aodesse tern a, a qual, uma vez revel ado, nao pode ser articulado senaocomo Bate-se em lima crial1l;:a.

. ~ate-se. Ein Kind wird geschlagen. Isso quer dizer que nao e asUJelto que bate,. ele e urn espectador nessa historia. Freud come<;:apar analIsar a COlsa tal como esta se passa na imagina<;:ao dos sujeitosfemi~inos que lha tiveram que revelar. 0 personagem que bate,conslderando-o em seu conjunto, e da linhagem dos que detem aautoridade. Nao e a pai, e, vez par outra, urn professor, urn homemonipotente, urn rei, urn tirana, as vezes uma figura muito romanceada.Reconhecemos nao a pai, mas alguem que, para nos, e equivalente aele. Vamos situa-Io na forma acabada da fantasia e, com muitafacilidade, veremos que nao ha par que nos contentarmos com umahomologia com 0 pai. Longe de assimila-lo ao pai, convem situa-Iono para-alem do pai, isto e, naquela categoria do Nome-do-Pai quetomamos 0 cui dado de distinguir das incidencias do pai real.

Trata-se, nessa fantasia, de diversas crian<;:as, de uma especie degrupo ou multidao, e SaG sempre meninos. Ai esta uma coisa quesuscita problemas, e tao numerosos que nao posso pensar em abarca-Ioshoje - pe<;:o-lhes, simplesmente, que se reportem ao artigo de Freud.Que sejam sempre meninos apanhando, isto e, sujeitos de urn sexooposto ao do sujeito da fantasia, e algo sobre 0 qual podemos especularindefinidamente - tentar, pOl' exemplo, relaciona-Io prontamente comtemas como 0 da rivalidade entre os sexos. Foi com isso que Freudconcluiu seu artigo, mostrando a profunda incompatibilidade entreteorias como a de Adler e os dados clinicos, bem como sua incapa-cidade de explicar urn resultado desse tipo. A argumenta<;:ao de Freude amplamente suficiente, e nao e isso que constitui nosso interesseessencial.

o que desperta nosso interesse e a maneira como Freud pro cedepara abordar 0 problema. Ele nos fornece 0 resultado de suas analisese come<;:a falando do que acontece com a menina, em nome dasexigencias da exposic;ao, para nao tel' de estar constantemente fazendointercala<;:6es duplas - tal coisa na menina, tal coisa no menino -,e depois examina a que acontece com 0 menino, sabre quem, alias,tern menos material. Em suma, 0 que nos diz ele? Freud constataconstancias e as relata. 0 que Ihe parece essencial SaG os avataresdessa fantasia, suas transforma<;:6es, seus antecedentes, sua historia,suas subjacencias, aos quais a investiga<;:ao analftica the da acesso. Afantasia, de fato, passa pOl' urn certo numero de estados sucessi vos,durante os quais podemos constatar que alguma coisa se modifica ealguma coisa permanece con stante. Trata-se, para nos, de extrairensinamentos do resultado dessa investiga<;:ao minuciosa, que traz amarca que constitui a originalidade de quase tudo 0 que Freud escreveu_ precisao, insistencia, trabalho do material ate que as articula<;:6esque the parecem irredutiveis sejam real mente isoladas. E assim que,nas cinco grandes analises e, em particular, no admiravel Homem dosLobos, nos 0 vemos voltar, vezes sem conta, a investigar rigorosamentea papel do que podemos chamaI' de origem simbolica e 0 papel daorigem real, na cadeia primitiva da historia do sujeito. Aqui, do mesmomodo, ele nos destaca tres tempos.

A primeira etapa, diz ele, que sempre encontramos nas meninasnessas ocasi6es, e a seguinte: num dado momenta da analise, a crian<;:aque esta sendo espancada, e que, em todos os casos, revela seu rostoverdadeiro, e urn parente proximo, urn irmaozinho ou uma irmazinha,em quem 0 pai bate. Qual e a significa<;:ao des sa fantasia?

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Nao podemos dizer se ela e sexual ou sadica, tal e a afirmar;aosurpreendente que sai da pena de Freud, com uma referencia literariapara corrobora-Ia: a resposta das feiticeiras de Macbeth a Banco -ela e feita da materia, stuff, da qual ambos provem, 0 sexual e 0

sadico. Nisso encontramos 0 que Freud iria valorizar num artigo de1924, "0 problema economico do masoquismo" , e que e exigido emMais alem do principio do prazer, ou seja, a etapa primaria na qualdevemos considerar que existe, primitivamente, pelo menos numaparte importante, uma Bindung, ligar;ao, fusao dos instintos libidinais,dos instintos de vida, com os instintos de morte, ao passo que aevolur;ao dos instintos comporta uma desfusao, uma Entbindung, maisou menos precoce desses instintos. Algumas prevalencias ou algumasparadas na evolur;ao do sujeito sao atribufveis ao isolamento precocedo instinto de morte.

Embora essa fantasia seja primitiva - na medida em que nao seencontra uma etapa arcaica anterior -, Freud assinala, ao mesmotempo, que e no nfvel do pai que se situa sua significar;ao. 0 pairecusa, nega seu amor a crianr;a espancada, irmaozinho ou irmazinha.E pOl' haver uma den uncia da relar;ao de amor e humilhar;ao que essesujeito e visado em sua existencia de sujeito. Ele e objeto de umasevfcia, e essa sevfcia consiste em nega-Io como sujeito, em reduzira nada sua existeneia de desejante, em reduzi-Io a um estado quetende a aboli-Io como sujeito. Meu pai nao ora) ama, eis 0 sentidoda fantasia primitiva, e e isso que da prazer ao sujeito - 0 outro naoe amado, ou seja, nao e estabelecido na relar;ao propriamente simb6-lica. E pOl' esse meio que a intervenr;ao do pai assume seu valorprimordial para 0 sujeito, aquele do qual dependera tudo 0 que vemdepois.

Essa fantasia arcaica, pOltanto, nasce de safda numa relar;aotriangular, que nao se estabelece entre 0 sujeito, a mae e 0 filho, masentre 0 sujeito, 0 irmaozinho ou irmazinha e 0 pai. Estamos antes doEdipo, e mesmo assim 0 pai presente.

Ao passo que esse primeiro tempo da fantasia, 0 mais arcaico, ereencontrado pelo sujeito em analise, 0 segundo, ao contrario, nuncao e, e tem de ser reconstrufdo. Isso e extraordinario. Se destaco asousadias da dedur;ao freudiana, nao e para que nos detenhamosmomentaneamente em saber se ela e ou nao legftima, mas para quenao nos deixemos levar de olhos vendados, para que percebamos 0

que Freud faz, e grar;as a que sua construr;ao pode continual'. 0material analftieo converge, pOltanto, para esse estado da fantasia,

LJue tem de ser reconstrufdo, uma vez que nunca aparece, scgundoFreud, na lembranva. . . 'd

Esse segundo tempo esta ligado ao Edipo como tal. Tem 0 senti~de uma relar;ao privilegiada da menina com 0 pai - e ela quee

" ..' /d podeespancada. Freud admlte, asslm, que essa fantaSia reconstrUl aindicar 0 retorno do desejo edipiano na menina, 0 de ser obJclOdodesejo do pai, com 0 que isso comporta de culpa, exigindo quecIa

f I d - 't Que dcyelllOSseja espancada. Freud a a e regressao a esse respel o.entender por isso? Dado que a mensagem de que se trata e recalcada,

/' d .. vl,monao podendo ser encontrada na memona 0 sUJelto, um meca ..correlato, que Freud chama aqui de regressao, faz com que 0 sUlel~orecorra a figurar;ao da etapa anterior, para exprimir, numa fantaSia

- f I'b'd' I' / t· tUladaque nunca vem a luz, a relar;ao rancamente I I ll1a, Ja e,s 1U

a maneira edipiana, que 0 sujeito entao manten: com 0 pal.. . d 'd d Ed' -. ta DutraNum tercelro tempo, e depOls a sal a 0 IpO, nao les

coisa da fantasia senao um esquema geral. Introduz-se uma novatransformar;ao, que e dupla. A figura do pai e ultrapassada, transposta,remetida a forma geral de um personagem na posir;ao de bater,

/. .. / t do sobonipotente e desp6tico, enquanto 0 propno sUJelto e apresen a'I' d" ao de uw,exoa forma das crianr;as multlp lca as, que Ja nem sequel's

preciso, mas formam uma especie de serie neutra. . / 'Essa forma derradeira da fantasia, na qual alguma COlsa e mantl?a,

.. 'e,tldafixada, memorizada, dirfamos, permanece, para 0 sUJelto, mv.,. "I . d I queeleda propriedade de constltUlr a Imagem pnvi egIa a na qua 0 .

puder experimental' de satisfar;6es genitais ira encontrar seu apOIO.,. fl - pOl'melOEis 0 que merece reter-nos e suseltar nossa re exao,

dos term os cujo usa inicial procurei ensinar-Ihes aqui. Que podemvir des a representar?

Retomo meu triangulo imaginario e meu triangulo simb6lico.A primeira dialetica da simbolizar;a~ da relar;a~ d.a c~~~n/r;~CO~

a mae e feita, essencialmente, com respelto ao que e slgl11hcavel:seja, ao que nos interessa. Ha, sem duvida, outras coisas aIem OlS,SO- ha 0 objeto que a mae pode representar, como portadora do ,CW,

ha as satisfar;6es imediatas que ela pode dar a crianr;a -, ma;" se. .. h /. d dl'a)etlcahouvesse apenas isso, nao eXlstma nen uma especle e _ '

nenhuma abertura no ediffcio. Na sequencia, a relar;ao com ~maenao e simplesmente feita de satisfar;6es e frustrar;6es, mas da desco,

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berta do que e 0 objeto do desejo dela. 0 sujeito, essa crianya pequenaque tern de se constituir em sua aventura humana e ter acesso aomundo do significado, deve, com efeito, fazer a des cobert a do quesignifica para ela 0 seu desejo. Ora, 0 que sempre criou problemasna hist6ria analftica, tanto para a teoria quanta para a pnitica, foisaber por que, nesse ponto, aparece a funyao privilegiada do falo.

Quando voces lerem 0 artigo de Jones sobre a Phallic Phase,verao as dificuldades insondaveis que nascem, para ele, da afirmayaofreudiana de que existe nos dois sexos uma etapa originaria dodesenvolvimento sexual em que 0 tema do outro como outro desejanteesta ligado a posse do falo. Isso era literal mente incompreensfvel paraquase todos os que cercavam Freud, ainda que eles se contorcessempara, mesmo assim, introduzi-Io em sua articulayao, porque os fatosIhes impunham isso. 0 que eles nao compreendiam e que Freudinstaurara ali urn significante-pivo, em torno do qual girava toda adialetica do que 0 sujeito tern de conquistar por si mesmo, por seupr6prio ser.

Na impossibilidade de compreender que se estava tratando de urnsignificante, e nao de outra coisa, os comentadores esfalfaram-se emprocurar 0 equivalente dele, falando de defesa do sujeito sob a formada crenya no falo. E claro que, a prop6sito disso, eles coligiramnumerosos fatos extremamente validos, descobriram mil vestigios emsuas diversas experiencias, mas estas nunca passavam de casos ouencaminhamentos particulares, que nao chegam a explicar pOl' quetinha sido esse 0 elemento privilegiado tornado como centro e pivoda defesa. Jones, em particular, atribui it crenya no falo uma funyaono desenvolvimento do menino, a qual, ao le-Io, voces perceberao tel'sido extrafda do caso de urn homossexual, que esta longe de ser 0

caso gera!. Ora, com 0 falo, trata-se da funyao mais geral que existe.Permitam-me uma f6rmula concisa, que Ihes parecera muito

audaciosa, mas it qual nao teremos de voltar se voces tiverem abondade de admiti-Ia pOl' urn instante por seu uso operaciona!. Assimcomo eu Ihes disse que, no interior do sistema significante, 0 Nome-do-Pai tern a funyao de significar 0 conjunto do sistema significante,de autoriza-Io a existir, de fazer dele a lei, direi que, freqiientemente,devemos considerar que 0 falo entra em jogo no sistema significantea partir do momenta em que 0 sujeito tern de simbolizar, em oposiyaoao significante, 0 significado como tal, isto e, a significayao.

o que importa para 0 sujeito, 0 que ele deseja, 0 desejo comodesejado, 0 desejo do sujeito, quando 0 neur6tico ou 0 perverso tern

de simboliza-Io, isso, em ultima analise, e literalmente feito com a;Ijuda do falo. 0 significante do significado em geral e 0 falo.. Isso e essencia!. Se voces partirem daf, compreenderao muitas

,'oisas. Se nao partirem disso, compreenderao muito menos, e seraoloryados a fazer desvios consideraveis para entender coisas excessi-vamente simples.

o falo entra desde logo em jogo, a partir do momenta em que 0

sujeito aborda 0 desejo da mae. Esse falo e velado e permaneceravelado ate 0 fim dos seculos, pOl' uma razao simples: e que ele e urnsignificante ultimo na relayao do significante com 0 significado. Comcfeito, ha pouca probabilidade de que venha jamais a se revelar senaoem sua natureza de significante, ou seja, de que venha realmente arevelar, ele mesmo, aquilo que, como significante, ele significa.

Nao obstante, pensem no que aconteee - caso que nao eontem-plamos ate aqui - quando, nesse lugar, intervem algo que e muitomenos facil de articular, de simbolizar, do que seja la 0 que houverde imaginario, ou seja, urn sujeito rea!. E precisamente disso que setrata nessa fase primaria que nos e apontada por Freud.

o desejo da mae nao e simplesmente, nesse momento, 0 objetode uma busca enigmatic a que deva conduzir 0 sujeito, no correr deseu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, 0 falo, para que entao esteentre na danya do simb6lico, seja 0 objeto preciso da castrayao e, porfim, seja entregue a ele sob uma outra forma, para que ele fa~a e sejao que se trata de fazer e ser. Ele 0 e, ele 0 faz, mas, aqui, estamosabsolutamente na origem, no momento em que 0 sujeito se confrontacom 0 lugar imaginario onde se situa 0 desejo da mae, e esse lugaresta ocupado.

Nao podfamos falar dc tudo ao mcsmo tcmpo e, alias, foi muitoborn nao termos pensado de imediato nesse papcl dos irmaos maisnovos, que todos sabemos, no cntanto, scr de importancia decisivano desencadeamento das neuroses. Basta tel' a minima experienciaanalftica para saber 0 quanta 0 aparecimento de urn irmaozinho ouirmazinha tern urn papel crucial na evoluyao de seja que neurose for.S6 que, se houvessemos pensado imediatamente nesse dado, isso teriasurtido em nos so pensamcnto exatamente 0 mesmo efeito que obser-vamos no sujeito neur6tico - determo-nos na realidade dessa relayaofaz com que percamos completamcnte dc vista sua funyao. A relayaocom 0 irmao ou irma menor, com urn rival qualquer, nao assume seuvalor decisivo no plano da realidade, mas pOl' se inscrever numdesenvolvimento totalmente diferente, num desenvolvimento da sim-bolizac;ao. Ela 0 complica c exige uma soluc;ao totalmente diversa.

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uma solu«ao fantasfstica. Qual e esta? Freud articulou-nos sua natureza- 0 sujeito e abolido no plano simb6lico, pOl' ser urn nada absolutoao qual e recusada qualquer considera«ao como sujeito. Nesse casoparticular, a crian«a descobre a chamada fantasia masoquista defustiga<;ao, que constitui, nesse nfvel, uma solu<;ao bem-sucedida doproblema.

Nao temos que nos limitar a esse caso, e sim, antes de mais nada,compreender 0 que aeontece af. E 0 que acontece e urn ato simb6lico.Freud frisa bem: para a crian<;a que se cre alguem na famflia, urnunico sopapo basta, muitas vezes, para precipiUi-Ia do alto de suaonipotcncia. Pois bern, trata-se de urn ato simb6lico, e a pr6pria formaque entra em jogo na fantasia, 0 ehicote ou a ehibata, traz em si 0

car<iter, a natureza de urn nao-sei-que que, no plano simb6lico,exprime-se pOl' urn risco. Antes de qualquer outra eoisa, de umaEinfiihlung, de uma empatia qualquer que possa ser atribufda a umarela<;ao ffsica do sujeito com aquele que sofre, 0 que intervem, acimade tudo, e alguma coisa que risca 0 sujeito, que 0 barra, que 0 abole,alguma coisa de significante.

Isso e tao verdadeiro que quando mais tarde - tudo isso esta noartigo de Freud, eu 0 estou seguindo linha a linha - a crian<;aefetivamente depara com 0 ato de bater, ou seja, quando, na escola,ve diante de si uma crian<;a espancada, ela nao acha isso nem urnpouco engra<;ado, diz Freud, fiando-se no texto de sua experienciacom os sujeitos de quem extraiu a hist6ria des sa fantasia. Essa cenainspira na crian<;a alguma coisa da ordem de uma Ahlehnung - corrijoa tradu<;ao -, de uma aversao, urn desviar de olhos. 0 sujeito eobrigado a suporta-Ia, mas nao tern nada a vel' com isso, mantem-sea distancia. 0 sujeito esta muito longe de participar do que realmenteacontece quando e confrontado com uma cena efetiva de fustiga<;ao.E alias, como indica Freud com muita precisao, 0 pr6prio prazer dessafantasia esta manifestamente ligado a seu carater pouco serio, inope-rante. A fustiga<;ao nao atinge a integridade real e ffsica do sujeito.E justamente seu carater simb6lico que e erotizado como tal, e 0 edesde a origem.

No segundo tempo - e is so tern sua importancia para a valori-za<;ao do esquema que lhes apresentei da ultima vez -, a fantasiaassume urn valor completamente diferente, muda de sentido. E jus-tamente af que reside todo 0 enigma da essencia do masoquismo.

Em se tratando do sujeito, nao ha como sail' desse impasse. Naoestou lhes dizendo que isso seja faci! de apreender, de explicar, dedesdobrar. E preciso nos atermos primeiramente ao fato, ou seja, ao

rato de que e assim, e depois tratarmos de compreender por que issopode ser assim.

A introdu<;ao radical do significante comport a dois elementosdistintos. Existem a mensagem e sua significa<;ao - 0 sujeito recebea notfcia de que 0 pequeno rival e uma crian<;a espancada, ou seja,urn nada absoluto, que a gente pode mandar as favas. Ra tambem urnsignificante que e preciso isolar como tal, qual seja, aquele com queoperamos, 0 instrumento.

o carater fundamental da fantasia masoquista, tal como efetiva-mente existe no sujeito - e nao numa reconstru<;ao modelar ou idealqualquer da evolu<;ao dos instintos -, e a existencia do chi cote. Eisso que, em si mesmo, merece ser pOl' n6s acentuado. Estamos lidandocom urn significante que merece tel' urn lugar privilegiado na seriede nossos hier6glifos, antes de mais nada pOl' uma simples razao, ade que 0 hier6glifo correspondente aquele que segura 0 chi cote designadesde sempre 0 diretor, 0 governador, 0 mestre/senhor. Trata-se denao perder de vista que isso existe e constitui aquilo com que lidamos.

A mesma duplicidade e encontrada no segundo tempo. S6 que amensagem de que se trata, Meu pai me bate, nao chega ao sujeito -e assim que e preciso entender 0 que Freud diz. A mensagem, queinicialmente quis dizer 0 rival nao existe, nao e nada em ahsoluto,agora quer dizer: Tu existes, e e ate amado. E isso que, no segundotempo, serve de mensagem, sob uma forma regressiva ou recalcada,nao faz diferen<;a. E e uma mensagem que nao chega.

Quando Freud se dedicou ao problema do masoquismo como tal,urn ana depois, em Mais atem do principio do ]Jrazer, e procurousaber qual era 0 valor radical do masoquismo encontrado na analisesob a forma de uma oposi<;ao, de urn inimigo radical, ele foi for<;adoa enuncia-lo em diversos termos. Daf 0 interesse de nos determosnesse tempo enigmatico da fantasia que ele nos diz ser toda a essenciado masoquismo.

Avancemos passo a passo. Devemos come<;ar pOl' discernir 0 paradoxoever on de ele esta.

Existe a mensagem, portanto, aquela que nao chega ao lugar dosujeito. Em contrapartida, a unica coisa que persiste e 0 material dosignificante, esse objeto, 0 chicote, que permanece como urn signo

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ate 0 fim, a ponto de se tornar 0 pivo e, diria eu, quase 0 modelo darelac;ao com 0 desejo do Outro.

Com efeito, 0 carater de generalidade da fantasia ultima, aquelaque fica, e muito bem indicado pela multiplicac;ao indefinida dossujeitos. Ele evidencia a relac;ao com 0 outro, os Glltros, os pequenosoutros, 0 a minusculo como libidinal, e significa que os seres humanos,como tais, estao todos sujeitos ao jugo de alguem. Entrar no mundodo desejo e, para 0 ser humano, suportar, logo de saida, a lei impostapor esse algo que existe mais-alem, a lei da Schlag - 0 fato de 0

chamarmos aqui de pai ja nao tern importancia, nao vem ao caso. Eassim que, num determinado sujeito, que entra na historia por viasparticulares, define-se uma certa linha de evoluc;ao. A func;ao dafantasia terminal e manifestar uma relac;ao essencial do sujeito como significante.

A vancemos agora urn pouco mais e recordemos em que consisteo que Freud introduz de novo a respeito do masoquismo em Maisalem do principio de prazer. E essencialmente isto: ao considerar 0

modo de resistencia ou de inelTia do sujeito ante uma certa intervenc;aoterapeutica normativa, normatizadora, somos levados a articular 0

princfpio de prazer como a tendencia da vida a retornar ao inanimado.o recurso fundamental da evoluc;ao libidinal e voltar ao repouso daspedras. Eis 0 que Freud introduz, para grande escandalo de todos osque ate entao haviam feito da noc;ao de libido a lei de seu pensamento.

Essa contribuic;ao, se foi paradoxalmente nova ou ate escandalosa,ao ser expressa como acabo de fazer, nao passa, por outro lado, deuma extensao do princfpio de prazer, tal como Freud 0 caracterizouatraves do retorno da tensao a zero. Nao ha, de fato, retorno maisradical a zero do que a morte. So que voces podem observar que, aomesmo tempo, para distinguir essa formulac;ao do princfpio de prazer,somos, ainda assim, forc;ados a situa-la para alem do princfpio deprazer.

Conviria dizer aqui algumas palavras sobre urn dos problemasmais singulares da vida e da pessoa de Freud - sua relac;ao com amulher, a qual urn dia talvez tenhamos oportunidade de voltar. Suavida foi muito privada de mulheres, ou privou-se delas. Quase soconhecemos duas mulheres nela, a dele e a cunhada que vivia a sombrado casal. Na verdade, nao temos nenhum indlcio de outra coisa quefosse uma relac;ao propriamente amorosa. Em contrapartida, ele tinhauma tendencia bastante deploravel a acolher, com facilidade, sugest6esprovenientes da constelac;ao feminina que se formou a seu redor, ecujas componentes se pretendiam continuadoras ou auxiliares de seu

pensamento. Assim e que bastou que lhe fosse proposto, por umapessoa como Barbara Low, urn termo tao mediocremente adaptado,atrevo-me a dize-lo, quanta Nirvana principle, para que ele the dessesua sanc;ao. A relac;ao que pode existir entre 0 Nirvana e a ideia doretorno da natureza ao inanimado e urn tanto quanta aproximativa,mas, ja que Freud se contentou com ela, contentemo-nos nos tambem.

Se 0 princfpio de Nirvana e a regra e a lei da evoluc;ao vital, devehaver urn troc;o em algum lugar para que, pelo menos de vez emquando, nao seja a rcduc;ao da tensao que e prazerosa, mas, aocontrario, seu aumento - so que, reconhece Freud, somos absoluta-mente incapazes de dizer por que. Deve ser alguma coisa do tipo deurn ritmo temporal, de uma conveniencia dos termos, de pulsac;6es.Ele deixa despontar no horizonte urn possivel recurso a explicac;6esque, se pudessem ser dadas, nao seriam vagas, mas que continuammuito longe de nosso alcance - elas vaG no sentido da musica, daharmonia das esferas.

Em todo caso, desde que admitamos que 0 princfpio de prazeresta em retornar a mortc, 0 prazer efetivo, aquele com que lidamosconcretamente, exige uma outra ordem de explicac;6es. E preciso quealguma coisa da vida fac;a os sujeitos acreditarem, por assim dizer,que e para 0 prazer deles que eles existem. Voltamos, assim, a maiordas banalidades filosOficas, ou seja, a de que 0 veu de Maia e quenos conservaria vivos, grac;as ao fato de nos engambelar. Afora isso,a possibilidade de atingirmos, quer 0 prazer, quer diferentes prazeres,fazendo toda sorte de desvios, repousaria no princfpio de realidade.Seria esse 0 mais-alem do princfpio de prazer.

Nao foi preciso nada menos que isso para que Freud justificassea existencia do que chamou de reac;ao terapeutica negativa. Devemos,no entanto, deter-nos aqui por urn momento, porque, afinal, essareac;ao terapeutica negativa nao e uma especie de reac;ao estoica dosujeito. Ela se manifesta por toda sorte de coisas extraordinariamenteincomodas para ele, assim como para nos e para seu cfrculo. Elas SaGtao estorvadoras, alias, que, pensando bern, nao ter nascido podeafigurar-se urn destino melhor, por tudo 0 que acontece com 0 ser.o dito que Edipo acaba articulando, seu /.111 <j)UV<Xl, como termo ultimoque da senti do ao ponto em que vem culminar a aventura tragic a,longe de abolir essa aventura, eterniza-a, ao contrario, pel a simplesrazao de que, se Edipo nao conseguisse enuncia-lo, nao seria 0 her6isupremo que e. E justamente na medida em que ele enfim 0 articula,isto e, em que se pereniza, que ele e esse her6i.

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o que Freud nos desvenda como 0 para-alem do prinClplO deprazer e que talvez haja, com efeito, uma aspira<;:ao ultima ao repousoe a morte eterna, mas, em nos sa experiencia, e esse e todo 0 sentidode meu segundo ana de seminario, deparamos com 0 carater especificoda rea<;:ao terapeutica negativa, sob a forma do irresistfvel pendor parao suicidio que se faz reconhecer nas derradeiras resistencias com quelidamos nos sujeitos mais ou menos caracterizados pelo fato de teremsido filhos nao desejados. A medida mesma que se articula melhorpara eles aquilo que deve fazer com que se aproximem de sua historiade sujeitos, eles se recusam cada vez mais a entrar no jogo. Queremsair dele, Iiteralmente. Nao aceitam ser aquilo que sao, nao queremessa cadeia significante na qual so foram aceitos com pesar por suamae.

o que se evidencia aqui para nos, analistas, nesses casos, eexatamente 0 que se encontra nos outros, ou seja, a presen<;:a de urndesejo que se articula, e que se articula nao somente como desejo dereconhecimento, mas como reconhecimento de urn desejo. 0 signifi-cante e a dimensao essencial disso. Quanto mais 0 sujeito se afirma,com a ajuda do significante, como querendo sair da cadeia significante,e quanta mais entra e se integra nela, mais ele proprio se torna urnsigna dessa cadeia. Quando abole a si mesmo, torna-se mais signado que nunca. A razao disso e simples: e precisamente a partir domomenta em que 0 sujeito morre que ele se torna, para os outros,urn signo eterno, e os suicidas mais que os outros. E por isso mesmoque 0 suicidio tern uma beleza horrenda, que 0 faz ser Uio terrivelmentecondenado pelos homens, e tambem uma beleza contagiosa, que damargem aquelas epidemias de suicidio que san 0 que h:l de mais realna experiencia.

Mais uma vez, em Mais alem do principio de prazer, Freudenfatiza 0 desejo de reconhecimento como tal, como servin do defundo para 0 que constitui nossa rela<;:ao com 0 sujeito. E, afinal, noque Freud denomina de alem do principio de prazer, havera real menteoutra coisa senao a rela<;:ao fundamental do sujeito com a cadeiasignificante?

Se voces refletirem bern, recorrer a uma pretensa inercia danatureza humana para fornecer 0 modelo daquilo a que a vida aspirariae uma ideia que tern de, no ponto em que nos encontramos, nos fazersorrir Iigeiramente. Em materia de retorno ao nada, nada e menosgarantido. Alias, 0 proprio Freud - num parentese muito pequeno,que eu lhes rogaria buscarem no artigo "0 problema economico domasoquismo", on de ele torna a evocar seu Mais alem do principio

,Ii, prazer - nos indica que, se 0 retorno a natureza inanimada e('Ictivamente conccbivel como 0 retorno ao nivel mais baixo de tensao,;10 repouso, nada nos garante que, na redu<;:ao ao nada de tudo aquiloque se elevou e que seria a vida, tambem af, por assim dizer, issoII~lOse mexa, e que nao haja, no fundo, a dor de ser. Essa dor, nao;1 estou fazendo surgir, nao a estou extrapolando: ela e apontada pori"J'cud como 0 que devemos considerar como 0 residuo ultimo daliga<;:ao de Tanatos com Eros. Sem duvida, Tanatos encontra meiosde se libertar atraves da agressividade motora do sujeito diante daquiloque 0 cerca, mas resta alguma coisa no interior do sujeito sob a formadcssa dor de ser que, aos olhos de Freud, parece estar Iigada a propriacxistencia do ser vivo. Ora, nada prova que essa dor se detenha nosvivos, segundo tudo 0 que agora sabemos de uma natureza que eanimada de urn outro modo, estagnada, fermentante, fervilhante oumesmo explosiva, mais ainda do que podiamos imaginar.

Em contrapartida, 0 que nao precisamos imaginar, aquilo em quetocamos diretamente agora e que 0 sujeito em sua rela<;:ao com 0

significante pode, de vez em quando, ao ser solicitado a se constituirno significante, recusar-se a faze-Io. Ele pode dizer: - Nao, eu naoserei um elemento da cadeia. E isso, real mente, que constitui 0 fundo.Mas aqui, 0 fundo, 0 avesso, e exatamente a mesma coisa que 0

direito. Que faz 0 sujeito, na verdade, a cada momenta em que serecusa, de certo modo, a pagar uma divida que nao contraiu? Nao fazoutra coisa scnao perpetua-Ia. Suas recusas sucessivas tern como efeitofazer a cadeia repercutir mais, e ele se descobre sempre mais e maisligado a essa mesma cadeia. A Absagiingzwang, essa necessidadeeterna de repetir a mesma recusa, e onde Freud nos mostra 0 ultimorecurso de tudo aquilo que se manifesta do inconsciente sob a formada reprodu<;;ao sintomatica.

Precisa-se de nada menos do que isso para compreender por queo significante, a partir do momenta em que e introduzido, tern,fundamentalmente, urn valor duplo. De que modo se sente 0 sujeito,afetado como desejo pelo significante, na medida em que e ele quee abolido, e nao 0 outro que detem 0 chi cote imaginario e, e claro,significante? Como desejo, ele se sente escorado naquilo que comotal 0 consagra e 0 valoriza, ao mesmo tempo que 0 profana. Hasempre, na fantasia masoquista, uma faceta degradante e profanadora,que indica ao mesmo tempo a dimensao do reconhecimento e 0 modode rela<;:ao proibido do sujeito com 0 sujeito paterno. E isso queconstitui 0 fundo da parte desconhecida da fantasia.

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o acesso do sujeito aa carater de duplo sentido radical dosignificante e facilitada por isso - que ainda nao empreguei noesquema para poupar as cabecinhas de voces, pOl'que, da ultima vez,houve complicac;oes assustadoras a partir do momenta em que intro-duzi a linha paralela i-m, ou seja, a relac;ao da imagem do propriocorpa com 0 eu do sujeito.

Nao podemos desconhecer que 0 rival nao intervem, pura esimplesmente, na relac;ao triangular, mas se apresenta, ja no nfvelimaginario, como um obstaculo radical. E isso que provoca 0 quesanto Agostinho nos descreve em suas Confissoes - a palidez mortaldo recem-nascido ao ver seu irmao de leite no seio da mae. Ha nisso,com efeito, alguma coisa de radical, de verdadeiramente mortfferapara 0 sujeito, que se exprime bem nessa passagem. Mas a rivalidadecom 0 outro nao e tudo, ja que tambem existe a identificac;ao com 0

outro. Em outras palavras, a relac;ao que liga 0 sujeito a qualquerimagem do outro tem um carater fundamentalmente ambfguo, econstitui uma apresentac;ao perfeitamente natural do sujeito a basculaque, na fantasia, leva-o ao lugar que era do rival, onde, por conseguinte,a mesma mensagem chegara a ele, com um sentido totalmente oposto.

Vemos entao 0 seguinte, que nos faz compreender melhor do quese trata: e na medida em que uma parte da relac;ao vem a entrar emIigac;ao com 0 eu do sujeito que se organizam e se estruturam asfantasias consecutivas. Nao e a toa que e nessa dimensao, entre 0

objeto materno primitivo e a imagem do sujeito - dimensao na qualse abre em leque toda a gama dos intermediarios em que se constituia realidade -, que vem situar-se tados esses outros que sac 0 suportedo objeto significativo, isto e, do chicote. A partir desse momento, afantasia, em sua significac;ao - refiro-me a fantasia em que 0 sujeitofigura como crianc;a espancada -, torna-se a relac;ao com 0 Outropor quem se trata de ser amado, enquanto ele mesmo nao e reconhecidocomo tal. Essa fantasia situa-se, entao, em algum lugar da dimensaosimbolica entre 0 pai e a mae, entre os quais, alias, ela efetivamenteoscila.

Hoje os fiz percorrer um caminho nao menos diffcil do que 0 queaquele que os fiz percorrer da ultima vez. Esperem, para podercontrolar seu valor e sua validade, pelo que eu possa dizer-Ihes emseguida. Para terminar com uma notinha sugestiva, far-Ihes-ei 0

seguinte comentario, que Ihes mostrara como nossos termos se apli-cam.

E corrente dizer-se, na analise, que a relac;ao com 0 homemcomporta, por parte da mulher, um certo masoquismo. Esse e um dos

erros de perspectiva a que nos conduz, 0 tempo todo, nao sei quedeslizamento de nossa experiencia para a confusao e a rotina. Nao epelo fato de os masoquistas manifestarem, em suas relac;oes com 0

parceira, certos sinais ou fantasias de uma pasic;aa tipicamente femi-nina que, inversamente, a relac;ao da mulher com 0 homem e umarelac;ao masoquista. Nas relac;oes entre 0 homem e a mulher, a ideiade que a mulher e alguem que recebe pancadas po de muito bem seruma perspectiva de sujeito masculino, na medida em que a posic;aofeminina 0 afeta. Mas, nao basta 0 sujeito masculino perceber emalgumas perspectivas, as suas ou as de sua experiencia c1fnica, umacerta ligac;ao entre a tomada de posic;ao feminina e tal ou qualsignificante da posic;ao do sujeito, que estaria mais ou menos relacio-nado com 0 masoquismo, para que essa seja, de fato, uma posic;aoconstitutivamente feminina.

E extremamente importante proceder a essa correc;ao, que Ihesfac;o de passagem, do termo masoquismo feminino, introduzido porFreud em seu artigo sabre 0 problema econ6mico.

Nao tive tempo algum para abordar 0 que tinha a Ihes dizer aproposito das relac;oes do falo com a comedia. Lamento, e remeto 0assunto a um proximo encontro.

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As l1uiscaras de uma mulherA perversiio de Andre GideIdeal do eu e perversiioo balcao, de Jean GenetA comeclia e 0 Jato

Caros amigos, para retomar nosso discurso interrompido ha tressemanas, partirei do que lembravamos ontem a noite com justeza:que nosso'discurso deve ser urn discurso cientffico. Dito isso, pareceque, para chegar a esse fim, os caminhos nao sao muito faceis, quandose trata de nosso objeto.

Simplesmente apontei, ontem a noite, a originalidade do momentaque e constitufda no exame dos fenomenos do homem ao se colocarem primeiro plano, 0 que faz toda a disciplina freudiana, esse elementoprivilegiado que se chama desejo.

Observei que, ate Freud, esse elemento em si sempre fora reduzidoe, sob certo aspecto, precocemente elidido. Isso e 0 que permite dizerque, ate Freud, qualquer estudo da economia humana partia mais oumenos de uma preocupa~ao com a moral, com a etica, no senti do deque se tratava menos de estudar 0 desejo do que, desde logo, reduzi-Ioc disciplina-Io. Ora, e com os efeitos do desejo, num sentido muitoample - 0 desejo nao e urn efeito colateral -, que temos, napsicanalise, que !idar.

o que se manifesta no fenomeno do desejo humane e sua sub-duc~ao intrfnseca, para nao dizer sua subversao, pelo significante. Eis

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() s 'nLido de tudo 0 que me esfor~o por lembrar-lhes aqui - a rela~aodo dcsejo com 0 significante.

Nao e isso que desenvolverei hoje para voces, uma vez mais,ainda que tenhamos de voltar a esse ponto para tornar a partir dele,mas you mostrar-Ihes 0 que significa, na perspectiva rigorosa quemantem a originalidade das condi~6es do desejo do homem, uma ideiaque esta sempre mais ou menos implfcita no manejo que voces fazemda no~ao de desejo, e que merece ser distinguida dela - direi mais,que so pode come<;:ar a ser articulada a partir do momento em queesta suficientemente inculcada em nos a complexidade na qual seconstitui esse desejo. Essa ideia de que estou falando sera 0 outropolo de nosso discurso de hoje. Ela se chama gozo.

Retomando brevemente 0 que constitui c~al 0 desvio ou aaliena~ao do desejo no significante, vamos perguntar-nos 0 que podesignificar, neslSa perspectiva, 0 fato d~ 0 sujeito humano ser capaz dese apropriar das condi~6es ue the s~o impostas em seu mundo, comose essas condi~6es fossem feitas para ele, e de se satisfazer com elas.

Isso, indico-Ihes, nos fara desembocar - espero chegar la hoje- num tema que ja Ihes anunciei no infcio do ano, ao tomar as coisaspela perspectiva da tirada espirituosa, ou seja, na natureza da comedia.

Lembremos, para come~ar, que 0 desejo esta instalado numa rela~aocom a cadeia significante, que ele se instaura e se prop6e inicialmentena evolu~ao do sujeito humano como demanda, e que frustra~ao, emFreud, e Versagung, ou seja, recusa, ou, ainda mais exatamente,desdizer.

Quando, com os kleinianos, remontamos a genese, explora~aoesta que certamente constituiu urn progresso para a analise, somosconduzidos, na maioria dos problemas da evolu~ao do sujeito neuro-tico, a chamada satisfa~ao sadico-oral. Observem, simplesmente, queessa satisfa~ao se efetua como uma fantasia e, des de logo, comoretorsao da satisfa~ao fantasiada.

Dizem-nos que tudo parte da necessidade de morder, as vezesagressiva, que tern a crian~a pequena em rela~ao ao corpo da mae.Nao nos esque~amos, no entanto, que tudo isso jamais consiste numamordida real, que SaD fantasias, e que nada pessa dedu~ao pode sequeravan~ar urn passo, a nao ser 0 de nos indicar que 0 medo da mordidainv rsamente, e 0 eixo essencial daquilo que se trata de dernonstrar:

Alias, urn de voces, com quem eu conversava ontem a noite, eque vem tentan~o retornar com Susan Isaacs algumas defini~6esvalidas da fantasia, falou-me, muito justificadarnente, de sua totaldificuldade em fazer delas qualquer dedu~ao que seja fundamentada,pura e simplesmente, na rela~ao imaginaria entre os sujeitos. Eabsolutamente impossfvel estabelecer uma distin~ao valida entre asfantasias inconscientes e essa cria~ao formal que e 0 funcionarnentoda imaginac;:ao, se nao virmos que a fantasia inconsciente e desdesempre dominada, estruturada, pelas condi~6es do significante.

Os objetos primordiais bons e maus, os objetos primarios a partirdos quais se faz toda a dedu~ao analftica, constituem uma bateria naqual se desenham diversas series de termos substitutos, fadados aequivalencia. 0 leite e 0 seio transformam-se, posteriormente, querno esperma, quer no penis. Desde sempre, os objetos estao, se assimme posso exprimir, significantizados.

o ue se roduz da relac;:ao com 0 objeto mais primordial_ 0

objeto_materno, efetua-se desde logo com base em signos; com baseno ql!L oderfarnos chamar para dar urna imagem do que queremosdizer, ge moeda do desejo do Outro. So ue 0 estudo que fizemos daultima vez, tao de perto quanto e necessario para enxerga-la bel~,dessa obra que Freud considera decisiva - e lhes ressaltei com efeitoque ela marcou 0 passo inaugural na verdadeira compreensao analfticado problema da perversao - pretendia faze-los perceber q~,~~esses signos, pode efetuar-se um-adIVisao. Com efeito, nem todos elessaD redutfveis ao que ja Ihes indique"i como sendo tftulos de proprie-dade, valores fiduciarios, valores representativos, moeda de troca,como acabamos de dizer ha pouco, signos constitufdos como tais. Haentre esse signos alguns que sao2Jgnos constitutivos, ou se'~ atra~dos quais a c..r:.iac;:aodo valor e ~segurada, atraves dos quais esse algode real que e implicado a todo in stante nessa econornia e atingidopela bala que faz dele urn signo.

Vimos da ultima vez uma bala dessas, constitufda pelo signa dabengala, da chibata, ou seja la do que for que golpeie. Esse e urnelemento atraves do qual ate urn efeito desagradavel pode tornar-seurna distin~ao subjetiva, e instaurar a propria rela~ao em que a dernandapossa ser reconhecida como tal. 0 que a principio fora urn meio deanular a realidade rival do irmao torna-se, secundariarnente, aquilomediante 0 qual 0 proprio sujeito se ve distinguido, reconhecido,apontado como algo que pode ser reconhecido ou atirado ao nada. Apartir daf, 0 sujeito se apresenta como a superffcie sobre a qual sepode inscrever tudo 0 que podera dar-se a seguir, ou ate, se posso

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1110 cxpressar assim, como urn cheque em branco no qual todas ast1oa~6es sao possfveis. E, ja que todas as doa~6es sao possfveis, e quelambem nao se trata nem mesmo daquilo que pode ser dado ou nao,pOI'que se trata da rela~ao de amor, que eu Ihes disse ser constitufdapelo fato de que 0 sujeito da essencialmente 0 que nao tern. Toda apossibilidade de introdu~ao na ordem do amor pressup6e esse signafundamental para 0 sujeito, que pode ser pOl'ele anulado ou reconhe-cido como tal.

Pedi-lhes, durante esse intervalo, que fizessem algumas leituras.Espero que as tenham feito, e que se hajam ocupado ao menos urnpouquinho com a fase falica do sr. Jones e com 0 desenvolvimentoprecoce da sexualidade feminina.

Vma vez que tenho que ir adiante hoje, YOUpontuar-lhes urnexemplo perfeitamente localizado, que encontrei ao reler 0 mimerodo UP que comemqrou 0 qiiinquagesimo aniversario de Jones naepoca em que essa fase falica estava no primeiro plano do inter~ssedos psicanalistas ingleses. Nesse numero, 0 volume X, reli mais umavez, com muito interesse, 0 artigo de Joan Riviere intitulado "Afeminilidade como mascarada".

.T~·~ta-seda analise de urn caso especffico - nao da fun~ao dafemlmhdade em geral-, que Joan Riviere situa em rela~ao a diversasramifica~6es que sao urn punhado de encaminhamentos possfveis noacesso a feminilidade.

o sujeito em questao apresentava-se como dotado de uma femi-nilidade ainda mais notavel, em sua assun~ao aparentemente completa,pelo fato de que toda a sua vida podia, nessa epoca, muito mais atedo que .na nossa, parecer manifestar uma assun~ao de todas as fun~6esmascuhnas. Em outras palavras, tratava-se de alguem que tinha umavida profissional perfeitamente independente, elaborada, livre - 0

que, repito, destacava-se muito mais naquela epoca do que na nossa-, e que, nao obstante, manifestava-se pela assun~ao correlata, e emgrau maximo, de suas fun~6es femininas - tanto sob a forma publicade ~uas fun~6es de dona de casa quanta em suas rela~6es com 0

mando, 0 que mostrava por toda parte a superioridade de qualidadesque, em nossa sociedade e em todas as posi~6es sociais, concernemaquilo que fica for~osamente sob 0 encargo da mulher, e, num outroregistro, concern em muito especial mente ao plano sexual, no qualsuas rela~6es com 0 homem revelavam-se inteiramente satisfatoriasquanta ao gozo.

Pois bern, sob a aparente satisfa~ao completa da posi~ao feminina,('ssa anaiJse destacou algo de muito oculto, que nem pOl'isso deixava

de constituir sua base. Trata-se, sem duvida alguma, de alguma coisaque nao e encontrada sem que, apesar de tudo, se tenha sido instigadopor alguma discordfmcia pequenina, infinitamente pequena, que apa-rece na superffcie de urn estado que e, em princfpio, completamentesatisfatorio.

Voces sabem da enfase que nossa experiencia pode colocar noPenisneid, reivindica~ao do penis, em muitos disturbios do desenvol-vimento da sexualidade feminina. Aqui, 0 que se oculta e exatamenteo contrario. Nao posso refazer-Ihes a historia dessa mulher, nao eesse 0 nosso objetivo de hoje, mas a origem da satisfa~ao quesustentava 0 que aparentemente florescia nessa libido feliz era asatisfa~ao oculta de uma supremacia em rela~ao aos personagensparentais. E exatamente esse 0 termo de que se serve a sra. JoanRiviere, e que ela considera como estando na propria origem dosproblemas desse caso - 0 qual, como eu disse, apresentava-se comurn carater de liberdade e plenitude que se fazia notar por nao ser taogarantido na evolu~ao da sexualidade feminina. A identifica~ao dessamola oculta da personalidade surtiu 0 efeito, ainda que apenas demaneira transitoria, de perturbar profundamente 0 que fora apresentadocomo uma rela~ao acabada, madura e feliz, a ponto de levar, poralgum tempo, ao desaparecimento do desfecho feliz do ato sexual -o que, segundo a autora, constitui uma prova.

Encontramo-nos pois na presen~a, nessa mulher, como salienta asra. Joan Riviere, da necessidade de evitar uma represalia por partedos homens, motivada p~la subtra~ao sub-reptfcia que ela efetuavada Fonte e do proprio sfmbolo da potencia deles. A medida que aanalise avan~ou, 0 sentido da rela~ao da paciente com as pessoas deambos os sexos mostrou-se, de maneira cada vez mais evidente, dado,norteado, dominado pela preocupa~ao de evitar 0 castigo e a represaliapor parte dos homens visados.

Essa escansao sutilfssima, que apareceu, como acabei de dizer, amedida que avan~ou a analise, ja era perceptfvel, no entanto, empequenos tra~os anomalos. Toda vez, com efeito, que essa mulherdava mostras de sua potencia falica, ela se precipitava numa serie deprovidencias, Fosse de sedu~ao, Fosse ate de urn processo sacrificial- fazer tudo para os outros -, nisso adotando, aparentemente, asformas mais elevadas da dedica~ao feminina, como se ela dissesse:- Vejam bem, eu niio tenho esse falo, sou mulher, e puramentemulher. Ela se mascarava especialmente em sua postura profissionalperante os homens: embora Fosse eminentemente qualificada, derepente adotava, por uma especie de evasiva, uma atitude excessiva-

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(,() 0 VALOR DE SIGNIFICA<;:Ao DO FALO/

III 'nlc modesta ou mesmo ansiosa quanto it qualidade do que haviar ilO, com isso fazendo, na realidade, todo urn jogo de coquetismo,como se exprimiu a sra. Joan Riviere, que the servia menos paratranqUilizar do que para ludibriar aqueles que pudessem ofender-secom 0 que se apresentava nela, fundamentalmente, como agressao,como necessidade e gozo com a supremacia como tal, e que seestruturava numa historia de rivalidade, inicialmente com a mae, e,depois, com 0 pai.

Em suma, a proposito de urn exemplo como esse, pOl' maisparadoxal que pare<;a, vemos que aquilo de que se trata numa analise,na compreensao de uma estrutura subjetiva, e sempre algo que nosmostra 0 sujeito empenhado num processo de reconhecimento comotal - mas, reconhecimento de que? Entendamos bem isso.

Dessa necessidade de reconhecimento, 0 sujeito e inconsciente,e e por isso mesmo que devemos, com absoluta necessidade, situa-Ionuma alteridade de urn teor que, ate Freud, nao conhecfamos. Essaalteridade prende-se ao lugar puro e simples de significante, pelo qualo ser se cinde de sua propria existencia.

o destino do sujeito humano esta essencialmente ligado a suarela<;;ao com seu signa de ser, que e objeto de toda sorte de paix6ese que presentifica, nesse processo, a morte. Em sua liga<;;ao com essesigno, 0 sujeito, com efeito, esta suficientemente desligado de simesmo para poder ter com sua propria vida uma rela<;;ao que e unica,ao que parece, na cria<;;ao - uma rela<;;ao que constitui a formaderradeira do que chamamos, na analise, de masoquismo, isto e, aquilomediante 0 qual 0 sujeito apreende a dor de existir.

Como existencia, 0 sujeito ve-se constitufdo desde 0 infcio comodivisao. Por que? Porque seu ser tern de se fazer representar alhures,no signo, e 0 proprio signa esta num lugar terceiro. E isso que estruturao sujeito na decomposi<;;ao de si mesmo sem a qual nos e impossfvelfundamentar, de alguma maneira valida, 0 que se chama inconsciente.

Tomem 0 menor sonho que seja, e voces verao, sob a condi<;;aode 0 analisarem corretamente e de se reportarem it Traumdeutung,que nao e no significante articulado, mesmo depois de feita a primeiradecodifica<;;ao, que se encarna 0 inconsciente. A proposito de tudo,Freud retorna a isso e 0 enfatiza: existem, diz ele, sonhos hipocritas,que nem por isso deixam de ser a representa<;;ao de urn desejo, nemque seja 0 desejo de enganar 0 analista. Lembrem-se do que Ihesapontei sobre uma passagem plenamente articulada da analise dajovcm homossexual. 0 discurso inconscit1nte nao e a ultima palavrado inconsciente, ele e sustentado pelo que e de fato a mol a ultimaao--..ill 'OI1S 'icnte, e que nao pode ser articulado senao como desejo de

reconhecimento do sujeito. Nem que seja atraves de uma mentira,desctelogo artiZulada no nfvel dos mecanismos que escapam a cons-ciencia. DesejO'de reconhecimento que sustenta, nessa oportumd~de,a propria mentira, e que pode apresentar-se, numa falsa perspectIva,como mentira do inconsciente.

Isso Ihes da 0 senti do e a chave da necessidade que temos decolocar na base de qualquer analise do fen6meno subjetivo completo,tal como ele nos e fornecido pela experiencia analftica, 0 esquemaem torno do qual tento fazer progredir 0 encaminhamento autentic~da experiencia das forma<;;6es do inconsciente. Ele ~ 0 que promoviperante voces, recentemente, sob uma forma que _hoje posso apresen-tar-Ihes de maneira mais simples. Naturalmente, sao sempre as formasmais simples que devem ser trazidas por ultimo.

CCrian9a desejada

= Ideal do eu

Que temos nesse angulo de tres polos, C, P e M, que constitui aposi<;:ao do sujeito? ,

Vemos 0 sujeito em sua rela<;;ao com uma tnade de termos, quesao as funda<;6es significantes de to do 0 seu. prog:esso .. No~eada-mente M a mae, na medida em que e 0 primelro objeto slmbohzado,ja qu~ su'a ausencia ou sua presen<;a se to:narao, pa~'a ? sujeito, 0

signo do desejo ao qual se agarrara 0 desejo d~le propn?, u~a vezque fara ou nao dele nao apenas uma crian<;a satlsfelta ou msatlsfeIta,mas uma crian<;a desejada ou nao desejada.

Essa nao e uma constru<;;ao arbitraria. Reconhe<;am que 0 queinstauro af, nossa experiencia nos ensinou a descobri-lo passo a passo.

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I:oi a expenencia que nos ensmou 0 que comporta de conseqi.iI~ncias'n cascata, de desestruturac;:ao quase infinita, 0 fato de urn sujeito,

anles de seu nascimento, tel' side uma crianc;:a desejada ou nao. Esselermo e essencial. E mais essencial do que tel' sido, neste ou naquelemomento, uma crianc;:a mais ou menos satisfeita. A expressao crianc;:adesejada corresponde a constituic;:ao da mae como sede do desejo, ea toda a dialetica da relac;:ao do filho com 0 desejo da mae que tenteidemonstrar-Ihes, e que se concentra no fato primordial do sfmboloda crianc;:a desejada.

Aqui fica P, 0 termo do pai, na medida em que ele e, no~ignificante, 0 significante mediante 0 qual 0 pr6prio significante semstaura como tal. E pOl' isso que 0 pai e essencialmente criador, eudiria ate criador absoluto, aquele que cria do nada. Em si mesmo,com efeito, 0 significante tern a dimensao original de poder conteI' 0

signi!icante que se define como 0 surgimento desse significante.E em relac;:ao a isso que tem de se situar algo de essencialmente

confuso, indeterminado, nao desvinculado de sua existencia, mas feitopara se separar dela, ou seja, 0 sujeito, na medida em que ele tern deser significado.

Se e possfvel haver identificac;:6es, se 0 sujeito chega, em suavivencia, a conferir esse ou aquele sentido ao que Ihe e dado pOl' suafisiologia humana particular, isso se estrutura sempre nessa relac;:aotriadica constitufda no nfvel do significante.

Nao precise voltar a homologia dos termos no nfvel do significado,do lade em que esta 0 sujeito, em relac;:ao a esses tres termos simb6licos.Ja 0 demonstrei em parte, nao fac;:o outra coisa, alias, senao isso.Pec;:o-Ihes que me acompanhem quanta a esse ponto, ate uma infor-mac;:ao mais amp la, uma demonstrac;:ao mais ampla.

Na relac;:ao com sua pr6pria imagem, 0 sujeito depara com aduplicidade do desejo materno em sua relac;:ao com ele como filhodesejado, que e apenas simb6lica. Ele a comprova, experimenta-anessa relac;:ao com sua auto-imagem, na qual pode vir superpor-seuma porc;:ao de coisas.

Vou trazer-Ihes prontamente urn exemplo que ilustra isso, umavez que aludi, ontem a noite, ao fato de haver examinado de perto ahist6ria de Gide em crianc;:a, tal como Jean Delay no-Ia expos demaneira realmente exaustiva na patografia que nos forneceu dessecaso, sob 0 tItulo de A juventude de Andre Gide.

Sabemos que Gide, 0 menino canhestro - como disse 0 autor'111 algum lugar, a visao da fotografia diante d& qual 0 personagems' senlira estremecer -, ficou entregue em sua er6tica, em seu

auto-erotismo primitivo, as imagens menos constitufdas, uma vez que,segundo nos disse, encontrava seu orgasmo na identificac;:ao comsituac;:6es catastr6ficas. POl' exemplo, ele descobriu muito precoce-mente 0 goze na leitura de Mme de Segur, cujos Iivros sao funda-mentais pOl' toda a ambigiiidade do sadismo primario, mas nos quaisesse sadismo talvez nao seja 0 mais elaborado. Encontramos igual-mente outros exemplos - a crianc;:a espancada, uma empregada quedeixa cair alguma coisa, com urn grande estrepito de destruic;:ao doque carregava nas maos, ou, ainda, a identificac;:ao com 0 personagemde Gribouille num conto de Andersen, que vai sendo levado pelacorrenteza e acaba chegando a urn rio distante, transformado numfeixe de vegetac;:ao. Essas sao formas dentre as menos humanamenteconstitufdas da dol' da existencia.

Nao podemos apreender af nada senao esse algo de abissal quese constitui na relac;:ao primaria do sujeito com uma mae que sabemos,ao mesmo tempo, que tinha altfssimas e notabilfssimas qualidades, eurn nao-sei-que de total mente elidido em sua sexualidade, em suavida feminina, que, na presenc;:a dela, certamente deixava 0 menino,no momenta de seus primeiros anos de vida, numa posic;:ao total mentenao situada.

o ponto decisivo em que a vida do jovem Gide retomou, pOl'assi dizer, urn sentido e uma constituic;:ao humana deve ser situadonum momenta crucial de entificac;:ao que nos e dado em sua lembranc;:atao c1aramente quanto possfve!, e que deixou sua marca de maneiraindubitavel em toda a sua vida. Trata-se de sua identificac;:ao com ajovem prima.

Identificac;:ao, com certeza, mas nao basta fornecermos 0 termosob essa forma vaga. Ele nos conta precisamente 0 momento dela, enao nos detemos 0 bastante em seu carateI' singular. Trata-se domomento em que ele encontra a prima aos prantos no segundo andarda casa para onde se precipitara, nao tanto atrafdo pOl' ela, mas simpOl' seu faro, pOl' seu amor a clandestinidade que grassava naquelacasa. E depois de haver atravessado 0 primeiro andar, onde se encontraa mae dessa prima - sua tia, a quem ele mais ou menos entreve nosbrac;:os de urn amante -, que ele en contra a prima aos prantos e,nisso, encontra urn auge de embriaguez, entusiasmo, amor, desamparoe devoc;:ao. A partir daf, ele se dedica a protegeI' essa crianc;:a, comonos dira mais tarde. Nao nos esquec;:amos de que a menina era maisvelha que ele - na epoca, Gide tinha treze anos e Madeleine, quinze.

o que se produziu nesse momenta e algo cujo senti do nao podemoscompreender, em absoluto, se nao 0 colocarmos numa relac;:ao terceira.

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() jovcm Andre nao se encontra apenas com sua prima, mas tambem'Olll aquela que, no andar debaixo, esta evaporando os calores de suarcbrc, ou seja, a mae da citada prima, que Gide nos confessa, em Aporta estreita, ter feito anteriormente com ele uma tentativa desedu~ao.

a que entao acontecera fora - 0 que? No momento daquelasedu~ao, ele se transformara no filho desejado e, alias, fugira horro-rizado, pOl'que, na verdade, nada viera introduzir 0 elemento deaproxima~ao e media~ao que teria feito daquilo outra coisa que naourn trauma. No entanto, ele se descobrira pela primeira vez na posi~aoda crian~a desejada, Essa situa~ao nova, que sob certo aspecto seriasalvadora para ele, iria fixa-Io, no entanto, numa posi~ao profunda-mente dividida, em razao da maneira atfpica, tardia e, repito, semmedia~ao como se produziu esse encontro.

a que guardaria ele disso, na constitui~ao do termo simbolicoque ate entao Ihe faltava? Nao guardaria outra coisa senao 0 lugar dacrian~a desejada, 0 qual enfim poderia ocupar, pOl' intermedio de suaprima, Nesse lugar, onde tinha havido urn furo, passou a haver urnlugar, pOl'em nada alem disso, pois, ao mesmo tempo, Gide recusou-seesse lugar, pOl' nao poder aceita-Io, ja que nao podia aceitar 0 desejodo qual foi objeto, Em contrapartida, seu eu, incontestavelmente, naoparou de se identificar para sempre, e sem 0 saber, com 0 sujeito dodesejo do qual ele se tornou dependente, Gide apaixonou-se parasempre, ate 0 fim da vida, por aquele menininho que ele fora por urninstante nos bra~os da tia, dessa tia que Ihe afagara 0 pesco~o, osombros e 0 peito. Sua vida inteira resumiu-se nisso.

'Podemos registrar 0 fato, posto que ele 0 confessou, - todo 0

mundo se embasbacou e se escandalizou com isso - de que, ja emsua viagem de nupcias e quase que na frente de sua mulher, elepensava nas supliciantes delicias, como se exprimiu, de acariciar osbra~os e os ombros dos rapazinhos que encontrava no trem. Essa euma pagina que se celebrizou, que faz parte da Iiteratura, e na qualGide mostra 0 que permaneceu, para ele, como 0 ponto privilegiadode toda a fixa~ao de seu desejo.

Em outras palavras, 0 que foi subtrafdo no nfvel daquilo que paraele se transformou em seu Ideal do eu, ou seja, 0 desejo do qual elefoi objeto e que nao pade suportar, Gide 0 assumiu pOl' si mesmo,ficando para sempre e eternamente apaixonado pelo mesmo menininhoacariciado que ele nao quis ser.

A expressao crian~a desejada, esse significante que constituiprimordialmente 0 sujeito em seu ser, e 0 piva aqui. E preciso que

se elabore alguma coisa, e que 0 eu se aproxime disso de ,algumamaneira, no p<{nto X em que esta, e que e designado p~r C. E af .quese constitui 0 Ideal do eu, que malTa todo 0 desenvolvlmento PSICO-logico de urn sujeito. .' ..

a Ideal do eu e marcado, primeiramente, pelo slgno do slgmfl-cante. A questao e saber, em segundo lugar, de on de ele pode partir.Ele po de constituir-se por uma progressao a partir do eu, ou, aocontrario, sem que 0 eu possa fazer outra coisa senao suporta~' 0 quese produz a revelia do sujeito, pela simples sucessa~ de aCld~ntesentregues as aventuras do significante, e que Ihe per.mlte SUbSlstlr naposi~ao significante de crianc;a mais ou menos desejada.

a esquema nos mostra, assim, que e no mesmo lugar - conformeisso se produza pela via consciente ou pela via inconsciente - quese produz 0 que chamamos, num caso, Ideal do eu, e no outro,perversao. ,

A perversao de Andre Gide nao se prende tanto ao fato de el~ sopoder desejar menininhos, 0 menininho que ~Ie mesmo for~, l. Aperversao de Andre Gide consiste em que alt, em C, ele ,so podeconstituir-se <to se express~r perpetuamente, ao se submeter a corrcs-pondencia que e, para ele, 0 cerne de sua obra: ao ser aquele que ~eimpoe no lugar ocupado pela prima, aquele CUjOSpensamentos estaotodos voltados para ela, aquele que Ihe da a cada mstante, Itteralme~te~tudo aquilo que nao tern, POl'em nada alem disso - qu~ s~ constltulcomo personalidade nela, por ela e em rela~ao a ela. E ISSOque 0

coloca, em rela~ao a prima, numa dependencia mortal, que 0 fazexclamar em algum lugar: - Voce nao tem como saber 0 que e 0

amor de um uranista. E qualquer coisa como um amor embalsamado.Toda essa proje~ao de sua propria essencia nessa rela~ao e a base

de sua vida, 0 cerne e a raiz de sua existencia de literato, de homeminteiramente inserido no significante, e inteiramente inserido no quecomunica a essa mulher. E atraves disso que ele e coisificado em suarelac;ao inter-humana. Essa mulher nao desejada pode ser, para ele,com efeito, objeto de urn amor supremo, e quando esse objeto como qual ele preencheu 0 vazio do am or sem desejo ve~ a .desaparecer,ele solta aquela exclama~ao infeliz cujo parentesco mdlquel, ontema noite, com 0 grito camico por excelencia, 0 do avarento: - Meucofrinho! Meu querido cofrinho! . _ .

Todas as paixoes, na medida em que sa? uma altena~ao do desejonum objeto, encontram-se no mesmo pe. E claro que 0 cofr~nho doavarento nos faz rir com mais facilidade - pelo menos se tlvermosem nos urn toque de humanidade, 0 que nao e a situa~ao universal

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I I' 0 V ALOR DE SIGNIFICAc;;:Ao DO FALO(

do ILiC 0 desaparecimento da correspondencia de Gide com suall1ulhcr. Evidentemente, essa deveria ser, para todos n6s, uma coisatlu tcria valor para sempre. Nem por isso deixa de se tratar, funda-mcntalmente, da mesma coisa, e a exclama<;ao de Gide por ocasiaodo desaparecimento dessa correspondencia e a mesma de Harpagon.*

Essa comedia de que se trata, que vem a ser ela?

A comedia nos atinge por mil formula<;6es dispersas. A comedia naoeo comico.

Se quisermos fornecer da comedia uma teoria correta, teremosde partir do fato de que, pelo menos durante algum tempo, a comediaera produzida diante da comunidade, na medida em que esta repre-sentava urn grupo de homens, isto e, constitufa acima del a a existenciade urn Homem como tal. A comedia foi 0 que parece ter side nummomenta em que a representa<;ao da rela<;ao entre 0 hornem e a mulherera objeto de urn espeulculo que tinha urn valor cerimonial. Nao souo primeiro a comparar 0 teatro a missa, uma vez que todos os que seaproximaram da questao do teatro assinalaram que, certamente, 0

drama da missa e 0 unico em nossa epoca a representar 0 que podeter representado, num dado momenta da hist6ria, 0 desenvolvimentocompleto das fun<;6es do teatro.

No tempo da era grandiosa do teatro grego, a tragedia representoua rela<;ao do homem com a fala, na medida em que essa rela<;ao 0

tomava em sua fatalidade - uma fatalidade conflitante, posto que acadeia que liga 0 homem a lei significante nao e a mesma no nfvelda famflia e no nfvel da comunidade. Essa e a essencia da tragedia.

Ja a comedia representa outra coisa, que nao deixa de estar Iigadaa tragedia, uma vez que, como voces sabem, uma comedia semprecompletava a trilogia tnigica, e nao podemos consideni-la inde-pendentemente. Dessa comedia, yOU mostrar-lhes que encontramos 0

vestfgio e a sombra ate mesmo no comenUirio marginal do pr6priodrama cristao. Certamente, nao se en contra isso em nossa epoca decristianismo constipado, na qual decerto nao nos atreverfamos aacompanhar essas cerimonias com as farsas robustas constitufdas peloque era chamado de risus pascalis. Mas, deixemos isso de lado.

A comedia apresenta-se como 0 momento em que 0 sujeito e 0

homem tent am assumir com a fala uma rela<;ao diferente da que hana tragedia. Ja nii"o se trata de seu engajamento ou de seu disfarceem exigencias contrarias, nao se trata apenas de seu problema, masse trata daquilo em que ele mesmo tern de se articular como aqueleque esta destinado a absorver a substancia e a materia dessa comunhao,aquele que· tira proveito dela, que goza com ela, que consome. Acomedia, pode-se dizer, e qualquer coisa como a representa<;ao dC?fim do banquete comunial a partir do qual a tragedia foi evocada. Eo homem, afinal de contas, quem consome tudo 0 que e presentificadoali de sua substancia, de sua carne comum, e a questao e saber noque isso vai dar.

Para sabe-lo, creio que nao ha outro meio senao nos reportarmosa Comectia Antiga, da qual todas as comectias que vieram depois naopassam de uma degrada<;ao, mas na qual os vestfgios da origemcontinuam reconhecfveis. Reportem-se as comedias de Arist6fanes -A assembLeia de mulheres, Lisistrata, As Tesmof6rias -, para veraonde isso leva. Ja comecei a indicar-lhes 0 seguinte: a comediamanifesta, por uma especie de necessidade interna, a rela<;ao do sujeitocom seu pr6prio significado, como resultado, como fruto da rela<;aosignificante. Esse significado precisa entrar na cena da comediaplenamente desenvolvida. A comedia assume, colhe, desfruta darela<;ao com um efeito que esta fundamentalmente relacionado coma ordem significante, qual seja, 0 aparecimento do significado chamadofalo.

Sucede que, desde que eu lhes trouxe esse tenno, nos dias quese seguiram ao rapido esbo<;o que lhes fiz da Escola de mulheres, deMoliere, como representando a rela<;ao comica essencial, s6 preciseiabrir urn certo texto, que creio poder considerar uma ressurgenciasingularfssima e extraordinaria das obras-primas da comedia, se 0 quejulgo ler em Arist6fanes esta certo. Trata-se de nada menos do queo balciio, de Jean Genet.

o que e 0 balciio?Voces estao cientes de que se formaram vivfssimas oposi<;6es a

que ele nos fosse apresentado. Nao ha por que nos surpreendermoscom isso, numa situa<;ao do teatro em que podemos dizer que suasubstancia e seu interesse consistem, principalmente, em os atores seimporem no palco a diversos tftulos, 0 que enche de bem-estar ean'epios aqueles que vaG la para se identificar com 0 que convemchamarmos pelo nome - uma exibi<;ao. Se 0 teatro e outra coisa,creio seguramente que uma pe<;a como esta e perfeita para nos fazer

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P 'I' 'cl 6-10. Nao e certo que 0 publico esteja em condi~6es de ouvi-Io.Pal'ccc-me diffcil, no entanto, nao enxergar seu interesse dramatico.

Ge.net fala de uma coisa que quer dizer mais ou menos 0 quelcnlarel expor-Ihes. Nao digo que ele saiba 0 que esta fazendo. QueI'o saiba ou nao, isso nao tern \a minima importancia. Corneille,provavelmente, tambem nao sabIa 0 que estava escrevendo comoCorneille, 0 que nao impede que'o tenha feito com grande rigor.

Entram em cena no Balciio as fun~oes humanas tal como rela-cionadas com 0 simbolico: 0 poder, conferido pOl' Cristo a posteridadede sao Pedro e a todos os episcopados, de estabelecer a Jiga~ao e asepara~ao entre a ordem e 0 pecado, 0 erro; 0 poder daquele quecondena e que castiga, isto e, 0 juiz; e 0 poder daquele que assumeo comando nesse grande fen6meno que e a guerra, 0 poder do chefeguerreiro, mais comumente, 0 general. Todos esses personagens re-presentam fun~oes em rela~ao as quais 0 sujeito fica como que alienado- sao fun~6es da fala das quaisele e 0 suporte, mas que ultrapassamem muito sua particularidade.

Ora, sucede que esses personagens de repente sao submetidos alei da comectia. Ou seja, n?s nos pomos a fazer uma ideia do que egozar com essas fun~oes. E sem duvida uma postura de desrespeitoformular a questao dessa maneira, mas 0 desrespeito da comedia naoe uma coisa em que convenha nos determos, sem tentarmos saber 0que resultara disso urn pouco mais adiante.

E sempre em algum periodo de crise que isso emerge. Foi nomomento supremo do desespero de Atenas - resultante, precisamente,da aberra~ao de uma serie de escolhas ruins e de uma submissao alei da cidade que parecia literalmente leva-la a sua perdi~ao - queArist6fanes ensaiou 0 toque de alvorada que consistiu em dizer queos homens estavam-se desgastando numa guerra sem saida, e que naohavia nada como ficarem em casa, bem aquecidos, em companhia desuas mulheres. Isso nao e algo que deva ser colocado propriamentecomo uma moral, mas sugere uma retomada da relacrao essencial dohomem com sua condi~ao, sem que tenhamos de saber, alias, se suasconseqiiencias sao muito salutares.

Aqui vemos, portanto, 0 bispo, 0 juiz e 0 general, promovidosdiante de nos a partir de uma pergunta: 0 que pode significar gozarcom a condi~ao de bispo, de juiz ou de general? Isso lhes explica 0

artiffcio mediante 0 qual esse balcao nao passa daquilo que chamamosde urn palacio das ilus6es. 0 que se produz no nfvel das diferentesFormas do Ideal do eu nao e, como se sup6e, efe'ito de uma sublima~ao,no sentido de esta ser a neutraIiza~ao progressiva de fun~6es enraizadas

no interior. Muito pelo contrario, sua formacrao e sempre mais oumenos acompanhada pOl' uma erotiza~ao da relacrao simbolica. Assim,pode-se fazer um"a assimilacrao entre aquele que, em sua condicrao esua funcrao de bispo, de juiz ou de general, goza com sua posicrao, eurn personagem conhecido pelos donos de palacios das ilus6es - 0

velhinho que vem satisfazer-se com uma situacrao rigorosamenteplanejada, que 0 coloca momentaneamente numa posicrao - a maisestranha diversidade e encontrada nesse nfvel - que ele assume emrela~ao a uma parceira cumplice, que queira, nessa oportunidade,encarregar-se do papel de contracenar com ele.

Assim e que vemos urn empregado de urn estabelecimento decredito ir ate la para se vestir com os ornamentos sacerdotais, a fimde obter de uma prostituta complacente uma confissao. Tal confissao,natural mente, nao passa de urn simulacro, mas urn simulacro do quale preciso, em alguma medida, que a verdade se aproxime. Em outraspalavras, e preciso que alguma coisa, na intencrao de sua cumplice,Ihe permita ao menos acreditar que ela esta participando de urn gozoculpado. Nao e nada insignificante, na arte, no Iirismo com que 0

poeta Jean Genet sabe conduzir diante de nos 0 dialogo desse perso-nagem grotesco, sua singularidade de conferir ao grotesco dimens6esainda maiores, fazendo 0 personagem em questao subir em patins,p~ra que sua posi~ao caricata seja enaltecida. Vemos assim 0 sujeito,certamente perverso, comprazer-se em buscar sua satisfacrao nessaimagem, mas na medida em que ela e 0 reflexo de uma fun~aoessencialmente significante.

Em outras palavras, em tres grandes cenas Genet nos presentifica,no plano da perversao, aquilo que dela extrai seu nome, ou seja, aquiloque numa linguagem forte podemos denominar, nos dias de grandedesordem, a zona em que vivemos. A sociedade, com efeito, nao podedefinir-se senao pOl' urn estado mais ou menos avancrado de degradacraoda cultura. Toda a confusao que se estabelece nas relacroes do homemcom a fala, apesar de fundamentais, e ai representada em seu lugar.Sabemos do que se trata.

Mas, de que se trata? Trata-se de alguma coisa que encarna paranos a rela~ao do sujeito com as funcr6es da fe, em suas diversas formasmais sagradas, e que as apresenta atraves de uma serie de degradacr6es.o saIto momentaneamente dado, isto e, 0 de serem 0 proprio bispo,o juiz e 0 general que vemos ai na posi~ao de especialistas, como secostuma dizer em termos de perversao, question a a relacrao do sujeitocom a fun~ao da fala.

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o VALOR DE SIGNIFICAC;:AO DO FALO

Ora, 0 que acontece? Ac t 'degradada, por mais ad~Iteraod: ece 0 s~guJnte. ~ssa reJas:ao, por mais

todo 0 mundo fracassa, em que n;~;u~%a s~~c~:t::a reJas:ao em ,quedelxa de continuar presente diante de ' d -, nem por ISSO

k~~~i;aSi~;I~:~~ntte. N~ impossibil~~:de eds: ~~:t~:~~~l~:~i~~b~~~~o que chamamolssl~r~~~~ 0 menos, por estar Iigada ao fato de existir

Mas, a que se reduz essa ordem, quando uma sociedadsua desordem mais extrema? Redu ' e chega aderradeiro, esse direito ulti~o z-se.a chamada polfcia. Esse recursose cha - ' esse algumento fmal da ordem a que

ma manutens:ao da ordem - simboJizad I' _centro da comunidade, daqueJe bordel, daqUelaa'?zeo~:,?st:ura?to, no

::d~~~~s~:t~u~~ sua origem Como as tres lans:as cruz~da~q~,O e;~=a' 0 que acontece com a ordem a manutens:ao dela eopel sonagem central do dra b ' '

chefe de polfcia. ma que ca e encarna-Ia, ou seja, ao

do c~~~p~:es:~,e,Genet, e ela e realmente uma gras:a, e que a imagemele rep p ICla - ~aquele que sabe, essencialmente, que sobre

ousa a manutens:ao da ordem e q I'o resto de todo 0 d' _ ' ue e e e 0 tenno derradeira,

po el - nao se eleva a uma nobreza suficientepara que algum dos velhinhos que freqiientam 0 bordel .seus adOl'nos, seus atributos seu I _ p:s:a pal a usarbrincar de . . . ' pape e sua funs:ao. Ha quem saiba

. JUIZ e, ,dlante de uma pequena prastituta, para ue ela sec~nfesse Jadl~a, salba entrar nesse papel a fim de obter tal ~onfissao~ IS, Como e que eu seria juiz se voce nao fosse ladra?' 'Jp~I;. PO~po-lhes 0 que diz 0 general a sua egua. Inversam~~t~e~fnUg~~~

e pala ser 0 chefe de polfcia. 'Isso e pura hip6tese N- t . A ," . ao emos expenencla suficiente dos bordeis

~l~:a~~b~1 ;i~~~~:~' h; mUlt~ tempo, 0 chefe ,de polfcia nao teria side, e os pelsonagens em cUJa pele e possfvel .

~~:~~o~~r~m, 0 ~hefe de polfcia, que e muito amigo da dO~~z~~, I e - nao estou procurando teorizar aqui em absoluto

asslm como nao disse q " ,. . ue se tratava de COlsas conCl'etas _ chpelgunta anslOsamente' A ' ega e

. - pareceu alguem que tenha vindo pedipara ser 0 chefe de polfcia? E isso jamais acontece r

'b~o mesmo ~odo, nao existe uniforme de chefe d~ polfcia V'eXI lIem-se 0 hablto a tog d " . Imosnas cals:as deste ulti~o ma: n~ JU~~, ~ que?e do general, sem falarpele do chefe de I'.' 'f 0 a nmguem que tenha entrado nadrama. po ICla pal a azer amoy. Esse e que e 0 pivo do

Ora, saibam voces que tudo 0 que sucede no interior do bordelacontece enquanto, ao redor dele, a revolus:ao campeia. Tudo 0 quese desenrola ~ e eu para por aqui de Ihes citar, voces terao muitoprazer em descobrir essa comedia -, tudo 0 que se desenrola do ladode dentro - e a coisa esta longe de ser tao esquematica quanto lhesdigo, ha gritos, pancadaria, enfim, as pessoas se divertem - eacompanhado, do lade de fora, pelo estampido das metralhadoras. Acidade esta em revolus:ao, e todas aquelas mulheres esperam sofreruma morte magnffica, massacradas pel as operarias sombrias e virtuo-sas que supostamente representam, na pes:a, 0 homem fntegra, 0

homem real, aquele que nao duvida de que seu desejo seja capaz derealizar-se, impor-se como tal, e de maneira harmoniosa. A conscienciaproletaria sempre acreditou no sucesso da moral, com ou sem razao,nao vem ao caso.

o importante e que Jean Genet nos mostra 0 desfecho da aventura- sou obrigado a andar meio depressa - no fata de que 0 chefe depolfcia, por sua vez, nao duvida, porque essa e sua funs:ao - e e porisso que a pes:a se desenrola como se desenrola -, nao duvida deque, tanto depois quanta antes da revolus:ao, tudo sera sempre umazona. Ele sabe que a revolus:ao, nesse sentido, e lIm jogo.

Ha ainda uma belfssima cena em que 0 diplomata de estirpe vemesclarecer, ante 0 amavel grupo que se encontra no centro do palaciodas ilus6es, 0 que esta acontecendo no palacio real. La, em seu estadode mais completa legitimidade, a rainha borda e nao borda. A rainharonca e nao ronca. A rainha esta bordando urn lencinho. No meiodele ha urn cisne, que ainda nao se sabe se aparecera no mar, numlago urn numa xfcara de chao Abstenho-me de lhes falar do queconcerne ao esvaecimento derradeiro do sfmbolo.

Aquela que se torna a voz e a fala da revolus:ao e uma dasprostitutas, que foi arrebatada por urn encanador virtuoso e, a partirdaf, veio a desempenhar 0 papel da mulher de ban'ete frfgio nasbarricadas, com 0 dado adicional de ser lima especie de Joana d' Arc.Conhecendo nos mfnimos detalhes a dialetica masculina, por ter estadoali on de se a escllta desenvolver-se em todas as suas fases, ela sabefalar com os homens e Ihes responder. Uma vez escamoteada a ditaChantal, num abrir e fechar de olhos - ela e morta por um tiro -,o poder mostra-se prontamente encarnado por Irma, a dona do bordel.Esta assume, e com grande altivez, as fun<;6es da rainha. Porventuranao passa tambem ela ao puro estado de sfmbolo, ja que, comoexpress a 0 autor em algum lugar, nela nada e verdadeira, a nao seras j6ias?

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Chegamos entao it arregimenta~ao dos perversos que tfnhamosviSlO exibirem-se durante todo 0 primeiro ato, e it assun~ao autenticaC inlegral, pOl' parte deles, das fun~6es recfprocas que eles encarnavamem seus pequenos passatempos variadamente amorosos.

Um dialogo de grande despudor polftico se estabelece entre elese 0 personagem do chefe de polfcia, que necessita deles para repre-sentar os poderes que deverao substituir a ordem anteriormente der-rubada. Eles nao 0 fazem sem repugnancia, compreendendo muitobem que uma coisa e gozar na intimidade, sob a prote~ao dos murosde uma dessas casas sobre as quais nao se pondera muito que saojustamente 0 lugar em que a ordem e mais minuciosamente preservada,e outra coisa e ficar it merce dos vendavais ou, muito simplesmente,das responsabiJidades implicadas nessas fun~6es realmente absurdas.Nesse ponto, evidentemente, estamos em plena farsa.

E a conclusao dessa farsa apimentada que eu gostaria, no final,de enfatizar.

No meio de todo esse dialogo, 0 chefe de polfcia continua comsua preocupa~ao: - Apareceu alguem que tenha vindo pedir paraser 0 chefe de polfcia? Apareceu alguem que tenha reconhecido suagrandeza? Reconhecendo estar pleiteando uma satisfa~ao diffcil deobter, desanimado pOl' esperar indefinidamente pelo acontecimentoque seria, para ele, a san~ao de seu acesso it ordem das fun~6esrespeitadas, posto que profanadas, 0 chefe de polfcia, agora queconseguiu demonstrar que somente ele e a ordem e 0 piv6 de tudo- 0 que quer dizer que nao disp6e de outra coisa, em ultima instancia,senao da for~a, 0 que nao deixa de tel' significa~ao, na medida emque a descoberta do Ideal do eu pOl' Freud coincidiu mais ou menoscom a inaugura~ao, na Europa, daquele tipo de personagem que ofereceit comunidade polftica uma identifica~ao unica e faci!, ou seja, 0

ditador -, 0 chefe de polfcia, dizia eu, consulta os que 0 cercam aprop6sito da conveniencia de uma especie de uniforme e de umsfmbolo que possa ser 0 de sua fun~ao, nao sem timidez, neste caso.Na verdade, ele choca um pouco os ouvidos de seus ouvintes _prop6e-lhes um falo.

Nao veria a Igreja nenhuma obje~ao nisso? - e ele se inclinapara 0 bispo, que, com efeito, balan~a momentaneamente 0 barrete,demonstra uma certa hesita~ao, mas sugere que, afinal de contas, sefizessem dele a pomba do Espfrito Santo, a coisa seria mais aceitave!.Do mesmo modo, 0 general prop6e que 0 referido signo seja pintadonas cores da bandeira nacional. Algumas outras sugest6es desse tipolevam a crer que logo se chegara ao que e chamado, no caso, uma(;oncordata. £

E entao que eclode 0 lance teatra!' Uma das mo~a~ c~j.a p~pelnao Ihes descrevi, nessa pe~a real mente pululante de slgn:flca~oes,aparece em cena, com a fala ainda entrecortada pel~ emo~ao do, queacaba de Ihe acontecer. E nao e nada menos d? que ISt~: 0 na~Olado,o salvador da prostituta, que havia chegado a condl~ao ~e slmbolorevolucionario, 0 personagem do encanador, pOl"tanto, que e conhecldona casa foi procura-la e Ihe pediu tudo 0 que era preclso para separecer 'com 0 personagem do chefe de polfcia.

Emo~ao gera!. N6 na garganta. Nossas afli~6es acabaram, Tudoesta it mao, incluindo ate mesmo a peruca do chefe de polfcia, Estetern urn sobressalto: - Como e que voces sabiam? E Ihe r~spondem:- S6 mesmo 0 senhor para achar que todos desconhectam que 0

senhor usa peruca. Uma vez vestido 0 personagem - que e rea.lr~lentea figura her6ica do drama - com todos os atnbut~s do polIclal, aprostituta faz 0 gesto de Ihe jogar no rosto, depOls de Ihe haverarrancado, aquilo com que, diz ela pudlcamente, ele nunca malSdeflorara ninguem. Nisso, 0 chefe de polfcia, que estava prestes achegar ao auge da felicidade, faz, no entanto, 0 gesto de venflcar seeJe ainda 0 detem. Ele Ihe resta, com efelto, e sua passagem ao estad.ode sfmbolo, sob a forma do uniforme falico proposto, torna-se a parllrdaf inutil. . . .

A conclusao, de fato, e perfeitamente clara. Esse sUjelto, a,queleque representa 0 desejo simples que ,0 ?om~m A te~ de se un~~', ~emaneira autentica e assumida, a sua propna eXlstencla e a seu pIOpllOpensamento, esse sujeito que esta ali representando 0 homem, 0 homemque lutou para que algo que ate agora chamamos de borde I en~ontrasseuma estabilidade, uma norma, urn estado passfvel de ser acelto co~oplenamente humano, esse sujeito s6 se reintegr~ nele, uma, vez vencldaa prova, sob a condi~ao de se castrar. Ou seja" de fazcl com que 0

falo seja novamente promovido ao estado de slgmflcante, como, aquelealgo que po de dar ou retirar, conferir o~ nao ~~nfenr, aq~llo queentao se confunde, e 0 faz da maneira mals explIcIta, com a Imagemdo criador do significante, do Pai Nosso, do Pai Nosso que estms no

ceu. , . , ..' " ,'A'?Nisso termina a comedla. Sera ela blasfematolla? Sew comlca.

Podemos colocar a enfase a nosso gosto, .Esses termos, que retomarei, irao nos servir de. referenclal ~a

questao essencial do desejo e do gozo, da qual eu qutS dar-Ihes hOjea primeira gota.

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As aporias da via kteinianClo Jato, signijieante do desejoA tea ria da Jase JcilieaA errtiea de Ernest JonesUm passo adiante

a pressuposto mfnimo de nosso trabalho e que voces percebam 0 quetentamos fazer aqui. a que e, em outras palavras, Ieva-Ios sempre aoponto. em que as dificuldades, as contradic;:oes e os impasses que saoo tecldo de sua prarica possam aparecer diante de voces em seuverdadeiro alcance, ainda que voces se esquivem deles, reportando-sea teor'ias parciais ou ate mesmo praticando escamoteac;:oes e desliza-ment~s de sentido nos proprios term os que empregam, os quais saotambem a sede de todos os alibis.

Falamos, da ultima vez, do desejo e do gozo. Hoje eu gostariade avanc;:ar, mostrando-lhes, no proprio texto, 0 que expoe Freud sobreurn ponto teorico precise, ao observar as dificuldades que ele suscitanaqueles que 0 seguem. Em sua tentativa de discernir as coisas maisde perto, a partir, alias, de algumas exigencias preconcebidas, desta-ca-se alguma coisa que vai mais longe no senti do da dificuldade.Talvez possamos, quanta a nos, dar urn terceiro passo.

Trata-se, nomeadamente, da posic;:ao falica na mulher, ou, maisexatamente, do que Freud denomina de fase falica.

Relembro aquilo que enfatizamos e aquilo a que chegamos. Em nossasultimas tres ou quatro sessoes, comec;:amos por articular 0 desejo quee colocado como tal no cerne da mediac;:ao analftica. Concentrando 0

que dissemos, nos 0 formulamos aqui, de maneira conjunta, comouma demanda signifieada:

Af estao dois termos que somam apenas urn. Eu demando, signi-fieo-lhe minha demanda, tal como se costuma dizer Eu lhe signifieouma ordem, eu lhe signifieo uma prisiio. Essa demanda, portanto,implica 0 outro, aquele de quem algo e exigido, mas tambem aquelepara quem essa demanda tern urn senti do, urn Outro que, entre outrasdimensoes, tern a de ser 0 lugar no qual esse significante tern seualcance. a segundo termo, signifieada, no sentido de Eu lhe signifieoalguma eoisa, signifieo-lhe minha vontade, constitui af 0 ponto im-portante no qual pensamos especialmente. Esse termo implica, nosujeito, a ac;:ao estruturante de significantes constitufdos em relac;:ao anecessidade numa alterac;:ao essencial, que se prende a entrada dodesejo na demanda.

Interrompo urn instante para fazer urn parentese.Ate aqui, tanto por uma razao de tempo quanto de economia,

deixamos de lade este ano, apesar de nele virmos falando das forma-c;:oesdo inconsciente, 0 sonho. Voces conhecem a afirmac;:ao de Freuda respeito do sonho - que 0 sonho exprime urn desejo. Mas, afinal,nem sequer comec;:amos a nos perguntar 0 que e esse desejo do sonhode que falamos. Ha mais de urn num sonho. Sao os desejos do diaque dao ao sonho 0 ensejo, 0 material, embora, como todos sabem,o que nos interessa seja 0 desejo inconsciente.

Esse dcsejo inconsciente, por que foi, em suma, que Freud 0

reconheceu no sonho? Em nome de que? De que modo ele e reco-nhecido? Aparentemente, nao ha nada no sonho que correspondaaquilo atraves do qual urn desejo se manifesta gramaticalmente. Naoexiste nenhum texto do sonho, a nao ser 0 que deve ser traduzidonuma articulac;:ao mais profunda, POl"em, no nfvel dessa articulac;:ao,que e mascarada, latente, 0 que distingue, 0 que enfatiza aquilo queo sonho articula? Aparentemente, nada.

* 0 termo utilizado pOl' Lacan, signifiee, particfpio do verba signifier, remete a"expressar"; optamos no entanto pOl' uma tradur,:ao mais literal, evocando 0 vInculocom 0 significante. (N.E.)

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Observem que, no final das contas, 0 que Freud reconhece comodesejo no sonho assinala-se de fato pelo que eu lhes disse, isto e, pelaaltera'rao da necessidade. 0 que, no fundo, e mascarado, posto quearticulado num material que 0 transforma. Isso passa por urn certonumero de modos, de imagens, que estao ali como significantes, 0

que pressup6e, pOltanto, a entrada em jogo de toda uma estrutura.Essa estrutura e, sem duvida, a do sujeito, uma vez que nela deve

operar urn certo numero de instfmcias, mas s6 a reconhecemos atravesdo fato de que 0 que acontece no sonho fica sujeito as modalidadese as transforma<;:oes do significante, as estruturas da metafora e dametonfmia, da condensa'rao e do deslocamento. 0 que fornece a leida expressao do desejo no sonho e justamente a lei do significante.E atraves de uma exegese do que e articulado num sonho particularque detectamos alguma coisa que e 0 que, afinal de contas? Algumacoisa que supomos querer fazer-se reconhecer, que participa de umaaventura primordial, que esta inscrita ali e que se articula, e quesempre relacionamos com algo de originario que aconteceu na infanciae foi recalcado. E a isso, afinal, que damos a primazia de sentidonaquilo que se articula no sonho.

Af se apresenta alguma coisa que e absolutamente fundamentalquanto a estrutura'rao do desejo do sujeito. Podemos desde ja articula-la- e a aventura primordial do que se pas sou em torno do desejoinfantil, do desejo essencial, que e 0 desejo do desejo do Outro, ouo desejo de ser desejado. 0 que se inscreve no sujeito ao longo dessaaventura fica permanente ali, subjacente. E isso que da a ultima palavrado que nos interessa no sonho. Urn desejo inconsciente exprime-seatraves da mascara do que, ocasionalmente, tera dado ao sonho seumaterial. Ele nos e significado atraves das condi'r6es sempre particu-lares que sac impostas ao desejo pela lei do significante.

Estou tentando aqui ensina-los a substitufrem a mecanica, aeconomia das gratifica'r6es, dos cuidados, das fixa'roes, das agress6es- que fica mais ou menos confusa na teoria, por ser sempre parcial -pela nO'rao fundamental da dependencia primordial do sujeito emrela'rao ao desejo do Outro. 0 que se estrutura do sujeito passa semprepela intermedia'rao do mecanisme que faz com que seu desejo ja seja,como tal, moldado pel as condi'r6es da demanda. Eis 0 que vai sendoinscrito, conforme a hist6ria do sujeito, em sua estrutura: sac asperipecias, os avatares da constitui'rao desse desejo, na medida emque ele esta submetido a lei do desejo do Outro. E isso que faz domais profundo desejo do sujeito, daquele que permanece suspenso no

inconsciente, a soma, a integral, dirfamos, desse D maiusculo que e

o desejo do Outro. _ A hSomente isso po de dar sentido a uma evolu'rao que _voce~ con e-

cern da psicanalise, que depositou tanta enfase na relaC;;aoprn~o~dlalcom a mae, que acabou eludindo, ou. p.arecendo eludir, toda a dJaletlcaposterior ate mesmo a dialetica edlpJana. .

Esse'movimento, ao mesmo tempo, tern u~ sent~do ~orreto e 0

formula lateralmente. 0 importante, com efelto, nao e apenas afrustrac;;ao como tal, ou seja, urn mais ou urn m.enos de real que ten.haou nao tenha side dado ao sujeito, mas e aqu,llo pelo. qual 0 _suJeltoalmejou e identificou 0 desejo do Outro que e 0 deseJo da mae. E.oimportante e faze-Io reconhecer, em relaC;;ao ao que e u~ X de deseJo

-e de que modo ele foi levado a se tornar ou nao aquele quena ma , . datende a esse desejo, a se tornar ou nao 0 ser desep o. .

Isso e essencial. Ao negligencia-Io, embora se aproxlmando dISSO,ao penetrar 0 mais de perto possfvel naqu!lo que acontece co~ acrianc;;a Melanie Klein descobriu muitas COlsas. Mas, ao formula-Iosimple;mente no confronto da crianc;;a com 0 personagem. mat~rno,ela desembocou numa relac;;ao especular, em espelho: Em vlsta.dls~o,o corpo - e ja e mesmo impressionante que 0 corpo flq.U~em pnmelroplano _ 0 corpo materno tornou-se 0 recinto, 0 hab~taculo d~ tudoo que nele se pode localizar, por projec;;ao, das pu~soes da cnanc;;a,sendo essas mesmas puls6es motivadas pela agressao decorr~nt~ .deuma decepc;;ao fundamental. No fim das .co~ta~, n~d.a nessa dIaletlcapode tirar-nos de urn mecanismo de proJeC;;ao I1usona, de uma co~s-truc;;ao do mundo a partir de uma especie de autogen~se ,de fantasias

.. 'd·· A genese do exterior como lugar do runn e puramentepllmOl lalS. . , ·d d 'aartificial, e submete todo 0 acesso postenor a reah a e a uma puldialetica fantasiosa. .. .. ,.

Para completar a dialetica kleiniana, e preciso 1I1_troduzlra ldelade que 0 exterior, para 0 sujeito, e inici~lme~te dado nao com~ algumacoisa que se projeta a partir de seu mt~nor, de suas pulsoes, .n:as

como a sede, 0 lugar on de se situa 0 deseJo do Outro, e onde 0 SUJeltotern que ir encontra-Io. _

Essa e a unica via pela qual podemos encontrar a soluc;;ao paraas aporias geradas por esse caminho kleiniano, que se mostrousumamente fecundo sob muitos aspectos, mas que leva a fa~er ~sva~-cer-se a eludir completamente ou a reconstrUlr - de mane~ra .I~~h-cita q'uando ela mesma nao se apercebe disso, mas de ma~elra I.hclta,por~ue nao esc1arecida em suas causas - a dialetica pnmor~lal ~odesejo tal como Freud a descobriu, e que comporta uma lelac;;ao

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terceira, a qual faz intervir, para alem da mae, ou mesmo atraves dela,a presen~a do personagem desejado ou rival, mas sempre terceiro,que e 0 pai.

E af que se justifica 0 esquema que lhes apresentei, dizendo-lhesque primeiro era preciso estabelecer a trfade simbolica fundamental,isto e, a mae, a crian~a e 0 pai.

A ausencia da mae ou sua presen~a oferecern a crian~a - colocadaaqui como termo simbolico, nao se trata do sujeito -, pela simplesintrodu~ao da dimensao simbolica, a possibilidade de ela ser ou naouma crian~a demandada.

o terceiro termo e essencial, por ser ele que permite tudo isso,ou que 0 profbe. Ele se coloca para alem da ausencia ou presen~a damae, como sentido, presen~a significante, 0 que the permite ou naomanifestar-se. E em rela~ao a isso que, a partir do momenta em quea ordem significante entra em jogo, 0 sujeito tern de se situar.

o sujeito estende-lhe sua vida concreta e real, que comporta desdelogo desejos no sentido imaginario, no sentido da captura, no sentidode que as imagens 0 fascinam, no senti do de que, em rela~ao a essasimagens, ele se sente como eu, como centro, como mestre/senhor oucomo dominado.

Na rela~ao imaginaria, como voces sabem, a imagem de si, docorpo, desempenha no homem urn papel primordial, e acaba domi-nando tudo. A eletividade dessa imagem no homem esta profunda-mente ligada ao fato de que ele esta aberto a dialetica do significanteda qual falamos. A redu~ao das imagens cativantes a imagem centralda imagem do corpo nao deixa de estar ligada a rela~ao fundamentaldo sujeito com a trfade significante. Essa rela~ao com a trfadesignificante introduz 0 termo terceiro atraves do qual 0 sujeito, alemde sua rela~ao dual, de sua rela~ao de cativa~ao com a imagem, pede,por assim dizer, para ser significado. E e por essa razao que ha trespolos no plano do imaginario.

Na constitui~ao mfnima do campo simb6lico alem do eu e deminha imagem, pelo fato de eu ter de entrar nas condi<;5es dosignificante, alguma coisa deve assinalar que meu desejo tern de sersignificado, ja que passa necessariamente por uma demanda que eudevo significar no plano simb6lico. Em outras palavras, e exigido urnsfmbolo geral da margem que sempre me separa de meu desejo, eque faz com que meu desejo seja sempre marcado pela altera~ao queele sofre em decorrencia da entrada no significante. Ha urn sfmbologeral dessa margem, dessa falta fundamental necessaria para introduzirmeu desejo no significante, para fazer dele 0 desejo com que lido na

dialetica analftica. Esse sfmbolo e aquilo mediante 0 qual 0 si~nificadoe designado com.o sendo sempre significado, alterado, ou ate mesmosignificado lateralmente.

E isso que constatamos no esquem.a que ,lhes forn.e<;o.,Essetriangulo esta, no sujeito, no nfvel do Imagmano. AqUi ~sta suaimagem, i. Aqui, 0 ponto onde se constitui 0 eu, m. E aqUl, 0 quelhes designo com a letra <p,ou seja, 0 falo.. _ ..

A fun<;aoconstitutiva do falo, na dialetica da mtrodu<;~~do SUJ:ltoem sua existencia pura e simples e em sua posi~ao sexual, e Imposslvelde deduzir, se nao fizermos dele 0 significante fundamental pelo ~ualo desejo do sujeito tern que se fazer reconhecer como tal, quel setrate do homem, quer se trate da mulher. . .

o fato e que 0 desejo, seja ele qual for, tern no sUJelto essareferencia falica. E 0 desejo do sujeito, sem duvida, mas, na med~d.aem que 0 pr6prio sujeito recebeu sua signi~ica~ao, ele,tem qU,eextlalrseu poder de sujeito de urn sig~o, e esse slgno,.,ele so ..0 obtem ao semutilar de alguma coisa por CUjafa!ta tudo sela valo~~za~o. , .

Isso nao e uma coisa deduzida. E dado pela expenencla anahtlca.E 0 essencial da descoberta de Freud. .. d'

E isso que faz com que Freud, ao escrever, em 1931, ~b~r L:weibliche Sexualitiit, formule uma afirma~ao que e, sem duvlda,. aprimeira vista, problematica, insuficiente, a ser elaborada, e que s~s~ltainicialmente as respostas de todos os psicanalistas. do se.:o femlnJ.no,Helene Deutsch, Karen Horney, Melanie Klein, Josme Muller ~ mUlt~soutras, e depois, resumindo tudo isso, e articulando-o de m~nelra_malsou menos compatfvel com a articula<;ao de Freud, a mte[ven~ao deErnest Jones.

E 0 que iremos examinar hoje.

Tomemos a questao no ponto em que ela e mais paradoxa!. , .o paradoxa se apresenta, prim~iro, no plano de um.a.especle de

observa~ao natural. E como naturahsta que Freud nos dlZ. =- 0 queme mostra minha experiencia e que tambem na mulher, e nao apenasno homem, oJala esta no centro. .'

De conformidade com a formula geral que tentel ?a~-l.hes hapouco, ele nos mostrou que a introdu~ao do sujeito na dlal.etl:a quelhe permitira assumir urn lugar e uma posi~ao na transmlssao dos

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tipos huma~os, que Ihe permitira, pOl' sua vez, tornar-se pai, nadadlsso s~ reahza sem 0 que chamei ha pouco de mutilar;:ao fundamentalgra~as a qual 0 falo se torna 0 significante do poder, 0 cetro, e tambemaquIlo grar;:as ao qual a virilidade podera ser assumida. Ate af,entendemos Freud. Mas ele vai mais longe, e nos mostra como essem~smo falo se produz no centro da dialetica feminina. Aqui, algumaCOlsa parece escancarar-se, boquiaberta.

Ate ~sse mo~ento, era em termos de luta, de rivalidade biol6gica,que hav~amos .sldo capazes, a rigor, de compreender 0 acesso dohomem a quah,dade de homem, atraves do complexo de castrar;:ao.Na ~ulher, pore~,.e~sa afirmar;:ao certamente comporta urn paradoxo,e. Fleud 0 traz, mlclalme.nte, como urn dado da observar;:ao pura esImples, que se apresentana, pOitanto - como tudo 0 que e observado-, c,omo fazendo parte da natureza, como natural.

E assim mes~o, com. efeito, que ele parece expor-nos a questao,quando nos enunCIa - dlgamos as coisas tal como estao escritas _q~e t~nto a m~nina quanto 0 menino desejam, inicialmente, a mae.So e~lste uma umca maneira de desejar. A menina se sup6e, a princfpio,provlda de urn falo, como tambem acredita que sua mae seja providade urn falo.

o que isso quer ~diz~r e que a evolur;:ao natural das puls6es fazc.om que, de transferencla em transferencia, atraves das fases instin-tlvas, desde a forma do seio e por intermedio de urn certo numero deoutras f~rmas, c~ega-se a fantasia falica mediante a qual, no final dasco_ntas; e na poslr;:ao masculina que a filha se apresenta em relar;:ao amae. E preCISO, por conseguinte, que intervenha alguma coisa, maiscon:p~exa no caso dela que no do menino, para que ela reconher;:a suaposlr;:ao femm.ma. Na articular;:ao de Freud, nao apenas 0 reconheci-mento da poslr;:ao feminina nao e, a princIpio, sustentado por coisaalgum~, ~omo tam.be~. se sup6e que ele falte desde 0 comer;:o._ .Nao.e n~da mSlgmflcante 0 paradoxo de nos propor uma afirmar;:ao

t~o m~el sa a natureza, a qual poderia, ao contrario, sugerir-nos umaslm~tfla em relar;:ao a posir;:ao do menino, distinguindo na menina avagma, ~u ate, como disse alguem, a boca vaginal. Dispomos deob~ervar;:oes que ate vao, diria eu, de encontro aos dados freudianosEXlstem experiencias vividas primitivas, cujo vestigio primordiaipod~mos :ncontrar no sujeito jovem, que mostram que, contrariandoa afl~'~ar;:ao de un: ?esconhecimento primitivo, alguma coisa pode sermoblhzada no sUJel:o, ao menos por via indireta, ao que parece, nomomento da operar;:ao de amamentar;:ao. A menininha ainda no peitomostra uma certa emor;:ao, sem duvida vaga, mas que de modo algum

e injustifica,do relacionar com uma emor;:ao corporal profunda, decertodiffcil de localizar atraves das lembranr;:as, mas que permitiria, emsuma, estabelecer a equar;:ao, por uma serie de transmiss6es, entre aboca da amamentar;:ao e a boca vaginal, bem como, por outro lado,no estado desenvolvido da feminilidade, com a funr;:ao de 6rgaoabsorvente ou ate sugador.

Ha nisso alguma coisa de identificavel na experiencia, e quefornece a continuidade mediante a qual, se a questao fosse apenasuma migrar;:ao da pulsao er6tica, verfamos tr~r;:ada a via real daevolur;:ao da feminilidade no nfvel biol6gico. E disso mesmo queJones, com efeito, faz-se 0 defensor e 0 te6rico, quando consideraque e impossfvel, pOl' toda sorte de raz6es de princIpio, admitir quea evolur;:ao da sexualidade na mulher esteja fadada a esse desvio e aesse artificialismo.

Jones prop6e-nos, assim, uma teoria que se op6e ponto a pontoao que Freud, pOl' seu turno, nos articula como urn dado da observar;:ao- a fase falica da menina repousa, segundo Jones, numa pulsao cujosapoios naturais ele nos demonstra em dois elementos. 0 primeiro,admitimos, e a bissexualidade biol6gica primordial, mas esse e urnponto, convem reconhecer, puramente te6rico, muito distante de nossoacesso, como podemos muito bem concordar com ele em afirmar.Mas ha uma outra coisa - a presenr;:a de urn esbor;:o do 6rgao falico.Com efeito, 0 6rgao clitoridiano dos primeiros prazeres ligados amasturbar;:ao po de fornecer 0 comer;:o da fantasia falica que desem-penha 0 papel decisivo do qual nos fala Freud. E e justamente issoque ele sublinha: a fase falica e uma fase falica clitoridiana, 0 penisfantasfstico e urn exagero do pequeno penis que esta efetivamentepresente na anatomia feminina.

E na decepr;:ao que Freud ve a mol a da entrada da menina emsua posir;:ao feminina. A safda de sua fase falica e gerada pOl' essadecepr;:ao, urn desvio que a seus olhos se fundamenta, no entanto,num mecanisme natural, e e nesse momento, diz ele, que 0 complexode Edipo desempenha 0 papel normative que tern de desempenhar,mas 0 desempenha, na menina, inversamente ao que acontece nomenino. 0 complexo de Edipo Ihe da acesso ao penis que the falta,pOI' intermedio da apreensao do penis do varao, quer ela 0 descubraem algum companheiro, quer 0 situe, ou 0 descubra igualmente, nopai.

E pOl' intermedio do desapontamento, da desilusao em relar;:ao aessa fase fantasfstica da fase falica, que a menina e introduzida nocomplexo de Edipo, como 0 teorizou uma das primeiras analistas a

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o VALOR DE SIGNIFICA<;Ao DO FALO

seguirem Freud nesse campo, a sra. Lampl de Groot EI . Icom mu't . t· . a 0 assma ou. I a JUS eza: a menll1a entra no complexo de Edipo I fmversa do compl A . pe a ase. . . 1 exo. menma apresenta-se no complexo de EdipoII1IClame_nte, em sua rela<;ao com a mae, e e 0 fracasso dessa rela<;a~com a mae que Ihe descortina a rela<;ao com 0 pai com 0 d .sera normatizado pela equivalencia entre 0 penl:S que qeluae. epo~sposs·' flh ' JamalsUlIa, e 0 I 0 que ela de fato podera tel' e que podera daseu lugar. ' I' em

~bservem que aqui se encontra urn certo numero de referenciais~~e t~sden~mel. 0 Penisn~id, r.evela-se, aqui, a articula<;ao essencial

en I.a a a mulher na ?Ialetlca edipiana, assim como a castra aoencontla-se no cerne da dlaletica no homem Sem duvida a 't'<;que Ihes YOU l' I " s cn Icas

. ormu ar, como as que foram feitas pOl' Jones iraoquestlOnar ess~ concep<;~o, a qual, e claro, vista de fora, uando secome<;a a aboldar a teona analftica, parece apresentar-se c~moconstru<;ao artificial. uma

Detenhamo-nos pOl' um . .a b' .. , momento, pnmelro, para assinalar ate: IgUldade co~ que. ~ termo Penisn.eid e empregado nos diversos

pos da evolu<;ao edlplana na menina, como alias aponta a discussaod~ ~ones. 0 Penisneid apresenta-se, com efeito, sob tres modalidadesdl.stmtas, de~de a entrada ate a safda do complexo de Edipo, tal comoFleud ?S artlculou em torno da fase falica.

EXlste 0 Penisneid no senti do da fantasia. E 0 anseio 0 d .guardado F?r m.uito tempo, as vezes conservado pOl' toda ~ vid:se~oque 0 chtons seJa um ~. F' d' " ' ef' peniS. leu mSlste no carateI' irredutfvel des saantas~a quando ela se mantem no primeiro plano.

Ha urn outJ:o sen,tido, ~u.ando 0 Penisneid intervem no momentoem que 0 deseJado e 0 pel1lS do pai. Esse e 0 momento em ue 0

sUJelto se apega a realidade do penis la onde ele esta e VA qd' .buscar-lhe M '. . ' e aon e II

. . a posse. as ele e fmstrado I1ISS0 tanto pela roibi aoedlplan.a ,q~anto em ra~~o da impossibilidade fisiol6gica. p <;. POI Ult.I~O, n~ sequencIa da evolu<;ao surge a fantasia de tel' urn

fIlho do pal, IStO e, de possuir aquele penis sob uma forma simb61"l~embrem-~e ag.or~ do.que, a prop6sito do complexo de castJ'a~~~'

eu es ensmel a dlstmgUlr - castra<;ao frustrarao e p . _ 'se perg t 1 A ' ~ nva<;ao - e

A un em qua dessas tres formas cOiTesponde a cada dtres termos. um esses

E Uma frustra<;ao e imaginaria, mas se refere a um objeto bem real.111sfso que ~ fato de a menma nao receber 0 penis do pai constitui

uma rustra<;ao.

Vma priva<;ao e absolutamente real, embora se refira a urn objetosimb6lico. Na ~erdade, quando a menina nao tern urn filho do pai, aquestao nunca seria, afinal, que ela 0 tivesse. Ela e incapaz de te-Io.o filho, alias, s6 existe af como urn sfmbolo, e sfmbolo, precisamente,daquilo em que ela e realmente frustrada. E a tftulo de priva<;ao,portanto, que 0 desejo de urn filho do pai intervem num momento daevolu<;ao.

Resta, pois, 0 que cOiTesponde a castra<;ao, a qual amputa sim-bolicamente do sujeito alguma coisa imaginaria. Que se trate, no caso,de uma fantasia, corresponde bem a isso.

Haja 0 que houver com sua concep<;ao, Freud esta no caminhocerto quando nos detalha a posi<;ao da menina em rela<;ao a seu clit6ris- num dado momento, ela tern do renunciar aquilo que conservavapelo menos a tftulo de esperan<;a, ou seja, renunciar a que, cedo outarde, ele se torne uma coisa tao importante quanto urn penis. Eexatamente nesse nfvel que se encontra 0 correspondente estruturalda castra<;ao, se voces se lembrarem do que julguei dever articularquando lhes falei da castra<;ao no ponto eletivo em que ela se manifesta,isto e, no menino.

Podemos discutir a questao de saber se, efetivamente, tudo namenina gira em tomo da pulsao clitoridiana. Podemos sondar osdesvios da aventura edipiana, sondar como a coisa se processa, comovoces verao agora atraves da crftica de Jones. Mas nao podemos deixarde assinalar, primeiramente, 0 rigor, na perspectiva estrutural, doponto que Freud nos designa como sendo correspondente a castra<;ao.E justamente no nfvel da rela<;ao fantasfstica - na medida, e claro,em que ela assume um valor significante - que deveria encontrar-seo ponto simetrico.

Trata-se, agora, de entender como isso acontece. Nao e pOl' serutilizado que esse ponto nos fornece a chave da questao. Este pontoa fornece em Freud, aparentemente, na medida em que este da aimpressao de nos mostrar aqui uma hist6ria de anomalia pulsional, ee isso mesmo que vai revoltar, que leva a se insurgir urn certo numerode sujeitos, precisamente a tftulo de preconcep<;6es biol6gicas. Masvoces verao 0 que, na pr6pria articula<;ao de suas obje<;6es, eles acabamdizendo. Eles san obrigados pela natureza das coisas a articular umcerto mimero de tra<;os, que nos permitirao, justamente, dar 0 passoadiante.

Trata-se, na verdade, de ir alem da teoria da pulsao natural everque 0 falo intervem, efetivamente, da maneira que Ihes expus naspremissas da aula de hoje. E isso nao e outra coisa senao 0 que

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acabamos de discernir por outros caminhos, ou seja, que 0 falointervem aqui como significante.

Mas, passemos agora a articula~ao, feita a guisa de resposta, deJones.

As suposi~6es de Jones, como Ihes disse desde logo, saD essen-cialmente dirigrdas para 0 que ele articula com clareza no fim doartigo: sera a mulher urn ser born, isto e, nascido como tal, com?mulher, ou sera que e ela urn ser made, fabricado como mulher? Eai que Jones situa sua interroga~ao, e e isso que 0 faz insurgir-secontra a posi~ao freudiana. E em dire~ao a essa alternativa que avan~aseu encaminhamento. Sem duvida, seu trabalho brotou de uma especiede resumo dos fatos oriundos da experiencia concreta com a crian~a,que ou permitem questionar ou, vez pOl' outra, confirmar, mas, emtodos os casos, corrigir a concep~ao freudiana - mas 0 que animatoda a sua demonstra~ao e 0 que ele coloca no final como umapergunta: sim au nao? De fato, essa escolha realmente nao e possivel,a seu ver, posta que uma das respostas e absolutamente redibit6ria- na perspectiva dele, nao se pode sustentar uma posi~ao que implicaque metade da humanidade e composta de seres made, isto e, fabricadosno desfile edipiano.

Jones nao parece notar, a prop6sito disso, que 0 desfile edipianofabrica tambem, se for 0 caso, homens. Nao obstante, 0 fato de asmulheres entrarem nisso com uma bagagem que nao Ihes pertenceparece-Ihe constituir uma diferen~a suficiente em rela~ao ao meninopara que ele a reivindique.

Essa reivindica~ao, em sua substancia, consiste em dizer: e verdadeque observamos na menina, num certo momenta de sua evolu~ao, acoloca~ao do falo em primeiro plano, bem como uma exigencia, urndesejo que se manifesta sob a forma ambigua, e muito problem:iticapara n6s, do Penisneid. Mas, que vem a ser isto? Vejam no queconsiste tudo 0 que Jones nos explica: ele e uma forma~ao defensiva,e urn desvio comparavel a uma fobia, e a safda da fase falica deveser concebida como a cura de uma fobia, que seria, em sintese, umafobia muito genericamente difundida, uma fobia normal, porem damesma ordem e com 0 mesmo mecanismo da fobia.

Uma vez que, em suma, como voces estao vendo, eu opto porsaltar para 0 cerne da demonstra~ao de Jones, convem dizer que hanela algo que de fato e extraordinariamente propfcio a nossa reflexao,considerando que talvez ainda estejam lembrados da maneira comotentei articular-Ihes a fun~ao da fobia. Se e assim mesmo, como dizJones, que a rela~ao da menina com 0 falo deve ser concebida, decertoestamos nos aproximando da concep~ao que lhes forne~o quando lhesdigo que e a titulo de elemento significante privilegiado que 0 falointervem na rela~ao edipiana da menina.

Ha tres artigos de Jones sobre esse assunto. Urn, escrito em ] 935,intitula-se "Early Female Sexuality", e e desse que falaremos hoje.Ele fora precedido pelo artigo sobre "The Phallic Phase", apresentadono Congresso de Wiesbaden tres anos antes, em setembro de 1932,e, finalmente, pOl' "Early Development of Female Sexuality", comu-nicado ao Congresso de Innsbruck em setembro de 1927, ao qualFreud aludiu em seu artigo de 1931, no qual refutou em algumaslinhas, muito desdenhosamente, devo dizer, as posi~6es assumidaspor Jones, 0 qual respondeu em "The Phallic Phase" , articulando suaposi~ao, em suma, contraria a Freud, ao mesmo tempo em que seesfor~ou por ficar 0 mais perto possivel da letra dele.

o terceiro artigo sobre 0 qual yOU apoiar-me hoje e extremamentesignificativo do que queremos demonstrar. E tambem 0 ponto maisavan~ado da articula~ao de Jones. Situa-se quatro anos depois doartigo de Freud sobre a sexualidade feminina. Foi proferido a pedidode Federn, que, na epoca, era vice-presidente da sociedade vienense.Foi a Viena que ele foi levado para propor ao cfrculo vienense 0 queJones havia formulado, muito simplesmente, como sendo 0 ponto devista dos londrinos, 0 qual desde logo mostrava centrar-se na expe-riencia kleiniana.

A maneira dos londrinos, Jones faz oposi~6es bem definidas, comas quais sua exposi~ao ganha em pureza e clareza e da urn born suportea discussao. Ha urn grande interesse em nos determos num certonumero de suas observa~6es, reportando-nos 0 maximo possivel aotexto.

Jones assinala, primeiramente, que a experiencia nos mostra serdiffcil, ao nos aproximarmos da crian~a, captar a pretensa posi~aomasculina que seria a da menina em rela~ao a mae, por ocasiao dafase falica. Quanto mais remontamos a origem, mais nos vemosconfrontados com alguma coisa que e critica ali. Pe~o desculpas se,ao seguir esse texto, virmo-nos diante de posi~6es as vezes meiolaterais em rela~ao a linha que Ihes desenho aqui, mas elas merecemser destacadas pelo que revelam.

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Sera que isso quer dizer que assim nos aliaremos a posic;:ao deJones? Certamente nao. Se voces estiverem lembrados da diferenc;:aque estabeleci entre fobia e fetiche, diremos que 0 falo desempenhaaqui muito mais 0 papel de fetiche que 0 de objeto f6bico. Voltaremosa isso posteriormente.

Retornemos a entrada de Jones em sua articulac;:ao crftica edigamos a partir de onde essa fobia vem a se constituir. Essa fobiae, para ele, uma construc;:ao defensiva contra 0 perigo gerado pelaspuls6es primitivas da crianc;:a, tanto menina quanto menino. Aqui,pOl'em, trata-se da menina, e ele observa que a relac;:ao origim'iria delacom a mae - foi nisso que me detive ha pouco, quando lhes disseque irfamos encontrar coisas absolutamente singulares _ atesta umaposic;:ao feminina primitiva. Jones diz que ela esta longe de se portarcom a mae como urn homem em relac;:ao a uma mulher. Her mothershe regards not as a man regards a woman, as a creature whosewishes to receive something it is a pleasure to fulfill.' A acreditarmosnisso, 0 homem considera a mulher como uma criatura a cujos desejosde receber alguma coisa e urn prazer ter acesso, e urn prazer realiza-Ios.

Deve-se reconhecer que e no mfnimo paradoxal expor, no nfvelem que estamos, uma posic;:ao tao elaborada das relac;:6es entre 0

homem e a mulher. E certo que, quando Freud fala da posic;:aomasculina da menina, ele nao menciona de maneira alguma 0 efeitomais acabado da civilizac;:ao, se e que este e realmente atingido,segundo 0 qual 0 homem existiria para realizar todos os desejos damulher. Mas, na pena de aIguem que progride nesse campo compretens6es tao naturalistas no comec;:o, nao podemos deixar de destacaresse trac;:o como atestando, eu diria, uma das dificuldades do terreno,que nao deve ser pequena, para que ele venha a tropec;:ar a tal pontoem sua demonstrac;:ao, e, ainda por cima, logo no comec;:o. Pelo menosele nao confunde, mas antes contrasta bem a posic;:ao do homem emrelac;:ao a mulher e a da crianc;:a em relac;:ao a mae.

Em seguida ele nos traz, na esteira de Melanie Klein, a tigela deleite da mae, que a crianc;:a considera - traduzo Jones _ como aperson who had been successful in filling herself with just the thingsthe child wants so badly." Esse successful tern toda a sua importancia,

, " A mae, ela nao ve do modo como urn homem ve uma mulher, como uma criaturaa cujos desejos de receber algo e urn prazer atender." (N.E.)

'* "Uma pessoa que obteve sucesso em se cumular justamente das coisas que acrian~a deseja com grande ardor". (N .E.)

porque implica, embora Jones nao perce.ba isso, q~e.' calcando ~scoisas no textofdo que encontramos na cnanc;:a, 0 SUJ?ItO~ate:~o e,de fato, urn ser desejante. A pessoa que tern sucesso e a .mae, Ja q~eteve a felicidade de lograr encher-se das coisas que a cn~nc;:a ~e~eJaviolentamente,* ou seja, com 0 material rejubilante das cOlsas soltdase Ifquidas. . .. .

S6 temos acesso a experiencia pnmitIva da cnanc;:a com umaluneta, e claro, mas Melanie Klein aproximou-se dela 0 maxim.opossfvel, analisando crianc;:as de tres e quatro anos, e nos fez de~c~bn~uma relac;:ao com 0 objeto que se estrutura sob a forma que qual~fIqueide imperio do corpo materno. Nao se pode desc?nhe~er qu~ 0 sImplesfato de nos mostrar isso ja constitui uma contnbUlc;:ao emmente.

Voces 0 constatam a prop6sito do que ela chamou, em suascontribuic;:6es, de Edipo ultraprecoce da crianc;:a. Os d~sen~os destamostram-nos que 0 imperio materna comporta em seu mtenor 0 quechamei numa referencia a hist6ria chinesa, de reinos combatentes -a crian~a e capaz de desenhar no interior dess~ c~mpo aquilo que elaidentifica como significantes: os irmaos, as Irmas, os excrementos.Tudo isso coabita no corpo materno, tudo ja esta em seu interior, umavez que ela tambem distingue ali 0 que a dialetica do tratamentopermite articular como sendo 0 falo pat~rno. Este se ac~aria des~esempre presente, como urn elemento particularmente nOCIVOe partl-cularmente rival em relac;:ao as exigencias da crianc;:a no que concernea posse do conteudo do corpo materno.

E muito diffcil nao vermos que esses dados acusam e aprofundamo carater problematico de relac;:6es que nos sac apresentadas comosupostamente naturais, ao passe que as vemos desde lo~o e.strut~radaspelo que chamei, da ultima vez, de toda u~a ,b~tena sIgnI~Icante,articulada de tal modo que nenhuma relac;:ao bIOlogica natural e capazde explicar suas causas.

Assim, e ja no nlvel dessa experiencia primitiva que se !az. aentrada em cena do falo na dialetica da crianc;:a. Embora essa referenclanos seja apresentada por Melanie Klein como lida no que a crian~aoferece, nem por isso 0 fato deixa de ser estarrecedor. A mtroduc;:aodo penis como sendo urn seio mais acessfvel, mais como do e, de certo

, Lacan usa 0 adverbio vachement, extrafdo da linguagem mais coloquial e formadoa partir do substantive vache (vaca), com isso fazendo urn jogo de palavras que seperde em portugues. (N.E.)

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modo, mais perfeito, eis 0 que caberia admitir como urn dado daexperiencia.

Naturalmente, dado isso, a coisa e valida. Mas nem pOl' isso eevidente, em absoluto. a que pode fazer do penis uma coisa maisacessivel, mais comoda, mais gozosa do que 0 seio primordial? Eisa pergunta sobre 0 que significa esse penis e, pOitanto, essa introdu~aoprecoce da crian~a numa dialetica significante. Alias, toda a seqUenciada demonstra~ao de Jones so faz formular essa pergunta de maneiracada vez mais premente.

Como exigem suas premissas, Jones e levado a nos dizer que 0

falo so po de intervir como meio e alibi de uma especie de defesa.Ele presume, portanto, que, original mente, e numa certa apreensaoprimitiva de seu proprio orgao, feminino, que a menina se descobrelibidinal mente interessada, e ele chega a nos explicar pOl' que e precisoque .el.a recalque essa apreensao de sua vagina. A rela~ao da crian~afemmma com seu proprio sexo evoca uma ansiedade maior do que aevocada no menino pela rela~ao com seu sexo, porque, diz Jones, 0

or?ao e mais interno, mais difuso, mais profundamente fonte apro-pnada para seus primeiros movimentos. Dai 0 papel que ira desem-penh aI', pOitanto, 0 clitoris.

Se Jones nao recua, nesse texto, diante de articula~6es relativa-mente ingenuas, e, tenho certeza, para valorizar as necessidades queestao implicadas nisso. a clitoris, diz ele, na medida em que e externo,serve para que 0 sujeito projete nele suas angustias, e torna-se maisfacilmente objeto de tranqUiliza~ao pOl' parte dele, porque 0 sujeitopo de experimental', pOl' suas proprias manipula~6es, ou ate, a rigor,atraves da visao, 0 fato de que 0 orgao continua ali. Na seqUencia desua evolu~ao, sera sempre para objetos mais externos, ou seja, parasua aparencia, suas roupas, que a mulher transpora 0 que Jones chamade sua necessidade de reafirma~ao, 0 que tambem Ihe permitiramoderar a angustia, deslocando-a para urn objeto que nao e seu pontode origem. Dai resulta que essa origem, precisamente, permaneceespecialmente desconhecida.

Como voces estao vendo, encontramos ai, mais uma vez, aexigencia implfcita de que seja como exteriorizavel, como repre-sentavel, que 0 falo venha para 0 primeiro plano, a titulo de termo-limite no qual se detem a ansiedade. Essa e a dialetica de Jones.Veremos se ela e suficiente.

. Essa dialetica 0 leva a apresentar a fase falica como uma posi~aofalIca que permite a crian~a afastar a angustia, concentrando-a em

alguma coisa acessivel, enquanto seus proprios desejos, orai~ ousadicos, tran,spostos para 0 interior do corpo materno, logo suscltamtemores de retalia~ao e Ihe aparecem como urn perigo capaz de amea?ara ela mesma, no interior de seu proprio corpo. Tal e a genese fornecldapor Jones sobre a posi~ao falica como fobia. . .

Seguramente, e como orgao fantasiado, mas acessivel, extenon-zado, que 0 falo entra em jogo e, poster~ormen~e, tOl:n.a-se capaz .~evoltar a desaparecer de cena. as temores hgados a hos~lhdade pod~laoser moderados ao serem transpostos para outros obJetos que nao amae. A erotogenia e a ansiedade Iigadas aos orgaos profundos pod,e~aodeslocar-se atraves do processo de urn certo numero de exercl~lOsmasturbatorios. No fim das contas, diz Jones, a rela~ao com 0 obJetofeminino tornar-se-a menos parcial, podera deslocar-se para outrosobjetos, e a angustia original, em si~tes~ inomi~a~el, ligada ao ~rgaofeminino, que cOiTesponde na memna as angustlas de castra~ao nomenino, podera depois variaI', transformando-se no medo. de s~rabandonada que, no dizer de Jones, e caracteristico da pSlcologlafeminina.

Ai esta, pOl"tanto, 0 problema'diante do qual nos encontramos, evejam como Freud tenciona resolve-lo. Sua posi~ao e a de urnobservador, e sua articula~ao apresenta-se, portanto, como uma ob-serva~ao natural. .

A liga~ao com a fase falica e de natureza pulslOnal. A entradana feminilidade produz-se a partir de uma libido que e, pOl' natureza,digamos - para colocar as coisas em seu pont~ exato, sem ac?mpa~h~rJones em sua critica meio caricatural -, atIva. Chega-se a posl~aofeminina na medida em que a decep~ao con segue, mediante uma seriede transforma~6es e equivalencias, fazer brotar do sujeito uma de-manda, dirigida ao personagem paterno, de que the seja dada algumacoisa que realize seu desejo. "

Afinal, 0 pressuposto de Freud, alias plenamente artIculado,. e ~uea exigencia infantil primordial e, como diz ele, ziellos, sem obJetlvo.a que ela exige e tudo, e e em razao do des~pontamento dessaexigencia, alias impossivel de satisfazer, que a cnan~a entra, poucoa pouco, numa posi~ao mais normativa. Temos ai, ,seguramente, umaformula~ao que, pOl' mais problematica que seJa, comporta u~aabertura que nos permitira articular 0 problema nos termos do deseJoe da demanda, que sao aqueles que procUl'o enfatizar.

A isso Jones responde que essa e uma historia natural, umaobserva~ao de naturalista, que nao e tao natural assim - e, de ~i~~aparte, vou torna-La mais naturaL. Ele diz isso formalmente. A hlstona

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da. fobia. falica e Uio-somente urn desvio na passagem de uma posic;;aopnmordlalmente determinada. A mulher e born, nascida, nascida comotal numa posic;;ao que e desde sempre a de uma boca, uma bocaa~sorvente, uma boca sugadora. Ap6s a reduc;;ao de sua fobia, quenao passa de urn simples desvio, ela reencontra sua posic;;ao primitiva.o que voces chamam de pulsao falica e apenas 0 artificialismo deuma fobia contra-descrita, evocada na crianc;;a pOl' sua hostilidade es~a agressao para com a mae. Nao passa de urn pura desvio numcIcIo essencialmente instintivo, e, depois disso, a mulher entra deplen~ direito em sua posic;;ao, que e vaginal.

E essa, em resumo, a concepc;;ao de Ernest Jones.

Para responder a ela, 0 que ten to articular e 0 seguinte.o falo e absolutamente inconcebfvel na dinamica ou na mecanica

kleiniana. Ele s6 e concebfvel se implicado des de logo como sendoo significante da falta, 0 significante da distancia entre a demanda dosujei.to e seu desejo. Para que se chegue a esse desejo, e semprepreclSo fazer uma certa deduc;;ao da entrada necessaria no ciciosignificante. Se a mulher tern de passar pOl' esse significante, pOl' maisparadoxal que ele seja, e pOl'que nao se trata, para ela, de realizaruma posic;;ao feminina primitivamente dada, mas de entrar numadeterminada dialetica de troca. Enquanto 0 homem, 0 varao, e afastadoem ~irtude da eXistenci~ significante de todas as praibic;;6es queconstItuem a relac;;ao do Edipo, ela tern de se inscrever no cicio dastracas da alianc;;a e do parentesco, a tftulo de ela mesma se tornar afurn objeto de traca.

o que estrutura na base a relac;;ao edipiana, como nos demonstraefetiva~ente qualquer analise correta, e que a mulher tern de se propor,ou, mms exatamente, tern de aceitar a si mesma como urn elementodo circuito das tracas. Esse fato e impressionante em si, e infinitamentemais importante, do ponto de vista natural, do que tudo 0 que pudemosobservar ate hoje de anomalias em sua evoluc;;ao instintiva. Deverfa-mos, com efeito, esperar encontrar uma especie de representante deleno nfveJ imaginario, no nfvel do desejo, nas vias desviantes pOl' ondeela mesma tern que entrar.

o fato de, como 0 homem, alias, ela tel' de se inscrever no mundodo significante e pontuado, nela, pOl' esse desejo, que, como signifi-cado, devera permanecer sempre a uma certa distancia, a uma margem,

seja la do que for que possa relacionar-se com uma necessid~denatural. De fato, a introduc;ao nessa dialetica exige que alguma cOlsada relac;ao natural seja amputada, sacrificada, e com que finalidade?Precisamente para que isso se tome 0 pr6prio elemento significanteda intraduc;ao na demanda.

Observaremos urn retorno, que nao direi surpreendente, da ne-cessidade - que acabo de Ihes enunciar com toda a brutalidadeimplicada nessa observac;;ao sociol6gica fundamentada em tudo 0 quesabemos e, mais recentemente, articulada pOl' Levi-Strauss em suasEstruturas elemen.tares do paren.tesco - da necessidade de que metadeda humanidade se tome 0 significante da traca, segundo leis diversas,mais simplesmente estruturadas nas estruturas elementares, surtindoefeitos muito mais sofisticados nas estruturas complexas do parentesco.o que observamos na dialetica da entrada da crianc;a no sistema dosignificante, com efeito, e, de certo modo, 0 avesso da passagem damulher, como objeto significante, para 0 que podemos chamaI' dedialetica social, entre aspas, pois toda a enfase deve ser colocada,aqui, na dependencia do social em relac;ao a estrutura significante ecombinat6ria. Ora, para que a crianc;a entre nessa dialetica socialsignificante, que e que observamos? Muito precisamente, isto: quenao ha nenhum outra desejo do qual ela depend a mais estreitamentee mais diretamente que do desejo da mulher, na medida em que elee significado, exatamente, pOl' aquilo que Ihe falta, 0 falo.

o que lhes mostrei e que tudo 0 que encontramos como obstaculo,acidente, na evoluc;;ao da crianc;a, inclusive 0 mais radical dessesobstaculos e desses acidentes, esta ligado ao fato de que a crianc;;anao se acha sozinha diante da mae, mas que, diante da mae, existe 0

significante de seu desejo, ou seja, 0 falo. Achamo-nos, neste ponto,frente ao que sera 0 objeto de minha exposic;ao na pr6xima vez.

Das duas, uma. Ou a crianc;a entra na dialetica, faz-se objeto nacorrente das tracas e, num dado momento, renuncia a seu pai e a suamae, isto e, aos objetos primitivos de seu desejo, ou entao, ela conservaesses objetos. Ou seja, mantem neles alguma coisa que e muito maisdo que 0 valor deles, pois 0 valor e justamente aquilo que po de sertracado. A partir do momenta em que ela reduz esses objetos a purossignificantes, atendo-se a eles como objetos de seu desejo, e que 0

apego edipiano e conservado, ou seja, a reJac;ao infantil com o~ objetosparentais nao pas sa. E, na medida em que ela nao passa, e estntamentenessa medida, vemos manifestarem-se - digamos, de uma formamuito geral - as invers6es ou pervers6es do desejo que mostram

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que, no interior da rela<;ao imaginaria com os objetos edipianos, naoha normatiza<;ao possfve!.

Por que? Muito precisamente, pOl'que ha sempre como terceiro,ate na rela<;ao mais primitiva, a da crian<;a com a mae, 0 falo comoobjeto do desejo da mae, 0 que instaura uma barreira intransponfvela satisfa<;ao do desejo da crian<;a, 0 qual consiste em ela mesma sero objeto exclusivo do desejo da mae. E e isso que a impele a umaserie de solu<;6es, que serao sempre de redu<;ao ou de identifica<;aodessa trfade. Sendo preciso que a mae seja falica, ou que 0 falo sejacolocado no lugar da mae, teremos 0 fetichismo. Sendo preciso queela realize em si mesma, intimamente, a jun<;ao do falo com a mae,sem a qual nada nela podera satisfazer-se, teremos 0 travestismo. Emsum a, e na medida em que a crian<;a - isto e, 0 ser que entra comnecessidades naturais nessa dialetica - nao renuncia a seu objeto queseu desejo nao con segue satisfazer-se.

o desejo s6 con segue satisfa<;ao sob a condi<;ao de fazer umarenuncia parcial - 0 que e, essencialmente, 0 que articulei no come<;o,ao lhes dizer que ele tern de se tornar demanda, ou seja, desejosignificado, significado pel a existencia e pela interven<;ao do signifi-cante, ou seja, em parte, desejo alienado.

Karen Horney e Helene DeutschComplexo de masculinidade e homossexualidadeo processo da identificar;:ao secunddriaA mae e a mulherA metd/ora do Ideal do eu

Eu gostaria de come<;ar, hoje, por introduzir a guestao das identifi-ca<;6es. Para os que nao estiveram presentes da ultima vez, e tambempara os que estiveram, relembro 0 sentido do que foi dito.

Tentei chamar aten<;ao para as dificuldades instauradas pela ideiada fase falica. Experimentamos, com efeito, uma certa dificuldadepara fazer entrar numa racionalidade biol6gica aguilo que Freuddeduziu da experiencia, ao passo que as coisas logo se esclarecemquando dizemos que 0 falo e tornado numa certa fun<;ao subjetivaque precisa desempenhar urn papel de significante; .

Esse falo como significante nao cai do ceu . E preciso que hajaem sua origem, que e uma origem imaginaria, uma certa propriedadeem exercer sua fun<;ao significante. Nao se trata de uma fun<;aoqualguer - ela e mais especialmente adaptada do que outras paraprender 0 sujeito humano no conjunto do mecanismo significante.

De certo modo, esse e urn significante-encruzilhada. Para eleconverge, mais ou menos, 0 que aconteceu durante a capta<;ao dosujeito humano no sistema significante, visto que e preciso que seudesejo passe por esse sistema para se fazer reconhecer, e que eprofundamente modificado por ele. Esse e urn dado experimental: 0

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falo, nao 0 encontramos a todo instante em nossa experiencia dodrama edipiano, tanto em sua entrada quanta em suas safdas.

Podemos ate dizer, de uma certa maneira problematica, que eleult.rapassa esse drama edipiano, uma vez que tambem nao podemosdeIxar de ficar impressionados com a presen~a do falo, e do faInpaterno, nomeadamente, nas fantasias kleinianas primitivas. E justa-me~te essa pr~sen~a que nos levanta a questao de sabermos em quereglstro cabe msenr essas fantasias kleinianas. No registro propos topela propria Melanie Klein, quando admitiu urn Edipo ultraprecoce?O~ ~evemos, ao contrario, admitir urn funcionamento imaginariopnmltIvo, a ser classificado como pre-edipiano? A pergunta pode serdeixada provisoriamente em suspenso.

Para esclarecer a fun~ao do falo, que esta presente aqui de maneiraabs~lut~~ente geral, justamente pOl' se apresentar como uma fun~aode slgmfIcante, devemos examinar, antes de levarmos nossas formulasao limite final, em que economia significante 0 falo esta implicadoo que significa abordar 0. momento 'que Freud explorou e articulo~com? sendo a safda do Edipo, do qual, apos 0 recalque do desejoediplano, 0 sujeito sai renovado, e provido de que? A resposta e: deurn Ideal do eu,

No Edipo normal, 0 recalque que resulta da safda do Edipo tern comoefeito constituir no sujeito uma identifica~ao que fica, perante este,numa rela~ao ambfgua. Quanto a isso, convem procedermos passo apas so. Vma coisa, pelo menos, destaca-se de maneira unfvoca ouseja, pOl' uma via unica, daquilo que Freud foi 0 primeiro a enun~iar,e_ todos os autores nao podem deixar de postula-Ia como formulamfnima: trata-se de uma identifica~ao distinta da identifica~ao do eu.

En~uanto a estrutura do eu repousa sobre a rela~ao do sujeitocom a Imagem do semelhante, a estrutura do Ideal do eu levanta urnproblema que Ihe e peculiar. De fato, 0 Ideal do eu nao se prop6e _e quase uma obviedade dize-Io - como urn eu ideal. Sublinhei muitasvezes que esses dois termos sao distintos em Freud, inclusive noproprio artigo sobre 0 narcisismo, Zur Einfiihrung des Narzissmus,mas convem examina-Ios com uma lupa, pois a diferen~a e muitodiffcil de distinguir no texto, a ponto de haver quem os confunda.Primeiro, nao e verdade, e mesmo que fosse, que devamos aperce-ber-nos pOl' conven~ao de que nao ha nenhuma sinonfmia entre 0 que

e atribufdo a fun~ao do Ideal do eu nos textos de Freud, comoinspirados na experiencia c1fnica, e 0 sentido que podemos dar aimagem do eu', por mais exaltada que a suponhamos, ao fazermosdela uma imagem ideal com a qual 0 sujeito se identifica, modelobem-sucedido, pOl' assim dizer, dele mesmo, com 0 qual ele seconfunde e no qual se as segura de sua inteireza.

Por exemplo, podemos colocar aquilo que fica amea~ado quandofazemos alusao aos medos dos ataques narcfsicos ao proprio corpo,que e atingido quando falamos da necessidade de reafirma~ao narcf-sica, no registro do eu ideal. Quanto ao Ideal do eu, ele intervem emfun~6es que, muitas vezes, sao depressivas ou ate agressivas emrela~ao ao sujeito. Freud 0 faz intervir em diversas formas de depres-sao. No fim do capitulo VII da Massenpsychologie, que se intitulaDie Identifizierung, no qual introduz pela primeira vez, de maneiradecisiva e articulada, a no~ao de Ideal do eu, Freud tende a colocartodas as depress6es no registro nao do Ideal do eu, mas de uma rela~aovacilante, conflitiva, entre 0 eu e 0 Ideal do eu.

Admitamos que tudo 0 que acontece no registro depressivo, ou,ao contrario, no da exalta~ao, deve ser tornado sob 0 prisma de umafranca hostilidade entre as duas instancias, qualquer que seja a instanciada qual parte a declara~ao de hostilidades, quer seja 0 eu que seinsurge, quer seja 0 Ideal do eu que se torna severo demais, com asconseqilencias e contragolpes do desequilfbrio dessa rela~ao desme-dida. A verdade e que 0 Ideal do eu nos prop6e seu problema.

Dizem que 0 Ideal do eu provem de uma identifica~ao tardia, queesta se acha ligada a rela~ao terceira do Edipo, e que nela se misturam,de maneira complex a, desejo e rivalidade, agressao e hostilidade.Desenrola-se alguma coisa, urn conflito, cujo desfecho e balanceado.Ainda que incerto, mesmo assim 0 desfecho do conflito prop6e-secomo havendo acarretado uma transforma~ao subjetiva, em razao daintrodu~ao - da introje~ao, dizem -, no interior de uma certaestrutura, daquilo a que chamamos Ideal do eu, 0 qual passa, desdeentao, a ser parte do proprio sujeito, embora conserve uma certarela~ao com urn objeto externo. As duas coisas acham-se presentese, neste ponto, tocamos no fato de que, como nos ensina a analise, aintra-subjetividade e a intersubjetividade nao podem ser separadas.Sejam quais forem as modifica~6es que intervem em seu ambiente eseu meio, 0 que e adquirido como Ideal do eu permanece, no sujeito,exatamente como a patria que 0 exilado carregaria na sola dos sapatos- seu Ideal do eu the pertence, e, para ele, algo de adquirido. Naose trata de urn objeto, mas de uma coisa que, no sujeito, e a mais.

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Insistimos muito em lembrar que a intra-subjetividade e a inter-subjetividade devem permanecer ligadas em qualquer encaminhamen-to analftico con'eto. No uso corrente da psicanalise, fala-se das relas:oesentre 0 eu e 0 Ideal do eu como rela~oes que podem ser boas ou mas,conflituosas ou harmoniosas. Deixa-se entre parenteses, ou nao seformula completamente, aquilo que deve ser formulado, e que seimpoe pelas mais fnfimas exigencias de nossa Iinguagem, ou seja,que essas relas:oes sao sempre estruturadas como relas:oes intersubje-tivas.

No interior do sujeito reproduz-se - e, como voces estao vendo,s6 pode reproduzir-se a partir de uma organizas:ao significante - 0

mesmo estilo de relas:oes que existe entre os sujeitos. Nao podemossupor - ainda que 0 digamos, e que isso possa funcionar ao ser dito- que 0 supereu seja, efetivamente, qualquer coisa de severo quefica espreitando 0 eu na esquina para the impor sofrimentos atrozes.Ele nao e uma pessoa, funciona no interior do sujeito tal como urnsujeito se comporta em relas:ao a outro, e justamente pelo fato de queuma relas:ao entre os sujeitos nem pOl' isso implica a existencia dapessoa - basta que haja condi~oes introduzidas pela existencia efuncionamento do significante como tal para que possam estabelecer-se relas:oes intersubjetivas.

E com essa intersubjetividade no interior da pessoa viva quelidamos na analise. E no seio dessa intersubjetividade que devemosformal' uma ideia do que e a funs:ao do Ideal do eu. Voces nao aencontrarao, essa funs:ao, num dicionario, ninguem Ihes dara para elauma resposta unfvoca, voces s6 encontrarao enormes embaras:os, Essafuns:ao nao se confunde, certamente, com a do supereu. Ambassurgiram quase juntas, mas por isso mesmo se distinguiram. Digamosque elas se confundem, em parte, mas que 0 Ideal do eu desempenhauma fun~ao mais tipificadora no desejo do sujeito. Ele realmenteparece estar Iigado a assuns:ao do tipo sexual, na medida em que estese acha implicado em toda uma economia que, vez por outra, podeser social. Trata-se das funs:oes masculinas e femininas, nao simples-mente na medida em que elas levam ao ato necessario para quesobrevenha a reprodu~ao, mas na medida em que comportam todauma modalidade de relas:oes entre 0 homem e a mulher.

Qual e 0 interesse dos conhecimentos adquiridos pela analise aesse respeito? A analise permitiu-nos desvendar uma funs:ao que s6se mostra na superffcie e atraves de seus resultados. Penetrou nelapor intermedio dos casos em que 0 resultado foi falho, seguindo, nesseaspecto, 0 conhecido metodo dito psicopatol6gico, que consiste em

decompor, des articular uma fun~ao, captando-a ali o~de ela se viuimperceptivelm¥nte defasada, desviada, e onde, por ISSO mesmo, 0

que costuma inserir-se mais ou menos normalmente num complementoambiental aparece com suas rafzes e suas aI'estas.

Eu gostaria de me referir, aqui, a experiencia que t~mos com ~sincidencias da identificas:ao falha, ou que supomos parcIal ou provl-soriamente falha, de urn certo tipo de sujeitos com 0 que podemoschamar de seu tipo regular, satisfat6rio. Teremos que escolhe~' urncaso particular. Tomemos, portanto, 0 das mulheres nas qUaIS sereconhece 0 que foi chamado de masculinity cOl;:pl~x,0 comple~~ demasculinidade, que e articulado com a eXlstencla da fase, .falIca.Podemos fazer isso pOl'que eu ja assinalei 0 lado problematlco daexistencia dessa fase falica.

Havera af alguma coisa de instintivo? Vma especie. d,e.vfcio d~desenvolvimento instintivo pelo qual a existencia do clttons, por Sls6, seria responsavel - seria a causa do que se traduziria, no fim dacadeia, por complexo de masculinidade? Esta~os ~reparados~ des delogo, para compreender que nao deve ser tao s~mples aSSlm. ~eexaminarmos de perto, em Freud isso nao e tao sImples -:- ele VIUc1aramente que nao se tratava de urn desvio pu~'o e sImples dodesenvolvimento feminino, exigido por uma anomalIa natura! ou pe!afamosa bissexualidade. Em todo caso, 0 debate que se segUiu servlUpara nos mostrar que a coisa nao e tao simples, ain?a que essep~6priodebate tenha sido mal inspirado, havendo partIdo da petl~ao deprincfpio de que nao podia ser assim. .

o que esta em questao e certamente mms complexo. Nem p~risso, no entanto, somos capazes de formular prontamente 0 que e,mas vemos que a vicissitude do que se apres~nta ~omo complexo demasculinidade na mulher ja nos indica uma Itgas:ao com 0 elementofalico, urn jogo, urn usa desse elemento, que merece ser leva.d? emconta, uma vez que aquilo pelo qual urn elemento po?e ser utllIzadopresta-se, pelo menos, para nos esclarecer sobre 0 que e esse elemento,

no fundo.o que dizem os analistas, portanto, especialmente os do sexofeminino, que abordaram esse assunto?

Hoje nao falaremos de tudo 0 que elas nos disseram. Refiro-me, muitoparticularme"te, a duas dessas analistas, que estao no pano de fundo

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da discussao jonesiana do problema, Helene Deutsch e Karen Horney.Aqueles dentre voces que leem ingles poderao reportar-se, pOl' urnlado, a urn artigo de Helene Deutsch intitulado "The significance ofmasochism in the mental life of women", de janeiro de 1930, noInternational Journal of Psychoanalysis, volume XI, e pOl' outro, aurn artigo de Karen Horney, de janeiro de 1924, no volume V,intitulado "On the genesis of the castration-complex in women".

o que quer que se possa pensar das formulac;:6es a que KarenHorney chegou, tanto na teoria quanta na tecnica, ela foi, incon-testavelmente, uma criadora no plano clfnico, desde 0 comec;:o ate~etade de sua carreira. Suas descobertas preservam todo 0 seu valor,mdependentemente do que ela possa haver deduzido delas de maisou menos fraco no tocante a situac;:ao antropologica da psicanalise. 0que Horney destaca em seu artigo sobre 0 complexo de castrac;:aopode ser assim resumido: ela observa, na mulher, uma analogia entretudo 0 que se orden a clinicamente em torno da ideia da castrac;:ao eaquilo que 0 sujeito articula, na analise, de reivindicac;:6es concernentesao orgao como algo que Ihe falta. Encontramos nessas reivindicac;:6esas ressonancias, os vestfgios clfnicos da castrac;:ao. Karen Horneymostra, atraves de uma serie de exemplos - convem voces sereportarem a esse texto -, que nao ha diferenc;:a de natureza entreesses casos de reivindicac;:ao falica e alguns casos de homossexualidadefeminina, aqueles em que 0 sujeito, numa certa posic;:ao em relac;:aoa sua parceira, identifica-se com a imagem paterna. Ha entre os doiscasos uma continuidade imperceptfve!. Os tempos sao compostos damesma maneira, e as fantasias, os sonhos, as inibic;:6es e os sintomassao os mesmos. Nem sequel' podemos dizer, ao que parece, que osprimeiros constituam uma forma atenuada dos outros, mas, simples-mente, que uma certa fronteira foi ou nao foi ultrapassada, fronteiraessa que e em si mesma incerta.

o ponto em que Karen Horney vem a depositar enfase, a propositodisso, eo seguinte. 0 que acontece nesses casos incita-nos a con central'nossa atenc;:ao num certo momenta do complexo de Edipo que se situamuito adiante, ja no final da fase, uma vez que pressup6e que ja sehaja atingido 0 momenta em que nao apenas a relac;:ao com 0 pai foiconstitufda, mas no qual ela esta tao bem constitufda que se manifesta,no sujeito menina, sob a aparencia de urn desejo deliberado do penispaterno, 0 que, como nos e muito justificadamente sublinhado, implica,pOltanto, urn reconhecimento do penis, nao fantasfstico, nao em gera],nao na penumbra ambfgua que a todo instante faz com que nosperguntemos 0 que e 0 falo, mas urn reconhecimento da realidade do

penis. Nao estamos no plano da pergunta - sera que ele e imaginario- ?ou nao. ,Naturalmente, em sua func;:ao central, 0 falo implica essa existencia

imaginaria. Em diversas fases do desenvolvimento dessa relac;:ao, 0

sujeito feminino pode, contrariando a tudo e a todos, sustentar que ~possui, mesmo sabendo muito bem nao possuf-lo. Ele 0 possU!simplesmente como imagem, quer 0 tenha tido, quer de va te-lo, comoe freqiiente. Aqui, porem, segundo 0 que e dito, trata-se de outracoisa. Trata-se de urn penis percebido como real e, como tal, esperado.

Eu nao poderia expor isso, se ja nao lhes houvesse modulado emtres tempos 0 complexo de Edipo, fazendo-os notal' que e sob d.iversosmodos que ele chega a cada urn desses tres tempos. 0 P~l c~modetentor do penis real intervem no terceiro tempo. Eu lh~s dlsse ISS.Oespecialmente quanto ao menino, mas eis que as coisas [lcam perfel-tamente situadas na menina.

o que acontece, de acordo com 0 que nos e dito? Dizem que,nos casos de que se trata, e da privac;:ao do que e esperado que result~urn fen6meno, que nao foi inventado pOl' Karen Horney, mas que eempregado 0 tempo todo no proprio texto de Freud - a v.irada.' .amutac;:ao que faz com que 0 que era amor se transforme em ldentlfl-cac;:ao.

Com efeito, e na medida em que 0 pai decepciona uma expectativa,uma exigencia do sujeito, orientada de uma certa maneira, que seconstitui uma identificac;:ao. Isso ja pressup6e uma maturac;:ao avanc;:adada situac;:ao. Poderfamos dizer que 0 sujeito chegou ao auge da situac;:aoedipiana, se a func;:ao desta nao consistisse, justamente, em ela tel' deser ultrapassada,ja que e em sua superac;:ao que 0 sujeito deve encontrara identificac;:ao satisfatoria com seu proprio sexo

A identificac;:ao com 0 pai que entao se produz articula-se comourn problema, ou ate urn misterio. 0 proprio Freud observou que .atransformac;:ao do amor em identificac;:ao, cuja possibilidade se maDl-festa pOl' excelencia aqui, nao acontece pOl' si so. Nos a admitimosneste momento, entretanto, antes de mais nada porque a constatamos.o problema e articular seu funcionamento, isto e, fornecer uma formulaq~ermita~onceber..9 que e essa identificac;:ao como ligada a urn

I momenta de privac;:ao.Eu gostaria de tentar dar-Ihes algumas formulas, pois considero

que elas sao Ilteis para distinguir assim do assado. Se introd.uzo .esseelemento essencial da articulac;:ao significante, nao e, pOl' aSSlm dlzer,pOl' prazer, nem pelo simples gosto de nos encontrarmos nas palavras,mas para que nao fac;:amos das palavras e dos significantes urn uso

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do tipo misturar alhos com bugalhos. Nao tomemos coisas insuficien-t~mente formuladas pOl' coisas suficientemente escIarecedoras. E ar-tlculando-as bem que poderemos avaliar efetivamente 0 que acontecee dlstmgUlr 0 que sucede num caso do que sucede em outro '

(I . Que. a.contece quando 0 sujeito feminino assume uma certa'posi~aolAde IdentlfIca~ao com 0 pai?

, A ~itua~ao, ~diantam~s, e a seguinte. Dado 0 pai, alguma coisae espelada no myel da cnan~a, e 0 resultado singular, paradoxal eque, sob urn ce.rto angulo e de uma certa maneira, a crian~a transf~r-

I ma-se nesse p.aI. Ela nao se transforma realmente no pai, e claro, mas~orna-se 0 ~aL.enqu nto l.deal~. Nesse caso, uma mulher podelealmente dlz~r, ?a maneira mais franca, e s6 escuta-la: _ Eu tussocomo meu pat. E de uma identifica~ao que se trata. Tentemos verpasse a pa~so a economia dessa transforma~ao.. ~ menma nem por isso se transforma em homem. Dessa identi-

flca~ao encontramos sinais, estigmas, que se exprimem parcial menteqU,epodem ser assinalados pelo sujeito, e dos quais este pode se gabar'a.te ~e.rto ponto. Que vem a ser isso? Nao ha duvida _ sao elemento~slgmflcantes.

Qu.ando uma mulher diz eu tusso como meu pai, ou eu empinoa b.arnga ou 0 corpo como ele, esses sao elementos significantes.Mals exatamente, para destacar bem do que se trata, vamos chama-IospOl' urn ter~o e.sp~c!al, porque nao se trata de significantes empregadosnuma cadela Slg~lfl~a~te. Vamos.chama-los de(insfgnias do pal., A. atltude pSlcologlca mostra ISSOna superffcie - para dar nomeas cOlsa~, 0 sujeito se apresenta sob a mascara das insfgnias dan:ascultmdade, coloca-as sobre 0 que ha de parcial mente indiferen-clado em todo sujeito como tal.

Talv~z convenha aqui, sempre com 0 vagar que deve resguardar.-~os ?~elf 0, perguntarmos ~m que se transforma, nesse processo, 0d~~eJo. De onde partlu tudo ISSO?0 desejo, afinal,JIao era urn desejo~lflI. ~m ~ue se transforma ~le q~ando 0 sujeito _assume as insfgniasd.~ p~. Dlante de qu.em serao emp!egadas essas insfgnias? A expe--fl:nClfl nos mostra: dlante daquele que assumeOlugar-.JLCURado pelamae na evolu~a~ primitiva do complexo de Edipo. A partir do ~ento~m ~u.e 0 sUJelto se. reveste aas insfgnias daquele com quem seIdentIfIca, e se transform a num sentido que e da ordem de umapassagem ao estado de. significante, ao estado de insfgnia, 0 desejoque passa a entrar em Jogo nao e mais 0 mesmo.

De que de~ejo se tratava? No ponto a que havfamos chegado nocomplexo de Edipo e considerando 0 que era esperado na rela~ao

com 0 pai, podemos supor que era urn desejo apaixonado, urn apelopropriamente feminino, extremamente pr6ximo de uma posi~ao genitalpassiva. Fica muito claro que ja nao e 0 mesmo desejo que estapresente depois da transforma~ao.

Deixemos em suspenso, por enquanto, a questao de saber 0 queacontece com esse desejo, e voltemos ao termo priva~ao, que pro-nunciamos ha pouco. Poderfamos igualmente falar de frustra~ao. POl'que privayao, em vez de frustra~ao? Indico aqui que 0 fio continuasolto.

Seja como for, 0 sujeito que esta aqui tambem esteve la, na medidaem que tern urn Ideal do eu. Assim, sucedeu alguma coisa em seuinterior que e estruturada como na intersubjetividade. Esse sujeito iraagora exercer urn certo desejo, que e 0 que?

Nesse esquema aparecem as rela~6es do pai com a mae. Ora, eclaro que 0 que encontramos na analise de urn sujeito como esse, nomomenta em que 0 analisamos, nao e 0 duplo, a reprodu~ao do queacontecia entre 0 pai e a mae, por toda sorte de raz6es - nem queseja pelo fato de que 0 sujeito s6 teve acesso a isso imperfeitamente.A experiencia mostra, ao contrario, que 0 que surge e todo 0 passado,sao as vicissitudes das rela~6es extremamente complexas que ate entaomoldaram, desde a origem, as relay6es da crianya com a mae, isto e,as frustra~6es, as decep~6es ligadas ao que for~osamente existe decontratempos, de abalos, com tudo 0 que estes acarretam numa rela~aoextraordinariamente complexa, fazendo intervirem com uma enfasemuito particular as rela~6es agressivas em sua forma mais original,e tambem as rela~6es de rivalidade, nas quais marca sua incidencia,por exemplo, a chegada de elementos estranhos ao trio, os irmaos ouirmas que possam tel' interferido, mais ou menos inoportunamente,na evolu~ao do sujeito e de suas rela~6es com sua mae. Tudo issosUIte efeitos, e encontramos seu vestfgio e seu reflexo, moderandoou refor~ando 0 que entao passa a se apresentar como uma reivindi-

'.

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ca<;ao das insfgnias da masculinidade. Tudo isso se projeta nas rela<;6esdo jovem sujeito com seu objeto. Estas, por conseguinte, seraocomandadas a partir do ponto da identifica<;ao em que 0 sujeito sereveste das insfgnias daquele com quem se identificou, e que desem-penh~m nele 0 papel e a fun<;ao do Ideal do eu.

E claro que 0 que lhes estou descrevendo e uma maneira deimaginar os lug ares de que se trata, mas pressup6e, evidentemente,se voces quiserem compreende-lo, que se acrescente uma especie devaivem. Essas insignias, 0 sujeito as leva consigo depois dessemovimento de oscila<;ao, e se ve constituido de uma nova maneira,e com urn novo desejo.

o que comporta 0 mecanismo dessa transforma<;ao? Tres temposdevem ser distinguidos.

No come<;o, hi 0 sujeito e urn outro termo, que tern para ele urnvalor libidinal.

Depois, hi urn terceiro termo, com 0 qual 0 sujeito mantem umarela<;ao distinta, que exige que tenha interferido, no passado da rela<;aocom esse termo, aquele elemento radicalmente diferenciador que e aconcorrencia.

i' Por fim, produz-se uma troca: 0 que foi objeto da rela<;ao libidinaltransforma-se em outra coisa, e transform ado numa fun<;ao significantepara 0 sujeito, e 0 desejo deste passa para urn outro plano, 0 planodo desejo estabelecido com 0 terceiro termo. Nessa opera<;ao, esseoutro desejo vem substituir 0 desejo inicial, que e recalcado, e saidele transform ado em sua base.

~ isso que constitui 0 processo de identifica<;ao.E reciso que haja, inicialmente -9Aemento libidin&1!JJ.e.-ill2QQta

paLa urn certo objeto como 9bj~o. Esse objeto_ torn~:.se, no sujeito,urn significante, ocupando 0 lugar que desde enta~ chamadO-de~deal do eu. 0 desejo, por outro lado, sofre uma substitui ao - urn.outro desejo surge em seu lugar. gsse outro desej~ nao \f.ellLdo_nada,nao e 0 nada, ele existia antes, dizia respeito ao terceiLo....te.n:n.O.,...e..-sa.idele transformado.

Eis 0 esquema que lhes pe<;o que conservem, pOl'que e 0 esquemaminima de qualquer processo de identifica<;ao no senti do proprio, de_identifica<;ao no nivel secundirio, no ue ela funda 0 d..eal do eu.~a falta nenhum dessesrr'es termQ,s. A contradan<;a resulta da

ltransforma<;ao de urn objeto num significante que assume urn lugar

)no sujeito, e constitui a identifica<;ao que encontramos na base do queconstItUl urn Ideal do eu. Isso e sempre acompanhado, por outro lado,pelo que podemos chamar de uma transferencia do desejo - urn outro

desejo surge de outro lugar, da rela<;ao com urn terceiro termo quenada tinha a ver com a rela<;ao libidinal primiria, e esse desejo vemsubstituir 0 primeiro, mas, nessa e atraves dessa substitui<;ao, elemesmo se ve transformado, Isso e absolutamente essencial. Podemosexplica-lo de outra maneira ainda, retomando nosso esquema sob aforma como 0 apresentaremos agora.

A crian<;a, em sua primeira rela<;ao com 0 objeto primordial -essa e a formula geral - ve-se assumir a posi<;ao simetrica a do pai.Entra em rivalidade com ele e se situa do lado contririo com respeitoa rela<;ao primitiva com 0 objeto, num ponto X, marcado pelo sinal.Ali, torna-se alguma coisa que pode revestir-se das insignias daquelecom quem entrou em rivalidade, e e nessa medida que depois encontraseu lugar, ali onde for<;osamente se situa, ou seja, em C - em oposi<;aoao ponto X onde as coisas aconteceram -, onde ela vem a se constituirsob essa nova forma chamada I, Ideal do eu, preservando assim algodessa passagem sob a forma mais geral.

Ja nao se trata ai, como voces estao vendo perfeitamente, nemde pai nem de mae, mas de rela<;6es com 0 objeto. A mae e 0 objetoprimitivo, 0 objeto por excelencia, 0 que 0 sujeito retem do vaivemque, em rela<;ao ao objeto, fez com que ele entrasse em rivalidadecom urn terceiro termo e 0 que se caracteriza pelo que podemoschamar de fator comum resultante, no psiquismo humano, da existenciados significantes. Posto que os homens lidam com 0 mundo dosignificante, sao os significantes que constituem 0 desfiladeiro poron de e preciso que passe seu desejo. Por essa razao, esse vaivemsempre implica 0 fator comum na incidencia do significante no desejo,naquilo que 0 express a, naquilo que faz dele, necessariamente, urndesejo significado - esse fatar com urn e, precisamente, 0 falo., 0 falo sempre faz parte disso. E 0 minimo denominador com urn

ldesse fator comum. E e por isso que sempre 0 encontramos, em todosos casos, quer se trate do homem ou da mulher. ElS por que colocamosaqui, nesse ponto X, 0 falo, 0 <pminusculo.

o falo e terceiro no que constitui ai a rela<;ao imagimiria do sujeitoconsigo mesmo, m-i, sempre mais ou menos fragilmente constitufda.E a identifica<;ao primitiva - que, na verdade, e sempre mais oumenos ideal - do eu com uma imagem sempre mais ou menos

\ contestada. Isso nada tern a ver com a rela<;ao de base que 0 sujeitoestabelece com aquilo a que dirigiu suas demandas, isto e, 0 objeto.

Nessa ida e vinda, 0 Ideal do eu, I, sempre se constitui em oposi<;ao~ ao ponto virtual onde se produz a concorrencia, 0 contest do terceiro

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termo, 0 P, aqui, e em oposis;ao ao fator comum metonimico que eo falo, que se encontra por toda parte. Naturalmente, 0 que aconteceno nivel do Ideal do eu consiste em ter esse fator comum no minimo.o Ideal do eu e composto de uma maneira que nao permite ve-Io, ouque so permite ve-lo como algo que sempre nos escapa por entre osdedos. Nem por isso 0 fain deixa de correr no fundo de qualquerespecie de assuns;ao significante.

Observem bem 0 seguinte: em todos os casos, esse significantepenetra nos limites do significado. 0 Ideal do eu constitui-se narelas;ao com 0 tercyiro termo, Que aq,gI (~r::~Jica semJ2~ofalo, unicamente na_medida em que esse falo_e 0 fator comum, 0 fatorpiv~ da instan.5ia do significante.

tern a, em todas as etapas da funs;ao de reprodus;ao, ou s~ja, nassatisfas;oes pr6prias do estado de gestas;ao, da am.ame~tas;ao e damanutens;ao da posis;ao materna. A maturas;ao da satIsfas;ao hg~da aoato genital, ao proprio orgasmo, para cha~a-I? .por seu nome, e outracoisa - esta ligada a dialetica da pnvas;ao fal~c~. .

Assim, Helene Deutsch encontrou, em sUJeltos mms ou menosimplicados na dialetica faIica, e que apresentavam urn cert~ grau deidentificas;ao masculina, urn equilfbrio fors;osamente confhtuoso, eportanto, precario, da personalidade constitufda sobre essas bases.Reduzir demais essa relas;ao complex a, levar lODge demals 0 avans;oda analise, serviria para frustrar tal sujeito daquilo .que, ate entao, eleteria realizado do gozo, mais ou menos satisfatonamente, no planogenital. Esse tipo de caso chega ate a comport~r, s~~und~ ela, .aindicas;ao de deixar 0 sujeito com 0 penis de suas IdentIflcas;o~s ~a.Jsou menos bem-sucedidas, mas que, pelo menos, eram urn p.atnmonlOdele. Decompor, analisar, reduzir essas identificas;6es t~ana 0 nscode colocar 0 sujeito numa posis;ao de perda em relas;ao ao qu~ aanalise revelava ser a base do gozo conquistado antes dela. A conq~l~tafeita no plano do gozo genital estaria ligada ao pas~ado do ~uJeltoem relas;ao a suas identificas;oes. Se 0 gozo, com e~eJto, conslst~ nafrustras;ao masoquista implicada pela posis;ao conqlll~tada, ele eXlge,ao mesmo tempo, a manutens;ao da posis;ao a partIr da qual ess.afrustras;ao po de ser exercida. Em outras pa~avras, em algumas condl-s;6es, a redus;ao das identificas;oes propnam~nte masculmas po deameas;ar aquilo que foi conquistado pelo sUJelto no plano do gozo,na propria dialetica dessas identificas;oes. ,., .

Quer isso tenha valor ou nao, a questao para nos aqu.l e slmple_s-mente que isso possa ter sido formulado, e por uma anahsta que naoera inexperiente, e que por certo se manifestava, nem qU,efosse porsuas reflexoes, como alguem que ponderava sobre seu OflCIOe sobreas conseqtiencias do que fazia. E a esse tftulo - unicamente a essetftulo - que isso merece ser mantido na questao. _ .

Resumindo a posis;ao da sra. Deutsch, nas relas;oes mter-huma~as- nao estou dizendo que 0 ato genital se apresente da mesma manelraentre os pintarroxos ou os louva-a-deus -, na. es~ecie humana, 0

centro de gravidade da posis;ao feminina, seu pnnClpal elemento desatisfas;ao, estaria para alem da relas;ao genital com~ tal. . .

Tudo 0 que a mulher poderia encontrar na relas;ao gem tal estanaligado a uma dialetica cuja intervens;ao nao t~m por que nos surpreen-deL Que quer dizer isso? Quer dizer, em pnmelfo lugar, da extremaimportancia do que se chama prazer preliminar - que e tambem

Karen Horney mostrou-nos a continuidade do complexo de castras;aocom a homossexualidade feminina. Que diz uma Helene Deutsch?

Ela nos fala de outra coisa. Ela tambem nos diz que a fase falicarealmente desempenha 0 papel afirmado por Freud; 0 que Ihe importaentretanto e seguir sua vicissitude posterior, que e a ados;ao, pelamenina, da posis;ao masoquista que, no dizer dela, e constitutiva daposis;ao feminina. Na medida em que 0 gozo cIitoridiano e proibidoa menina, esta passa a extrair sua satisfas;ao de uma posis;ao que janao sera, pOltanto, unicamente passiva, mas uma posis;ao de gozoassegurado na propria privas;ao do gozo c1itoridiano que Ihe e imposta.

Ha nisso urn certo paradoxo. Mas e urn paradoxo que HeleneDeutsch sustenta atraves de constatas;oes da experiencia, que chegamate a preceitos tecnicos. Relato-Ihes af os dados da experiencia deuma analista, que sem duvida alguma foram submetidos a escolhaque ela fez do material, mas nos quais, nao obstante, vale a pena nosdetermos.

Para Helene Deutsch, a questao da satisfas;ao feminina apresen-ta-se de uma maneira tao complexa que ela considera que uma mulher,em sua natureza de mulher, pode encontrar uma satisfas;ao completa- completa 0 bastante para que nao apares;a nada que se apresentecomo neur6tico ou atipico em seu comportamento, em sua adaptas;aoa suas funs;oes femininas - sem que para isso intervenha, sob nenhumaforma cIaramente marc ada, a satisfas;ao propriamente genital.

Repito, essa e a posis;ao da sra. Deutsch. Para ela, a satisfas;aoda posis;ao feminina pode consumar-se integral mente na relas;ao ma-

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manifesto na postura do homem diante do ato genital, que talvez sejasimplesmente mais acentuado na mulher. Sao esses os materiaislibidinais a par em questao. Mas eles mesmos s6 en tram efetivamenteem jogo a partir de sua influencia na hist6ria do sujeito, numa dialeticasignificante que implica a intromissao da possfvel identificac;:ao como terceiro objeto, no caso, 0 pai. A reivindicac;:ao falica, bem como aidentificac;:ao com 0 pai, complicada pela relac;:ao da mulher com seuobjeto, nao passaria, assim, da elaborac;:ao significante do prazerpreliminar do qual sao retiradas as satisfac;:6es que se produzem noato genital. Quanto ao orgasmo em si, na medida em que estariaidentificado com 0 momenta do ato, ele de fato levanta na mulherurn problema que merece ser formulado, dado 0 que sabemos, emtermos fisiol6gicos, sobre a ausencia de uma organizac;:ao nervosa quese preste diretamente a provocar volupia na vagina.

Isso nos leva a ten tar formular da seguinte maneira a relac;:ao doIdeal do eu com uma certa vicissitude do desejo. Tanto no meninoquanta na menina, temos, num dado momento, uma relac;:ao com urncerto objeto, ja constituido em sua realidade de objeto, e esse objetotorna-se 0 Ideal do eu atraves de suas insfgnias. Por que 0 desejo queesta em pauta nessa relac;:ao com 0 objeto foi chamado, nessa ocasiao,de privac;:ao? Porque sua caracterfstica, ao contrario do que se costumadizer, nao e a de concernir a urn objeto real.

E claro que, quando 0 pai intervem na evoluc;:ao da menina _esse foi 0 primeiro exemplo que dei -, e preciso, com efeito, queele seja urn ser suficientemente real, em sua constituic;:ao fisiol6gica,para que 0 falo passe para urn estagio de evoluc;:ao que ultrapasse afunc;:ao puramente imaginaria que ele pode conservar por muito tempono Penisneid. Isso esta definido, mas 0 que constitui a privac;:ao dodesejo nao e que ele vise alguma coisa real, mas que vise algumacoisa que pode ser demandada. S6 pode instaurar-se uma dialetica deprivac;:ao propriamente dita a prop6sito de algo que 0 sujeito possasimbolizar. E na medida em que 0 penis paterno po de ser simb~lizadoe solicitado que se produz 0 que sucede no nfvel da identificac;:ao deque estamos tratando hoje.

Isso e inteiramente distinto do que intervem no plano da proibic;:aodo gozo falico. 0 gozo clitoridiano, para chama-Io por seu nome,pode ser proibido num dado momenta da evoluc;:ao. 0 que e proibidorejeita 0 sujeito colocando-o em uma situac;:ao na qual ele nao encontramais nada que seja apropriado para significa-Io. E isso que constituiseu carater doloroso e, na medida em que 0 eu se encontra nessaposic;:ao de rejeic;:ao por parte do Ideal do eu, por exemplo, estabelece-se

o estado melanc6lico. Voltaremos a falar da natureza dessa rejeic;:ao,mas entendam ,desde ja que aquilo a que estou aludindo aqui podeser relacionado com 0 termo alemao que, em nosso vocabulario,relacionei com a rejeic;:ao, isto e, a Verwerfung. E na medida em que,por parte do Ideal do eu, 0 pr6prio sujeito pode descobrir-se, em suarealidade viva, numa situac;:ao de exclusao de qualquer significac;:aopossivel, que se estabelece 0 estado depressivo como tal.

o que entra em pauta na formac;:ao do Ideal do eu e urn processototal mente inverso. 0 objeto e confrontado com aquilo que chamamosprivac;:ao na medida em que se trata de urn desejo negativo, no qualha urn objeto que pode ser demandado, e no qual e no plano dademanda que 0 sujeito ve recusado seu desejo. A ligac;:ao entre 0

desejo como recusado e 0 objeto, eis 0 que esta no ponto de partidada constituic;:ao desse objeto como urn certo significante, que assumeurn certo lugar, que substitui 0 sujeito, que se torna uma metafora dosujeito.

Isso se produz na identificac;:ao com 0 objeto do desejo, no casode a menina se identificar com 0 pai. Esse pai que ela desejou, e que

Ilhe recusou 0 desejo de sua demanda, surge em seu lugar. Aforlllac;:aodo Ideal do eu tern, portanto, ~ater metaf6rico, e, JaLcomoJlametafora, 0 que resulta disso e a modificac;:ao de urn desejo ~ue nadatern a ver com 0 desejo que esta em pauta na constituic;:ao dO'objeto,urn dese]o que esta em outro lugar, aq!:1ele que havia ligado_fLmeninaa sua mae.

Chamemos esse desejo, em relac;:ao ao D maiusculo, de d minus-culo. Toda a aventura precedente da filha com a mae vem aqui assumirseu lugar na questao, e sofre as conseqiiencias da metafora a que 0

desejo fica ligado. Af reencontramos a f6rmula da metafora que Ihesdei anteriormente. Disso re~ulta uma muda21S~de significa!;_ao_nasrela 6es ate entao estabelecidas na hist6ria do su' eito.- Vma vez que continuamos no primeiro exemplo da menina como pai, digamos que 0 que modifica sua hist6ria, e que des de entaopassa a modelar as relac;:6es do sujeito com seu objeto, e a instaurac;:aonele dessa nova func;:ao, chamada Ideal do eu.

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r,.•••~---------------~_IilIIIlIalt..-....

Crflica do Edipo precoceo desejo e a marcaSobre Totem e tabuo signo da linguagemo signijicanle do Outro barrado

D--- AOd ~ s(A)*--I

.1--- g 0D~ S (A)*-- cI>

C,?mec.ei escrevendo essas tres formulas no quadro para evitar escre-ve-las Incorretamente ou incompletamente quando tiver de me referira elas. Espero poder esclarecer seu conjunto, daqui ate 0 fim de nossodiscurso de hoje.

Retomando as coisas on de as deixei da ultima vez, pude constatar,nao sem satisfa~ao, que algumas de minhas coloca~6es nao deixaramde provocar certa emo~ao, especialmente por parecer que eu haviaen~o.ssado ~s. opini6es de uma dada psicanalista que julgou deveremltu a 0plnIaO de que algumas amilises de mulheres nao saiamganhando, for~osamente, ao serem levadas ate 0 fim, em razao deque 0 proprio progresso do tratamento podia privar os referidos sujeitosdo ponto que eles haviam atingido em suas rela~6es sexuais, amea~arneles urn certo gozo conquistado e adquirido. Apos 0 que me per-guntaram se eu endossava essa formula~ao, e se a analise de fato

devia parar num certo ponto, pOl' raz6es extern as as leis de seu proprioprogresso.

A isso responderei que tudo depende do que se considera comosendo 0 objetivo da analise, nao seu objetivo externo, mas aquilo quea rege, pOl' assim dizer, teoricamente. Com efeito, ha uma visaosegundo a qual a propria ideia do desenvolvimento da analise impli-caria a de urn ajustamento a realidade. Estaria dado, na condi~ao dohomem e na da mulher, que uma elucida~ao plena dessa condi~aodeveria conduzir 0 sujeito, obrigatoriamente, a uma adapta~ao comoque pre-formada, harmoniosa. Isso e uma hipotese. N a verdade, nadana experiencia vem justifica-la.

A questao do desenvolvimento da mulher e de sua adapta~ao aurn certo registro plurivalente da ordem humana e, seguramente, urnponto sensivel da teoria analftica. Para abrir 0 jogo e para empregartermos que serao justamente os que retornarao hoje, desta vez numsentido total mente concreto, pOl'ventura nao parece certo desde logoque, no tocante a mulher, convem nao confundir 0 que ela deseja -dou a esse termo seu senti do pleno - com 0 que ela demanda? Quetambem convem nao confundir 0 que ela demanda com 0 que elaquer, no sentido em que se diz que 0 que a mulher quer, Deus tambemquer?

Esses lembretes simples, se nao da evidencia, pelo menos daexperiencia, destinam-se a mostrar que a questao que levantamos, desaber 0 que se trata de realizar na analise, nao e simples .

Aquilo com que os entretive da ultima vez entrou lateralmente emnosso discurso. 0 ponto a que eu desejava leva-los, e ao qual youleva-Ios hoje para fornecer uma formula generalizada, depois meservira de referencial na crftica das identifica~6es nonnativas, preci-samente, do homem e da mulher.

Eu lhes trouxe, da ultima vez, urn primeiro apanhado da identi-fica~ao que produz 0 Ideal do eu, na medida em que este e 0 pontode saida, 0 ponto-piv6, 0 ponto de conclusao da crise do Edipo emtorno da qual se iniciou a experiencia analftica, e em torno da qualela nao para de girar, ainda que assuma posi~6es cada vez maiscentrifugas. Insisti nisto, em que toda identifica~ao do tipo Ideal doeu vinculava-se ao relacionamento do sujeito com certos significantes,no Outro, aos quais chamei insignias, e nos quais essa propria rela~ao

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vinha enxertar-se num outro desejo que nao 0 que havia confrontadoos dois termos, 0 sujeito e 0 Outro, como portador dessas insignias.

Eis, mais ou menos, no que aquilo se resumiu, 0 que, e claro,nao satisfez a todo 0 mundo, ainda que, falando com urn ou comoutro, eu nao tivesse dado s6 isso como referencia. POl' exempJo,voces nao veem que e na medida em que uma mulher se identificacom 0 pai que ela dirige ao marido todas as censuras que fazia a suamae? Isso e indicado como urn fato de primeiro plano pOl' Freud,aSSlm como pOl' todos os autores.

Nao se trata de ficarmos fascinados com esse exemplo, poisencontraremos a mesma f6rmula sob outras formas, mas ele ilustrabem 0 que acabo de Ihes dizer: 0 fato de a identifica<;ao ser feita pelaassun<;ao de significantes caracteristicos das rela<;oes de urn sujeitocom outro engloba e implica a ascensao, para 0 primeiro plano, dasrela<;oes desejantes entre esse sujeito e urn terceiro. Voces encontramoS, sujeito, 0 A maiusculo e 0 a minusculo. Onde fica 0 A maiusculoon de fica 0 a minusculo? Nao importa - 0 importante e que ele~sejam dois.

Retomemos nosso curso com uma observa<;ao que faz parte damaxima de La Rochefoucauld acerca das coisas para as quais naopodemos olhar fixamente, 0 sol e a morte. Existem na analise coisasassim. E muito curiosa que seja justamente para 0 ponto central daanalise que olhemos cada vez mais obliquamente, e de uma distanciacada vez maior. 0 complexo de castra<;ao e uma dessas coisas.

Observem 0 que acontece, e 0 que aconteceu desde as primeirasconcep<;oes que Freud teve disso. Ravia ali urn ponto essencial, pivo,na forma<;ao do sujeito, uma coisa estranha, convem dizer, e que ateentao nunca tinha sido promovida nem articulada. 0 passo de Freudconsistiu em fazer a forma<;ao do sujeito girar em torno de uma amea<;aprecisa, particularizada, paradoxal, arcaica, ate provocadora do horrorpropriamente dito, e que sobrevinha num momenta decisi vo, patoge-nico, sem duvida, mas tambem normativo. Essa amea<;a nao estavasozinha, isolada, mas era coerente com a chamada rela<;ao edipianaentre 0 sujeito, 0 pai e a mae - 0 pai servindo, aqui, de portador daamea<;a, e a mae sendo 0 objeto visado por urn desejo, por sua vez,profundamente oculto.

Voces encontram ai, na origem, precisamente 0 que se trata deelucidar - essa rela<;ao terceira na qual se produzira a assun<;ao darela<;ao com certas insignias, indicadas no complexo de castra<;ao,porem de maneira enigmatica, uma vez que essas pr6prias insigniasacham-se numa rela<;ao singular com 0 sujeito. EIas estao, como se

diz, amea<;adas, e, ao mesmo tempo, sao justamente elas que e precisoacolher, receber, e faze-Io numa rela<;ao de desejo concernente a urnterceiro termo, que e a mae.

No come<;o, e justamente isso que encontramos, e, tendo feitoessa afirma<;ao, estamos precisamente diante de urn enigma. Essarela<;ao, complex a por defini<;ao e pOl' essencia, com que deparamosna vida de nosso sujeito, n6s temos, n6s, que somos os clfnicos, quecapta-Ia, coordena-la e articula-la. Encontramos mil formas, mil re-flexos, uma dispersao de imagens, de rela<;oes fundamentais, das quaistemos de captar todas as incidencias, os reflexos, as multiplas facespsicol6gicas na experiencia do sujeito neur6tico. E entao, 0 queacontece?

Acontece 0 fenomeno que chamarei de fenomeno da motiva<;aopsicologizante. E no indivfduo que tratamos de buscar a origem e 0

senti do do medo da castra<;ao, 0 que nos conduz a uma serie dedeslocamentos e transposi<;oes. Fa<;o-lhes urn resumo.

o medo da castra<;ao esta relacionado, inicialmente, com 0 paicomo objeto, com 0 medo do pai.

Considerando-o em sua incidencia, somos levados a perceber suarela<;ao com uma tendencia ou urn desejo do sujeito, 0 de suaintegridade corporal. Dai por diante, e a no<;ao de medo narcfsico quee promo vida.

Entao - sempre seguindo uma linha que e for<;osamente genetica,ou seja, que remonta as origens, a partir do momento em queprocuramos no pr6prio indivfduo a genese do que se desenvolve depois-, encontramos, colocado em primeiro plano, e corroborado pelomaterial clfnico, porque sempre temos material para apreender asencarna<;oes de urn efeito determinado, 0 medo do 6rgao feminino.E isso de maneira ambigua, ou pOl'que e ele que se torna a sede daamea<;a contra 0 6rgao incriminado, ou, ao contrario, porque ele e 0

modelo do desaparecimento desse 6rgao.Por fim, indo mais longe ainda, por urn recuo cada vez maior,

ate 0 termo ultimo - conclusao impression ante e singular a qualfomos chegando progressivamente, e cuja lista de autores nao Ihesrefarei hoje, exceto que, quanto ao ultimo, voces sabem que foiMelanie Klein -, 0 que esta na origem do me do da castra<;ao e 0

pr6prio falo, escondido no fundo do 6rgao materno. Bern nas origens,o falo paterno e percebido pel a crian<;a como estando sediado nointerior do corpo materno, e e ele que e temido pelo sujeito.

Acaso ja nao e suficientemente impressionante vel' surgir noespelho, frente ao 6rgao amea<;ado, 0 6rgao amea<;ador, e de uma

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~aneira que direi ser cada vez mais mftica, a medida que a origem~ .m_als recuada? ,Para que seja dado 0 ultimo passo, e preciso que 0

Olgao p~terno no In,tenor d~ s,exo materna seja considerado ameac;:ador,em razao de 0 propno sUJelto, nas origens do que chamamos suastendencias agressivas, sadicas, primordiais, ter feito dele a arma ideal.~m ultima ,ins~an~,i~, pOitanto, tudo se resume numa especie de purole~e~? do orgao fabco, conslderado como 0 suporte de uma tendencia~nmItIVa, qu~ e a da ~ura e simples agressao. 0 complexo de castrac;:ao 'ledu~-se, entao, ao Isolamento de uma pulsao agressiva primordialparcIal, e pOl·tanto, desvinculada.

Por causa disso, todo 0 esforc;:o dos autores visa entao a reintegraro co~plexo de castrac;:ao em seu contexto de complexo, ou seja,naq,udo mesmo de que ele partiu, e que motivou profundamente 0

car~ter ce~tral que Ihe foi reconhecido na economia subjetiva queesta na ongem da explorac;:ao das neuroses. Assim, os autores foramlevados a ter urn enorme trabalho para re-situa-Io em seu lugar, apesarde tudo, de modo que, considerando as coisas, vemos desenhar-se 0

~iro inutil de urn conjunto de conceitos em torno dele mesmo. Issoe 0 que nos parece evidente ao examinarmos atentamente a economiado que Melanie Klein articula como acontecendo no nfveI do Edipoprecoce. Essa expressao nao e outra coisa senao uma contradic;:ao dostermos - e uma maneira de dizer 0 Edip,o pre-edipiano. E 0 Edipoa~te~ .que qualquer dos personagens do Edipo tenha aparecido. Osslgn~flcantes interpretativos de que ela se serve para dar nome asp.uls?~s com que se depara, ou que acredita se deparar na crianc;:a, osslgnI~lcantes dela mesma, implicam toda a dialetica de que se tratana ongem.

~Pois bern, e preciso retomar essa dialetica no comec;:o e em suaessenCla.

A castrac;:ao tern urn carater essencial, se a tomarmos tal como foipromovida pel a experiencia e pela teoria analitica, bem como porFreud, desde 0 comec;:o. Saibamos ver, agora, 0 que ela quer dizer.Antes de ser temida, antes de ser vivida, antes de ser psicologizavel,o que quer dlzer a castrac;:ao?

A castrac;:ao nao e uma castrac;:ao real. Esta ligada, como dissemosa urn d_esejo. Est~ ligada inclusive a evoluc;:ao, ao progresso, ~maturac;:ao do deseJo no sujeito humano.

Embora ela seja castrac;:ao, e certo, por outro lado, que 0 vfnculocom esse orgao ~ diffcil de centralizar c1aramente na ideia de complexode castrac;:ao. Ja se observou, com freqiiencia, que nao se trata de umacastrac;:ao que se dirija aos orgaos genitais em seu conjunto, e e porisso mesmo que ela nao assume, na mulher, a aparencia de umaameac;:a contra os orgaos genitais femininos como tais, mas de umaoutra coisa - justamente, como 0 falo. Do mesmo modo, p6de-selevantar legitimamente a questao de saber se, no homem, convinhaisolar na ideia do complexo de castrac;:ao 0 penis como tal, ou incluirnela 0 penis e os testfculos. Na verdade, essas discuss6es mostrambem que a coisa de que se trata nao e nem isso nem daquilo. E algoque tern uma certa relac;:ao com os orgaos, mas uma certa relac;:ao cujocarater significante, desde a origem, nao deixa duvidas. E 0 caratersignificante que predomina.

Digamos que, pelo menos, e preciso conservar urn mfnimo paradefinir 0 que e, em sua essencia, 0 complexo de castrac;:ao - e arelac;:ao de urn desejo com 0 que chamarei, nesta oportunidade, deuma marca.

Para que 0 desejo atravesse satisfatoriamente algumas fases echegue a maturidade, a experiencia freudiana e a teoria analfticaensinam que e preciso que alguma coisa tao problematica de situarquanto 0 falo seja marcada pelo seguinte: que ele so pdssa serconservado na medida em que atravessa a ameac;:a de castrac;:ao.

Isso deve ser mantido como 0 mfnimo essencial, alem do qualpartimos para os sin6nimos, os deslizamentos, as equivalencias e, aomesmo tempo, as obscuridades. Literalmente, nao sabemos mais 0

que estamos dizendo, quando nao guardamos essas caracterfsticascomo essenciais. Nao sera melhor nos dirigirmos, primeiramente, paraa relac;:ao como tal entre esses dois polos, 0 desejo e a marca, antesde irmos procura-Ia nas diversas maneiras pelas quais ela se encarnapara 0 sujeito? A partir do momenta em que deixamos 0 ponto departida, a razao dessa Iigac;:ao so pode tornar-se mais enigmatica,problematica e, em pouco tempo, eludida.

Insisto nesse carater de marca. Alias, fora da analise, em todasas suas outras manifestac;:6es interpretativas ou significativas, e cer-tamente em tudo 0 que a encarna em termos cerimoniais, ritualisticose sociologicos, a marca e 0 sinal do que sustenta a relac;:ao castradoracuja emergencia antropologica a psicanalise nos permitiu perceber.Nao nos esquec;:amos das encarnac;:6es religiosas em que reconhecemoso complexo de castrac;:ao, como a circuncisao, por exemplo, parachama-Ia por seu nome, ou entao, nos ritos de puberdade, tal ou qual

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forma de inscri<;ao, de marca, de tatuagem, ligada a uma certa fase,que se apresenta de maneira nao-ambfgua como 0 acesso a urn certoestagio do desejo. Isso tudo sempre se apresenta como marca eimpressao.

Voces me dirao: - A marca e isso, esta entendido, niio e diflcilencontra-la, ja quando temos rebanhos, cada pastor tem sua marqui-nha, de maneira a distinguir suas ovelhas das dos outros. Essa naoe uma observa<;ao tao tola assim, pois realmente existe uma certarela<;ao, nem que seja no sentido de que a marca se apresenta numacerta transcendencia com respeito a constitui<;ao do rebanho. Deveisso bastar-nos? E bem verdade que, de certa maneira, a circuncisaose apresenta como constituindo urn certo rebanho, 0 rebanho doseleitos de Deus. E so isso que encontramos? Certamente, nao. 0 quea experiencia analftica e tambem Freud nos mostram, desde 0 infcio,e que ha uma rela<;ao estreita ou ate fntima entre 0 desejo e a marca.A marca nao esta ali simplesmente como sinal de reconhecimentopara 0 pastor, 0 qual terfamos dificuIdade de saber onde esta, nessasitua<;ao. Quando se trata do homem, 0 ser vivo marcado tern urndesejo que nao deixa de estar numa certa rela<;ao fntima com a marca.

Nao se trata de andarmos depressa demais nem de dizermos quee essa marca que modi fica 0 desejo. TaIvez haja nesse desejo, desdea origem, uma hiancia que permite que essa marca assuma suaincidencia especial. 0 certo e que existe a mais estreita rela<;ao entreo que caracteriza 0 desejo no homem e a incidencia, 0 papel e afun<;ao da marca. Nisso reencontramos 0 confronto entre 0 significantee 0 desejo, que e 0 ponto a que se refere toda a interroga<;ao quedesenvolvemos aqui.

Eu nao gostaria de me alongar demais, pOl·em, assim mesmo, cabeaqui urn pequeno parentese. Nao nos esque<;amos de que a questaodesemboca, evidentemente, na fun<;ao do significante no homem, ede que esta nao e a primeira vez em que voces ouvem faJa[ disso. SeFreud escreveu Totem e tabu, se foi para ele uma necessidade e umasatisfa<;ao essenciais articula-lo - reportem-se ao texto de Jones paraver a importancia que esse texto tinha para ele -, nao foi simplesmentea tftulo de psicanalise aplicada. Sua satisfa<;ao nao estava em encontrar,ampliado ate as dimensoes do ceu, 0 pequeno animal humane comque the sucedia !idar em seu consultorio. Nao se tratava do cao celesteem rela<;ao ao cao terrestre, como em Espinosa. Para ele, esse era urnmito absolutamente essencial, tao essencial que, a seu ver, nao eraurn mito. Que significa, 0 Totem e tabu?

Significa que, se quisermos entender alguma coisa sobre 0 que ea interroga<;ao pa~ticular de Freud a respeito da experiencia do Edipoem seus doentes, seremos necessariamente lev ados ao tema do assas-sinato do pai.

Quanto a isso, Freud nao se interroga. Mas, eu lhes pergunto -o que po de significar 0 fato de que, para conceber a transi<;ao danatureza para a humanidade, seja preciso passar pelo assassinate dopai?

Segundo seu metodo, que e um metodo de observador e naturalista,Freud co!ige os fatos, faz pulularem em tome desse ponto de con-vergencia todos os documentos que sua informa<;ao the traz. Semduvida, vemos passar para 0 primeiro plano 0 ponto em que suaexperiencia depara com 0 material etnologico. Pouco importa que esteseja mais ou menos obsoleto. Isso, agora, ja nao tern nenhumaimportancia. 0 que importa e que 0 ponto onde ele se encontra, noqual se satisfaz, no qual ve conjugarem-se os sinais cujas pistas elesegue, e aquele em que a fun<;ao da fobia liga-se ao tema do totem.E isso eindiscernfvel de urn progresso que coloca em primeiro planoa fun<;ao do significante.

A fobia e urn sintorna no qual aparece em prirneiro plano, demaneira isolada e promovida como tal, 0 significante. Passei 0 ultimoana a lhes explicar isso, rnostrando-Ihes a que ponto 0 significantede uma fobia tem trezentas mil significa<;6es para 0 sujeito. Ele e 0

ponto chave, 0 significante que falta para que as significa<;oes possam,ao menos por algum tempo, ficar mais ou menos tranquilas. Sem isso,o sujeito e literal mente inundado. Do mesmo modo, 0 totem tamberne isso mesmo, 0 significante de serventia multipla, 0 significantechave, aquele gra<;as ao qual tudo se ordena, e principal mente 0 sujeito,pOl"que 0 sujeito encontra nesse significante aquilo que ele e, e e emnome desse totem que se orden a tambem, para ele, 0 que e proibido.

Mas 0 que isso ainda nos vela, nos esconde, em ultima instancia?o que esconde 0 proprio assassinate do pai, na medida em que e emtome dele que se faz a revolu<;ao gra<;as a qual os jovens machos dahorda veem ordenar-se 0 que sera a lei primitiva, isto e, a proibi<;aodo incesto? Ele esconde, simplesmente, a estreita liga<;ao que existeentre a morte e 0 aparecimento do significante.

Em seu rarne-rarne ordinario, todo 0 mundo sabe que a vida naose detem nos cadaveres que produz. Os peixes gran des comem ospequenos - ou ate, depois de mata-Ios, nao os comem. 0 movimento

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da vida nivela 0 que, diante de si, ela tern para abolir, e Ja e urnproblema saber em que medida uma morte e memorizada, mesmo queessa memoriza~ao seja como que implfcita, isto e, que, como tudodeixa transparecer, seja da natureza dessa memoriza~ao que 0 fatoseja esquecido pelo indivfduo, quer se trate do assassinato do pai oudo assassinato de Moises. E da natureza de nossa mente esquecer 0

que e abso[utamente necessario como chave, 0 ponto-pivo em tornodo qual ele gira. Para que uma morte seja memorizada, e preciso queurn certo vfnculo tenha-se tornado significante, de maneira a que essamorte exista de outro modo no real, na pulula~ao da vida. Nao haexistencia da morte, existem mortos, e e so. E, quando mon'em,ninguem mais no mundo lhes presta aten~ao.

Em outras palavras, 0 que produz tanto a paixao de Freud aoescrever Totem e tabu quanto 0 efeito fulgurante de urn livro que foipublicado para ser rejeitado e vomitado de maneira generalizada?Todo 0 mundo disse: - Que historia e essa que esse camarada estanos contando? Quem e ele? Com que direito nos conta isso? Nos,etnografos, nunca vimos nada assim. 0 que nao impede que esse livroseja urn dos acontecimentos capitais de nosso seculo, que transformouprofundamente toda a inspira~ao do trabalho crftico, etnologico, Iite-rario e antropolOgico.

Que quer dizer isso, a nao ser que Freud conjuga nele duascoisas, 0 desejo e 0 significante? Ele os conjuga como dizemosque se conjuga urn verbo. Faz a categoria dessa conjuga~ao entrarno seio de urn pensamento acerca do homem que, ate ele, continuava,eu diria, academizante - com isso designando uma filia~ao filo-s6fica da Antigiiidade, a qual, desde 0 platonismo ate as seitasestoica e epicurista, e passando pelo cristianismo, tende profunda-mente a esquecer a rela~ao organica do desejo com 0 significante,a excluir 0 desejo do significante, a reduzi-Io, a the dar comocausa uma certa economia do prazer, a eludir 0 que ha nele deabsolutamente problematico, irredutfvel e propriamente perverso,a eludir aquilo que e 0 carater essencial, vivo, das manifesta~6esdo desejo humano, em cujo primeiro plano devemos colocar seucarater nao somente inadaptado e inadaptavel, mas, fundamental-mente, marcado e pervertido.

E desse vinculo entre 0 desejo e a marca, entre 0 desejo e ainsignia, entre 0 desejo e 0 significante, que estamos aqui fazendourn esfor~o para descrever a situa~ao.

Reportemo-nos agora as tres pequenas formulas que Ihes escrevi.Hoje quero simplesmente apresenta-Ias e Ihes dizer 0 que elas

significam, pOI'que nao poderemos ir mais adiante. Essas formulas, ameu ver, saD as que Ihes permitirao articular nao apenas alguma coisado problema que acabo de Ihes propor, mas ate todas as vaguea~6esou mesmo divaga~6es do pensamento analftico acerca do que continuaa ser nosso problema fundamental, que e, nao nos esque~amos, 0

problema do desejo.Comecemos por esclarecer 0 que querem dizer aquelas letras ali.

o d minusculo e 0 desejo. 0 $e 0 sujeito. 0 a minusculo e 0 pequenooutro, 0 outro como nos so semelhante, cuja imagem nos retem, noscativa, nos sustenta, e na medida em que constitufmos em tomo delaaquela primeira ordem de identifica~6es, que Ihes defini como aidentifica~ao narcfsica, que e 0 m minusculo, 0 eu.

Essa primeira linha coloca essas letras numa certa rela~ao, queas setas Ihes indicam que nao po de ser percorrida ate 0 fim em separtindo de cada extremidade, mas que se detem no ponto exato emque a seta diretriz depara com uma outra de sinal oposto. A identifi-ca~ao egoica ou narcfsica encontra-se, aqui, numa certa rela~ao coma fun~ao do desejo. Retomarei esse comentario.

A segunda Iinha concerne aquilo a respeito do qual articulei todoo meu discurso no infcio deste ano, quando tentei faze-Ios verem natirada espirituosa uma certa rela~ao fundamental do desejo nao como significante como tal, mas com a fala, isto e, com a demanda. 0D escrito aqui quer dizer demanda. 0 A maiusculo que se segue e 0

grande Outro, 0 lugar, a sede, a testemunha a que 0 sujeito se refereem sua rela~ao com urn a minusculo qualquer, como sendo 0 lugarda fala. Nao e preciso lembrar aqui 0 quanto tenho articulado, hamuito tempo, e voltado a ela sem cessar, a necessidade desse grandeOutro como 0 lugar da fala articulada como tal. Aqui encontramos 0

d minusculo e tam bern, pela primeira vez, 0 s minusculo, com amesma significa~ao que ele costuma ter em nossas formulas, ou seja,a de significado. 0 s minusculo do A maiusculo designa 0 que eexpresso no outro, e expresso com a ajuda do significante, ou seja,aquilo que, no Outro, para mim, sujeito, adquire val~r de significado,isto e, aquilo que ha pouco chamamos de insignias. E na rela~ao comessas insfgnias do Outro que se produz a identifica~ao que tern porfruto e resultado a constitui~ao, no sujeito, do I maiusculo, que e 0

Ideal do eu. A simples constitui~ao dessas formulas presentifica 0

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fato de que s6 existe acesso a identificac;:ao do Ideal do eu depois queentra em conta 0 grande Outro.

Tal como as precedentes, a terceira linha procura articular urnproblema numa cadeia-referencial. Trata-se, aqui, do problema quehoje articulo diante de voces.

a delta e precisamente aquilo sobre 0 qual nos interrogamos, ouseja, 0 pr6prio eixo pelo qual 0 sujeito humano e colocado numa certarelac;:ao com 0 significante, e isso em sua essencia de sujeito, de sujeitototal, de sujeito em seu carMer completamente aberto, problematico,enigmatico - que esse sfmbolo exprime.

Aqui voces veem 0 sujeito retornar mais uma vez, agora em suarelac;:ao com 0 fato de que seu desejo passa pela demanda, de que elefala, e de que isso tern alguns efeitos. Em seguida, voces tern 0 Smaiusculo, que, como de habito, e a letra com que designamos 0significante. A f6rmula explica que 0 S maiusculo do II.. barrado eexatamente 0 que <1>, 0 falo, realiza. Em outras palavras, 0 falo e 0significante que introduz no /I.. algo de novo, e que s6 0 introduz noII.. e no nfvel do /I.. - grac;:as ao que essa f6rmula se esclarecera pelosefeitos de significante. a ponto exato de incidencia no Outro e 0 queessa formula nos permitira esclarecer.

Retomemos agora aquilo de que se trata.A relac;:ao do homem com 0 desejo nao e uma relac;:ao pura e

simples de desejo. Nao e, em si, uma relac;:ao com 0 objeto. Se arelac;:ao com 0 objeto estivesse desde logo institufda, nao haveriaproblema para a analise. as homens, como se presume que fac;:a amaioria dos animais, iriam em direc;:ao a seu objeto. Nao haveria, porassim dizer, essa relac;:ao secundaria do homem com 0 fato de ele serurn animal desejante, e que condiciona tudo 0 que acontece no nfvelque chamamos perverso, ou seja, 0 fato de ele gozar de seu desejo.Toda a evoluc;:ao do desejo encontra sua origem nesses fatos vividosque sao classificados na relac;:ao, digamos, masoquista, pOl'que ela ea primeira que nos fazem extrair da ordem genetica, mas chegamosa ela pOl' uma especie de regressao. A que se oferece como maisexemplar, como mais axial, e a chamada relac;:ao sadica, ou a relac;:aoescotofflica.

Esta absolutamente claro que e pOl' uma reduc;:ao, urn manejo,uma decomposic;:ao artificial secundaria do que e dado na experienciaque as isolamos sob a forma de puls6es, que substituem umas asoutras e se equivalem. A relac;:ao escotofflica, no que conjuga exibic;:aoe voyeurismo, e sempre ambfgua - 0 sujeito se ve sendo visto, ve-seo sujeito como visto, mas, e claro, ele nao e visto pura e simplesmente,e sim no gozo, na especie de irradiac;:ao ou fosforescencia que se

c1estaca pelo fato de 0 sujeito estar numa posic;:ao vinda sabe-se la deque hiancia prim,itiva, como que extrafda de sua relac;:ao de implicac;:aocom 0 objeto, e, a partir da!, ele mesmo se apreende fundamentalmentecomo paciente nessa relac;:ao. Disso provem 0 fato de que 0 queencontramos na base da explorac;:ao analftica do desejo e 0 masoquismo_ 0 sujeito apreende-se como aquele que sofre, capta sua existenciade ser vivo como aquele que sofre, isto e, como sendo sujeito dodesejo.

On de esta 0 problema agora? Para todo 0 sempre, 0 desejo humanocontinuara irredutfvel a qualquer reduc;:ao e adaptac;:ao. Nenhumaexperiencia analftica ira contra isso. a sujeito nao satisfaz simples-mente urn desejo, mas goza pOl' desejar, e essa e uma dimensaoessencial de seu gozo. E absolutamente erroneo omitir esse dadoprimitivo, ao qual, devo dizer, a chamada investigac;:ao existencialistatrouxe algumas luzes, colocando-as sob urn certo prisma esclarecedor.Isso, que Ihes estou articulando como posso, pede, para tel' senti do,que voces se refiram a nossa experiencia do dia-a-dia, mas foidesenvolvido ao longo de paginas magistrais, diversamente, pelo sr.Sartre, em 0 ser e 0 nada. Aquilo nem sempre e de absoluto rigorfilos6fico, mas e, certamente, de incontestavel talento literario. aimpression ante e que coisas dessa ordem s6 tenham conseguido serarticuladas com tamanho brilhantismo depois que a analise concedeudireito de cidadania a dimensao do desejo.

a sr. Jones, cuja utilidade e func;:ao na analise terao sido direta-mente proporcionais ao que ele nao compreendia, tentou muito de-pressa articular 0 complexo de castrac;:ao, dando-lhe urn equivalente.Numa palavra, 0 significante falico, ao longo de toda a sua vida deescritor e analista, foi para ele objeto do que talvez possamos chamarde uma verdadeira fobia. a que ele escreveu de melhor, e que culminouem seu artigo sobre a fase falica, consistiu precisamente em dizer:pOl' que privilegiar esse maldito falo que encontramos a todo instante,a cada passo, esse objeto alias inconsistente, quando ha coisas igual-mente interessantes? - como a vagina, pOl' exemplo. E, de fato, tinharazao esse homem. Esta muito claro que esse objeto nao tern urninteresse menor do que 0 falo, sabemos disso. S6 que 0 que 0 espantae que os dois nao tenham a mesma func;:ao. Ele estava estritamentecondenado a nao compreender nada disso, na medida mesma em que,desde 0 comec;:o, desde seu primeiro impulso, desde 0 momento emque procurou articular 0 que era 0 complexo de castrac;:ao em Freud,ele sentiu necessidade de Ihe dar urn equivalente, em vez de reter 0

que talvez houvesse de teimoso, ou ate de irredutfvel, no complexode castrac;:ao, ou seja, 0 significante falo.

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Jo.nes nao deixava de tel' uma certa orienta~ao, e talvez tenhacometldo apenas urn erro, 0 de pensar que Deus criou 0 homem e amUlhe~~.Foi co~ essa frase que ele concluiu seu artigo sobre a "phallicPh.ase , com ISSO delxando bem claras as origens bfblicas de suaconvic~ao. Ja que Deus os criou homem e mulher, e pOI'que foramfeltos ~ara anda~' Juntos, e e preciso que seja af que isso desemboque,ou entao, que dlga por que.

.Ora, just~mente, estamos na analise para perceber que, quandop:dlmosque I~SOdlga por que, entramos em toda sorte de complica-~oes. FOI por ISSOque, desde 0 infcio, 0 sr. Jones substituiu 0 termocomplexo de castra~ao pela palavra afanise, a qual foi buscar nodic!onario de grego e a qual, convem dizer, nao e uma palavra dasmals empregadas pelos autores. Ela significa desaparecimento. De-sa~areciment? de que? Desaparecimento do desejo. E isso que 0

sUJelto temena no complexo de castra~ao, no dizer do sr. Jones. Comseu passinho sal~~tante de personagem shakespeariano, ele nem pareceu?e~C~nflar que Ja era urn problema enorme que urn ser vivo pudessemtllTiidar-se, como se isso Fosse urn perigo, nao com 0 desapareci-m:nto" com a falt.a, com a separa~ao de seu objeto, mas de seu desejo.Nao ha outro mew de fazer da afanise urn equivalente do complexode castra~ao, a nao ser definindo-a como ele faz, ou seja, comodesa~areclmento do desejo. Nao haveni af alguma coisa que nao e deto do mfundada? Que isso ja seja alguma coisa de segundo ou terceirograu, em referencia a uma rela~ao articulada em termos de necessidadenao ha duvida, mas e disso que ele nao parece tel' a mfnima descon~fian~a.

Dito isso, mesmo admitindo que ja tenham sido resolvidas todasas complica~6es sugeridas pela simples formula~ao do problemanesses termos, re~ta estruturar, precisamente, a rela~ao do sujeito como Outro, na medlda em que e no Outro, no olhar do Outro, que eleapreen~~ sua propria posi~ao. Nao e a toa que distingo aqui a posi~aoesc?t~fIllca, mas por ela estar efetivamente no cerne nao apenas dessap.os5ao" ~as tambem da atitude do Outro, na medida em que nao ha po-sl~ao sadlca que, para ser propriamente qualificavel de sadica, naoseJa acompa~hada por uma certa identifica~ao masoquista. 0 sujeitohumano, aSSlm, acha-se numa rela~ao com seu proprio ser comoseparado, 0 que 0 coloca numa posi~ao tal perante 0 Outro, que, tanton?, que ele apreende quanta naquilo com que goza, trata-se de algodlferente. de uma rela~ao com 0 objeto, trata-se de uma rela~ao comseu deseJo. 0 que resta saber agora e: que vem fazer nisso 0 falocomo tal? Af e que esta 0 problema.

Para resolve-Io, abstenhamo-nos de procurar gerar 0 termo de quese trata, de imagina-Io atraves de uma reconstitui~ao genetica baseadano que chamarei de referencias fundamentais do obscurantismo mo-derno. Refiro-me a formulas que, a meu ver, sao imensamente maisimbecis do que 0 que voces podem encontrar nos livrinhos decatecismo, e dentre as quais esta e urn exemplo: a onto genese reproduza filogenese. Quando nossos bisnetos souberem que, em nossa epoca,isso bastava para explicar uma por~ao de coisas, eles dirao que 0

homem e mesmo uma coisa engra~ada - sem se aperceberem, alias,do que havera no mesmo lugar nessa ocasiao.

A questao, pOItanto, e saber 0 que 0 falo vem fazer nessa historia.Enunciemos, por hoje, 0 que a existencia da terceira linha comporta,ou seja, que 0 falo desempenha urn papel de significante. Que querdizer isso?

Para esclarece-Io, partamos da segunda linha, que significa queha uma certa rela~ao do homem com 0 pequeno outro (a) que eestruturado como 0 que acabamos de chamar de desejo humano, nosentido de que esse desejo ja e fundamental mente perverso e, porconseguinte, todas as suas demandas sao marcadas por uma certarela~ao, que e representada por esse novo pequeno sfmbolo em losangoque voces encontram repetidamente nessas formulas. Ele simplesmenteimplica - esse e todo 0 seu senti do - que tudo de que se trata aquie coman dado por essa rela~ao quadratica que sempre colocamos nabase de nossa articula~ao do problema, e que diz que nao ha Sconcebfvel - nem articulavel, nem possfvel - que nao se sustentena rela~ao ternaria A a' a. Isso e tudo 0 que 0 losango pretende dizer.Para que a demanda exista, tenha uma possibilidade, seja algumacoisa, e preciso que haja uma certa rela~ao entre seA) e 0 desejo talcomo e estruturado, A 0 d, 0 que nos remete a primeira linha.

Ha, com efeito, uma composi~ao das linhas. A primeira indicaque a identifica~ao narcfsica, ou seja, aquilo que constitui 0 eu dosujeito, faz-se numa certa rela~ao da qual, ao longo do tempo, temosvisto todas as varia~6es, diferen~as, nuances - prestfgio, imponencia,domina~ao - numa certa rela~ao com a imagem do outro. Vocesencontram seu correspondente, seu correlato, naquilo que esta do outrolado do ponto de revolu~ao desse quadro, ou seja, na Iinha dupla deequivalencia que esta ali no centro. A propria possibilidade da exis-tencia de urn eu, desse modo, e relacionada com 0 carater fundamen-talmente desejante - e ligado aos avatares do desejo - do sujeito,o que esta articulado, aqui, na primeira parte da primeira Iinha.

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Do mesmo modo, qualquer identifica<;ao com as insignias doOutro, isto e, do terceiro como tal, depende de que? Da demanda. Dademanda e das rela<;6es do Outro com 0 desejo.

Isso, que e perfeitamente claro e evidente, permite dar seu plenovalor ao termo com que Freud, por sua vez, design a 0 que chamamos,de maneira muito impr6pria - direi por que - frustra<;ao. Freud dizVersagung. Sabemos por experiencia que e na medida em que algumacoisa e versagt que se produz no sujeito 0 fen6meno da identifica<;aosecundaria, ou identifica<;ao com as insignias do Outro.

o que implica isso? Que, para que sequer possa estabelecer-sealguma coisa para 0 sujeito, entre 0 grande Outro (A) como lugar dafala e 0 fen6meno de seu desejo - 0 qual se coloca num planototalmente heterogeneo, ja que esta relacionado com 0 pequeno outro(a) como sua imagem -, e preciso que algo introduza no Outro (A)essa mesma rela<;ao com 0 pequeno outro (a) que e exigivel, necessariae fenomenologicamente tangivel, para explicar 0 desejo humano comodesejo perverso. E a necessidade de uma articula<;ao do problema queestamos propondo hoje.

Isso pode parecer-Ihes obscuro. Vou lhes dizer uma coisa s6 -e ao nao afirmar nada que nao apenas isso se torna cada vez maisobscuro, como tambem, ainda pOl' cima, tudo se embrulha. Pode serque, ao contrario, afirmando isso talvez possamos extrair dai urnpouco de ordem.

Afirmamos que <1>, 0 falo, e 0 significante pelo qual e introduzidano A, como lugar da fala, a rela<;ao com 0 a, 0 pequeno outro, namedida em que 0 significante tern alguma coisa a vel' com isso.

Ai esta. Isso da a impressao de morder 0 pr6prio rabo - mas epreciso que morda 0 pr6prio rabo. E claro que 0 significante ternalguma coisa a ver com isso, ja que deparamos com esse significantea cada passo. Encontramo-Io desde a origem, uma vez que nao haveriaentrada do homem na cultura - ou melhor, na sociedade, se distin-guirmos cultura e sociedade, mas e a mesma coisa - se a rela<;aocom 0 significante nao estivesse na origem.

Assim como definimos 0 significante paterno como 0 significanteque, no lugar do Outro, instaura e autoriza 0 jogo dos significantes,ha urn outro significante privilegiado que tern por efeito instituir noOutro uma coisa que modifica sua natureza - e e por isso que, naterceira linha, 0 simbolo do Outro leva uma barra -, ou seja, ele naoe, pura e simplesmente, 0 lugar da fala, mas esta, como 0 sujeito,implicado na dialetica situada no plano fenomenico da reflexao acerca

do pequeno outro. 0 que isso vem acrescentar e que essa rela<;aoexiste na medida em que 0 significante a inscreve.

Pe<;o-Ihes, seja qual for a dificuldade que isso Ihes, cause, .que aguardem em mente. Voces ficarao nesse ponto por hOJe. Depols Ihesmostrarei 0 que isso permite ilustrar e articular.

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Nossas interpretagoes e as deleo caso de Elisabeth yon R.Dissociagao do amor e do desejoo desejo articulado nao Ii articulavelo riso e a identificagao

Eu gostaria de leva-los, hoje, a uma apreensao primana acerca doobjeto de nossa experiencia, isto e, 0 inconsciente.

Meu prop6sito, em suma, e mostrar-lhes 0 que a descoberta doinconsciente nos abre de vias e possibilidades, sem deixa-los esque-cerem os limites que ela imp6e a nosso poder. Em outras palavras,trata-se, para mim, de lhe§.mostrar em ue perspectiva, em que alamedase deixa vislumb~a ssibilidade de uma .noLill£lli.z.a~j.o - umanormatiza~ao terapeutica - ue toda a experiencia analftica esta afpara lhes mostrar ue se choca no ent;.:;to, com as antinomias internascfe-~-;]~r·;oi;;;qtiza~ao '~'a co;;cti~ao hu~an;;' -

A sicanalise ermite-nos ate aprofundar a natureza desses limites.---- ~----

Nao podemos deixar de nos impressionar com 0 fato de que Freud,num de seus ultimos artigos - aquele cujo tftulo foi impropriamentetraduzido pOl' "Analise terminavel e interminavel", quando, na ver-dade, ele diz respeito ao finito e ao infinito, tratando-se da analise na

medida em que ela se finda ou em que deve ser situada numa especiede alcance infipito -, com 0 fato de que Freud, pOttanto, designa-nosda maneira mais clara a proje~ao do objetivo da analise no infinito,e 0 designa no nfvel da experiencia concreta, como ele diz, apontadoo que ha de irredutfvel, para 0 homem, no complexo de castra~ao e,para a mulher, no Penisneid, ou seja, numa certa rela~ao fundamentalcom 0 falo.

Em que foi que a descoberta freudiana depositou a enfase, ems~)nfcio? No Idesejo 0 que Freud descobriu essencialmente, 0 queele apreendeu nos sin tomas, fossem estes quais fossem, quer se tratassede sintomas patol6gicos, quer se tratasse do que ele interpretou noque ate entao se apresentava como mais ou menos redutfvel a vidanormal, como 0 sonho, pOl' exemplo, foi sempre urn desejo.

E mais ainda, no sonho ele nao nos falou simplesmente de desejo,mas de realiza~ao de desejo, Wunscherfiillung. Ha urn dado que naodeve deixar de nos impressionar, ou seja, que foi precisamente nosonho que ele falou de satisfa~ao do desejo. Ele indicou, pOl' Dutrolado, que no pr6prio sintoma ha alguma coisa que se assemelha aessa satisfa~ao, s6 que e uma satisfa~ao cujo caniler problemMico emuito acentuado, uma vez que e tambem uma satisfa~ao as avessas.

Evidencia-se desde logo, pOItanto, que 0 desejo esta ligado aalguma coisa que e sua aparencia e, para dizermos a palavra exata,sua mascara. 0 vfnculo estreito que e mantido pelo desejo, tal comose apresenta a n6s na experiencia analftica, com aquilo de que ele sereveste, de maneira problematic a, convida a que nos detenhamos nissocomo sendo urn problema essencial.

Frisei em diversas ocasi6es, nas ultimas vezes, a maneira comoo desejo, na medida em que aparece na consciencia, manifesta-se sobuma forma paradoxal na experiencia analftica - ou, mais exatamente,o quanto esta promoveu urn carateI' inerente ao desejo como desejoperverso, que e 0 de ser urn desejo a segunda potencia, urn gozo como desejo como desejo.

'( De maneira geral, nao foi a analise que descobriu a fun~ao do,desejo, mas ela nos permitiu perceber a que grau de profundidade elevado 0 fato de 0 desejo humano nao estar diretamente implicadonuma rela~ao pura e simples com 0 objeto que 0 satisfaz, mas estarligado a uma posi~ao assumida pelo sujeito na presen~a desse obje-to e a uma posi~ao que ele assume fora de sua rela~ao com 0 objeto,

, de tal modo que nada jamais se esgota, pura e simplesmente, narela~ao com 0 objeto.

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POl' outro lado, a analise se presta para lembrar uma coisaconhecida des de sempre, qual seja, 0 carater vagabundo, fugidio,inapreensfvel do desejo. Ele justamente escapa a sfntese do eu, naoIhe deixando outra safda senao ser, a todo instante, apenas umaafirma~ao ilusoria de sfntese. Embora seja sempre eu quem desejo,isso em mim so pode ser apreendido na diversidade dos desejos.

Atraves dessa di versidade fenomenologica, atraves da contradi~ao,da anomalia, da aporia do desejo, e certo, pOl' outro lado, que semanifesta uma rela~ao mais profunda, que e a rela~ao do sujeito coma vida e, como se costuma dizer, com os instintos. POl' se haver situadonesse caminho, a analise nos leva a fazer progressos na situa~ao dosujeito em rela~ao a sua posi~ao de ser vivo. Mas, justamente, aanalise nos faz experimental' pOl' quais meios se realizam nao apenasos objetivos ou finalidades da vida, mas tambem, talvez, do que estapara-alem da vida. Freud contemplou, com efeito, como urn para-alemdo princfpio do prazer, sabe-se la que teleologia dos primeiros finsvitais ou das finalidades derradeiras a que almejaria a vida, e que eo retorno ao equilfbrio da morte. Tudo isso, a analise nos permitiu,eu nao diria definir, mas entrever, na medida em que nos permi-tiu tambem acompanhar em seus encaminhamentos a realiza~ao dosdesejos.

o desejo humano, em suas rela~6es internas com 0 desejo doOutro, foi vislumbrado des de sempre. Basta nos reportarmos aoprimeiro capftulo da Fenomenologia do espfrito, de Hegel, paradescobrirmos pOl' quais caminhos uma reflexao bastante aprofundadapoderia permitir-nos iniciar essa investiga~ao. Isso nao equivale aretirar nada da originalidade do fenomeno novo trazido pOl' Freud, eque nos permite lan~ar uma luz muito essencial sobre a natureza dodesejo.

.Q caf!linho seguido pOl' Regel em sua primeira abordagem dodesejo esta longe de ser, unicamente, como se sup6e ao ve-Io de fora,uma via dedutiva. Trata-se de \l..maapreensao do desejo pOl' intermediQdas rela~6es da consciencia de si com a constitui~ao da conscienGiade sj no outro. A questao que entao se coloca e saber de que modo,pOl' intermedio disso, pode introduzir-se a dialetica da propria vida.Isso so pode traduzir-se, em Hegel, pOl' uma especie de saIto que, na

)

,ocaSiao, ele chama de sfntes&. A experiencia freudiana mostra-nosurn encaminhamento inteiTamente diverso, embora, muito curiosamen-te, e tambem de maneira muito notavel, 0 desejo tambem se apresentenele como profundamente Iigado a rela~ao com 0 outro como tal,apesar de se apresentar como urn desejo inconsciente.

Convem agora nos remetermos ao nfvel do que foi, na experienciado proprio Freud, em sua experiencia humana, essa abordagem dodesejo incon;ciente. E preciso formarmos uma ideia dos primeirostempos em que Freud deparou com essa experiencia em seu caraterde novidade surpreendente, como que apelando, eu nao diria para aintui~ao, mas para a adivinha~ao, pois se tratava de apreender algumacoisa pOl' tras de uma mascara.

Agora que a psicanalise esta constitufda, e que se desenvolveunum discurso muito amplo e mobilizador, podemos formal' uma ideia- mas a formamos muito mal - do que foi 0 alcance do que Freudintroduziu, quando come~ou a ler nos sintomas de seus pacientes, aIeI' em seus proprios sonhos e a trazer para nos a no~ao do desejoinconsciente. E justamente isso que nos falta para avaliar pOl' seujusto valor suas interpreta~6es. Ficamos sempre muito espantados como que se nos afigura, com grande freqilencia, como seu caraterextraordinariamente intervencionista, comparado ao que nos mesmosnos permitimos e, diria eu, comparado ao que podemos e nao podemosmais permitir-nos.

Podemos ate acrescentar que as interpreta~6es dele nos impres-sionam, ate certo ponto, pOl' seu carater enviesado. Porventura naoIhes assinalei mil vezes, a proposito do caso Dora, pOl' exemplo, oudas interven~6es dele na analise dajovem homossexual de que falamoslongamente aqui, 0 quanto as interpreta~6es de Freud - ele mesmoo reconheceu - estavam ligadas a seu conhecimento incompleto dapsicologia, muito especialmente ados homossexuais em geral, mastambem ados histericos? 0 conhecimento insuficiente que Freud tinhanessa ocasiao fez com que, em mais de urn caso, suas interpreta~6esse apresentassem com urn carater demasiadamente diretivo, quasefor~ado e, ao mesmo tempo, precipitado, 0 que de fato confere plenovalor a expressao interpreta~ao enviesada.

Nao obstante, e certo que essas interpreta~6es se apresentavamnaquele momento, ate certo ponto, como tendo de ser feitas, comoas interpreta~6es eficazes para a resolu~ao do sintoma. Que quer dizerisso?

Evidentemente, isso nos levanta urn problema. Para come~ar adesbasta-Io, convem concebermos que, quando Freud fazia interpre-ta~6es dessa ordem, ele se achava diante de uma situa~ao completa-mente diferente da situa~ao atual. Com efeito, numa interpreta~ao-veredito, tudo 0 que sai da boca do analista, desde que haja interpre-ta~ao propriamente dita, esse veredito, isso que e dito, proposto, tidocomo verdadeiro, Iiteralmente adquire valor a partir daquilo que nao

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e dito. A quesUio, pOltanto, e saber contra qual fundo de nao-ditoprop6e-se uma interpreta~ao.

Na epoca em que interpretava Dora, Freud the dizia, por exemplo,que ela amava 0 Sr. K., e the indicava sem rodeios que era com eleque ela deveria refazer normal mente sua vida. Isso nos surpreende,ainda mais por sabermos que nao podia tratar-se disso, pelas melhoresraz6es possfveis, e porque, afinal, Dora nao queria saber absolutamentenada a esse respeito. No entanto, uma interpreta~ao dessa ordem, nomomento em que era feita por Freud, apresentava-se contra urn fundoque, pOl' parte da paciente, nao comportava nenhuma presun~ao deque seu interlocutor esti vesse ali para the retificar a apreensao domundo ou fazer com que sua rela~ao de objeto Fosse levada amaturidade. Para que 0 sujeito espere essas coisas da boca do analista,e precise todo urn ambiente cultural, do qual nada se havia formadoate entao. Na verdade, Dora nao sabia 0 que esperar, era conduzidapela mao, e Freud the dizia FaZe, e nada mais despontava no horizontede uma experiencia dirigida dessa maneira - a nao ser implicitamente,pois, pelo simples fato de Ihe dizerem para falar, devia haver em jogoalguma coisa da ordem da verdade.

A situa~ao esta longe de ser parecida com essa para nos. Hojeem dia, 0 sujeito ja chega a analise com a ideia de que a matura~aoda personalidade, dos instintos, da rela~ao de objeto, e uma realidadeja organizada e normatizada, da qual 0 analista representa 0 padrao.o analista aparece diante dele como 0 detentor dos caminhos e segredosdo que se apresenta de imediato como uma rede de rela~6es, se naotodas conhecidas pelo sujeito, pelo menos chegando a ele em suaslinhas gerais - ao menos na ideia que ele tern dessas linhas gerais.Ele tern a ideia de que sac concebfveis interrup~6es em seu desen-volvimento, de que urn progresso deve ser realizado. Em suma, hatodo urn fundo concernente a normatiza~ao de sua pessoa, de seusinstintos etc. - insiram nessa categoria tudo 0 que quiserem. Tudoisso implica que 0 analista, quando intervem, intervem, digamos, numaposi~ao de julgamento, de san~ao - ha uma palavra ainda mais exata,que indicaremos mais tarde -, 0 que confere urn alcance completa-mente diferente a sua interpreta~ao.

Para apreender bem do que se trata quando lhes falo do desejoinconsciente na descoberta freudiana, e precise voltar aqueles temposde frescor em que nada era implicado pela interpreta~ao do analista,a nao ser a detec~ao no imediato, por tras de algo que se apresentavaparadoxalmente como absolutamente fechado, de urn X que estavamais alem.

Todo 0 mundo aqui se deleita com 0 termo sentido. Nao achoque esse term<;>seja outra coisa, no caso, senao uma atenua~ao daquilode que se tratava na origem, ao passe que 0 termo desejo, no que eleata e reline de identico ao sujeito, confere toda a importancia ao quese encontrou nessa primeira apreensao da experiencia analftica. E aisso que convem voltarmos, se quisermos juntar, ao mesmo tempo, 0

ponto em que nos encontramos e 0 que significa, essencialmente, naoapenas nossa experiencia, mas as possibilidades dela - ou seja, 0

que a torna possfve!.Tambem e isso que deve resguardar-nos de ceder a inclina~ao,

ao pendor, eu diria quase a armadilha em que nos mesmos somosimplicados com 0 paciente a quem introduzimos na experiencia - eque seria a de induzi-lo por urn caminho que repousa num certomimero de peti~6es de princfpio, isto e, na ideia de que possa serdada a seu estado uma solu~ao derradeira, que finalmente Ihe permitatornar-se, digamos a palavra, identico a urn objeto qualquer.

Voltemos, pois, ao carater problematico do desejo tal como elese apresenta na experiencia analftica, isto e, no sintoma, seja este qualfor.

Chamo aqui de sintoma, em seu sentido mais geral, tanto 0 sintomamorbido quanto 0 sonho, ou quanto qualquer coisa analisave!. 0 quechama de sintoma e aquilo que e analisave!.

o sintoma apresenta-se sob uma mascara, apresenta-se de umaforma paradoxal.

A dor de uma das primeiras histericas analisadas por Freud,Elisabeth von R., apresentou-se, a princfpio, de uma maneira queparecia inteiramente fechada. Aos poucos, gra~as a uma pacienciaque realmente podemos dizer inspirada numa especie de instinto deperdigueiro, Freud associou essa dor a longa presen~a da paciente aolade do pai enfermo e a incidencia, enquanto ela cuidava dele, dealguma outra coisa, que a princfpio ele entreviu numa especie debruma, a saber, 0 desejo que poderia liga-la, na epoca, a urn de seusamigos de infancia, de quem ela esperava fazer seu marido. Vmaoutra coisa apresentou-se em seguida, tambem sob forma dissimulada,a saber, suas rela~6es com os maridos de suas duas irmas. A analisenos faz entrever que, de maneiras diversas, ambos haviam representadopara ela algo de importante - ela detestava urn, por nao sei qual

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indignidade, grosseria ou inabilidade masculina, enquanto 0 outro, aocontnhio, parecia have-la seduzido infinitamente. Com efeito, 0 sin-toma parecia haver-se precipitado em torno de urn certo numero deencontros e de uma especie de meditar;ao oblfqua acerca das relar;oes,alias muito felizes, desse cunhado com uma de suas irmas mais novas.Reto~o esses dados para fixar as ideias, a guisa de exemplo.

E claro que estavamos, entao, numa epoca primitiva da experienciaanalftica. 0 fato de Freud dizer a paciente, pura e simplesmente, comonao deixou de fazel', que ela estava apaixonada pOl' seu cunhado, eque era em torno desse desejo reprimido que se havia cristalizado 0

sintoma, ou seja, a dor na perna, sentimos perfeitamente e sabemosagora, ap6s todas as experiencias feitas posteriormente, que isso, numahisterica, e uma intromissao forr;ada - tal como dizer a Dora queela estava apaixonada pelo Sf. K.

Quando nos aproximamos de uma observar;ao assim, tocamosnesta visao mais panoramica que lhes proponho. Para isso, nao hanecessidade alguma de subverter a observar;ao, pois, sem que 0

formulassedessa maneira, sem que 0 diagnosticasse, 0 discernisse,Freud forneceu todos os seus elementos da maneira mais clara. Atecerto ponto, alem das palavras que ele articulou em seus paragrafos,a pr6pria composir;ao de seu relato deixa transparecer isso, de umamaneira infinitamente mais convincente do que tudo 0 que ele diz.

o que ele poe em relevo, portanto, a prop6sito da experiencia deElisabeth von R.? Precisamente que, segundo suas palavras e suaexperiencia, em muitos casos, 0 aparecimento dos sintomas histericosesta ligado a experiencia, durfssima em si mesma, de alguem ser deuma devor;ao completa a servir;o de urn doente e desempenhar 0 papelde enfermeira - mais ainda quando pensamos na importancia queessa funr;ao adquire ao ser assumida por urn sujeito em relar;ao a urnparente pr6ximo. Nesse caso, sao todos os lar;os de afeic;ao ou ate depaixao que ligam aquele que cuida ao que e cuidado. Assim, 0 sujeitove-se na posir;ao de ter que satisfazer, mais do que em qualquer outraocasiao, 0 que podemos designar nesse momento, com 0 maximo deenfase, como a demanda. A com pIeta submissao ou abnegac;ao dosujeito em relar;ao a demanda e indicada pOl' Freud, real mente, comouma das condir;oes essenciais da situac;ao, no que ela se revelahisterogenica.

Isso e ainda mais importante na medida em que, nessa histerica,ao contnirio de outras que ele tambem nos forneceu como exemplos,os antecedentes, tanto pessoais quanta familiares, sao extraordinaria-mente evasivos e pouco acentuados e, pOl' conseguinte, 0 termo

situa9ao histerogenica adquire todo 0 seu alcance. Freud, alias, fornecetodas as indi<ta90es disso.

Na mediana de minhas tres f6rmulas, pOitanto, isola aqui a fun9aoda demanda. Correlativamente, diremos, em fun9ao dessa posi9ao debase, a coisa de que se trata e, essencialmente, do interesse assumidopelo sujeito numa situac;ao de crise.

Freud comete aqui apenas urn erro, por assim dizer, que e 0 deser como que levado pela necessidade da linguagem e orientar 0

sujeito de maneira prematura, a implica-lo de maneira definida demaisnessa situac;ao desejante.

Existe uma situac;ao de desejo e 0 sujeito adquire urn interessenela. Agora, porem, que sabemos 0 que e uma histerica, nem sequerpodemos acrescentar - qualquer que seja 0 aspecto pelo qual ela 0

adquire. Isso, com efeito, ja seria implicar que ela adquire esseinteresse por urn lado ou por outro - que se interessa pelo cunha-do do ponto de vista da irma, ou pela irma do ponto de vista docunhado. A identificar;ao da histerica pode perfeitamente subsistir demaneira correlata em diversas dire90es. Aqui, ela e dupla. Digamosque 0 sujeito se interessa, que esta implicado na situa9ao de desejo,e e essencialmente isso que e representado pOl' urn sintoma, 0 quetraz, aqui, a icteia de mascara.

A icteia de mascara significa que 0 desejo se apresenta sob umaforma ambfgua, que justamente nao nos permite orientar 0 sujeito emrela9ao a esse ou aquele objeto da situar;ao. Ha urn interesse do sujeitona situa9ao como tal, isto e, na rela9ao desejante. E precisamente issoque e exprimido pelo sintoma que aparece, e e isso que chamo deelemento de mascara do sintoma.

E a prop6sito disso que Freud po de nos dizer que 0 sintoma falana sessao. 0 isso Jala, com 0 qual entretenho voces 0 tempo todo,esta presente des de as primeiras articula90es de Freud, expresso notexto. Mais tarde, ele diria que os borborigmos de seus pacientes,quando se faziam ouvir na sessao, tinham uma significa9ao de fala.Mas 0 que ele nos diz com isso e que as dores que reaparecem, quese acentuam, que se tornam mais ou menos intoleraveis durante apr6pria sessao, fazem parte do discurso do sujeito, e que ele medepelo tom e pela modulac;ao da fala 0 grau de ardor, a importancia, 0

valor revelador daquilo que 0 sujeito declara, daquilo que ele deixaescapar na sessao. 0 tra9ado, a direc;ao centrfpeta desse tra9ado, 0

progresso da analise, Freud 0 mede pela pr6pria intensidade damodula9ao com que 0 sujeito acusa, durante a sessao, uma intensifi-ca9ao maior ou menor de seu sintoma.

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. Tomei esse exemplo e poderia igualmente tomar outros, poderiaIgualmente tomar 0 exemplo de urn sonho, a fim de focalizar 0

probl~ma do sintoma e do desejo inconsciente. A questao e a dalIgac;ao do de~ejo, que permanece como urn ponto de interrogac;ao,urn X, u';1 emgma, com 0 sintoma do qual ele se reveste, ou seja,com a mascara.

Dizem que 0 sintoma, como inconsciente, e, em sfntese, ate certoponto, uma coisa que fala, e sobre a qual podemos dizer, com Freud- com Freud desde a origem -, que ele se articula. 0 sintoma,pOl'tanto, vai no sentido do reconhecimento do desejo. Mas 0 queacontecl~ com esse sintoma, que existe para fazer 0 desejo serreconhecldo, antes que chegassem Freud e, atras dele, toda a leva deseus discfpulos, os analistas? Esse reconhecimento tendia a se mani-festal', procurava seu caminho, mas so se manifestava pela criac;ao doque chamamos mascara, que e uma coisa fechada. Esse reconheci-~ento, do ?~sejo e~a urn reconhecimento pOI' ninguem, que nao visavanmg~em, Ja que mnguem podia interpreta-lo, ate 0 momenta em quealguem comec;ou a descobrir seu segredo. Esse reconhecimento seapresentava sob uma forma fechada para 0 outro. Reconhecimento dodesejo, portanto, mas reconhecimento pOI' ninguem.

POI' ?utro lado, na medida em que se trata de urn desejo dereeonheclmento, ele e diferente do desejo. Alias, isso nos e dito com~Iareza --=- esse desejo e urn desejo recalcado. E pOI' isso que nossamter~enc;ao acre~centa al~o mais a simples leitura. Esse desejo e urndeseJo que 0 sUJeIto exclUJ na medida em que quer faze-lo reeonheeer.~omo desejo de reconhecimento, ele ~ urn desejo, talvez, mas, nofmal das. con.ta.s, urn desejo de nada. E urn desejo que nao esta ali,lum deseJo reJeltado, exclufdo.

I. Esse carateI' duplo do desejo ineonsciente, que, ao identifica-lo.com sua mascara, faz dele algo diferente do que quer que se dirija

i ·para urn obJeto, e algo que nao devemos jamais esqueeer.

precisamente, que nao abandonaram 0 objeto ineestuoso - enfim,que nao 0 a9andonaram 0 bastante, pois, afinal, aprendemos que 0

sujeito nunea 0 abandona pOl' eompleto. Deve haver, e claro, algumacoisa que corresponda a esse maior ou menor abandono, e nos adiagnostieamos - a fixac;ao na mae.

Trata-se dos casos em que Freud nos apresenta a dissociac;ao entreo amor e 0 desejo. •.. - Esses sujeitos nao eonseguem pensar em abordar a mulher quando,para eles, ela goza de seu pleno status de urn ser passfvel de seramado, de urn ser humano, de urn ser no sentido acabado, de urn serque, como se eostuma dizer, po de dar e pode se dar. 0 objeto estapresente, dizem-nos, 0 que significa, e claro, que ele esta presentesob uma mascara, porque nao e a mae que 0 sujeito se dirige, mas amulher que a sucede, que toma 0 lugar dela. Aqui, portanto, nao hadesejo. POl' outro lado, diz-nos Freud, esses sujeitos vao eneontrarprazer com prostitutas.

Que signifiea isso? Como estamos no momenta de uma primeiraexplorac;ao das trevas eoncernentes aos misterios do desejo, dizemos:e que a prostituta e 0 oposto diametral da mae.

Sera que isso basta plenamente, 0 fato de se tratar do opostodiametral da mae? Fizemos desde entao progressos suficientes noconhecimento das imagens, das fantasias do inconsciente, para saberque 0 que 0 sujeito vai buscar nas prostitutas, nessa situac;ao, nao eoutra eoisa senao 0 que a Antigtiidade romana nos mostrava, clara-mente eseulpido e representado na porta dos borcteis - ou seja, 0

falo, 0 falo como aquilo que habita a prostituta.o que 0 sujeito vai busear na prostituta e 0 falo de todos os outros

homens, e 0 falo como tal, 0 falo anonimo. Ha nisso alguma coisade problematiea, sob uma forma enigmatic a, sob uma mascara, queIiga 0 desejo a urn objeto privilegiado, cuja importaneia so fizemosaprender a eonheeer ao aeompanhar a fase falica e os caminhos pelosquais e preeiso que a experiencia subjetiva pas$e, para que 0 sujeitopossa encontrar-se com seu desejo natural.

o que nessa oeasiao chamamos de desejo da mae e, aqui, urnrotulo, uma designac;ao simbolica do que eonstatamos na pratiea, istoe, a promoc;ao eorrelata e eindida do objeto do desejo em duas metadesirreconciliaveis. De urn lado, ha 0 que pode propor-se em nossa propriainterpretac;ao como sendo 0 objeto substitutivo, a mulher como her-deira da func;ao da mae e como despojada, frustrada do elemento dodesejo. Do outro, ha esse proprio elemento de desejo, ligado a outra

E isso que nos permite, literalmente, leI' 0 sentido analftieo dademareac;ao do que nos e apresentado como uma das descobertasfreu~ianas mais essenciais, qual seja, a degradac;ao, a Erniedrigung,da vIda amorosa, a qual decorre da base do complexo de Edipo.

Freud nos apresenta 0 desejo da mae como estando no principiodessa degradac;ao em alguns sujeitos sobre os quais nos e dito,

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coisa extraordinariamente problem<itica, e que se apresenta, tambemele, com urn caniter de mascara e de marca, com urn carater, digamosa palavra, de significante. E como se, a partir do momenta em quese trata do desejo inconsciente, encontrassemo-nos na presenc;a de urnmecanismo, de uma Spaltung necessaria, que faz com que 0 desejo,que ha muito tempo presumfamos estar alienado numa relac;ao abso-Iutamente especial com 0 outro, se apresente aqui como marcado naoapenas pela necessidade desse intermediario para 0 outro como tal,mas tambem pela marca de urn significante especial, de urn significanteeleito, que aqui revela ser a via obrigat6ria a qual deve aderir, pOl'assim dizer, 0 encaminhamento da forc;a vital, no caso, do desejo.

a carateI' problem<itico desse significante particular, 0 falo, e 0

ponto on de esta a questao, e onde esta aquilo em que nos detemos,e on de esta 0 que nos prop6e todas as dificuldades. Como conceberque, nos caminhos da chamada maturac;ao genital, deparemos comesse obstaculo? Nao se trata, alias, de urn simples obstaculo, mas deurn desfiladeiro essenciaI, que faz com que seja apenas pOl' intermediode uma certa posic;ao assumida em relac;ao ao falo - na mulher,como carente dele, e no homem, como ameac;ado - que se realiza,necessariamente, aquilo que se apresenta como devendo ser 0 desfecho,digamos, mais feliz.

Vemos aqui que ao intervir, ao interpretar, ao nomear algumacoisa, sempre fazemos mais, nao importa 0 que fac;amos, do quesupomos fazer. A palavra exata que ha pouco eu queria dizer-lhes aesse respeito e 0 verba homologar. Identificamos 0 mesmo com 0

mesmo e dizemos: - E isso. Substitufmos pOl' urn alguem 0 ninguema quem 0 sintoma e dirigido, na medida em que ele esta no caminhodo reconhecimento do desejo. Assim, sempre desconhecemos, atecerto ponto, 0 desejo que quer fazer-se reconhecer, uma vez que Iheatribufmos seu objeto, quando, na verdade, nao e de urn objeto quese trata - 0 desejo e desejo daquela falta que, no autro, designa urnoutro desejo.

Eis 0 que nos introduz, agora, na segunda dessas tres f6rmulasque Ihes proponho aqui, ou seja, no capftulo da demanda.

instante na analise, deixando de lado a supervisao que podemos fazerdele, em nome de uma ideia mais ou menos te6rica da maturac;ao decada urn.

Pen so que voces devem comec;ar a ent~nder que, se falo d_af~nc;aoda fala ou da instancia da letra no inconsclente, certamente nao e paraeliminar 0 que 0 desejo e de irredutfvel e impossfvel de formular -nao de pre-verbal, mas de para-alem do verbo. .

Digo isso a prop6sito de urn comentario que alguem mUltomal inspirado, no caso, julgou dever fazer recente~ente sobre 0

fato de alguns psicanalistas - como se houvesse mUltos - ~aremexcessiva importancia a Iinguagem, no tocante ao famoso tnfor-mulado do qual, nao sei por que, alguns fil6sofos fizeram urn doscasos de sua propriedade pessoal. A esse personagem" que, ,n~staoportunidade, qualifico de muito mal inspirado,. 0 que e 0 ml~lm~do meu pensamento, e que enunciou que 0 tnformu~ado nao einformultivel, responderei 0 seguinte, ao qual ele fana bem emprestar atenc;ao, em vez de ficar procurando implicar tod~ 0 mundoem suas brigas de igrejinha, pois essa e uma observac;ao da qualos fil6sofos nao parecem estar cientes ate aqui. A perspectiva einversa: 0 fato de 0 desejo nao ser articulavel nao e razao paraque ele nao seja articulado. .

Quero dizer que, em si mesmo, 0 desejo e articulado, na medldaI em que esta Iigado a presenc;a do significante no homem. Isso nao

significa, entretanto, que ele seja articulavel. Justamente pOl' se trataressencialmente da Iigac;ao com 0 significante, ele nunca e plenamentearticulavel num caso particular.

Voltemos agora ao segundo capitulo, que e 0 da demanda, on deestamos no articulado articulavel, no efetivamente articulado.

E justamente da ligac;ao entre 0 desejo e a demanda que setrata, por ora. Nao chegaremos hoje ao final dest~ discurso, masdedicarei a pr6xima vez a esses dois termos, 0 deseJo e a demanda,e aos paradoxos que ha pouco apontamos no desejo como desejomascarado.

a desejo articula-se necessariamente na demanda, pOl·que s6podemos aproximar-nos dele pOl' intermedio de~g~ma demanda. Apartir do momento em que 0 paciente nos aborda e vem. a nossoconsult6rio, e para nos pedir alguma coisa, e ja vamos mUlto longeno compromisso e no rigor da situac;ao quando Ihe dizemos, simple~-mente: - Estou a sua escuta. Convem, pOltanto, tomarmos a partIr

Pela maneira como abordo as coisas e como as retorno, procuroarticular para voces a originalidade do desejo do qual se trata a todo

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daquilo que podemos chamar de premissas da demanda, daquilo queproduz uma demanda atras da outra, daquilo que cria a situac;:ao dademanda, da maneira como a demanda se estabelece no interior deuma vida individual.

tOque institui a demanda? Nao YOUrefazer a dialetica do Fort-Da.A demanda esta ligada, antes de mais nada, a algo que esta nas pr6priaspremissas da linguagem, isto e, a existencia de uma invocac;:ao, queao mesmo tempo e principio da presenc;:a e termo que permite repeli-Ia,jogo da presenc;:a e da ausencia. 0 objeto chamado pela primeiraarticulac;:ao ja nao e mais urn objeto puro e simples, mas urn objeto-sfmbolo - transforma-se naquilo que 0 desejo da presenc;:a faz dele.A dialetica fundamental nao e do objeto parcial, da mae-seio, ou damae-alimento, ou da mae-objeto total de uma abordagem gestaltistaqualquer, como se se tratasse de uma conquista feita aos poucos. 0lactente percebe muito bem que 0 seio se prolonga em axilas, pescoc;:oe cabeJos. 0 objeto de que se trata e 0 parentese simbolico da presenc;:a,em cujo interior esta a soma de todos os objetos que ele po de trazer.Esse parentese simb61ico e, desde sempre, mais precioso do quequalquer bem. Nenhum dos bens que ele con tern pode, por si s6,satisfazer a invocac;:ao da presenc;:a. Como ja Ihes expressei diversasvezes, nenhum desses bens, em particular, pode servir para outra coisasenao aniquilar 0 principio dessa invocac;:ao. A crianc;:a se alimenta,comec;:a a adormecer, talvez, e nesse momento, evidentemente, ja naose trata de uma invocac;:ao. Qualquer relac;:ao com urn objeto parcialqualquer, como se costuma dizer, no interior da presenc;:a materna,nao e uma satisfac;:ao como tal, mas urn substituto, uma aniquilac;:aodo desejo.

o carater primordial da simbolizac;:ao do objeto como objeto dainvocac;:ao, objeto da presenc;:a, e des de logo marcado pelo fato - nostambem lemos isso, por nossa vez, mas, como sempre, nao sabemosextrair ate 0 fim as conseqiiencias daquilo que lemos - de que, noobjeto, a dimensao da mascara aparece.

o que nos traz nos so born amigo, 0 sr. Spitz, senao isso? 0 quee inicialmente reconhecido pelo Iactente e 0 frontal grego, a armadura,a mascara, com 0 carateI' de para-alem que caracteriza essa presenc;:acomo simbolizada. Sua busca, com efeito, leva mais alem dessapresenc;:a como mascarada, sintomatizada, simbolizada. Desse para-alem, a crianc;:a nos aponta sem ambigiiidade, em seu comportamento,que tern as dimens6es.

Ja falei, a proposito de outra coisa, do carater muito par;icularda reac;:ao da crianc;:a diante da mascara. Voces colocam, uma mascara,retiram-na e a crianc;:a da risadas - mas, se sob a mascara apareceuma outra mascara, ela nao ri mais, e ate se mostra particularmenteansiosa.

Nem e preciso nos entregarmos a esses pequenos exerclclos.Ha que nunca haver observado uma crianc;:a em seu desenvolvl-mento, ao longo dos primeiros meses, para nao perceber ~ue, a~tesmesmo da fala, a primeira comunicac;:ao verdadelra, IStO e, acomunicac;:ao com 0 alem daquilo que voces sac diante dela ~omopresenc;:a simbolizada, e 0 riso. A~tes de ,qualquer ~alavra, a cn.~~c;:ari. 0 mecanisme fisiologico do rISO esta sempre hgado ao S0l1IS0,ao relaxamento, a uma certa satisfac;:ao. Houve quem falas.se dodesenho do sorriso da crianc;:a saciada, mas a crian<;:a que rI paranos 0 faz, presente e desperta, numa certa relac;:ao nao apenas c~ma satisfac;:ao do desejo, mas, depois e alem disso, com 0 para-alemda presen<;:a, no que esta e capaz de satisfaze-la, e no que ~stacon tern a anuencia possfvel a seu desejo. A presenc;:a conheclda,aquela com a qual ela esta habituada e sobre a qual sabe que p~desatisfazer seus desejos em sua diversidade, e chamada, apreendldae reconhecida no codigo especialfssimo que e constitufdo, nacrian<;:a antes da fala, por seus primeiros risos diante de certaspresenc;:as que cuidam dela, que a alimentam ~ a at~ndem.

o riso responde, igualmente, a todas as bnncadelras maternasque sao as primeiros exercicios nos quais the e trazida a ~od~lac;:ao,a articulac;:ao como tal. 0 riso esta ligado, justamente, aqUlI~ quechamei durante todas as primeiras articulac;:6es das conferenclasdeste a~o sobre a tirada espirituosa, de para-alem, alem do imediato,alem de qualquer demanda. Enquanto 0 desejo esta ligado a, urnsignificante, que e, no caso, 0 significante da presen<;:a,. e aopara-alem dessa presenc;:a, ao sujeito por tras del a, que se dmgemas primeiros risos. . .

Desde esse momento, des de a origem, por aSSlm dlzer, encontra-mas ai a raiz da identificac;:ao, que se fara sucessivamente, ao longodo desenvolvimento da crianc;:a, primeiro com a mae e, depois, coma pai. Nao Ihes estou dizendo que isso esgote a questao, mas aidentificac;:ao e, muito exatamente, 0 correlato desse nso. .

o oposto do riso, e claro, nao sao as lagrim~s .. As la~nm~sexpressam a colica, expressam a necessldade, as lagnmas nao sac

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Em outras palavras, a mascara ,constitui-se na insatisfac;ao e porintermedio da demanda recusada. E esse 0 ponto ao qual eu quenatraze-Ios hoje.

Mas, entao, 0 que resultaria disso? E que haveria, em suma, tantasmascaras quantas sao as formas de insatisfac;ao.

Sim, e exatamente desse modo que as coisas se apresentam, evoces poderao guiar-se af com seguranc;a. No discurso psicologicoque se des dobra a partir da frustrac;ao, sumamente viva em algunssujeitos, voces poderao destacar, entre suas proprias dec1arac;6es, essarelac;ao entre a insatisfac;ao e a mascara, que faria com que, ate certoponto, houvesse tantas mascaras quantas sao as insatisfac;6es. Apluralidade das relac;6es do sujeito com 0 outro, conforme a diversidadede suas insatisfac;6es, real mente 1evanta urn problema. Podemos dizerque, ate certo ponto, ela faria de qualquer personalidade urn mosaico

I movel de identificac;6es. 0 que permite ao sujeito descobrir-se unoexige a intervenc;ao de uma terceira dimensao, que hoje deixarei de

" lado, reservando-a para a proxima vez.Essa dimensao nao e introduzida, como costumam dizer, pela

maturac;ao genital, nem pelo dom da oblatividade, nem por outrasbalelas moralizantes que sao caracterfsticas absolutamente secundariasda questao. Ha que intervir nela, sem duvida, urn desejo - urn desejoque nao e uma necessidade, mas que e eros, urn desejo que nao eauto-erotico, e sim, como se costuma dizer, alo-erotico, 0 que e umaoutra maneira de dizer a mesma coisa. So que nao basta dizer isso,pOl'que '.W0 basta a maturac;ao genital para acarretas reformulac;6es

uma comunicac;ao, as lagrimas sao uma expressao, ao passo que 0

riso, tal como sou forc;ado a articula-Io, e uma comunicac;ao.Qual e 0 oposto do riso? 0 riso comunica, dirige-se aquele que,

para-alem da presenc;a significada, e 0 pilar, 0 recurso do prazer. Ea identificac;ao? E 0 contrario. Nao se ri mais. Fica-se serio como urnpapa, ou como urn papai. Faz-se urn ar de quem nao quer nada, porqueaquele que esta presente faz uma cara meio impasslvel, porque, semduvida, essa nao e a hora de rir. Nao e hora de rir pOl'que, nessemomento, as necessidades nao tern de ser satisfeitas. 0 desejo mol-da-se, como se costuma dizer, naquele que detem 0 poder de satisfa-ze-Io, e the op6e a resistencia da realidade, que talvez nao seja, emabsoluto, 0 que dizem que ela e, mas que seguramente se apresenta,aqui, sob uma certa forma e, em suma, desde logo na dialetica dademanda.

Vemos, segundo meu velho esquema, produzir-se aquilo de quese trata no riso, quando a demanda chega sa e salva, isto e, quandovai para-alem da mascara para encontrar ali nao a satisfac;ao, mas amensagem da presenc;a. Quando 0 sujeito passa urn recibo de que terndiante de si a fonte de todos os bens, 0 riso certamente eclode, e 0

processo nao precisa seguir adiante.Esse processo tambem pode ter de ser levado mais longe, quando

o rosto se mostra impasslvel e a demanda e recusada. Entao, comoeu lhes disse, 0 que esta na origem dessa necessidade e desejo aparecesob uma forma transformada. 0 rosto impassivel transfere-se nocircuito, para chegar aqui, a urn lugar on de nao e a toa que encontramosa imagem do outro. Ao termino dessa transformac;ao da demanda edado 0 que se chama Ideal do eu, enquanto, na linha significante,esboc;a-se 0 princlpio da chamada proibic;ao e do supereu, que searticula como proveniente do Outro.

A teoria analftica sempre teve toda sorte de dificuldades paraconciliar a existencia, a coexistencia, a co-dimensionalidade do Idealdo eu e do supereu, embora eles correspondam a formac;6es e produ-c;6es diferentes. Bastaria, no en tanto, estabelecer a distinc;ao essencialentre a necessidade e a fala que demanda essa necessidade, paracompreender como esses dois produtos podem ser, ao mesmo tempo,co-dimensionais e diferentes. E na linha da articulac;ao significante,a da proibic;ao, que 0 supereu se formula, ate mesmo sob suas formasmais primitivas, ao passo que e na linha da transformac;ao do desejo,como sempre ligado a uma certa mascara, que se produz 0 Ideal doeu.

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~ubjetivas decisivas, as quais nos permitirao captar 0 vfnculo entre 0

desejo e a mascara .

. Veremos, da proxima vez, a condi~ao essencial que liga 0 sujeito aurn significante prevalente, privilegiado, que chamamos - nao poracaso, mas pOl'que ele e concretamente esse significante - falo.Veremos que e precisamente nessa etapa que se realiza, paradoxal-

I mente, aquilo que permite ao sujeito descobrir-se urn atraves da

l diversidade das mascaras, mas que tambem, por outro lado, 0 tornaI fundamentalmente dividido, marcado por uma Spaltung essencial entre, 0 que e desejo e 0 que e mascara.

a desejo excentrico a satisfa~iioEsbo~o do grafo do desejoA marcCl do pe de Sexta-feiraA Aufhebung do faloA castra~iio do autro

Tl:ata-se hoje de continuar a aprofundar a distin~ao entre 0 dese]O>ei:d0~daa que consideramos essencial liar::!::!hna conducao da analise,a qual, na impossibilidade de estabelece-la, cremos que desliza irre-sistivelmente para uma especula~ao pratica, baseada nos termos frus-tra~ao, por urn lado, e gratifica~ao, por outro, 0 que constitui, a nos sover, urn verdadeiro desvio de seu caminho.

A questao, pOltanto, e prosseguir no senti do daquilo a que jademos urn nome - a distfmcia entre 0 desejo e a demanda, suaSpaltung.

Spaltung nao e urn termo que eu empregue ao acaso. Ele foi, senao introduzido, ao menos fortemente acentuado no derradeiro escritode Freud, aquele em meio ao qual a pena Ihe caiu das maos, pOl'ter-Ihe side simplesmente arrancada pela morte. Essa Ichspaltung e,de fato, 0 ponto de convergencia da derradeira medita~ao de Freud.Nao podemos dizer que ela 0 tenha feito ir e vir sobre a questao,pOl'que dispomos apenas de urn fragmento, algumas paginas, que seencontram no volume XVII das Gesammelte Werke, que eu os acon-selho a lerem, se quiserem fazer surgir em voces a presen~a da perguntaque essa Spaltung levantou no espfrito de Freud. Mas ali voces verao

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com que for<;,:aele acentuou que a fun<;,:aode sfntese do eu esta longede ser 0 todo da questao quando se trata do Ich psicanalftico.

You retomar, portanto, 0 que dissemos da ultima vez, pois creioque aqui s6 se po de progredir dando tres passos para frente e doispara tras, para entao recome<;,:ar e conquistar urn passinho de cadavez. Andarei rapido 0 bastante, no entanto, para lhes recordar aquiloem que insisti ao falar do desejo, por urn lado, e da demanda, poroutro.

absoluto, de maneira acabada. E possfvel que 0 desejo seja urn subpro-duto, se assim me posso exprimir, d~sse ate de significa<;,:!.o.~ Citei-lhes ~lguns artigos como constituindo a verdadeira introdu-<;,:aona questao da perversao, na medida em 9ue tambe~ ela :eapresenta como urn sintoma, e nao como a pura e simples mamfesta<;,:aode urn desejo inconsciente. Esses artigos situam 0 momento em q~eos autores perceberam que ha tanta Verdriingung numa perv~rsaoquanto num sintoma. Num desses artigos, publicado no InternatLOnalJournal, no quarto ano, sob 0 tftulo de "Neuros.e~ e perv~r.s6es", 0autor, Otto Rank, detem-se no fato de que urn sUJelto neurotlco, logodepois de praticar seu primeiro coito de maneira satis~at6ria -_0 quenao quer dizer que os outros nao 0 fossem a partir de en.tao -,entrega-se a urn ate misterioso, unico, na verdade, em sua vida. Aoretornar para casa, na volta do encontro com aquela que the concederaseus favores, ele se entrega a uma exibi<;,:aoparticularmente bem-su-cedida - creio ja haver feito alusao a ela no seminario do ana passado_, no sentido de que se realiza com 0 maximo de plenitud~ eseguran<;,:a, ao mesmo tempo. Com efeito, ele tira as cal<;,:ase se eXlbeao longo de urn elevado de estrada de ferro, a luz de urn trem quepassa. Com isso, vem a se exibir para uma multidao inteira sen: COlTero menor perigo. Esse ate e interpretado pelo autor, na ~COn?~lla geralda neurose do sujeito, de maneira mais ou menos satlsfatona.

. Nao e por essa vertente que pretendo est~nder-me, mas ~ou medeter no seguinte: seguramente, para urn anahsta, a fato de ISSO serurn ato significativo, como se costuma dizer, e certo, mas, quesignifica<;,:aotem ele?

Repito, ele acaba de praticar sua primeira copula~a? .Sera .q~eesse ate significa que ele ainda tern 0 falo? Que este esta a dlsposl<;,:aode todos? Que se tornou como que sua propriedade pessoal? Quepretende ele ao mostra-lo? Sera que quer desaparecer por tras daquiloque mostra, ser apenas 0 falo? Tudo isso e igualmente plausfvel poresse tinico e mesmo ato, e no interior de urn unico e mesmo contextosubjetivo.

a que, no entanto, parece mais digno de .ser acentuado ~o quequalquer outra coisa, e que e destacado e conflrma~o pel~.sAdl~os dopaciente, pelo contexto da observa<;,:ao, pela pr6pna ~equ~n~la dascoisas, e que esse primeiro coito foi plenamente satlsfatono. Suasatisfa<;,:ao foi captada e percebida. Mas 0 que 0 ate em questao mostraem primeiro lugar, antes de qualquer outra interpreta<;,:ao, e 0 queficou a desejar para-alem da satisfa<;,:ao.

Relembro esse pequeno exemplo apenas para fixar as ideias noque pretendo dizer, quando falo da problematic a do desejo como

No que concerne ao desejo, enfatizei que ele e inseparavel da mascara,e lhes ilustrei isso, muito especialmente, com 0 lembrete de que epor demais precipitado fazer do sintoma urn simples interior emrela<;,:aoa urn exterior.

Falei de Elisabeth yon R., sobre quem lhes disse que, a simplesleitura do texto de Freud, podemos formular, pois ele mesmo 0

articulou, que a dor no alto de sua coxa direita era 0 desejo de seupai e de seu amigo de infiincia*. Com efeito, essa dor sobrevinha todavez que a paciente evocava 0 momento em que estivera inteiramentesubmetida ao desejo de seu pai doente, a demanda de seu pai, enquantose exercia, a margem, a atra<;,:aodo desejo do amigo de infancia, queela se censurava de levar em considera<;,:ao. A dor da coxa esquerdaera 0 desejo de seus dois cunhados, urn dos quais, 0 marido de suairma mais nova, representava 0 born desejo masculino, e 0 outro, 0

mau - este, alias, era considerado por todas essas senhoras urn homemmuito ruim.

Alem dessa observa<;,:ao, 0 que convem considerarmos antes decompreender 0 que significa nos sa interpreta<;,:ao do desejo e que, nosintoma - e e isso que quer dizer conversiio -, 0 desejo e identicoa manifesta<;,:ao somatica. Ela e seu lado direito, assim como ele e seuavesso.

Por outro lado, uma vez que, se avan<;,:amos, alias, foi pelo fato deas coisas s6 terem side introduzidas sob a forma de uma problematica,introduzi a problematica do desejo, t como a analise 0 mostra deter-minado or urn (rt"'o-~e signifIcaa Mas, 0 fato de 0 desejo ser determi-nado por urn ate de signiTI;;<;,:ao nao fornece tedo 0 seu senti do, em

* Lacan concentra na ambigiiidade do de frances 0 fato de que se tratava ao mesmotempo do desejo "por" seu pai e "do" seu pai. (N.E.)

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determinado pOl' urn ate de significac;ao - 0 que e distinto de qualquersentido apreensfvel. Considerac;6es como essa, que mostram a pro-funda coerencia, coalescencia, do desejo com 0 sintoma, da mascaracom 0 que aparece na manifestac;ao do desejo, recolocam no devidolugar muitas perguntas inuteis que estao sempre sendo formuladas aproposito da histeria, porem, mais ainda, a proposito de toda sorte defatos sociologicos, etnognificos e outros, nos quais continuamos averas pessoas se atrapalharem com essa questao.

Tomemos urn exemplo. Acaba de ser lanc;ado, numa pequenacolec;ao publicada por L'Homme, na editora PIon, urn livrinho deMichel Leiris sobre os episodios de possessao e sobre os aspectosteatrais da possessao, que ele desenvolve a partir de sua experienciacom etfopes do Gondar. Ao ler esse volume, ve-se claramente comoepisodios de transe de consistencia incontestavel aliam-se, casam-seperfeitamente com 0 carater externamente tipificado, determinado,esperado, conhecido, pre-situado, dos chamados espfritos, que supos-tamente se apoderam da subjetividade dos personagens que sao sedede todas essas manifestac;6es singulares. Isso e observado nas chama-das cerim6nias do wadiigii, ja que e delas que se trata na regiaoindicada. E ha mais - observa-se nao apenas 0 papel convencionaldas manifestac;6es que se reproduzem durante a encarnac;ao deste oudaquele espfrito, mas tambem seu carater disciplinavel. A ponto deos sujeitos 0 perceberem como urn verdadeiro adestramento dessesespfritos, que, no entanto, supostamente se apoderam deles. A coisase inverte - os espfritos tern de se portar bern, tern uma aprendizagema fazer.

A possessao, com tudo 0 que ela comporta de fen6menos pode-rosamente inscritos nas emoc;6es, num patetico em que 0 sujeito ficainteiramente possufdo durante 0 tempo da manifestac;ao, e perfeita-mente compatfvel com toda a riqueza significante ligada a dominac;aoexercida pelas insignias do deus ou do espirito. Tentar inscrever acoisa na serie da simulac;ao, da imitac;ao, e outros termos dessa especie,seria criar urn problema artificial para satisfazer as exigencias denossa propria mentalidade. A identidade mesma da manifestac;aodesejante com suas formas e totalmente tangfvel ali.

a outro termo a ser inscrito nessa problematic a do desejo, e noqual, ao contrario, insisti da ultima vez, e a excentricidade do desejoem relac;ao a qualquer satisfac;ao. Ela nos permite compreender 0 quee, em geral, sua profunda afinidade com a dor. Em ultima instancia,

. aquilo com que 0 desejo confina, nao mais em suas formas desenvol-vidas, mascaradas, pOI'em em sua forma pura e simples, e a dor de

existir. Esta representa 0 outro polo, 0 espac;o, a area em cujo interiorsua manifestac;ao se apresenta a nos.

Ao descrever assim, no polo oposto da problematica, 0 que chamode errancia do desejo, sua excentricidade em relac;ao a satisfac;ao, naotenho a pretensao de resolver a questao. Nao e uma explicac;ao queestou dando com isso, e uma exposic;ao do problema. E nisso que de-vemos avanc;ar hoje.

Recordo 0 outro elemento do dfptico que propus da ultima vez,ou seja, a func;ao identificadora, idealizadora, no que ela mostradepender da dialetica da demanda. Com efeito, tudo 0 que aconteceno registro da identificac;ao baseia-se numa certa relac;ao com 0significante no outro - significante que, no registro da demanda, ecaracterizado em seu conjunto como 0 sinal da presenc;a do outro.Ai se institui tambem algo que deve ter uma relac;ao com 0 problemado desejo, isto e, que 0 sinal da presenc;a passa a dominar as satisfac;6estrazidas por essa presenc;a. E isso que faz com que, tao fundamental-mente, de maneira muito extensa e muito con stante, 0 ser humanetanto se satisfaz com palavras quanto com satisfac;6es mais substan-ciais, ou, pelo menos, numa proporc;ao sensfvel, muito ponderavel,em relac;ao a estas ultimas. Essa e a caracterfstica fundamental do quese refere ao que acabo de recordar.

Mais uma vez, este e urn parentese complementar ao que eu disseda ultima vez. Sera que significa que 0 ser humane e 0 unico a sesatisfazer com palavras? Ate certo ponto, nao e ilfcito supor que certosanimais domesticos tenham algumas satisfac;6es ligadas a fala humana.Naopreciso fazer evocac;6es a esse respeito, mas, de qualquer modo,ficamos sabendo de coisas urn bocado estranhas, a confiarmos nosditos dos que sao chamados, de maneira mais ou menos apropriada,de especialistas, que parecem ter urn certo grau de credibilidade.Assim, ouvi dizer que os vi sons mantidos em cativeiro com finslucrativos, ou seja, para que se ganhe direiro com sua pele, definhame so dao produtos medfocres aos peleteiros quando nao se con versacom eles. Isso, ao que parece, torna muito dispendiosa a criac;ao devisons, aumentando as despesas gerais. a que se manifesta aqui, eno que nao temos como nos aprofundar mais, deve estar ligado aoproprio fato de eles estarem aprisionados, ja que os visons em estadoselvagem nao tern, segundo todas as aparencias, a possibilidade -salvo maiores informac;6es - de encontrar essa satisfac;ao.

Dai eu gostaria simplesmente de passar a lhes apontar em quedirec;ao podemos, em relac;ao a nosso problema, referir-nos aos estudospavlovianos dos reflexos condicionados. Afinal, que sao os reflexoscondicionados?

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Em suas formas mais difundidas, e que ocuparam a maior parteda experiencia, a existencia dos reflexos condicionados repousa nainterven~ao do significante num ciclo mais ou men os predeterminado,inato, de comportamentos instintivos. Todos aqueles sinaizinhos ele-tricos, aquelas pequenas campainhas, aquelas sinetas com que seatordoam os pobres animais, para conseguir faze-Ios secretarem,conforme sejam orden ados a fazer, suas diversas produ~6es fisiolo-gicas, sao justamente significantes, e nada mais. Sao fabricados porexperimentadores para quem 0 mundo se constitui, muito nitidamente,de urn certo numero de rela~6es objetivas - urn mundo do qual umaparte importante comp6e-se do que podemos isolar, com justa razao,como propriamente significante. Alias, e no intuito de mostrar porqual via de substitui~ao progressiva e concebfvel urn progresso psf-quico que todas essas coisas sao elucubradas e construfdas.

Poderfamos perguntar-nos por que, no final das contas, tao bemadestrados esses animais, isso nao resulta em lhes ser ensinado urncerto tipo de Iinguagem. Ora, justamente, esse saIto nao e dado.Quando a teoria pavloviana chega a se interessar pelo que se produzno homem a proposito da linguagem, Pavlov opta, muito justificada-mente, por falar, no que tange a linguagem, nao de urn prolongamentode significa~6es, tal como 0 que ele empregou nos reflexos condicio-nados, mas de urn segundo sistema de significa~6es. 0 que equivalea reconhecer - implicitamente, pois isso talvez nao seja plenamentearticulado na teoria - que ha alguma coisa diferente num caso enoutro. Para ten tar definir essa diferenc;:a, diremos que ela se prendeao que chamamos de rela~ao com 0 grande Outro, na medida em queele constitui 0 lugar de urn sistema unitario do significante. Diremostambem que 0 que falta ao discurso dos animais e a concatenac;:ao.

A formula mais simples, enfim, nos enunciarfamos da seguinteforma: seja qual for 0 carater elaborado dessas experiencias, 0 quenao e descoberto, e que talvez nao se trate de descobrir, e a lei pelaqual se ordenariam esses significantes empregados. 0 que equivale adizer que essa e a lei a que os animais obedeceriam. Esta absolutamenteclaro que nao ha nenhum vestfgio de referencia a tal lei, isto e, anada que fique alem do sinal ou de uma curta cadeia de sinais, umavez estabelecidos. Nenhum tipo de extrapolac;:ao legalizante e percep-tivel, e e nisso que podemos dizer que nao se chega a instituir a lei.Repito: isso nao quer dizer, no entanto, que nao haja no animalnenhuma dimensao do Outro com maiuscula, mas apenas que nadase articula deste para ele, efetivamente, como discurso.

A que chegamos? Se resumirmos 0 que esta em pauta na rela~aodo sujeito com 0 significante no Outro, ou seja, 0 que acontece na

dialetica da demanda, veremos que e essenclalmente 0 seguinte: 0

ue caracteriza 0 si nificante nao e ele substituir as necessidades \su'eito - 0 que acontece nos reflexos condicionados -, mas seulode de substitui' a si mesmo. 0 significante e essencialmente denatureza subs· u1i..v_a....&mrela~ao it-si 7llesmo. -

Nessa direc;:ao, vemos que a predominante, 0 importante, e 0 lugar 1' que ele ocupa no Outro. 0 que aponta para essa dire~ao, e que tento

de diversas maneiras formular aqui como essencial na estruturasignificante, e 0 espac;:o topologico, para nao dizer tipografico, quejustamente faz da substituic;:ao sua lei. A numerac;:ao dos lugares fornecea estrutura fundamental de urn sistema significante como tal.

E na medida em que 0 sujeito se presentifica, no interior de umjmundo assim estruturado na~a de Outro, que se produz - fatoenfatizado pela experiencia - ~uilo a que se chama identificac;:ao. 4-

Na impossibilidade da satisfac;:ao,~e com 0 sujeito capaz de aceder ademanda ..ue osu"""erto se 1 entlfic;--- . --

Deixei-os, da ultima vez, com a pergunta: - Mas, por que nao 0maximo pluralismo nas identifica~6es? Tantas identifica~6es quantassao as demandas insatisfeitas? Tantas identifica~6es quantos sao osOutros que se colocam na presenc;:a do sujeito como atendendo ounao atendendo a demanda?

Essa distancia, essa Spaltung, acha-se refletida aqui, na construc;:aodeste esqueminha que hoje lhes coloco no quadro pela primeira vez.

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Aqui reencontramos as tres linhas que ja pOl' duas vezes lhesrepeti. Creio que voces as tern em suas anota~6es, mas posso relem-bra-las.

A primeira linha Iiga 0 d minusculo do desejo, de urn lado, itimagem de a e a m, isto e, ao eu, do outro lado - por intermedioda rela~ao do sujeito com 0 a minusculo.

A segunda linha representa, precisamente, a demanda, na medidaem que vai da demanda it identifica~ao, passando pela posi~ao doOutro (A) em rela~ao ao desejo. Assim voces veem 0 Outro decom-posto. Para-alem dele fica 0 desejo. A Iinha passa pelo significadode A, que se coloca aqui no esquema, nessa primeira etapa que lhesdetalhei da ultima vez, ao lhes dizer que 0 Outro s6 atende it demanda.POl' causa de alguma coisa que e 0 que procUl'amos, num segundotempo, ele vem a se dividir ease estabelecer numa rela~ao naosimples, mas dupla, que alias ja esbocei pOl' outras vias, com duascadeias significantes.

(

A primeira cadeia, que fica aqui quando e unica e simples,coloca-se no nfvel da demanda - e uma cadeia significante atravesda qual a demanda tern de se manifestar. Em seguida intervem algumacoisa que duplica a rela~ao significante.

A que corresponde essa duplica~ao da rela~ao significante? Alinha inferior, voces podem, pOl' exemplo, entre outras coisas -naturalmente, nao de maneira unfvoca -, identificar, como foi feitoate agora, com a resposta da mae. Isso e 0 que acontece no nfvel dademanda, no qual a resposta da mae, pOl' si s6, constitui a lei, isto e,submete 0 sujeito a seu arbftrio. A outra linha representa a interven~aode uma outra instancia, correspondente it presen~a paterna, e aosmodos pelos quais essa instancia se faz sentiI' para alem da mae.

E claro que isso nao e simples. Se tudo fosse apenas uma questaode mamae e papai, e diffcil vel' como poderfamos dar conta dos fatoscom que lidamos.

Iremos agora introduzir-nos na questao da Spaltung - da hianciaentre 0 desejo e a demanda, responsavel pela discordancia, peladivergencia que se estabelece entre esses dois termos. E pOl' is so queainda teremos de voltar ao que e urn significante.

Eu sei, voces se perguntam, toda vez que nos despedimos: -Mas, afinal, 0 que ele esta querendo dizer? Tern razao de se fazeressa pergunta, porque, seguramente, isso nao se diz assim, nao e umacoisa ja dada.

Retomemos a quesUio do que e urn significante no nivel elementar.Proponho-lhes que detenham 0 pensamento num certo numero de

observa~6es. Por exemplo, voces nao acham que, com 0 significante,tocamos em algo a prop6sito do qual poderfamos falar em emergencia?

Partamos do que e urn tra~o. Urn tra~o e uma marca, nao e urnsignificante. A gente sente, no entanto, que pode haver uma rela~aoentre os dois, e, na verdade, 0 que chamamos de material do signifi-cante sempre participa urn pouco do carateI' evanescente do tra~o.Essa ate parece ser uma das condi~6es de existencia do materialsignificante. No entanto, nao e urn significante. A marca do pe deSexta-feira, que Robinson Crusoe descobre durante seu passeio pelailha, nao e urn significante. Em contrapartida, supondo-se que ele,Robinson, pOl' uma razao qualquer, apague esse tra~o, nisso se introduzclaramente a dimensao do significante. A partir do momenta em quee apagado, em que ha algum sentido em apaga-lo, aquilo do qualexiste urn tra~o e manifestamente constituido como significado.

Se 0 significante, portanto, e urn vazio, e pOl' atestar uma presen~apassada. Inversamente, no que e significante, no significante plena-mente desenvolvido que e a fala, ha sempre uma passagem, isto e,algo que fica alem de cada urn dos elementos que sao articulados, eque pOl' natureza sao fugazes, evanescentes. E essa passagem de urnpara 0 outro que constitui 0 essencial do que chamamos cadeiasignificante.

Essa pa~sagem, como evanescente, e justamente 0 que se faz voz- nem sequel' digo articula~ao significante, pois e possivel que aarticula~ao continue enigmc'itica, mas 0 que sustenta a passagem evoz. E tambem nesse nfvel que emerge 0 que corresponde ao quedesignamos do significante, inicialmente, como atestando uma pre-sen~a passada. Inversamente, numa passagem que e atual, manifesta-sealguma coisa que 0 aprofunda, que esta alem, e que faz dele umavoz.

o que mais uma vez constatamos af e que, apesar de existir urntexto, apesar do significante se inscrever entre outros significantes, 0

que resta ap6s 0 apagamento e 0 lugar onde se apagou, e e tambemesse lugar que sustenta a transmissao. A transmissao e algo de essencialnisso, ja que e gra~as a ela que 0 que acontece na passagem ganhaconsistencia de voz.

Quanto it questao da emergencia, ha urn ponto que e essencialapreender: e que 0 significante como tal e algo que po de ser apagadoe que nao deixa mais do que seu lugar, isto e, nao se po de maisencontra-lo. Essa propriedade e essencial e faz com que, apesar depodermos falar de emergencia, nao possamos falar de desenvolvimen-to. Na realidade, 0 significante a con tern em si. Quero dizer que uma

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das dimensoes fundamentais do significante e poder anular a si mesmo.Existe, quanta a isso, uma possibilidade que, no caso, podemosqualificar como modalidade do proprio significante. Ela se materializapor uma coisa muito simples, que todos nos conhecemos, e cujaoriginalidade nao podemos deixar que seja dissimulada pela triviali-dade do uso - e a barra. Qualquer especie de significante e, pornatureza, uma coisa que pode ser barrada.

Desde que existem filosofos e que eles pensam, fala-se muito da(Aufhebung, e aprendemos a fazer dela urn uso mais ou menos astucioso.-Essa palavra significa, essencialmente, anula<;iio - como, por exem-plo, quando eu cancelo [j'annule] minhaassinatura de urn jornal, ouminha reserva em algum lugar. Ela quer dizer tambem, grayas a umaambigtiidade de senti do que a torna preciosa na Ifngua alema, ~r.g uma potencia, a uma situa<;iio superior As pessoas nao parecemdeter-se 0 bastante em que ser anulado, propriamente falando, somenteuma unica especie de coisa, diria eu em termos grosseiros, pode se-Io- e urn significante. Na verdade, quando anulamos qualquer outracoisa, seja ela imagimiria ou real, por isso mesmo a elevamos ao grau,a qualificayao de significante.

Ha no significante, portanto, em sua cadeia e em sua manobra,sua manipulayao, alga que esta sempre em condiyoes de destituf-Iode sua funyao na Iinha ou na Iinhagem - a barra e urn sinal deabastardamento -, de destituf-Io como tal, em razao da funyaopropriamente significante do que chamaremos de considera<;iio geral.Quero dizer que 0 significante tern seu lugar no dado da bateriasignificante, na medida em que ela constitui urn certo sistema designos disponfveis num discurso atual, concreto - e em que ele po desempre decair da funyao que Ihe constitui seu lugar, ser arrancado daconsiderayao em constelayao que 0 sistema significante institui ao seraplicado ao mundo e ao pontua-Io. A partir daf, ele cai da desconsi-derayao para 0 rebaixamento [desidirationr, onde e marcado preci-samente por isso, por deixar a desejar.

Nao estou me divertindo em brincar com as palavras. Querosimplesmente, atraves desse uso das palavras, indicar-Ihes uma direyaoque nos aproxima de nosso objeto, que e 0 desejo, a partir de sualigayao com a manipulayao significante. A oposiyao entre a conside-

rayao e 0 rebaixamento, marcada pela barra do significante, e apenas,bem entendiqo, urn esboyo, e nao resolve a questao do desejo, sejaqual for a homonfmia a que se presta a conjunyao desses dois termosencontrados na etimologia latina da palavra desejo [desir] em frances.

A verdade e que e guando 0 significante se apresenta com..Q.anulado, marcado pela barra, que temos 0 que se pode chamar de urn<---~---.,---_._-~..-------~_.~--",_..~J2roduto da funcao simbolica. E urn produto, justamente, na medidaem que e isolado, distinto d;t cadeia geral do significante e da lei queela institui. E unicamente a partir do momento em que po de serban'ado que urn significante qualquer tern seu status proprio, ou seja,entra na dimensao que faz com que todo significante seja, em principio- para distinguir aqui 0 que quero dizer -, revogavel.

o termo Aujhebung e empregado em Freud, e em lugares bemengrayados, onde ninguem parece dar-se conta de encontra-Io. Ah, derepente, se e Freud quem 0 emprega, voces se animam. Nao que 0

termo tenha nele a mesma ressonancia que em Hegel.Em principio, todo significante e revogavel. Daf resulta que,

quanto a tudo 0 que nao e significante, ou seja, em particular quantoao real, a barra e urn dos modos mais certeiros e mais rapidos deeleva-Io a dignidade de significante.

Isso, ja Ihes ressaltei de maneira extremamente precisa a propositoda fantasia da crianya espancada.

No comeyo, esse signo - que a crianya seja espancada pelo pai -e 0 do rebaixamento do irmao odiado. Assinalei-Ihes que, na segundaetapa da evoluyao dessa fantasia, aquela que Freud aponta como tendoque ser reconstrufda, como nunc a sendo percebida, a nao ser de viese em casos excepcionais, e embora se trate do proprio sujeito, essesigna transforma-se, ao contrario, no signo do amor. Espancado, ele,o sujeito, e amado. Ingressa na ordem do amor, ao estado de seramado, por ser espancado. A mudanya de senti do desse ato, nointervalo, nao deixa de levantar urn problema. 0 mesmo ato que,quando se trata do outro, e tornado como uma sevfcia e percebidopelo sujeito como sinal de que 0 outro nao e amado, adquire urn valoressencial quando e 0 sujeito que se torna seu suporte. Isso so econcebfvel, propriamente falando, atraves da funyao de significante.

E na medida em que esse ato eleva 0 proprio sujeito a dignidadede sujeito significante que, nesse momento, ele e tornado em seu

* 0 termo empregado por Lacan, disideration, tern etimologia que inclui os verbasdesiderare (sentir falta de, lamentar a ausencia au a perda de, desejar, pracurar) edesidere (abater, vir abaixa, afundar-se, enfraquecer-se, degenerar-se), (N.E.)

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registro positivo, inaugural. Ele 0 institui como urn sujeito com 0qual pode se pensar em amor.

E isso que Freud - convem sempre retornar as frases de Freud,elas sac sempre lapidares - expressa em "Algumas conseqi.ienciaspsfquicas da distin~ao anatomica entre os sexos" , ao dizer: A crian(:aentiio espancada toma-se amada, apreciada no plano amoroso. E eaf que ele introduz urn comentario que estivera simplesmente implfcitoem Ein Kind wird geschlagen, e que eu havia esbo~ado atraves daanalise do texto. Aqui, Freud 0 formula com todas as letras, semapontar seus motivos, em absoluto, mas orientando-o com 0 faroprodigioso que 0 caracteriza. Isso e tudo 0 que esta em causa nadialetica do reconhecimento do para-alem do desejo. Abrevio-Ihes 0

que ele diz: - Esta fixidez, Starrheit, tiio particular que se le naformula monotona "uma crian(:a e espancada" so permite, provavel-mente, uma unica significa(:iio: a crian(:a espancada af, e que porisso e apreciada, nichts anderes sein, als die Klitoris selbst, niio eoutra coisa seniio 0 proprio clitoris. Trata-se, nesse estudo, dasmeninas.

Starrheit, eis uma palavra muito diffcil de traduzir em frances,porque tern urn sentido ambfguo em alemao. Ela quer dizer, ao mesmotempo, fixo, no sentido de urn olhar fixo, e rfgido, 0 que de modoalgum deixa de estar relacionado, embora, nesse ponto, estejamos nacontamina~ao dos dois sentidos, que tern uma analogi a na historia. Edisso mesmo que se trata, ou seja, de vermos despontar uma coisa daqual ja lhes assinalei 0 lugar de no a desatar, e que e a rela~ao existenteentre 0 sujeito como tal, 0 falo como objeto problematico e a fun~aoessencialmente significante da barra, visto que ela entra em jogo nafantasia da crian~a espancada.

Para isso, nao basta nos contentarmos com 0 clitoris, que, sobtantos aspectos, deixa muito a desejar. Trata-se de vel' por que eleesta af, numa certa postura tao ambfgua, que, afinal de contas, seFreud 0 reconhece na crian~a espancada, 0 sujeito, ao contrario, naoo reconhece como tal. Trata-se, com efeito, do falo, na medida emque ele ocupa urn certo lugar na economia do desenvolvimento dosujeito e e 0 suporte indispensavel da constru~ao subjetiva e pivo docomplexo de castra~ao do Penisneid. Resta agora verificar de quemodo ele entra em jogo no ingresso do sujeito na estrutura significanteda qual acabo de lhes relembrar aqui urn dos termos essenciais - ouo inverso. '

Convem, para isso, determo-nos por urn instante no modo peloqual e possfvel considerar 0 falo. Por que se fala de falo, e nao, pura

e simplesmente, de penis? POI' que, efetivamente, vemos que umacoisa eo mo(io como fazemos intervir 0 falo, e outra coisa e a maneiracomo 0 penis, de maneira mais ou menos satisfatoria, vem em suplenciadele, tanto no sujeito masculino quanto no sujeito feminino? Em quemedida 0 clitoris, nessa ocasiao, esta implicado no que podemoschamar de fun~6es economicas do falo?

Observemos 0 que e 0 falo na origem. Ele e 0 phallos.Vemos este falo atestado pela primeira vez na Antigi.iidade grega.

Se formos aos textos, em diferentes pontos de Aristofanes, Herodoto,Luciano etc., veremos, primeiro, que 0 falo de modo aIgum e identicoao orgao como acessorio do corpo, prolongamento, membro, orgaoem funcionamento. 0 uso mais predominante da palavra e seu empregoa proposito de urn simulacro, de uma insfgnia, seja qual for a maneiracomo ele se apresente - bastao em cujo cimo ficam pendurados osorgaos viris, inicia~ao do orgao viril, peda~o de madeira, peda~o decouro, outras variedades em que ele se apresenta. Trata-se de urnobjeto substituto e, ao mesmo tempo, essa substitui~ao tern umapropriedade muito diferente da substitui~ao no sentido como acabamosde entende-Ia, a substitui~ao-signo. Quase podemos dizer que esseobjeto tern todas as caracterfsticas de urn substituto real, daquilo quechamamos .nas boas piadas, e sempre mais ou menos com urn sorriso,de consolo [godemiche], que vem de gaude mihi, ou seja, urn dosobjetos mais singulares, por seu carater inencontravel, que existemna industria humana. Trata-se, apesar disso, de uma coisa que naopodemos deixar de levar em conta quanto a sua existencia e a suapropria possibilidade.

Observo ainda que 0 olisbos e freqi.ientemente confundido, emgrego, com 0 falo.

Esta fora de duvida que esse objeto desempenhava urn papelcentral no seio dos Misterios, ja que era em torno dele que se colocavamos ultimos veus erguidos pela inicia~ao. Isso quer dizer que, no nfvelda revela~ao do sentido, ele era considerado como tendo urn caratersignificati vo derradeiro.

POl'ventura tudo isso nao nos coloca na pista daquilo de que setrata, ou seja, do papel economico preponderante do falo, comorepresentando 0 desejo em sua forma mais manifesta?

Vou contrasta-Io termo a termo com 0 que eu disse do significante,que e essencialmente oco e que, nessa condi~ao, introduz-se no espa~ocheio do mundo. Inversamente, 0 que se apresenta no falo e aquiloque se manifesta da vida, da maneira mais pura, como turgescenciae impulso. Sentimos que a imagem do falo esta na propria base do

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termo pulsao, que manipulamos a fim de traduzir para 0 frances 0

termo alemao Trieb. Ele e 0 objeto privilegiado do mundo da vida,e sua denominar;ao grega aparenta-o com tudo 0 que e da ordem dofluxo, da seiva, ou ate da propria veia, pois parece haver uma mesmaraiz em phLeps, e em phallos.

POitanto, as coisas parecem ser tais que esse ponto extrema damanifestar;ao do desejo, em suas aparencias vitais, so pode entrar naarea do significante desencadeando af a barra. Tudo 0 que e da ordemda intrusao do impulso vital como tal vem despontar aqui, maximi-zar-se, nessa forma ou nessa imagem. E, como nos mostra a experiencia- so estamos fazendo le-Ia -, e precisamente isso que inaugura 0

que se apresenta, no sujeito humane que nao tem 0 falo, comoconotar;ao de uma ausencia ali onde isso nao deve estar, uma vez quenao esta, e que 0 faz ser considerado castrado, ao passo que, inver-samente, aquele que tem alguma coisa, e pode tel' a pretensao deassemelhar-se a ela, e tido como amear;ado de castrar;ao.

Fiz alusao aos Misterios antigos. E absolutamente espantosoverificar que, nos raros afrescos preservados com notavel integridade,os da Vila dos Misterios, em Pompeia, e bem ao lado do lugar on dese representa 0 desenvolvimento do falo, precisamente, que surgem,representadas com uma grandeza impressionante, em tamanho natural,umas especies de dem6nios que podemos identificar atraves de umcerto numero de recortes. Ha um deles num vasa do Louvre e emalguns outros lugares. Esses dem6nios alados, calr;ados de botas, naoprovidos de capacetes, mas quase, e, em todo caso, armados com umflagellum, estao comer;ando a aplicar 0 castigo ritualfstico a uma dassuplicantes ou iniciantes que aparecem na imagem. Assim surge afantasia da flagelar;ao, da forma mais direta e na conexao mais imediatacom 0 desvelamento do falo.

Nao e necessario nos entregarmos a nenhuma especie de inves-tigar;ao sobre a profundeza dos Misterios para saber 0 que toda sortede textos atesta - que, em todos os cultos antigos, a medida mesmaque nos aproximamos do culto, isto e, da manifestar;ao significantedo poder fecundo da Grande Deusa, da deusa sfria, tudo 0 que serelaciona com 0 falo e objeto de amputar;6es, de marcas de castrar;aoou de proibir;ao cada vez mais acentuadas. Em particular, 0 carateI'de eunucos dos sacerdotes da Grande Deusa e atestado em toda sortede textos.

o falo e sempre coberto pela barra colocada sobre seu acesso aocampo significante, isto e, sobre seu lugar no Outro. E e atraves disso

que a castrar;ao se introduz no desenvolvimento. Nunca e - vejam-nodiretamente, nas observar;6es - por intermedio de uma proibir;ao damasturbar;ao, por exemplo. Se voces lerem a observar;ao clfnica doPequeno Hans, verao que as primeiras proibir;6es nao surtiram nenhumefeito nele. Se lerem a hist6ria de Andre Gide, verao que seus paisbrigaram durante todos os seus primeiros anos de vida para impedi-lode pratica-Ia, e que 0 professor Brouhardel, mostrando-lhe as grandesagulhas e as grandes naval has que tinha na parede - porque ja estavaem moda, entre os medicos, ter em seus consultorios um brech6*inteiro - jurou-lhe que, se ele recomer;asse, aquilo the seria serradofora. E 0 menino Gide nos relata muito bem nao haver acreditadonem pOl' um instante nessa amear;a, porque ela the parecia extravagante_ em outras palavras, nada alem da manifestar;ao episodica dasfantasias do proprio professor Brouhardel.

Nao e disso que se trata, de modo algum. Como nos indicam ostextos e tambem as observar;6es, trata-se daquele ser no mundo que,no plano real, teria menos razao para se presumir castrado, ou seja,a mae. E no lugar on de se manife~~ a castra9ao no Outro, on de Sodesejo do 0mro ue e marcado ela barra si nificante, a ui e,jessencialmente por intermedio disso que, tanto no homem ..Quanto nl! <;-mulher, introduz-se esse algo especffico que funciona como com I~~de castra<;fu>. - , . , . , .

Quando falamos do complexo de Edipo, no InICIO do ultImo \\trimestre, acentuei 0 fato de qu~ a primeira pessoa a ser castrada nadialetica intersubjetiva e a mae. E ~f que _se encontra, desde 0 ~omer;o,a posir;ao de castrar;ao. Se os destmos sac dlferentes no memno e namenina, e porque a castrar;ao e inicialmente encontrada no Outro.

A menina junta essa percepr;ao com aquilo em que a mae afrustrou. 0 que e percebido na mae como castrar;ao 0 e tambem,portanto, como castntr;ao para ela, e se apresenta inicialmente sob aforma de uma recriminar;ao a mae. Esse rancor vem e~tao somar-seaos que possam tel' nascido das frustrar;6es anteriores. E desse modoque se apresenta inicialmente na menina, como insiste Freud, 0

complexo de castrar;ao.

* Lacan usa 0 termo decrochez-moi-r,:a, substantivo invariavel que designa as lojasde coisas (sobretudo roup as) de segunda mao, mas que deriva do verba decrocher(desenganchar, tirar do prego ou do suporte, e tambem desprender, separar etc.) eque, por isso mesmo, em sua literalidade de "despendure-me au desenganche-meisso", presta-se ao jogo feito com 0 sentido de an'ancar ou cortar fora. (N .E.)

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o pai s6 entra aqui na posi~ao de substituto daquilo em que elase viu inicialmente frustrada, e e por isso que ela passa para 0 planoda experiencia da priva~ao. E pelo fato de ja ser no nfvel simb6licoque se apresenta 0 penis real do pai, que nos dizem ser esperado porela como urn substituto do que ela percebe como aquilo em que foifrustrada, que podemos falar de priva~ao, com a crise que esta gerae com a encruzilhada que se oferece ao sujeito, a de renunciar a seuobjeto, isto e, ao pai, ou renunciar a seu instinto, identificando-secom 0 pai.

Daf resulta uma conseqUencia curiosa. Justamente pOl' ser intro-duzido no complexo de castra~ao da mulher sob a forma de substitutosimb6lico, 0 penis acha-se na origem, na mulher, de toda sorte deconflitos do tipo dos conflitos de ciume. A infidelidade do parceiroe sentida pOl' ela como uma priva~ao real. A enfase, nesse caso, etotalmente diferente da que ha nesse mesmo conflito, visto pelo ladodo homem.

Estou andando depressa e voltarei a isso, mas ha ainda uma coisaque e preciso vermos. Se 0 falo se encontra sob a forma ban'ada ondetern lugar como indicando 0 desejo do Outro, que acontece com 0

sujeito? A sequencia de nossa elabora~ao nos mostrara que tambemo sujeito tern de encontrar seu lugar de objeto desejado em rela~aoao desejo do Outro. POI' conseguinte, e como nos indica Freud emseu vislumbre notavel em Bate-se em uma crian(:a, e sempre comoaquele que e e que nao e 0 falo que 0 sujeito tera de se situar, nofinal das contas, e encontrara sua identifica~ao de sujeito. Em suma,como veremos, 0 sujeito como tal e, ele mesmo, urn sujeito marcadopela barra.

Isso se manifesta claramente na mulher, da qual abordei hoje,atraves de uma simples indica~ao, as incidencias do desenvolvimentoa prop6sito do falo. A mulher - e 0 homem tam bern, alias _encontra-se presa num dilema insoluvel, em torno do qual e precisocolocar todas as manifestac;:6es tfpicas de sua feminilidade, neur6ticasou nao. No que concerne a encontrar sua satisfa~ao, existe, paracome~ar, 0 penis do homem, e depois, pOl' substitui~ao, 0 desejo dofilho. S6 fa~o aqui apontar 0 que e corrente e classico na teoriaanalftica. Mas que quer dizer isso? Que, afinal de contas, ela s6 obtemuma satisfa~ao tao intrfnseca, tao fundamental, ta~ instintiva quantaa da materni,dade, e tao exigente, alias, pelos caminhos da Iinhasubstitutiva. E na medida em que 0 penis e, a princfpio, urn substituto- eu chegaria ate a dizer urn fetiche - que tambem 0 filho, sobcerto aspecto, e posteriormente urn fetiche. Sao essas as vias pelas

quais a mulher se aproxima, digamos, do que e seu instinto e suasatisfa~ao nat,llral.

Inversamente, quanta a tudo 0 que esta na linha de seu deSejO,)ela se ve ligada a exigencia implicada na fun~ao do falo - a de s~r, t'-ate certo grau, que e variavel, esse falo, na medida em que ele e 9pr6prio signa do que e desejado. POI' mais verdrangt que possa ser afun~ao do falo, e justamente a ela que correspondem as manifesta~6esdo que e considerado feminilidade. Q fato de ela se exibir e se proporcomo objeto do desejo identifica-a, de maneira latente e secreta, col1,1o falo, e situa seu ser de sujeito como falo desejado.....ggnificante dogesejo d!2,Outr ..o. Esse ser a situa para alem do que podemos chamarde mascarada feminina, ja que, afinal, tudo 0 que ela mostra de suafeminilidade esta ligado, precisamente, a essa identifica~ao profundacom 0 significante falico, que e 0 que esta mais Iigado a sua

)feminilidade.Vemos aparecer af a raiz do que podemos chamaI', na consuma~ao

do sujeito no caminho do desejo do Outro, sua profunda Verwerfung,sua profunda rejei~ao, como ser, daquilo pelo qual ela aparece sob amodalidade feminina. Sua satisfa~ao passa pela via substitutiva, aopas so que seu desejo manifesta-se num plano em que s6 pode levara uma profunda Verwerfung, a uma profunda estranheza de seu serem reia~ao aquilo mediante 0 qual ela tern de parecer.

Nao pensem que a situac;:ao e melhor para 0 homem. E ate maiscomica. 0 falo, 0 infeliz 0 tern, e e justamente saber que sua maenao 0 tern que 0 traumatiza - pois, sendo assim, ja que ela e muitomais forte, onde e que vamos parar? Foi no me do primitivo diantedas mulheres que Karen Horney mostrou um dos pilares mais essen-ciais dos disturbios do complexo de castra~ao. Assim como a mulhere apanhada num dilema, 0 homem e apanhado em outro. Nele, e naIinha da satisfa~ao que se estabelece a mascarada, pOl'que ele resolvea questao do perigo que amea~a aquilo que efetivamente ele ternatraves de alga que conhecemos bastante, ou seja, da identifica~aopura e simples com aquele que tern as insfgnias do falo, que tem todaa aparencia de haver escapado ao perigo, ou seja, 0 pai. No final dascontas, 0 homem nunca e viril senao pOl' uma serie infinita deprocura~6es, que the provem de todos as seus ancestrais var6es,passando pelo ancestral direto.

Inversamente, porem, na linha do desejo, isto e, na medida emque ele deve encontrar sua satisfa~ao com a mulher, tambem ele vaia procura do falo. Ora - temos todos os testemunhos disso, clfnicose outros, e voltarei a esse ponto -, e justamente pOl' nao encontsar

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~alo ali onde 0 prQcura que ele vai procura-Io em taDtos outfoslugares:

\, Em outras palavras, na mulher, 0 penis simbolico acha-se nointerior, por assim dizer, do campo de seu desejo, ao passo que, no

, homem, ele esta no exterior. Isso Ihes explica que os homens sempretenham tendencias centrffugas na relac;ao monogamica.

E na medida em que nao e ela mesma, isto e, na medida em que,no campo de seu desejo, e preciso ser 0 falo, que a mulher experimentaa Verwerfung da identificac;ao subjetiva, aquela que se produz noponto em que termina a segunda linha, que partiu do D maiusculo.E e na medida em que tambem ele nao e ele mesmo como alguemque se satisfaz, ou seja, que obtem do Outro a satisfac;ao, mas so sepercebe como instrumento dessa satisfac;ao, que 0 homem se acha,no amor, fora de seu Outro.I 0 problema do amor e 0 da profunda divisao que se introduz no

I·l interior das atividades do sujeito. A questao de que se trata, para 0

homem, segundo a propria definic;ao do amor - dar 0 que niio setern -, e dar aquilo que ele nao tern, 0 falo, a urn ser que nao 0 e.

A DIALETICA DO DESEJO EDA DEMANDA NA CLiNICA E

NO TRATAMENTO DAS NEUROSES