karl marx - biografia - os intelectuais - paul johnson - 1988[2]

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6 KARL MARX: "GRITANDO MALDIヌユES COLOSSAIS" (Os Intelectuais; Paul Johnson; 1988) Karl Marx tem tido mais influência nos acontecimentos atuais, e nas cabeças de homens e mulheres, do que qualquer intelectual de nossos tempos. A razão para isso não é originariamente a atração que se sente diante de seus conceitos e de sua metodologia, embora ambos representem um atrativo para as cabeças pouco rigorosas, mas o fato de que sua filosofia foi institucionalizada em dois dos maiores países do mundo, União Soviética e China, e em seus muitos satélites. Nesse sentido, ele se assemelha a Santo Agostinho, cujas obras foram lidas de forma generalizada entre os líderes da igreja do século V ao XIII e por esse motivo tiveram um papel preponderante na configuração da cristandade medieval. Mas a influência de Marx tem sido ainda mais direta, pois o tipo de ditadura que ele idealizou para si mesmo (como veremos) foi de fato levada a efeito, com incalculáveis conseqüências para a humanidade, por seus três mais importantes seguidores, Lenin, Stalin e Mao Tse-Tung, que nesse ponto foram, todos eles, marxistas convictos. Marx foi um filho de seu tempo, o meio do século XIX, e o marxismo foi uma filosofia típica do século XIX pelo fato de se pretender científico. "Científico" era o termo mais convincente de aprovação para Marx, que ele usava comumente para distinguir a si próprio de seus vários inimigos. Ele e sua obra eram "científicos"; seus inimigos, não. Percebeu que tinha encontrado uma explicação científica do comportamento do homem na história análoga à teoria da evolução de Darwin. A noção de que o marxismo é uma ciência, de um modo que nenhuma outra filosofia nunca foi ou podia ser, faz parte da doutrina pública dos governos instituídos por seus seguidores, de tal forma que influencia o ensino de todas as matérias nas escolas e universidades desses países. Isso se espalhou pelo mundo não-marxista, pois os intelectuais, principalmente os acadêmicos, são fascinados pelo poder, e a identificação do marxismo com a autoridade física poderosa induziu muitos professores a acolher a "ciência" marxista em suas próprias disciplinas, especialmente nas matérias não-exatas ou quase exatas como Economia, Sociologia, História e Geografia. Sem dúvida, se Hitler, em vez de Stalin tivesse ganho a disputa pela Europa Central e Oriental em 1941-45, e desse modo impusesse sua vontade sobre uma grande parte do mundo, a doutrina nazista - cujos partidários também pretendiam que fosse científica, assim como a teoria sobre a raça que dela fazia parte - teria ganho um falso brilho acadêmico e teria penetrado nas universidades pelo mundo afora. Porém, a vitória militar assegurou que a ciência marxista, mais do que a nazista, prevalecesse. Por conseguinte, o que devemos perguntar em primeiro lugar a respeito de Marx é: em que sentido ele era um cientista, se é que o era? Ou seja, até que ponto ele estava comprometido com a busca do conhecimento objetivo por meio da investigação e da avaliação dos dados? A esse respeito, a biografia de Marx o mostra originariamente como um erudito. Ele descendia, por parte de pai e de mãe, de linhagens de scholars. Seu pai, Heinrich Marx, um advogado cujo nome original era Hirschel ha-Levi Marx, era o filho de um rabino estudioso do Talmude,

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KARL MARX: "GRITANDO MALDIÇÕES COLOSSAIS"(Os Intelectuais; Paul Johnson; 1988)

Karl Marx tem tido mais influência nos acontecimentos atuais, e nascabeças de homens e mulheres, do que qualquer intelectual de nossostempos. A razão para isso não é originariamente a atração que se sentediante de seus conceitos e de sua metodologia, embora ambosrepresentem um atrativo para as cabeças pouco rigorosas, mas o fato deque sua filosofia foi institucionalizada em dois dos maiores países domundo, União Soviética e China, e em seus muitos satélites. Nessesentido, ele se assemelha a Santo Agostinho, cujas obras foram lidas deforma generalizada entre os líderes da igreja do século V ao XIII e por essemotivo tiveram um papel preponderante na configuração da cristandademedieval. Mas a influência de Marx tem sido ainda mais direta, pois o tipode ditadura que ele idealizou para si mesmo (como veremos) foi de fatolevada a efeito, com incalculáveis conseqüências para a humanidade, porseus três mais importantes seguidores, Lenin, Stalin e Mao Tse-Tung, quenesse ponto foram, todos eles, marxistas convictos.

Marx foi um filho de seu tempo, o meio do século XIX, e o marxismofoi uma filosofia típica do século XIX pelo fato de se pretender científico."Científico" era o termo mais convincente de aprovação para Marx, que eleusava comumente para distinguir a si próprio de seus vários inimigos. Ele esua obra eram "científicos"; seus inimigos, não. Percebeu que tinhaencontrado uma explicação científica do comportamento do homem nahistória análoga à teoria da evolução de Darwin. A noção de que omarxismo é uma ciência, de um modo que nenhuma outra filosofia nuncafoi ou podia ser, faz parte da doutrina pública dos governos instituídos porseus seguidores, de tal forma que influencia o ensino de todas as matériasnas escolas e universidades desses países. Isso se espalhou pelo mundonão-marxista, pois os intelectuais, principalmente os acadêmicos, sãofascinados pelo poder, e a identificação do marxismo com a autoridadefísica poderosa induziu muitos professores a acolher a "ciência" marxistaem suas próprias disciplinas, especialmente nas matérias não-exatas ouquase exatas como Economia, Sociologia, História e Geografia. Semdúvida, se Hitler, em vez de Stalin tivesse ganho a disputa pela EuropaCentral e Oriental em 1941-45, e desse modo impusesse sua vontadesobre uma grande parte do mundo, a doutrina nazista - cujos partidáriostambém pretendiam que fosse científica, assim como a teoria sobre a raçaque dela fazia parte - teria ganho um falso brilho acadêmico e teriapenetrado nas universidades pelo mundo afora. Porém, a vitória militarassegurou que a ciência marxista, mais do que a nazista, prevalecesse.

Por conseguinte, o que devemos perguntar em primeiro lugar arespeito de Marx é: em que sentido ele era um cientista, se é que o era?Ou seja, até que ponto ele estava comprometido com a busca doconhecimento objetivo por meio da investigação e da avaliação dos dados?A esse respeito, a biografia de Marx o mostra originariamente como umerudito. Ele descendia, por parte de pai e de mãe, de linhagens descholars. Seu pai, Heinrich Marx, um advogado cujo nome original eraHirschel ha-Levi Marx, era o filho de um rabino estudioso do Talmude,

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descendente do famoso Rabino Elieser ha-Levi de Mainz, cujo filho JehudaMinz era diretor da Escola Talmúdica de Pádua. A mãe de Marx, HenriettaPressborck, era filha de um rabino que descendia igualmente de eruditos esábios famosos. Marx nasceu em Trier (na época, um território prussiano)a 5 de maio de 1818, sendo um entre nove filhos, embora tenha sido oúnico filho homem a sobreviver até a idade adulta; suas irmãs casaram-se,respectivamente, com um engenheiro, um livreiro e um advogado. Afamília era essencialmente de classe média e prosperava a olhos vistos. Opai era um liberal e foi descrito como sendo "um verdadeiro francês doséculo XIX, que sabia seu Voltaire e seu Rousseau de trás para a frente"[1]. Seguindo um decreto prussiano de 1816 que proibia os judeus deocupar os cargos mais elevados na advocacia e na medicina, tornou-seprotestante e a 26 de agosto de 1824, batizou seus seis filhos. Marx foicrismado aos 15 anos e parece ter sido, por algum tempo, um cristãofervoroso. Cursou o antigo segundo grau jesuíta - nessa época secularizado- e a Universidade Bonn. De lá, foi para a Universidade de Berlim, que era,nessa época, a de melhor ensino no mundo. Nunca recebeu nenhumaeducação judaica nem se esforçou para ter tal educação, e nuncademonstrou nenhum interesse pelas causas dos judeus.[2] Porém pode-sedizer que ele desenvolveu peculiaridades típicas de um certo tipo deerudito, principalmente os talmúdicos: a tendência de acumular massasimensas de dados assimilados pela metade e de planejar obrasenciclopédicas que nunca eram terminadas; um enorme desprezo portodos os não-eruditos e uma agressividade e irascibilidade extremadas aolidar com outros eruditos. Na verdade, praticamente toda a sua obra tem acaracterística básica de um estudo talmúdico: é essencialmente umcomentário a respeito ou uma crítica do trabalho de outros estudiosos domesmo campo.

Marx se tornou um bom scholar clássico e mais tarde se especializouem filosofia, principalmente a partir do modelo hegeliano. Fez doutorado,embora tenha sido na Universidade de Jena, que tinha critérios menosrígidos do que a de Berlim; parece nunca ter merecido um postoacadêmico. Em 1842, tomou-se jornalista no Rheinische Zeitung e editou-opor cinco meses até que teve sua circulação proibida, em 1843; depoisdisso, escreveu para o Deutsch-Franzõsische Jahrbücher e para outrosjornais em Paris até sua expulsão em 1845, tendo ido depois paraBruxelas. Lá, se envolveu na organização da Liga dos Comunistas, cujomanifesto escreveu em 1848. Depois do fracasso da revolução, foiobrigado a se mudar (1849) e se estabeleceu em Londres, dessa vez parasempre. Por poucos anos, nas décadas de 1860 e 1870, estava novamenteenvolvido em política revolucionária, dirigindo a Associação Internacionaldos Trabalhadores. Porém, a maior parte de seu tempo em Londres, atésua morte a 14 de janeiro de 1883 - ou seja, 34 anos -, passou no MuseuBritânico, procurando material para um gigantesco estudo sobre o capital etentando dar a ele uma forma que o tornasse publicável. Viu um volume irpara o prelo (1867), mas o segundo e o terceiro foram compilados a partirde suas anotações por seu companheiro Friedrich Engels e forampublicados após sua morte.

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Marx, portanto, levou uma vida de erudito. Certa vez, se queixou:"Sou uma máquina condenada a devorar livros" [3]. Mas num sentido maisprofundo, ele não era realmente um scholar, nem tampouco um cientista.Não estava interessado em achar a verdade, mas em proclamá-la. Haviatrês elementos constitutivos em Marx: o poeta, o jornalista e o moralista.Cada um deles tinha sua importância. Juntos, e combinados com suaenorme vontade, tornavam-no um escritor e um profeta formidável. Masnão havia nada de científico nele; na verdade, em todos esses aspectos eleera anticientífico.

O poeta em Marx era muito mais importante do que geralmente sesupõe, muito embora suas metáforas poéticas logo tenham sidoincorporadas a sua visão política. Começou a escrever poesia quando aindaera um garoto, em tomo de dois temas principais: seu amor pela garota daporta ao lado Jenny von Westphalen, de descendência prussiano-escocesa,com quem se casou em 1841 - e a destruição do mundo. Escreveu umagrande quantidade de poesia, três volumes manuscritos que foramenviados a Jenny, herdados pela filha deles, Laur, e desapareceram apóssua morte em 1911. Porém, as cópias de 40 poemas se conservaram,inclusive uma tragédia em verso, Oulanen, que Marx tinha esperanças deque viesse a ser o Fausto de sua época. Dois poemas tinham sidopublicados na Athenaeum de Berlim, a 23 de janeiro de 1841. Intitulavam-se "Canções selvagens", e a selvageria é uma marca característica de seusversos, juntamente com um intenso pessimismo no que diz respeito àcondição humana, ódio, uma fascinação pela decomposição e pelaviolência, pactos de suicídio e pactos com o demônio. "Nós estamosacorrentados, alquebrados, vazios, amedrontados / Eternamenteacorrentados a esse bloco marmóreo do ser", escreveu o jovem Marx, “. . .Somos os imitadores de um Deus insensível”. Ele próprio, representandoDeus diz: "Gritarei maldições colossais à humanidade", e sob a superfíciede grande parte de seus poemas está a idéia de uma crise mundialgeneralizada que aumenta [4]. Gostava de citar o verso de Mefistófeles, doFausto de Goethe: "Tudo o que existe merece perecer"; utilizou-o, porexemplo, em seu pequeno tratado contra Napoleão III, O 18 brumário, eele manteve por toda a sua vida essa visão apocalíptica de uma catástrofeimensa e pronta para se abater sobre o sistema vigente: estava na poesia,foi o pano de fundo do Manifesto comunista de 1848 e foi o clímax dopróprio O Capital.

Marx, em suma, é um escritor escatológico do começo ao fim. É dignode nota, por exemplo, que no projeto original de A ideologia alemã (1845-46) ele tenha incluído uma passagem que lembra bastante seus poemas arespeito do "Dia do Juízo": "Quando os reflexos das cidades em chamasforem vistos nos céus (. . .) e quando as 'harmonias celestiais' consistiremdas melodias da Marseillaise e da Carmagnole, tendo comoacompanhamento canhões ribombantes, enquanto a guilhotina marca otempo e as massas inflamadas gritam Ça ira, ça ira, e a autoconsciênciaestá pendurada no poste de luz" [5]. Mais uma vez, há ecos de Oulanen noManifesto comunista, quando o proletariado leva o manto do herói. [6] Otom apocalíptico dos poemas irrompe em seu terrível discurso de 14 deabril de 1856: "Ai história é o juiz, seu carrasco, o proletariado" - o terror,

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casas marcadas com a cruz vermelha, metáforas de catástrofe, terremotos,lava fervente saindo da crosta terrestre que se quebra. . . [7] O queimporta é que a idéia de Marx de um "dia do juízo", tanto em sua lúgubreversão poética quanto, por fim, em sua versão econômica, representa umavisão artística, e não científica. Essa idéia sempre esteve na cabeça deMarx e, como um economista político, ele trabalhou a partir dela masvoltado para trás, procurando a prova que a tornava convincente, mais doque voltado para a frente, partindo de dados examina dos objetivamente. Eé claro que é o elemento poético que empresta à projeção histórica deMarx seu efeito dramático e de fascinação sobre os leitores radicais, quequerem acreditar que a morte e o julgamento do capitalismo seaproximam. O talento poético se manifesta de forma intermitente naspáginas de Marx, criando algumas passagens memoráveis. No sentido deque ele intuía mais do que deduzia ou calculava, Marx até o fim continuousendo um poeta.

Porém, ele também foi um jornalista e, em alguns aspectos, dos bons,Marx achava não apenas difícil mas impossível planejar um livro grandequanto mais escrevê-lo: mesmo O capital se constitui de uma série deensaios aglutinados sem nenhuma ordem real. Porém, ele se sentia bemescrevendo textos curtos, penetrantes, reações opinativas no momento emque os acontecimentos se davam. Acreditava, em concordância com suaimaginação poética, que a sociedade estava à beira do colapso. Assim,quase toda notícia importante podia ser relacionada a esse princípio geral,o que dava a seus textos jornalísticos uma densidade extraordinária. Emagosto de 1851, um seguidor do socialista primitivo Robert Owen, CharlesAnderson Dana, que se tomara um importante dirigente do New York DailyTribune, pediu a Marx que se tomasse o correspondente político do jornalna Europa, escrevendo dois artigos por semana a uma libra cada. Pelospróximos dez anos, Marx contribuiria com quase 500 artigos, dos quaiscerca de 125 foram escritos para ele por Engels. Esses artigos eramfartamente alterados e reescritos em Nova York, mas a argumentaçãovigorosa é típica de Marx talento era como jornalista polêmico. Utilizavaepigramas e aforismos de forma brilhante, embora muitos não tivessemsido inventados por ele. Marat criou as frases: "Os trabalhadores nãopossuem uma pátria" e "Os proletários não têm nada a perder a não sersuas correntes”, e é nesse particular que reside a força deles. Na verdade,seu maio ". A famosa piada da burguesia usando brasões feudais em seustraseiros se deve a Reine, assim como ”A religião é o ópio do povo". LouisBlanc inventou: "De cada um, segundo sua capacidade, para cada um,segundo sua necessidade". De Karl Schapper, tirou: "Trabalhadores detodo o mundo, uni-vos!", e de Blanqui: "a ditadura do proletariado". MasMarx tinha capacidade para criar suas próprias frases: "Em política, osalemães pensaram o que outras nações realizaram". "A religião é apenas osol ilusório em tomo do qual o homem gira, até que ele comece a girar emtomo de si mesmo." "O casamento burguês é a comunidade das esposas.""O arrojo revolucionário que permite proclamar a seus adversários asdesafiadoras palavras: 'Não sou nada e tenho de ser tudo'". "As idéiasdominantes de cada época foram as idéias da classe dominante nessaépoca". Além disso, ele tinha o raro talento de chamar a atenção para osditos de outras pessoas e utilizá-los exatamente no momento certo do

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raciocínio, numa combinação que causava grande impacto. Nenhumescritor político jamais superou as três últimas frases do Manifesto: "Ostrabalhadores não têm nada a perder a não ser suas correntes. Eles têmum mundo a conquistar. Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!". Foi oolho jornalístico de Marx para o texto lacônico, para a frase incisiva que,mais do que qualquer outra coisa, salvou do esquecimento toda a suafilosofia no último quarto do século XIX.

Porém, se a poesia era responsável pelas imagens e o aforismojornalístico pelos pontos altos da obra de Marx, sua base era o jargãoacadêmico. Marx era um acadêmico; ou antes, e pior, era um acadêmicofracassado. Um pretendente a professor universitário frustrado, eledesejava surpreender o mundo ao criar uma nova escola filosófica, querepresentava também um plano de ação destinado a lhe conferir poder. Daísua atitude ambivalente em relação a Hegel. Marx diz em seu prefácio àsegunda edição alemã de O capital: "Declarei-me, francamente, umdiscípulo do grande pensador" e "me diverti com o uso da terminologiahegeliana quando discuti a teoria do valor" em O capital. Porém, diz ele,seu "método dialético" está em "oposição direta" ao de Hegel. Para Hegel,o processo de pensamento é o que cria o real, ao passo que "em minhavisão, por outro lado, o ideal não passa do material quando transposto etrasladado para o interior da mente do homem". Conseqüentemente,afirma ele, "nos escritos de Hegel, a dialética está de cabeça para baixo.Devemos colocá-la outra vez corretamente virada para cima se queremosdescobrir o núcleo racional que ficou oculto sob o invólucro damistificação". [8]

Marx, portanto, perseguiu a fama acadêmica a partir de suasensacional descoberta da falha fundamental no método de pensamento deHegel, a qual permitiu-o substituir todo o sistema hegeliano por uma novafilosofia, na verdade, uma superfilosofia, que tomaria obsoletas todas asfilosofias existentes. Mas ele continuou a admitir que a dialética de Hegelera "a chave para a compreensão humana", e ele não apenas se utilizoudela mas se manteve preso a ela até o fim da vida. Isso porque a dialéticae suas "contradições" explicavam a crise universal aguda que tinha sidosua visão poética original quando era um adolescente. Como escreveu atéo fim da vida (14 de janeiro de 1883), os ciclos comerciais representam "ascontradições inerentes à sociedade capitalista" e darão lugar ao "pontoculminante desses ciclos, uma crise universal". Isso vai "incutir a dialética"nas cabeças até mesmo dos "novos ricos do novo império alemão".

O que tudo isso tem a ver com a política e a economia do mundo real?Absolutamente nada. Do mesmo modo que a origem da filosofia marxistase assenta numa visão poética, a elaboração dessa filosofia foi umexercício de retórica acadêmica. Entretanto, o de que Marx necessitavapara pôr em movimento sua maquinaria intelectual era de um estímulomoral. Ele o encontrou em seu ódio à usura e aos agiotas, um sentimentoviolento relacionado diretamente (como veremos) com suas própriasdificuldades financeiras. Esse sentimento ganhou corpo nos primeirosescritos importantes de Marx, dois ensaios "Sobre as questões judaicas",publicados em 1844 no DeutschFranzosische Jahrbücher. Os discípulos de

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Marx eram todos - em graus variáveis - anti-semitas, e em 1843 BrunoBauer, o líder anti-semita da esquerda hegeliana, publicou um ensaiopedindo que os judeus abandonassem completamente o judaísmo. Osensaios de Marx eram uma resposta a isso. Ele não era contra o anti-semitismo de Bauer; na verdade, partilhou desse sentimento, apoiou-o ecitou-o em aprovação. Entretanto, desaprovou a solução de Bauer. Marxera contra a opinião de Bauer de que a natureza anti-social dos judeustinha uma origem religiosa e podia ser corrigida fazendo-os se afastaremde sua fé. Na opinião de Marx, a origem do mal era social e econômica.Escreveu: "Examinemos o judeu real. Não o judeu de sábado. . . mas ojudeu de todo dia". Qual era, perguntou ele, "a base profana do judaísmo?Necessidade pessoal, interesse próprio. Qual é o culto secular dos judeus?O comércio. Qual é o seu deus profano? O dinheiro". Os judeus haviamespalhado gradualmente sua religião "prática" por toda a sociedade:

“o dinheiro é o deus egoísta de Israel, ao lado do qual nenhumoutro deus pode existir. O dinheiro rebaixa todos os deuses dahumanidade e os transforma em mercadoria. O dinheiro é o valorauto-suficiente de todas as coisas. Por essa razão, ele destituiu omundo inteiro, tanto a raça humana quanto a Natureza, de seuvalor próprio. O dinheiro é a essência alienada do trabalho e daexistência do homem: essa essência domina o homem, que venerao dinheiro. O deus dos judeus foi secularizado e tomou-se o deusdo mundo”

Os judeus tinham corrompido os cristãos e os convencido de que"eles não tinham outro destino aqui embaixo a não ser tomarem-se maisricos do que seus semelhantes" e de que "o mundo é uma bolsa devalores". O poder político tinha se tomado o "fiador" do poder monetário.Conseqüentemente, a solução era econômica. O "agiota" tinha passado aser "o elemento anti-social do momento presente" e para "tomar a usuraimpossível" era necessário acabar com as "precondições", ou seja, a"possibilidade real" do tipo de atividade financeira que dava lugar a esseagiota. Era só acabar com a atitude judaica em relação ao dinheiro e comos judeus e sua religião, que a versão corrompida do cristianismo que elestinham imposto ao mundo desapareceria: "Libertando-a do baixo comércioe do dinheiro e, desse modo, do judaísmo real e prático, nossa épocaestaria, ela própria, livre." [9]

Assim, a visão de Marx acerca do que estava errado com o mundocombinava um anti-semitismo de bar estudantil com Rousseau. Eleampliou essa visão em sua filosofia madura pelos três anos subseqüentes,de 1844 a 1846, durante os quais chegou à conclusão de que o elementoprejudicial na sociedade, os agentes do poder financeiro usurário contra osquais ele se revoltava, não eram apenas os judeus mas a classe burguesacomo um todo. [10] Do outro lado estava a nova força redentora, oproletariado. Essa argumentação é expressa em termos estritamentehegelianos, tendo Marx utilizado todos os poderosos recursos do jargãofilosófico alemão no pior estilo acadêmico, embora o impulso básico sejaclaramente moral e a visão final (a crise apocalíptica) ainda seja poética.Desse modo: a revolução se aproxima, a qual na Alemanha será filosófica:"Uma esfera que não pode se considerar livre se não se libertar de todas as

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outras esferas, o que, resumindo, representa o total desaparecimento deuma humanidade capaz de se redimir somente por meio de uma redençãototal da humanidade. Essa dissolução da sociedade, representada em umaclasse particular, é o proletariado". O que Marx parece estar dizendo é queo proletariado, a classe que não é uma classe, a destruidora de uma ouvárias classes, é uma força' redentora que não possui história, não estásujeita às leis históricas e, em última análise, põe um fim na história - queé, por si só, de forma bem curiosa, um conceito bastante judaico, oproletariado aparecendo como Messias ou redentor. A revolução consistede dois elementos: "a cabeça da libertação é a filosofia, seu coração é oproletariado". Desse modo, os intelectuais formariam a elite - os generais -e os trabalhadores seriam os soldados de infantaria.

Tendo definido a riqueza como sendo o poder monetário judaicoestendido à classe burguesa como um todo, e tendo definido proletariadosegundo um novo sentido filosófico, Marx se dirigiu então, utilizando-se dadialética hegeliana, ao coração de sua filosofia, ou seja, aosacontecimentos que conduziriam à grande crise. O trecho fundamentalsobre esse assunto termina assim:

O proletariado confirma a sentença segundo a qual a propriedadeprivada se estabelece pelo fato de originar o proletariado, do mesmomodo que confirma a sentença segundo a qual os trabalhadoresassalariados se estabelecem pelo fato de possibilitarem oenriquecimento de outros e a miséria deles próprios. Se oproletariado for vitorioso, isso não significa que ele se tomará afacção absoluta da sociedade, pois será vitorioso tão-somente porextinguir a si próprio e a seu adversário. Então, o proletariado e seuadversário definido, a propriedade privada, desaparecem.

Marx, desse modo, conseguiu definir o acontecimento catastróficoque ele tinha visto, primeiramente, como uma imagem poética. Porém, adefinição se dá nos termos acadêmicos alemães. O que de fato nadasignifica no tocante ao mundo real fora do salão de conferências dauniversidade.

Mesmo quando Marx tenta politizar os acontecimentos, ainda assimse utiliza do jargão filosófico: "O socialismo não pode vir a existir sem umarevolução. Quando a força ordenadora começar a atuar, quando aessência, a coisa-em-si aparecer, então o socialismo poderá se desfazer detodos os disfarces políticos". Marx era um vitoriano legítimo; tanto quantoa própria rainha Vitória em suas cartas, tinha o hábito de sublinharpalavras. Mas, no seu caso, essa hábito realmente não ajudava muito nosentido de transmitir sua mensagem, que ficava encoberta pelaobscuridade dos conceitos da filosofia acadêmica alemã. Para fazer sentir aforça de seus pontos de vista, Marx também lançou mão de umagrandiloqüência habitual, enfatizando a natureza universal do processo queestava descrevendo, porém isso também ficou obstruído pela retórica.Desse modo: "o proletariado só pode existir no âmbito de uma históriamundial, do mesmo modo que o comunismo; suas ações só podem ter umaexistência inserida numa história mundial". Ou ainda: "O comunismo só épossível na prática enquanto ação imediata e simultânea do povo

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dominante, o que pressupõe o desenvolvimento universal do poderprodutivo e do comércio mundial que depende desse poder". Entretanto,mesmo quando a mensagem de Marx é clara, suas afirmações não têm,necessariamente, qualquer validade; não passam do obiter dicta de umfilósofo moralista. [11] Algumas das frases que citei acima soariamigualmente plausíveis ou implausíveis se fossem alteradas para ganharemo sentido contrário. Portanto, onde estão os fatos, as provas do mundoreal, que transformariam esses ditos proféticos de um filósofo moralista,essas revelações, numa ciência?

Marx tinha uma atitude ambivalente em relação às informações,assim como em relação à filosofia de Hegel. Por um lado, passou décadasinteiras de sua vida reunindo dados, que se acumularam em mais de 100imensos cadernos de anotações. Porém, esses dados eram dos que seencontram em bibliotecas, registrados em livros azuis (Livros azuis sãopublicações oficiais do parlamento inglês). O tipo de informação que nãointeressava a Marx era aquele a ser obtido a partir do exame, com seuspr6prios olhos e ouvidos, do mundo e das pessoas que nele vivem. Ele era,total e incorrigivelmente, restrito a sua escrivaninha. Nada no mundo otirava da biblioteca e do estudo. Seu interesse pela pobreza e pelaexploração data do outono de 1842, quando tinha 24 anos e escreveu umasérie de artigos sobre as leis que regulavam o direito dos camponeseslocais de estocar madeira. Segundo Engels, Marx contou-lhe que "foi seuestudo sobre a lei concernente ao roubo de madeira e sua investigaçãosobre os camponeses de Mosela que o fizeram desviar sua atenção dascondições meramente políticas para a situação econômica, e porconseguinte para o socialismo".[12] Mas não há nenhuma prova de queMarx tenha de fato conversado com os camponeses e proprietários outenha analisado a situação in loco. Mais uma vez, em 1844, escreveu parao semanário Vorwarts (O radical) um artigo sobre a situação dos tecelãossilesianos. Porém, nunca foi à Silésia ou, até onde se sabe, jamais faloucom nenhum tipo de tecelão, e se o tivesse feito estaria contrariando seupróprio temperamento. Marx escreveu sobre finanças e indústria durantetoda a vida mas só conheceu duas pessoas ligadas aos sistemas financeiroe industrial. Um era seu tio na Holanda, Lion Philips, um bem-sucedidohomem de negócios que fundou a firma que se transformaria na imensaPhilips Electric Company. As opiniões do tio Philips sobre o sistemacapitalista em geral deviam ser bem embasadas e interessantes, mas Marxnão se preocupou em explorá-las. Só o consultou uma vez, acerca de umassunto ligado a altas finanças, e embora tenha visitado Philips quatrovezes, nessas ocasiões eles trataram tão-somente de assuntos pessoaisrelacionados com o dinheiro da família. O outro entendido era o próprioEngels. Mas Marx recusou um convite de Engels para acompanhá-lo navisita a uma fiação, e até onde sabemos, Marx nunca esteve, durante todaa sua vida, numa manufatura, numa fábrica, numa mina ou em qualqueroutro local de trabalhe industrial.

O que é ainda mais surpreendente é a hostilidade de Marx emrelação aos companheiros revolucionários que tinham essa experiência - ouseja, os trabalhadores que haviam se conscientizado politicamente. Eleencontrou tais pessoas pela primeira vez em 1845, quando fez uma breve

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visita a Londres e foi a um encontro da Sociedade de Educação dosTrabalhadores Alemães. Não gostou do que viu. Aqueles homens eram, emsua maioria, trabalhadores especializados, relojoeiros, impressores esapateiros; o líder deles era um guarda florestal. Eram autodidatas,disciplinados, cerimoniosos, bem-educados, totalmente contrários àboemia, ansiosos para transformar a sociedade mas moderados no tocanteaos meios práticos para alcançar esse objetivo. Não partilhavam das visõesapocalípticas de Marx e, sobretudo, não usavam sua linguagem acadêmica.Ele os via com desprezo: para ele, não passavam de carne para canhão.Marx sempre preferiu se ligar a intelectuais da classe média como elepróprio. Quando ele e Engels fundaram a Liga Comunista e, de novo,quando formaram a Internacional, Marx se certificou de que os socialistasque eram da classe trabalhadora fossem afastados de qualquer posto deinfluência e fizessem parte de comissões meramente como proletáriosregidos por um estatuto. A razão para isso era, em parte, um esnobismointelectual e, em parte, porque os homens com experiência real dascondições numa fábrica costumavam ser contra o uso da violência e a favordas melhorias simples e progressivas: eles eram inteligentementeincrédulos quanto à revolução apocalíptica que ele afirmava ser não apenasnecessária mas inevitável. Alguns dos ataques mais virulentos de Marxforam direcionados contra homens desse tipo. Assim, em março de 1846,sujeitou William Weitling a uma espécie de julgamento antes de umencontro da Liga Comunista em Bruxelas. Weitling era o filho pobre eilegítimo de uma lavadeira que nunca soube o nome do pai dele, e era umaprendiz de alfaiate que apenas por meio de trabalho árduo e deautodidatismo conquistou um grande número de adeptos entre ostrabalhadores alemães. O objetivo do julgamento foi o de insistir na"correção" da doutrina e fazer calar qualquer trabalhador presunçoso quenão tivesse a formação filosófica que Marx achava essencial. O ataque deMarx contra Weitling foi extraordinariamente agressivo. Ele era culpado,disse Marx, de comandar um tumulto sem doutrina. Isso seria aceitável seacontecia na Rússia, onde "se podem criar associações com jovens eapóstolos estúpidos. Mas num país civilizado como a Alemanha, devemoscompreender que nada pode ser conseguido sem a nossa doutrina". Ouainda: "Se se tenta influenciar os trabalhadores, principalmente ostrabalhadores alemães, sem o corpo de uma doutrina e idéias científicasclaras, então você estará jogando um jogo propagandístico vazio einescrupuloso; servindo inevitavelmente para estimular, por um lado, umdiscípulo inspirado, e por outro, asnos vociferantes prestando atenção aele". Weitling replicou que não tinha se tomado um socialista paraaprender doutrinas elaboradas num gabinete; falava pelos trabalhadoresverdadeiros e não se submeteria às opiniões de simples teóricos queestavam afastados do mundo de sofrimento dos verdadeiros trabalhadores.Isso, disse uma testemunha ocular, "enfureceu Marx de tal modo que eledeu um soco na mesa com grande violência e a luminária balançou.Ficando de pé num pulo, gritou: ‘A ignorância nunca ajudou ninguém’ ". Oencontro terminou com Marx "ainda andando de um lado para o outro dasala num violento acesso de cólera". [13]

Esse foi o modelo de ataques ulteriores, contra socialistas proletáriose contra qual que líder que tivesse conseguido um grande séqüito de

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trabalhadores pregando soluções práticas para problemas reais ligados atrabalho e a salários, e não a uma revolução doutrinária. Desse modo,Marx atacou o ex-tipógrafo Pierre-Joseph Proudhon, o reformador agrícolaHermann Kriege e o primeiro social-democrata alemão realmenteimportante e organizador de trabalhadores, Ferdinand Lassalle. Em seuManifesto contra Kriege, Marx, que nada sabia sobre agricultura,principalmente nos Estados Unidos, onde Kriege se estabelecera,denunciou seu propósito de dar 160 acres de terras do Estado para cadacamponês; disse que os camponeses deviam ser arregimentados por meiode promessas de terra, mas uma vez estabelecida a sociedade comunista,a terra seria usufruída coletivamente. Proudhon era um anti-dogmático:"Pelo amor de Deus", escreveu ele, "depois de termos destruído todo odogmatismo [religioso] a priori, não vamos, entre todas as coisas, tentarincutir um outro tipo de dogma no povo (. . .) não nos transformemos emlíderes de uma nova intolerância". Marx detestava esse trecho. Em suadiatribe violenta contra Proudhon, A miséria da filosofia, escrito em junhode 1846, acusou-o de "infantilismo", flagrante "ignorância" em economia efilosofia e, sobretudo, má utilização das idéias e técnicas de Hegel -"Monsieur Proudhon conhece tão pouco a dialética hegeliana quanto oidioma em que foi escrita". Assim como no caso de Lassalle, ele se tomouuma vítima do mais brutal escárnio anti-semítico e racial de Marx: ele erao "Barão Itzig", "o Negro Judeu", "um judeu gorduroso oculto sob abrilhantina e as jóias baratas". "Agora está perfeitamente claro para mim",escreveu Marx para Engels a 30 de julho de 1862, "que, como indicam aforma de sua cabeça e o crescimento de seus cabelos, ele é descendentedos negros que se juntaram a Moisés em sua fuga do Egito (a não ser quesua mãe ou avó por parte de pai tenha tido relações com um negro). Essacombinação do judeu com o alemão, tendo como base o negro, estavadestinada a produzir um híbrido insólito". [14]

Desse modo, Marx não estava disposto a investigar, ele próprio, asituação da indústria nem a aprender nada com trabalhadores inteligentesque a tinham vivido. Por que deveria? Em todos os pontos essenciais,usando a dialética hegeliana, chegara a suas conclusões - em fins dadécada de 1840 - sobre o destino do homem. O que restava era encontraras informações para fundamentar essas conclusões, e isso podia ser tiradode reportagens de jornais, de livros azuis do governo ou de dadoscoletados por antigos autores; todo esse material era encontrado embibliotecas. Por que ir mais longe? O problema, do modo como apareciapara Marx, era encontrar o tipo certo de informação: as informaçõesadequadas. Seu método foi bem resumido pelo filósofo Karl Jaspers:

“O estilo dos escritos de Marx não é o do investigador (. . .) ele nãocita exemplos ou expõe fatos que se opõem a sua teoria masapenas aqueles que provam ou confirmam aquilo que ele consideracomo a verdade última. Toda a sua abordagem é no sentido dajustificação, não da investigação, mas trata-se de uma justificaçãode algo declarado como sendo a perfeita verdade com a convicçãonão do cientista, mas do crente”. [15]

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Nesse sentido, então, os "dados" não eram centrais ao trabalho deMarx; eles estavam subordinados, reforçando conclusões que já tinhamsido alcançadas independentemente deles. O capital, o monumento emtomo do qual girava sua vida de erudito, deveria ser visto, portanto, nãocomo uma investigação científica sobre a natureza do sistema econômicoque pretendeu descrever, mas como um exercício de filosofia moralista,um tratado comparável aos de Carlyle ou Ruskin. Trata-se de um sermãogigantesco e no mais das vezes incoerente, um ataque ao sistemaindustrial e ao princípio de propriedade feito por um homem que tinhacriado um ódio intenso, embora essencialmente irracional, em relação aambos. Curiosamente, essa obra não tem um argumento central que atuecomo um princípio organizador. Marx originariamente, em 1857, planejouque a obra consistiria de sete volumes: o capital, a terra, o salário, otrabalho, o Estado, o comércio e um último volume sobre o mercado e ascrises internacionais.[16] Porém, a autodisciplina metódica precisaria levara cabo tal plano, que provara estar além de suas capacidades. O únicovolume que ele chegou a escrever (o qual, paradoxalmente, se encontradividido em dois volumes) não possui de fato nenhuma forma coerente;trata-se de uma série de exposições isoladas arrumadas numa ordemarbitrária. O filósofo marxista francês Louis Althusser achou a estrutura daobra tão confusa que dizia ser "imperativo" que os leitores ignorassem aprimeira parte e começassem da segunda, ou seja, do quarto capítulo. [17]Mas outros exegetas marxistas repudiaram veementemente essainterpretação. De fato, a abordagem de Althusser não ajuda muito. Asinopse que o próprio Engels fez do primeiro volume de O capital servepara sublinhar a fragilidade ou mesmo a ausência de uma estrutura. [18]Depois da morte de Marx, Engels escreveu o segundo volume a partir de1500 páginas duplas com anotações de Marx, sendo que reescreveu 1/4 dotexto. O resultado são 600 páginas enfadonhas e confusas sobre acirculação do capital e principalmente sobre as teorias econômicas dadécada de 1860. O terceiro volume, no qual Engels trabalhou de 1885 a1893, consiste num exame de todos os aspectos do capital que ainda nãotinham sido abordados, mas não passa de uma série de anotações,incluindo 1000 páginas sobre a usura, a maior parte delas sendo lembretesde Marx. Quase todo esse material data do começo da década de 1860,tendo sido acumulado ao mesmo tempo que Marx trabalhava no primeirovolume. Na verdade, não houve nada que tivesse impedido Marx determinar, ele próprio, o livro, a não ser falta de força de vontade e aconsciência de que ele simplesmente não tinha coerência.

O segundo e o terceiro volumes não nos interessam, pois é bastante- ou mesmo completamente - improvável que Marx os tivesse escrito noformato em que se encontram, visto que ele tinha praticamente parado detrabalhar neles durante uma década ou mais. Do primeiro volume, que foiescrito por ele, apenas nos interessam dois capítulos, o 8, "O dia detrabalho", e o 24, até o fim do segundo volume, "Acumulação primária",que inclui a famosa seção 7, "A tendência histórica de acumulaçãocapitalista". Não é, em nenhum sentido, uma análise científica, mas tão-somente uma profecia. Acontecerá, diz Marx, (1) "uma diminuiçãoprogressiva no número de magnatas capitalistas"; (2) "um aumentocorrespondente na massa de pobreza, opressão, escravização, degradação

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e exploração"; (3) "uma constante intensificação do ódio da classetrabalhadora". Essas três forças, trabalhando juntas, dão lugar à crisehegeliana, ou à versão político-econômica da catástrofe poética que eletinha imaginado em sua adolescência: "A centralização dos meios deprodução e a socialização do trabalho chegam a um ponto em que semostram incompatíveis com seu invólucro capitalista. Esse invólucroexplode em pedaços. Soa o dobre de sinos da propriedade privadacapitalista. Os expropriadores são expropriados".[19] Essas passagens sãobem excitantes e têm encantado gerações de socialistas apaixonados.Porém, não se sustentam como projeção científica mais do que oalmanaque de um astrólogo.

O capítulo 8, "O dia de trabalho", se apresenta, por contraste, comouma análise fatual do impacto do capitalismo sobre as vidas doproletariado britânico; de fato, é a única parte da obra em que Marx tratarealmente dos trabalhadores, que aparentemente são o motivo de toda asua filosofia. Por isso, é interessante examiná-la tendo em vista seu valor"científico". [20] Visto que, como já mencionamos, Marx na realidade só seinteressava pelas informações que se adequavam a suas idéiaspreconcebidas, e visto que tal postura vai contra todas as regras dométodo científico, desde seu começo o capítulo tem uma imprecisãoradical. Porém, será que Marx, além de uma seleção de informaçõestendenciosa, também as deturpou ou falsificou? Isso é o que temos deconsiderar agora.

O que se procura argumentar nesse capítulo - e esse é o cerne daquestão moral de Marx - é que o capitalismo, por sua própria natureza,implica uma progressiva e crescente exploração dos trabalhadores; dessemodo, quanto mais capital empregado, mais os trabalhadores serãoexplorados, e esse é o grande malefício moral que causa a crise derradeira.A fim de justificar cientificamente sua tese, deve provar que: (1) se ascondições nas oficinas pré-capitalistas estavam ruins, tinham se tornadobem piores no capitalismo industrial; (2) uma vez admitida a naturezaimpessoal e implacável do capital, a exploração dos trabalhadores aumentanum crescendo na maioria das indústrias altamente capitalistas. Marx nemtentou provar o n° (1). Escreveu: "No que diz respeito ao período que vaidesde o começo da industrialização em larga escala na Inglaterra até o anode 1845, tocarei nesse assunto aqui e ali, indicando ao leitor, para maioresdetalhes, o livro de Friedrich Engels, Die Lage der arbeitenden Klasse inEngland (Leipzig, 1845)". Marx acrescenta que publicações posteriores dogoverno, especialmente os relatórios dos inspetores de fábrica,confirmaram "a análise de Engels sobre a natureza do sistema capitalista"e mostraram "com que admirável fidelidade para com o detalhe eleretratou a situação". [21]

Em suma, toda a primeira parte da análise científica de Marx acercadas condições de trabalho no capitalismo em meados da década de 1860se baseia numa única obra, o livro de Engels A situação da classe operáriana Inglaterra, publicado 20 anos antes. E que valor científico, por sua vez,pode ser atribuído a essa única fonte? Engels nasceu em 1820, filho de umpróspero industrial de algodão em Barmen, no Rhineland, e entrou para a

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empresa da família em 1837. Em 1842, foi mandado para o escritório dafirma em Manchester, passando 20 meses na Inglaterra. Durante esseperíodo, esteve em Londres, Oldham, Rochdale, Ashton, Leeds, Bradford eHuddersfield tanto quanto em Manchester. Desse modo, teve um contatodireto com o comércio têxtil, porém, quanto ao mais, nada sabia emprimeira mão sobre as condições de trabalho na Inglaterra. Por exemplo,não conhecia nada sobre mineração e nunca desceu numa mina; nadasabia a respeito dos distritos do campo ou do trabalho rural. Apesar disso,dedicou dois capítulos inteiros a "Os mineiros" e "O proletariado na terra".Em 1958, dois estudiosos detalhistas, W.O. Henderson e W.H. Challoner,retraduziram e organizaram a publicação do livro de Engels e analisaramsuas fontes e o texto original de todas as citações. [22] O efeito da análisedeles foi acabar, quase por completo, com o valor histórico objetivo dolivro e reduzi-lo ao que indubitavelmente era: um trabalho visando apolêmica política, um folheto de propaganda, uma diatribe. Engelsescreveu a Marx, enquanto trabalhava no livro: "Perante o julgamento daopinião pública, acuso as classes médias inglesas de assassinato emmassa, roubo em grande escala e todos os outros crimes da lista".[23]

Essa frase quase que resume o livro: tratava-se de uma acusação.Uma grande parte do livro, inclusive toda a análise do período pré-capitalista e dos primeiros estádios da industrialização, não se baseava emfontes primárias mas em umas poucas fontes secundárias de valorduvidoso, principalmente o livro de Peter Gaskell The ManufacturingPopulation of England [A população manufatureira. da Inglaterra] (1833),um trabalho de mitologia romântica que tentava provar que o século XVIIItinha sido uma época próspera para os pequenos fazendeiros e para osartesãos. De fato, como foi demonstrado de forma concludente pelaComissão Superior de Emprego de Crianças de 1842, as condições detrabalho nas pequenas oficinas industriais e caseiras pré-capitalistasestavam bem piores do que nas grandes e modernas fiações de Lancashire.As fontes primárias impressas utilizadas por Engels estavam cinco, dez,vinte, vinte e cinco ou até quarenta anos defasadas, embora geralmente asapresentasse como sendo atuais. Ao apresentar os números estatísticosrelativos aos partos de crianças ilegítimas, os quais eram atribuídos aosturnos da noite, deixou de declarar que eles datavam de 180l. Citou umtrabalho sobre as condições sanitárias em Edinburgh sem deixar que seusleitores soubessem que tinha sido escrito em 1818. Em várias ocasiões,omitiu dados e acontecimentos que invalidavam completamente suasinformações obsoletas.

Nem sempre fica claro se as deturpações de Engels servem paraenganar o leitor ou para se auto-iludir. Porém, às vezes o engano éclaramente intencional. Utilizou-se de informações relativas a máscondições de trabalho reveladas pela Comissão de Inquérito das Fábricasde 1833 sem contar aos leitores que a Lei Fabril criada pelo Lord Althorpem 1833 tinha sido aprovada, e desde então tinha sido posta em prática,exatamente para acabar com as condições descritas no relatório. Usou omesmo estratagema ao recorrer a uma de suas principais fontes, o livro dodr. J.P. Kay, Physical and Moral Conditions of the Working ClassesEmployed in the Cotton Manufacture in Manchester [As condições físicas e

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morais das classes trabalhadoras empregadas na indústria de algodão emManchester] (1832), que tinha concorrido para que se fizessem reformasfundamentais nas medidas sanitárias do governo local; Engels não asmencionou. Interpretava erroneamente as estatísticas criminais - ou asignorava - quando não confirmavam sua tese. Na verdade, suprimiainformações, com freqüência e conscientemente, quando eram contrárias asua argumentação ou invalidavam uma determinada "iniqüidade" que eleprocurava revelar. A verificação cuidadosa das citações que Engels extraiude suas fontes secundárias fazem ver que elas eram amiúde mutiladas,condensadas, adulteradas e deturpadas, porém, invariavelmenteapresentadas entre aspas como se fossem textuais. Por toda a edição dolivro organizada por Henderson e Challoner, as notas de pé de páginarepresentam uma lista das distorções e inexatidões de Engels. Apenas emuma seção, o sétimo capítulo, "O proletariado", os erros, de informações ede transcrições, acontecem nas páginas 152, 155, 157, 159, 160,.163,165, 167, 168, 170, 172, 174, 178, 179, 182, 185, 186, 188, 189, 190,191, 194 e 203. [24]

Marx não podia ignorar essas fraquezas, na verdade desonestidades,do livro de Engels, visto que muitas delas foram expostas em detalhe jáem 1848 pelo economista alemão Bruno Hildebrand, numa publicação coma qual Marx estava familiarizado.[25] Além disso, o próprio Marx acobertouconscientemente as distorções de Engels, deixando de revelar ao leitor asgrandes melhorias acarretadas, desde que o livro tinha sido publicado, pelaexecução das Leis Fabris e de outras .leis remediadoras, as quais afetaramexatamente as. condições para as quais ele tinha chamado a atenção. Dequalquer maneira, Marx empregou, na utilização das fontes primárias esecundárias, o mesmo espírito de descaso flagrante, de distorçãotendenciosa e de inequívoca desonestidade que marcou a obra de Engels.[26] Na verdade, eles geralmente colaboravam no logro, embora fosseMarx o falsificador mais audacioso. Num caso particularmente escandaloso,ele se superou. Trata-se do chamado "Discurso inaugural" para aAssociação Internacional de Trabalhadores, fundada em setembro de 1864.Com o objetivo de tirar a classe operária inglesa de sua apatia e, porconseguinte, ansioso para provar que as normas existentes estavamperdendo o valor, falsificou intencionalmente uma frase do discurso de1863 de W.E. Gladstone relacionado com os gastos orçamentários. O queGladstone disse, ao comentar o aumento da riqueza nacional, foi: "Eudeveria encarar quase com apreensão e com pesar esse aumentoinebriante da riqueza e do poder se achasse que tal aumento se limitou àclasse que está em condições mais favoráveis". Porém, acrescentou ele, "asituação geral dos trabalhadores britânicos, como temos a felicidade desaber, melhorou ao longo dos últimos 20 anos num grau que, comosabemos, é extraordinário, e que quase devemos declarar como sendo semparalelo na história de qualquer país em qualquer época". [27] Marx, emseu discurso, atribuiu a Gladstone as seguintes palavras: "Esse aumentoinebriante de riqueza e poder se limita inteiramente às classesproprietárias". Sendo verdade o que Gladstone realmente falou, já que foiconfirmado por uma grande quantidade de dados estatísticos, e sendo elefamoso, de qualquer modo, por sua preocupação relacionada com anecessidade de assegurar que a riqueza fosse distribuída tão amplamente

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quanto possível, seria difícil imaginar uma inversão mais afrontosa dosentido original de sua frase. Marx citou como fonte o jornal Morning Star;porém, o Star, assim como outros jornais e o Hansard, publicoucorretamente as palavras de Gladstone. A citação incorreta de Marx foiapontada. Entretanto, ele a reproduziu em O capital, juntamente comoutras discrepâncias, e quando a falsificação foi novamente percebida edenunciada, ele fez uma grande confusão a fim de tumultuar o debate; ele,Engels e, mais tarde, sua filha Eleanor se envolveram na discussão,tentando defender o indefensável, por 20 anos. Nenhum deles jamaisadmitiria a falsificação primária e patente, e o resultado do debate é quealguns dos leitores ficam com a impressão, como era o propósito de Marx,de que a controvérsia possuía dois lados. Pois não possuía. Marx sabia queGladstone nunca disse uma coisa daquelas, e o engano foi intencional. [28]Não foi a única vez. Marx falsificou, do mesmo modo, citações de AdamSmith.[29]

A sistemática utilização errônea de fontes por parte de Marx chamoua atenção, na década de 1880, de dois estudiosos de Cambridge. A partirda edição francesa revista de O capital (1872 a 1875), escreveram umensaio para o Clube de Economia de Cambridge "Comentários sobre o usodos livros azuis por Karl Marx no capítulo XV de Le capital" (1885).[30]Eles contam que em princípio verificavam as referências de Marx "paraobter informações completas sobre certos tópicos", porém, impressionadoscom as "discrepâncias que se acumulavam", decidiram analisar "o alcancee a importância dos erros que se apresentavam de forma tão manifesta".Descobriram que as diferenças entre os textos dos livros azuis e ascitações que Marx tirava deles não eram resultado apenas de enganos mas"mostravam sinais de uma influência deturpadora". Num dos grupos deerros, descobriram que as citações tinham sido, amiúde, "abreviadas porconveniência por meio da omissão de passagens que provavelmente iriamcontra as conclusões que Marx tentava provar". Um outro grupo "consisteem reunir citações fictícias a partir de afirmações isoladas que constam dediferentes partes de um relatório. Essas afirmações eram entãoapresentadas entre aspas ao leitor como se fossem citadas diretamentedos próprios livros azuis". Num tópico, a máquina de costura, "se utilizados livros azuis com uma imprudência espantosa (. . .) a fim de provarexatamente o contrário do que eles realmente mostram". Concluem queseus dados podem não ser "suficientes para sustentar uma acusação defalsificação intencional", mas com certeza demonstram "um descaso quasecriminoso no uso de fontes autorizadas" que nos levam a encarar todas as"outras partes da obra de Marx com desconfiança". [31]

A verdade é que, mesmo o exame mais superficial da utilização queMarx fez das informações nos obriga a encarar com ceticismo tudo o queele escreveu baseando-se em dados fatuais. Nunca se pode confiar nele.Todo o importante capítulo 8 de O capital é uma falsificação deliberada esistemática visando provar uma tese que uma análise objetiva dasinformações demonstra ser insustentável. Seus crimes contra a verdadesão de quatro tipos. Em primeiro lugar, se utilizou de informaçõesobsoletas porque as ainda válidas não confirmavam suas alegações. Emsegundo lugar, escolheu determinadas indústrias onde as condições de

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trabalho eram particularmente ruins, como sendo típicas do capitalismo.Esse estratagema, em especial, foi importante para Marx, pois sem ele nãohaveria como escrever o capítulo 8. Sua tese era de que o capitalismo dálugar a condições de vida cada vez piores; quanto mais capital éempregado, pior os trabalhadores devem ser tratados para que seassegurem rendimentos convenientes. Os dados que ele citoudetalhadamente para justificar esse raciocínio derivavam, quase em suatotalidade, de empresas pequenas, ineficientes e pouco capitalizadasligadas a indústrias arcaicas que na maioria dos casos eram pré-capitalistas - por exemplo: cerâmica, costura, ferraria, padaria, fábricas decaixas de fósforo, de papel de parede e de cordão de sapato. Em muitosdos casos específicos que ele cita (e.g., padaria), as condições de trabalhoeram ruins exatamente porque a firma não tinha tido condições deimplantar máquinas,. uma vez que faltava capital. Desse modo, Marx lidacom as condições pré-capitalistas, e ignora a verdade que salta aos olhos:quanto mais capital, menos sofrimento. Quando ele analisa uma indústriamoderna e altamente capitalizada, não encontra provas. Desse modo,quando trata do aço, tem de recorrer a comentários interpolados ("Quefranqueza sarcástica!", "Que fraseologia hipócrita!"), e no caso dasferrovias, é obrigado a se utilizar de recortes de jornais amarelecidos sobrevelhos acidentes ("catástrofes ferroviárias recentes"): era necessário, parasua tese, que o número de acidentes por passageiro a cada 1,5 kmpercorrido aumentasse, quando na verdade ele estava diminuindodrasticamente e, na época em que O capital foi publicado, os trens jáestavam se tornando o mais seguro meio de transporte de massa em todaa história.

Em terceiro lugar, ao se utilizar de relatórios da inspetoria dasfábricas, Marx mencionou exemplos de más condições e maus-tratossofridos por trabalhadores como se essas fossem regras inerentes aosistema; na verdade, os responsáveis por essas condições eram o que ospróprios inspetores chamavam de "os donos de fábrica fraudulentos", osquais cabia a eles desmascarar e processar e que, desse modo, estavamem via de ser afastados. Em quarto lugar, o fato de as principaisinformações de Marx provirem dessa fonte, a inspetoria, revela o maior deseus logros. Trata-se da tese de que o capitalismo era, por natureza,incorrigível e, pior, de que nos sofrimentos infligidos pelo sistema aostrabalhadores, o Estado burguês era seu aliado, já que o Estado, escreveuele, "é uma comissão executiva para administrar os negócios da classedominante como um todo". Porém, se isso fosse verdade, o Parlamentonunca teria aprovado as Leis Fabris, nem o Estado as teria posto emprática. Praticamente todas as informações de que Marx dispunha,dispostas (e às vezes falsificadas) de forma seletiva como estavam,derivavam do esforço do Estado (inspetores, cortes, juizes de paz) nosentido de melhorar as condições de vida, o que implicavanecessariamente desmascarar e punir os responsáveis pelas máscondições. Se o sistema não estivesse num processo de auto-reformulação- o que pelo raciocínio de Marx era impossível -, O capital não poderia tersido escrito. Como ele não estava disposto a fazer nenhuma pesquisa decampo por conta própria, foi obrigado a se basear exatamente nasinformações daquela que ele denominou como "a classe dominante", que

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estava tentando pôr as coisas no lugar e, cada vez em maior grau, oconseguia. Desse modo, Marx teve de deturpar sua principal fonte deinformação para não abandonar sua tese. O livro era, e é, desonesto emsua estrutura.

O que Marx não podia ou não iria compreender - por não ter feitonenhum esforço para entender o funcionamento de uma indústria - era quedesde os primórdios da Revolução Industrial, de 1760 a 1790, osindustriais mais eficientes, que tinham amplo acesso ao capital, geralmentepropiciavam melhores condições para seus empregados; por isso, elescostumavam defender a legislação relativa às fábricas e, o que eraigualmente importante, sua execução efetiva, pois ela acabava com o queeles consideravam uma com petição injusta. Desse modo, as condiçõesmelhoravam e, por conta disso, os trabalhadores paravam de se revoltar,contrariando o que Marx tinha previsto. Assim, o profeta se viu confuso. Oque se percebe depois de uma leitura de O capital é a incapacidade inataem Marx de entender o capitalismo. Ele fracassou exatamente por não sercientífico: não pesquisou, ele próprio, as informações nem se utilizou comobjetividade das que foram pesquisadas por outras pessoas. Do começoaté o fim, não apenas O capital mas toda sua obra reflete umadesconsideração pela verdade que às vezes beira o desprezo. Essa é arazão primária pela qual o marxismo, enquanto um sistema, não podechegar aos resultados que lhe imputam, sendo que chamá-lo de "científico"chega a ser um absurdo.

Por isso, se Marx, apesar da aparência de erudito, não estavamotivado por um amor à verdade, qual foi a força motivadora em suavida? Para descobrir isso, temos de examinar muito mais de perto suapersonalidade. É verdade - e em certos aspectos uma triste verdade - queas grandes obras do intelecto não provêm da atividade abstrata do cérebroe da imaginação; estão profundamente enraizadas na personalidade. Marxé um exemplo notável desse princípio. Já analisamos a apresentação desua filosofia como sendo o amálgama de sua visão poética, de seu talentojornalístico e de seu academicismo. Mas também pode ser demonstradoque o conteúdo real dessa filosofia se liga a quatro aspectos de seucaráter: o gosto pela violência, o desejo de poder, a inabilidade de lidarcom dinheiro e, sobretudo, a tendência de explorar os que se encontravama sua volta.

A sugestão de violência, sempre presente no marxismo edemonstrada com freqüência pelo próprio comportamento dos regimesmarxistas, representa uma projeção do temperamento de seu criador.Marx passou sua vida num ambiente de extrema violência verbal, ondeperiodicamente ocorriam brigas e, às vezes, ataques físicos. As brigas nafamília de Marx foram quase a primeira coisa quase sua futura esposa,Jenny von Westphalen, percebeu a seu respeito. Na Universidade de Bonn,a polícia o prendeu por possuir uma pistola, e ele por muito pouco não foisuspenso; nos arquivos da universidade, aparece por ter-se envolvido emconflitos estudantis, disputado um duelo e se cortado no olho esquerdo.Suas brigas com a família entristeceram os últimos anos de vida do pai eacarretaram, por fim, uma ruptura definitiva com sua mãe. Numa das

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cartas mais antigas de Jenny que foram conservadas, se lê: "Por favor, nãoescreva com tanto rancor e irritação", e fica patente que muitas de suasincessantes desavenças se deviam às expressões violentas que costumavausar quando escrevia ou, mais ainda, .quando falava, e nesse último caso asituação era, no mais das vezes, agravada pelo álcool. Marx não era umalcoólatra, embora bebesse com regularidade, geralmente em grandequantidade, e às vezes se envolvesse em perigosas bebedeiras. Em parte,seu problema era que, desde os 25 anos, Marx sempre foi um exiladovivendo quase exclusivamente em comunidades de expatriados, em suamaioria alemães, em cidades estrangeiras. Raramente procurava fazeramizades fora delas e nunca tentava se integrar. Além disso, osexpatriados com que sempre se relacionava eram, eles próprios, umpequeno grupo exclusivamente em política revolucionária. Esse fato, por si,ajuda a tender a visão estreita que Marx tinha da vida, e seria difícilimaginar um cenário social mais propenso a estimular sua naturezabelicosa, pois esses círculos eram famosos por suas disputas violentas.Segundo Jenny, as desavenças só não foram constantes em Bruxelas. EmParis, seus encontros na Rue des Molins para tratar de colaborações emjornais tinham de se dar atrás de janelas fechadas de modo que ostranseuntes não pudessem ouvir a gritaria interminável.

Entretanto, essas brigas não foram sem propósito. Marx brigava comtodas as pessoas com as quais se relacionava - de Bruno Bauer em diante -, a menos que conseguisse dominá-las completamente. Em conseqüência,existem várias descrições, em sua maior parte hostis, do furioso Marx emação. O irmão de Bauer chegou a escrever um poema sobre ele. "O velhocamarada de Trier, em fúria vociferando, / Seu punho maligno estácerrado, ele grita interminavelmente, / Como se dez mil demônios odominassem".[32] Marx era baixo, largo, tinha cabelo e barba pretos, umapele amarelada (seus filhos o chamavam de "Mouro") e usava ummonóculo no estilo prussiano. Pavel Annenkov, que o viu no "julgamento"de Weitling, descreveu sua "espessa e negra cabeleira, suas mãos peludase a sobrecasaca abotoada indevidamente"; era mal-educado, "presunçosoe ligeiramente sobranceiro"; sua "voz aguda e metálica se adequava bemàs sentenças radicais que ele proferia continuamente sobre os homens e ascoisas"; tudo o que dizia tinha um "tom áspero" [33]. Sua obra favorita deShakespeare era Tróilo e Créssida, da qual gostava da troca de insultosentre Ajax e Tersites. Adorava citá-la, e a vítima de um trecho ("Tu, senhorde espírito apalermado: não possuis mais miolos do que eu em meucotovelo") foi seu companheiro revolucionário Karl Heinzen, que revi doucom um retrato memorável do pequeno homem raivoso. Achava Marx"intoleravelmente desprezível", o resultado do "cruzamento entre um gatoe um macaco", com "cabelos desgrenhados pretos como carvão e com atez suja e amarelada". Era, disse, impossível dizer se suas roupas e suaRele eram da cor de lama por natureza ou se estavam apenas sujas. Tinhaolhos pequenos, ameaçadores e maliciosos, "emitindo faíscas de um fogorepulsivo"; tinha o hábito de dizer: "Eu vou aniquilar você" [34].

De fato, Marx gastava grande parte de seu tempo compilando dossiêsminuciosos sobre seus rivais e inimigos políticos, os quais ele não hesitavaem apresentar à polícia se achasse que lhe seria útil. As grandes brigas

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públicas, como por exemplo no encontro da Internacional em Hague, em1872, prenunciava os réglements des comptes [acertos de conta] daRússia soviética: não há nada no período de Stalin que não estivesseprefigurado, de uma grande distância no tempo, pelo comportamento deMarx. Às vezes, havia de fato sangue derramado. Marx foi tão ofensivodurante sua briga com August von Willich, em 1850, que este desafiou-opara um duelo. Marx, apesar de ter sido duelista no passado, disse que"não se envolveria nas brincadeiras dos oficiais prussianos", porém não feznenhuma tentativa de evitar que seu jovem assistente, Konrad Schramm,tomasse o seu lugar, embora Schramm nunca tivesse usado uma pistola navida e Willich fosse um atirador excelente. Schramm foi ferido. O padrinhode Willich nessa ocasião foi um aliado particularmente perigoso de Marx,Gustav Techow, merecidamente odiado por Jenny, o qual matou pelomenos um companheiro revolucionário e acabou sendo enforcado porassassinar um oficial da polícia. O próprio Marx não era contra a violênciaou mesmo o terrorismo quando se adequavam a sua tática. Dirigindo-se aogoverno prussiano em 1849, fez a seguinte ameaça: "Nós somosimpiedosos e não queremos nenhum centavo de vocês. Quando chegar anossa vez, não vamos reprimir nosso terrorismo". [35] No ano seguinte, o"Plano de ação" que ele tinha distribuído especificamente na Alemanhaestimulava a violência do populacho: "Longe de sermos contrários aoschamados excessos, aqueles exemplos de vingança popular contraconstruções particulares ou públicas que têm um passado detestável,temos de não apenas perdoá-los, como também cooperar neles". [36] Emcertas ocasiões, quis defender o assassinato, contanto que fosse eficaz. Umcompanheiro revolucionário, Maxim Kovalevsky, que estava presentequando Marx recebeu a notícia de uma tentativa fracassada de assassinaro imperador I Guilherme I no Unter den Linden, em 1878, recorda a fúriade Marx, "cobrindo de maldições esses terroristas que tinham falhado emexecutar sua ação terrorista". [37] Parece certo que Marx, uma vezestabelecido no poder, teria sido capaz de grande violência e crueldade.Porém, é claro que ele nunca esteve em condição de levar a efeito umarevolução em larga escala, violenta ou de qualquer outro tipo, e por essemotivo sua raiva recalcada se refletiu em seus livros, que sempre têm umtom de intransigência e extremismo. Muitas passagens dão a impressão deque foram realmente escritas em estado de cólera. No devido tempo,Lenin, Stalin e Mao Tse-tung puseram em prática, numa imensa escala, aviolência que Marx trazia em seu íntimo e que transpira em sua obra.

Como Marx encarava de fato a moralidade de suas ações, quandodeturpava a verdade ou estimulava a violência, é impossível dizer. Numcerto sentido ele era um homem fortemente moralista. Tinha o desejoardente de criar um mundo novo. Apesar disso, ridicularizou o moralismoem A ideologia alemã; argumentou que "não era científico" e poderia serum obstáculo para a revolução. Parece ter pensado que, comoconseqüência de uma mudança quase metafísica acarretada pelo adventodo comunismo, esse moralismo seria dispensado.[38] Como a maioria daspessoas egocêntricas, costumava pensar que as leis morais não seaplicavam em seu próprio caso, ou então identificava seus interesses coma moralidade enquanto tal. Decerto, chegou a considerar os interesses doproletariado e o cumprimento de seus próprios pontos de vista como sendo

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coextensivos. O anarquista Michael Bakunin observou que ele tinha "umadevoção fervorosa à causa do proletariado, embora ela estivesse sempremisturada com a vaidade pessoal". [39] Sempre foi egocêntrico; existeuma extensa carta sua escrita na juventude aparentemente para seu paique na verdade foi escrita para - e sobre - si próprio.[40] Os sentimentos eas opiniões dos outros nunca eram de muito interesse para ele nem oafetavam. Ele tinha de dar prosseguimento, sozinho, a qualquer realizaçãona qual estava envolvido. De seu trabalho de editor do jornal NeueRheinische Zeitung, Engels observou: "A organização do quadro de pessoalligado à editoria era uma verdadeira ditadura de Marx". [41] Ele nãodedicava nenhum tempo nem tinha qualquer interesse pela democracia, anão ser no sentido especial e perverso que ele atribuía à palavra; qualquertipo de eleição lhe era abominável - num texto jornalístico, mostroudesprezo pelas eleições gerais britânicas chamando-as, de simples orgiasalcoólicas. [42]

Nos depoimentos, de várias fontes, sobre a postura e as intençõespolíticas de Marx, é surpreendente a quantidade de vezes que aparece apalavra "ditador". Annenkov chamou-o de "a personificação de um ditadordemocrata" (1846). Um policial prussiano particularmente inteligente que odenunciou em Londres, observou: "O traço dominante de seu caráter éuma ambição ilimitada e um amor pelo poder (. . .) ele é o chefe absolutode seu partido (. . .) faz tudo por conta própria e dá ordens sob sua própriaresponsabilidade e não vai tolerar nenhuma oposição". Techow (o perigosopadrinho de Willich no duelo), que certa vez fez com que Marx ficassebêbado e se abrisse com ele, fez um notável retrato estilizado de Marx. Era"um homem com uma personalidade proeminente", com "uma rarasuperioridade intelectual" e "se seu coração correspondesse a suainteligência e ele possuísse, na mesma proporção, amor e ódio, teria postominha mão no fogo por ele". Porém, "falta-lhe grandeza de alma. Estouconvencido de que ambição pessoal bastante perigosa consumiu tudo oque ele tinha de bom (. . .) a obtenção de poder pessoal [é] o objetivo detudo o que ele faz". Em seu julgamento final sobre Marx, Bakunin bate namesma tecla: "Marx não acredita em Deus mas acredita bastante em simesmo e faz todo mundo o servir. Seu coração não é cheio de amor masde rancor, e ele tem muito pouca simpatia pela raça humana".[43]

A raiva comum em Marx, seus hábitos ditatoriais e seu rancorrefletiam, sem dúvida, sua consciência justificada de possuir grandespotencialidades e sua intensa frustração pela incapacidade de exercê-las deforma mais efetiva. Quando jovem, levou uma vida boêmia, na maior partedo tempo ociosa e devassa; quando já era um homem de meia-idade,ainda achava difícil trabalhar de forma sensata sistemática, costumavaficar a noite inteira conversando e depois, durante quase todo o dia, sedeitava sonolento no sofá.

Quando ficou mais velho, manteve horários mais regulares masnunca Conseguiu se autodisciplinar para o trabalho. Apesar disso, seofendia com qualquer crítica. Era uma das características que compartilhoucom Rousseau o fato de costumar brigar com amigos e benfeitores,especialmente se eles lhe davam bons conselhos. Quando seu dedicado

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companheiro, o dr. Ludwig Kugelmann, sugeriu, em 1874, que ele nãoencontraria nenhuma dificuldade em terminar O capital se conseguisse tão-somente organizar um pouco mais sua vida, Marx cortou relações com elepara sempre e submeteu-o a uma série de insultos implacáveis. [44]

Seu egoísmo irascível tinha causas físicas tanto quanto psicológicas.Levava uma vida particularmente insalubre: fazia pouquíssimo exercício,comia comidas altamente condimentadas e amiúde em grandesquantidades, fumava abundantemente, bebia bastante, em especial a fortecerveja ale, e em conseqüência sempre tinha problemas com seu fígado.Raramente tomava banhos ou se lavava de qualquer modo, o que,juntamente com sua dieta inadequada, explica os verdadeiros acessos defurúnculos dos quais sofreu durante um quarto de século. Eles fizeramaumentar sua natural irritabilidade e pelo visto estavam em sua pior fasena época em que escrevia O capital. "O que quer que aconteça", escreveuameaçador a Engels, "enquanto a burguesia existir, espero que ela tenhamotivo para se lembrar de meus carbúnculos".[45] Os furúnculos variavamem número, tamanho e intensidade, porém, de uma hora para outraapareciam em todas as partes de seu corpo, inclusive nas bochechas, nocavalete do nariz, nas nádegas, o que o impedia de escrever, e no pênis.Em 1873, esses furúnculos causaram um colapso nervoso caracterizadopor extraordinários ataques de raiva que lhe causavam estremecimentos.

Sua grotesca incompetência de lidar com dinheiro era ainda maisessencial como causa de sua raiva e de sua frustração e estava talvez bemna raiz de seu ódio ao sistema capitalista. Quando jovem, essacaracterística o deixou à revelia dos agiotas que trabalhavam a altas taxasde juro, e um veemente ódio à usura representou a base da dinâmicaemocional de toda a sua filosofia moral. Isso explica por que ele dedicoutanto tempo e espaço ao assunto, por que toda a sua teoria sobre asclasses está enraizada no anti-semitismo e por que ele incluiu n`O capitaluma passagem extensa e violenta de denúncia contra a usura, a qual foitirada de uma das diatribes anti-semíticas de Lutero. [46]

Os problemas de Marx com o dinheiro começaram na universidade eduraram toda a sua vida. Derivam de uma atitude essencialmente infantil.Marx pedia dinheiro emprestado de forma insensata, gastava-o e depoisficava invariavelmente surpreso e nervoso quando as letras de câmbioaltamente descontadas, somados os juros, venciam. Ele via a cobrança dejuros, que é essencial a qualquer sistema que se baseie no capital, comoum crime contra a humanidade e como causa da exploração do homempelo homem, que seu sistema filosófico estava fadado a extinguir. Isso. eraem termos gerais. Mas no contexto particular de seu próprio caso, reagiaàs dificuldades sozinho, explorando qualquer um que estivesse a seualcance e, em primeiro lugar, sua própria família. O dinheiro era o assuntodominante na correspondência mantinha com a família. Na última carta deseu pai, escrita em fevereiro de 1938, quando já estava morrendo, elereitera sua queixa de que Marx não dava importância para a família a nãoser para conseguir ajuda e para se lamentar: "Você está agora no quartomês de seu curso de advocacia e já gastou 280 táleres. Eu não ganheitanto dinheiro durante todo o inverno". [47] Três meses mas tarde, ele

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morreu. Marx não se preocupou em assistir a seu enterro. Em vez disso,começou a pressionar sua mãe. Já tinha adotado um meio de viver à custade empréstimos de amigos e de conseguir quantias periódicas da família.Alegava que a família era "bastante rica" e tinha a obrigação de apóia-loem seu importante trabalho. A não ser no caso de sua atividade jornalísticaocasional, cujo propósito era muito mais fazer política do que ganhardinheiro, Marx nunca procurou seriamente arranjar um emprego, emboracerta vez tenha concorrido, em Londres (em setembro de 1862), ao cargode escrivão ferroviário, tendo sido rejeitado por ter uma caligrafia muitoruim. A falta de vontade de Marx de procurar uma profissão parece ter sidoa razão principal pela qual sua família se mostrava indiferente a seuspedidos de esmola. Sua mãe não apenas recusou pagar suas dívidas,acreditando que logo ele se endividaria outra vez, mas acabou pordeserdá-lo completamente. Daí em diante, suas relações passaram a sermínimas. Atribui-se a ela o desejo mordaz de que "Karl acumulasse capitalem vez de apenas escrever sobre ele".

Ainda assim, de um modo ou de outro Marx teve direito, por herança,a quantias de dinheiro consideráveis. A morte do pai lhe rendeu 6000francos de ouro, dos quais gastou uma parte provendo de armas ostrabalhadores belgas. A morte da mãe, em 1856, lhe rendeu menos do queesperava, mas isso se deveu ao fato de que ele tinha antecipado opagamento da herança ao pedir emprestado a seu tio Philips. Recebeutambém uma grande quantia do espólio de Wilhelm Wolf, em 1864. Outrasquantias vieram por intermédio de sua esposa e da família dela (elatambém trouxe, como parte de seu dote, um serviço de jantar de pratacom o brasão de seus antepassados de Argyll, um faqueiro timbrado eroupa de cama). No espaço de tempo entre o recebimento dessas quantias,eles ganharam dinheiro o bastante - que foi investido com sensatez - paragarantir uma vida confortável, e em nenhum momento sua renda brutaesteve a menos de 200 libras por ano, ou seja, três vezes o salário médiode um trabalhador especializado. Porém, nem o próprio Marx nem Jennytinham nenhum interesse por dinheiro exceto no que dizia respeito agastá-lo. Heranças, empréstimos transformaram-se, do mesmo modo, emninharia, e eles nunca experimentaram uma situação de aumento de rendapor muito tempo. Na verdade, sempre estavam endividados, e geralmentedevendo uma grande quantia, e o serviço de jantar de prata comfreqüência ia para a mão dos agiotas, junto com muitas outras coisas,inclusive a roupa da família. Numa ocasião, Marx estava prestes a desistirde sua casa, conservando um par de calças. A família de Jenny, assimcomo a própria família de Marx, se recusou a dar maiores ajudas a umgenro que considerava como sendo ocioso e imprudente. Em março de1851, escrevendo a Engels para anunciar o nascimento de uma filha, Marxse queixou: "Não tenho, literalmente, nem um centavo em casa".[48]

Por essa época, é claro, Engels era a mais recente vítima daexploração. Desde meados da década de 1840, quando se encontrarampela primeira vez, até a morte de Marx, Engels foi a maior fonte de rendada família Marx. É provável que ele tenha cedido mais da metade de tudo oque ganhou. Porém, é impossível se computar o total pois durante umquarto de século Engels forneceu quantias de dinheiro irregulares,

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acreditando nas promessas de Marx de que sua situação logo estariaajeitada, visto que estava para chegar a pr6xima doação. Orelacionamento se baseava na exploração por parte de Marx e eracompletamente desigual, já que ele era sempre o parceiro que dominava, eàs vezes oprimia. Apesar disso, de um modo curioso, cada um precisava dooutro, como um par de comediantes teatrais num número a dois, incapazesde representar separados, resmungando a toda hora mas sempremantendo-se unidos no final. A parceria quase se desfez em 1863, quandoEngels sentiu que a mendicância insensível de Marx tinha ido longe demais.Engels tinha duas casas em Manchester, uma para receber pessoasrelacionadas com seus negócios e a outra para sua amante, Mary Burns.Quando ela morreu, Engels ficou profundamente triste. Ficou furioso dereceber de Marx uma carta insensível (datada de 6 de janeiro de 1863),em que reconhece sua perda com brevidade e então, imediatamente, recaino assunto mais importante: um pedido de dinheiro.[49] Não há nada queilustre melhor o indissolúvel egocentrismo de Marx. Engels respondeu comfrieza, e o incidente quase representou o fim do relacionamento. Em algunsaspectos, ele nunca mais foi o mesmo, pois deixou claro para Engels aslimitações da personalidade de Marx. Parece ter decidido, por essa época,que Marx nunca seria capaz de conseguir um emprego ou sustentar suafamília, ou mesmo pôr ordem em seus negócios. A única coisa a fazer erapagar-lhe com regularidade um donativo. Então, em 1869, Engels vendeusua empresa, assegurando para si uma renda de um pouco mais de 800libras por ano. Dessas, 350 iam para Marx. Por conseguinte, durante osúltimos 15 anos de vida, Marx foi pensionista de um rentier, eexperimentou uma certa segurança. No entanto, pelo visto gastava cercade 500 libras - ou mais - por ano, se justificando para Engels: "Mesmoexaminando-se pelo lado comercial, uma organização puramente proletáriaseria inadequada nesse caso". [50] Portanto as cartas solicitando de Engelsdonativos adicionais continuaram. [51]

Porém, é claro que as vítimas principais da imprudência e darelutância de Marx para trabalhar foram seus próprios familiares,sobretudo sua esposa. Jenny Marx é uma das personagens trágicas elamentáveis da história do socialismo. Tinha a coloração clara dosescoceses, uma pele pálida, olhos verdes e o cabelo castanho-avermelhadode sua avó por parte de pai, descendente do segundo conde de Argyll,morto em Flodden. ,Ela era bonita e Marx a amava - seus poemas oprovam -, e ela o amava apaixonadamente, travando batalhas ao mesmotempo com sua família e consigo mesma; só depois de muitos anos deamargura esse amor se extinguiria. Como poderia um egoísta como Marxinspirar tal afeição? A resposta, penso eu, é que ele era forte, dominador,bonito durante a juventude e na meia-idade, apesar de sempre sujo. E nãomenos importante: ele era engraçado. Os historiadores prestam muitopouca atenção nessa qualidade; ela geralmente ajuda a explicar umfascínio que de outra forma parece misterioso (era uma das vantagens deHitler, como orador tanto em lugares reservados como em público). Ohumor de Marx era sempre sarcástico e enraivecido. Entretanto, suasexcelentes piadas faziam as pessoas rirem. Se não fosse esse humor, suasmuitas características desagradáveis teriam tornado impossível que eletivesse um único discípulo e as mulheres teriam lhe dado as costas. Desse

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modo, as piadas eram o caminho mais seguro para atingir o coração dasmulheres muito fiéis, cujas vidas são ainda mais difíceis do que as doshomens. Marx e Jenny foram vistos rindo juntos várias vezes e, mais tarde,seriam as piadas de Marx, mais do que qualquer outra coisa, que ligariamsuas filhas a ele.

Marx se orgulhava da nobre descendência escocesa da esposa (eleexagerava esse ponto) e de sua posição de filha de um barão e oficialsuperior no governo prussiano. Em convites impressos que ele mandouemitir por ocasião de um baile em Londres, na década de 1860, elaaparece como "née von Westphalen". Declarava amiúde que se davamelhor com aristocratas genuínos do que com a burguesia avarenta(segundo testemunhas, falava a palavra burguesia com um desprezopeculiar e desagradável). Mas Jenny, tão logo lhe foi revelada a terrívelrealidade de ter-se casado com um revolucionário sem posição social esem profissão, teria de bom grado preferido uma vida burguesa, nãoimportando quão banal ela fosse. Desde o começo de 1848 e no mínimopelos pr6ximos dez anos, sua vida foi um pesadelo. A 3 de março de 1848,uma ordem de expulsão belga foi expedida contra Marx e ele foi levadopara a prisão; Jenny também passou a noite numa cela, com um grupo deprostitutas; no dia seguinte, a família foi levada sob escolta policial até afronteira. Durante a maior parte do ano seguinte, Marx esteve fugindo ouem julgamento. Por volta de junho de 1849, estava sem recursos. No mêsseguinte, confessou a um amigo: "A última jóia pertencente a minhaesposa já achou seu caminho até a casa de penhores". [52] Manteve seuânimo graças a um otimismo revolucionário exagerado e permanente, eescreveu para Engels: "Apesar de tudo, uma erupção colossal do vulcãorevolucionário nunca foi tão iminente. Aguarde maiores detalhes". Maspara ela não havia tal consolo, e além disso estava grávida. Encontraramsegurança na Inglaterra, mas também aviltamento. Ela agora tinha trêsfilhos, Jenny, Laura e Edgar, e deu à luz um quarto, Guy ou Guido, emnovembro de 1849. Cinco meses mais tarde, foram despejados de seusaposentos em Chelsea por não pagarem o aluguel, sendo jogados nacalçada perante (escreveu Jenny) "toda a gentalha de Chelsea". Suascamas foram vendidas para pagar o açougueiro, o leiteiro, o farmacêutico eo padeiro. Eles acharam abrigo numa casa de pensão alemã imunda emLeicester Square e lá, naquele inverno, o bebê Guido morreu. Jenny deixouum relato desesperado desses dias, e desde então seu entusiasmo e suaafeição por Marx nunca mais foram recobrados. [53]

No dia 24 de maio de 1850, o embaixador britânico em Berlim, oConde de Westmoreland, recebeu de um inteligente espião policialprussiano uma cópia de um relatório que descrevia, bem detalhadamente,as atividades dos revolucionários alemães que se concentravam à volta deMarx. Nenhum outro texto transmite de forma mais clara o que Jenny foiobrigada a tolerar:

[Marx] leva a vida de um intelectual boêmio. Lavar, arrumar e trocar aroupa de cama são coisas que raramente faz, e na maior parte dotempo está embriagado. Embora com freqüência fique ocioso por diasa fio, é capaz de trabalhar dia e noite com uma persistência sem

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descanso quando tem muito trabalho a fazer. Não tem um horáriodeterminado para ir dormir ou para acordar. Amiúde, fica acordado anoite inteira e depois se deita completamente vestido no sofá ao meio-dia, e dorme até o fim da tarde, nada incomodado com o mundo degente entrando e saindo daquele cômodo [ao todo, só havia dois] (. ..) Não há nenhum móvel limpo ou inteiro. Está tudo quebrado,esfarrapado e rasgado, com um centímetro de pó sobre qualquer coisae a maior desordem por toda a parte. No meio da [sala de estar] háuma mesa grande e antiga coberta com oleado e sobre ela seencontram manuscritos, livros e jornais, junto com os brinquedos dascrianças, trapos e farrapos da cesta de costura de sua esposa, várioscopos com as bordas lascadas, facas, garfos, lâmpadas, um tinteiro,copos sem pé, cachimbos de barro holandeses, tabaco, cinzas (. . .) odono de uma loja de quinquilharias teria dúvidas quanto a jogar foraesse extraordinário conjunto de bugigangas. Quando você entra noaposentos de Marx, a fumaça e o tabaco fazem seus olhoslacrimejarem (. . .) Está tudo sujo e coberto de poeira, de modo quese sentar torna-se uma ação arriscada. Num canto, há uma cadeira detrês pernas. Em outra cadeira, as crianças brincam de cozinhar. Poracaso, essa cadeira tem quatro pernas. É a única que é oferecida àsvisitas, mas a comida das crianças não foi retirada e, caso você sesente, está se arriscando a perder um par de calças. [54]

Esse relato, que data de 1850, descreve provavelmente o ponto maisbaixo na história da família. Porém, mais desgraças viriam nos próximosanos. Uma filha chamada Franziska, que nasceu em 1851, morreu no anoseguinte. Edgar, o filho tão amado, o favorito de Marx, a quem chamavaMusch (Mosquinha), pegou gastrenterite por conta do ambiente imundo emorreu em 1855, o que representou um choque terrível para os dois.Jenny nunca se recuperou. "Todo dia", escreveu Marx, "minha esposa mediz que gostaria de estar no túmulo. . ." Uma outra menina, Eleanor, tinhanascido três meses antes, mas para Marx isso não era a mesma coisa. Elesempre quis filhos homens e agora não tinha nenhum; as garotas eraminsignificantes para ele, a não ser como auxiliares de escreventes.

Em 1860, Jenny pegou varíola e perdeu o que restava de sua beleza;desde então até sua morte em 1881, ela definhou devagar e ficou emsegundo plano na vida de Marx, tornando-se uma mulher cansada edesiludida, que se contentava com pequenas caridades: a devolução desua prataria, uma casa própria, etc. Em 1856, graças a Engels, a famíliapôde se mudar de Soho para uma casa alugada, o n° 9 da Grafton Terrace,em Haverstock Hill; nove anos mais tarde, outra vez graças a Engels,conseguiram uma casa muito melhor, em I Maitland Park Road. Dessaépoca em diante, nunca mais deixaram de ter no mínimo dois criados.Marx passou a ler o jornal The Times toda manhã. Foi eleito para oconselho da paróquia local. Nos domingos de sol, levava a família parapassear, com todo o aparato, até Hampstead Heath, ele própriocaminhando à frente, a esposa, as filhas e os amigos atrás.

Porém, o "emburguesamento" de Marx deu lugar a uma nova formade exploração, dessa vez de suas filhas. Todas as três eram inteligentes.Pode-se ter pensado que, para compensar a infância desassossegada eempobrecida que elas suportaram por serem filhas de um revolucionário,

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ele teria pelo menos obedecido à lógica de seu radicalismo e as encorajadoa ter profissões. Na verdade, ele negou a elas uma educação satisfatória,não permitiu que tivessem nenhuma instrução e proibiu peremptoriamenteque ingressassem em profissões. Como Eleanor, a que mais o amava, dissea Olive Schreiner: "Por muito tempo, os anos de miséria representaramuma sombra entre nós". Em vez disso, as garotas foram mantidas emcasa, aprendendo a tocar piano e a pintar aquarelas, como as filhas dosnegociantes. Enquanto elas cresciam, Marx ainda participava, de vez emquando, de bebedeiras com os amigos revolucionários; porém, segundoWilhelm Liebknecht, não permitia que eles cantassem canções indecentesem sua casa, pois as meninas podiam ouvir.[55]

Mais tarde, desaprovou os pretendentes das filhas, que faziam partede seu próprio ambiente revolucionário. Não podia, ou não conseguiu,evitar que se casassem, porém dificultou as coisas, e o fato de ter sidocontra deixou marcas. Chamava o marido de Laura, Paul Lafargue, quetinha vindo de Cuba e possuía algum sangue negro, de "Negrilho" ou "oGorila". Também não gostava de Charles Longuet, que se casou comJenny. Na sua opinião, seus dois genros eram idiotas: "Longuet é o últimodos proudhonistas e Lafargue é o último dos bakuninistas - danem-se, osdois!" [56] Eleanor, a mais nova, foi a que mais sofreu com a oposição dopai a que as filhas seguissem profissões e sua hostilidade em relação aospretendentes. Ela tinha sido criada para ver o homem - ou seja, seu pai -como sendo o centro do universo. Talvez não seja tão surpreendente o fatode ela ter-se apaixonado por um homem ainda mais egocêntrico que seupai. Edward A veling, um escritor com pretensões de tornar-se um políticode esquerda, era um galanteador e um parasita que tinha se especializadoem seduzir atrizes. Eleanor queria ser atriz e, por isso, foi uma vítimanatural. Por uma pequena e mordaz ironia da história, ele, Eleanor eGeorge Bernard Shaw fizeram parte, em Londres, da primeira leituraprivada do brilhante libelo de Ibsen a favor da liberdade da mulher, Casade bonecas, no qual Eleanor fez o papel de Nora. Pouco depois da morte deMarx, ela se tornou a senhora A veling, e daí em diante, foi sua tristeserva, como sua mãe Jenny tinha sido de Marx.[57]

Entretanto, Marx deve ter necessitado de sua esposa mais do quequis admitir. Depois da morte dela, em 1881, definhou rapidamente,parando de trabalhar, procurando se curar em várias estâncias de águas daEuropa ou viajando para Argel, Monte Carlo e Suíça atrás de sol e ar puro.Em dezembro de 1882, alegrava-se com sua crescente influência naRússia: "Em nenhum outro lugar meu sucesso me dá mais prazer".Destrutivo até o final, se vangloriava de que "isso me dá a satisfação deestar corroendo um poder que, depois da Inglaterra, é o verdadeirosustentáculo da velha sociedade". Três meses mais tarde, morreu em seurobe, sentado perto da lareira. Uma de suas filhas, Jenny, tinha morridopoucas semanas antes. As mortes das duas outras também foram trágicas.Eleanor, profundamente angustiada por conta do comportamento de seumarido, tomou uma dose excessiva de ópio em 1898, possivelmenteescapando de um pacto de suicídio com ele. Treze anos depois, Laura eLafargue também fizeram um pacto de suicídio, e ambos o levaram aefeito.

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Houve, contudo, uma estranha e obscura sobrevivente dessa trágicafamília, o fruto do mais grotesco ato de exploração pessoal de Marx. Emtodas as investigações que fez sobre as injustiças dos capitalistasbritânicos, ele encontrou por acaso vários exemplos de trabalhadores comsalários baixos, porém nunca conseguiu achar nenhum que não recebessesalário. No entanto, esse trabalhador existia, e vivia na casa de Marx.Quando ele levava sua família em seus pomposos passeios, bem atrás,carregando a cesta de piquenique e outras bagagens, estava umaatarracada figura feminina. Tratava-se de Helen Demuth, conhecida pelafamília como "Lenchen". Nascida em 1823, filha de camponeses, tinha sejuntado à família von Westphalen na idade de oito anos como babá.Ganhava seu sustento mas não recebia salário. Em 1845, a baronesa, quese sentia aflita e preocupada Com sua filha casada, cedeu Lenchen, entãocom 22 anos, para Jenny Marx a fim de facilitar a situação da filha. Elacontinuou com a família de Marx até sua morte, em 1890. Eleanor achamava de "a mais amorosa das pessoas em relação aos outros,enquanto que austera, a vida inteira, consigo mesma'. [58] Ela trabalhavade forma brutal e infatigável, não apenas cozinhando e lavando a casa mastambém administrando o orçamento familiar, o que Jenny era incapaz defazer. Marx nunca lhe pagou um centavo. Entre 1849 e 1850, durante operíodo mais tenebroso da história da família, Lenchen tornou-se amantede Marx e ficou grávida. O pequeno Guido tinha acabado de morrer, masJenny, também ela, estava novamente grávida. Toda a família estavavivendo em dois cômodos e Marx teve de ocultar o estado de Lenchen nãoapenas de sua esposa mas dos muitos visitantes revolucionários. Por fim,Jenny descobriu ou teve de ser informada e, mais do que as outrasdesgraças por que passava na época, esse fato representou o fim de seuamor por Marx. Denominou-o de "um incidente sobre o qual não insistireimais, embora tenha aumentado bastante nossos infortúnios públicos eparticulares". Essa passagem está num esboço autobiográfico que elaescreveu em 1865, do qual 29 das 37 páginas foram conservadas; orestante, onde descreve suas brigas com Marx, foi destruído,provavelmente por Eleanor.[59]

O filho de Lenchen nasceu na casa de Soho, o n° 28 da Dean Street,a 23 de junho de 1851. [60] O garoto foi registrado como Henry FrederikDemuth. Marx se recusou a reconhecer sua responsabilidade, na época oumais tarde, e negou categoricamente os boatos de que era o pai. Deve teraventado a possibilidade de fazer como Rousseau e pôr a criança noorfanato, ou então adotá-la para sempre. Mas Lenchen tinha umapersonalidade mais forte do que a senhora Rousseau. Insistiu emreconhecer, ela própria, o garoto. Ele foi oferecido para adoção a umafamília de operários chamada Lewis, porém com permissão de visitar afamília Marx. No entanto, foi proibido de usar a porta da frente e obrigadoa ver a mãe apenas na cozinha. Marx estava bastante temeroso de que apaternidade de Freddy fosse descoberta e que isso lhe causasse umprejuízo irrevogável como líder e profeta revolucionário. Uma levereferência ao incidente ainda se encontra em suas cartas; outras foramsuprimidas por mãos variadas. Por fim, convenceu Engels a reconhecersecretamente a paternidade de Freddy, como uma versão falsa em que a

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família acreditasse. Eleanor, por exemplo, tomava-a como verdade. MasEngels, embora pronto, como sempre, a se submeter aos pedidos de Marxpara o bem de seu trabalho conjunto, não estava disposto a levar osegredo para o túmulo. Engels morreu, de câncer no esôfago, a 5 deagosto de 1865; incapaz de falar mas desejando que Eleanor (Tussy, comoera chamada) não mais acreditasse que seu pai era puro, escreveu numalousa: "Freddy é filho de Marx. Tussy quer transformar seu pai num ídolo".A secretária e governanta de Engels, Louise Freyberger, numa carta de 2de setembro de 1898 a August Bebel, disse que o próprio Engels contou aela a verdade, acrescentando: "A semelhança de Freddy e Marx chega aser absurda, os dois tendo aquele rosto judeu e o cabelo preto-azulado; sómesmo estando cego pela parcialidade é que se pode ver nele algumasemelhança com o General" (como chamava Engels). A própria Eleanoraceitou o fato de Freddy ser seu meio-irmão e afeiçoou-se a ele; nove desuas cartas para ele se conservaram.[61] Ela não lhe fez nenhumbenefício, uma vez que seu amante, Aveling, chegou a pedir emprestadotodas as economias de Freddy e nunca o reembolsou.

Lenchen foi o único representante da classe trabalhadora que Marxchegou a conhecer de perto, seu único contato real com o proletariado.Freddy podia ter sido outro, visto que ele foi criado como um jovemproletário e em 1888, com 36 anos, ganhou seu cobiçado diploma comoengenheiro mecânico qualificado. Passou praticamente a vida inteira emKing's Cross e Hackney e foi um membro constante do sindicato dosengenheiros. Mas Marx nunca o conheceu. Encontraram-se apenas umavez, possivelmente quando Freddy estava subindo a escada externa quesaía da cozinha, sem saber, nessa época, que o filósofo revolucionário eraseu pai. Ele morreu em janeiro de 1929, numa época em que a visão deMarx acerca da ditadura do proletariado tinha tomado uma forma concretae aterradora e Stalin - o governante que alcançara o poder absoluto peloqual Marx ansiara - estava apenas começando seu ataque catastróficocontra os camponeses russos.

NOTAS:

Capítulo 3: Karl Marx: "Gritando Maldições Colossais"

1. Edgar von Westphalen, citado em Robert Payne, Marx (Londres, 1968), p. 20.2. Ver o excelente ensaio sobre Marx in Robert S. Wistrich: Revolutionary Jews from Marxto Trotsky [Judeus revolucionários de Marx a Trotsky] (Londres).3. Carta a Engels, 11 de abril de 1868, Karl Marx-Friedrich Engels Werke (Berlim Oriental,1956-68), vol. xxxii, p. 58.4. Sobre a poesia de Marx, ver Payne, pp. 61-71.5. Marx-Engels Werke, vol. m, pp. 69-71.6. Payne, pp. 166 e passim.7. O texto está em Marx-Engels, Selected Correspondence 1846-95 [Correspondênciaselecionada 1846-95] (Nova York, 1936), pp. 90-91.8. Capital [O Capital], Everyman edition (Londres, 1930), p. 873.9. T. B. Bottomore (trad. e org.), Karl Marx: Early Writings [Karl Marx: primeiros escritos](Londres, 1963), pp. 34-37; os ensaios sobre os judeus estão também em Karl Marx-Engels Collected Works [Obras coligidas de Karl Marx-Engels] (Londres, 1975 em diante),voI. iii, pp. 146-74.10. O estádio decisivo dos escritos de Marx foi alcançado em A contribution to The Critiqueof Hegel's Philosophy of Law [Uma contribuição à crftica da filosofia de Hegel sobre a lei]

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(1844), The Economic and Philosofical Manuscripts of 1844 [Os manuscritos econômicos efilosóficos de 1844] (publicado pela primeira vez em 1932), e The German Ideology [Aideologia alemã] (1845-46).11. Para uma discussão válida a respeito desses escritos, ver Payne, pp. 98 e passim.12. Payne, p. 86.13. Payne, pp. 134-36.14. Marx-Engels Werke, voI. xxx, p. 259.15. Karl Jaspers, "Marx und Freud", Der Monat, xxvi (1950).16. Geoffrey Pilling, Marx' s Capital [O capital, de Marx] (Londres, 1980), p. 126.17. Louis Althusser, For Marx [Para Marx] (trad. Londres, 1969), pp. 79-80.18. Publicado em Engels on Capital [Engels sobre O capital] (Londres, 1938), pp. 68- 7 I.19. O capital, pp. 845-46.20. O capital, pp. 230-311.21. O capital, p. 240, nota 3.22. W. O. Henderson & W. H. ChaIloner (trad.. e org.), Engel’s Condition ofthe workingclass in England [A situação da classe operária na Inglaterra, de Engels] (Oxford, 1958).23. Engels para Marx, 19 de novembro de 1844, Marx-Engels Gesamt-Ausgabe (Moscou,1927-35), 1 parte iii (1929).24. Henderson & ChaIloner, apêndice v, no livro do dr. Loudon, Report on the operation ofthe poor laws [Relatório sobre a operação das leis dos pobres], 1833, tem-se exemploscaracterísticos dos métodos que Engels usava de citações incorretas, os quais têm o efeitode deturpar gravemente o sentido dado por Loudon.25. Nationalokonomie der Gegenwart und Zukunft, i (Frankfurt, 1848), pp. 155-61, 170-241.26. Para uma análise geral dos métodos de Marx, ver Leslie R. Page, Karl Marx and thecritical examination of his works [Karl Marx e o exame crítico de suas obras] (Londres,1987).27. Como foi noticiado em sete jornais de Londres a 17 de abril de 1863.28. Ver David F. Felix, Marx as politician [Marx como político] (Londres, 1983), pp. 161-62,269-70.29. Ibid., p. 147.30. Quanto a isso, ver Page, pp. 46-49.31. Ver também Felix, e Chushichi Tsuzuki: The Life of Eleanor Marx, 1855-98: A SocialistTragedy [A vida de Eleanor Marx, uma tragédia socialista] (Londres, 1967).32. Payne, p. 81.33. Ibid., p. 134.34. O relato de Geinzen foi publicado em Boston em 1864; citado em Payne, p. 155.35. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, vol. vi, pp. 503-5.36. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, voI. vii, p. 239.37. Payne, p. 475 nota.38. Stephan Lukes, Marxism and Morality [Marxismo e moralidade] (Oxford, 1985), pp. 3e passim.39. Citado em David McLeIlan, Karl Marx: His life and Thought [Karl Marx: sua vida e seupensamento] (Londres, 1973), p. 455.40. Payne., pp. 50 e passim.41. Marx-Engels, Collected Works, vol. ii,pp. 330-31.42. Marx, On Britain [Sobre a Inglaterra] (Moscou, 1962), p. 373.43. Payne, pp. 251 e passim; Michael Bakunin, Oeuvres (Paris, 1908).44. E. g., Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, voI. xxxiii, p. 117.45. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, voI. xxxi, p. 305.46. Isso aparece como uma nota de pé de página em O capital, vols. i, ii e vii, capítulo 22.47. Citado em Payne, p. 54.48. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, vol. xxvii, p. 227.49. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, voI. xxx, p. 310; a resposta de Engels in voI. xxx,p.312.50. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, vol. xxxi, p. 131.51. Para mais informações a respeito das finanças de Marx, ver David McLeIlan, KarlMarx: Interviews and Recollections [Karl Marx: entrevistas e recordações] (Londres, 1981)e seu Karl Marx: The Legacy [Karl Marx: o legado] (Londres, 1983); Fritz J. Raddatz, KarlMarx: A Political Biography (trad., Londres, 1979).52. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, vol. xxvii, p. 500.

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53. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, vol. xxvii, p. 609.54. Publicado em Archiv für Geschichte des Socialismus (Berlim, 1922), pp. 56-58; inPayne, pp. 251 e passim.55. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, pp. 102-3.56. Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, vol. m, pp. 4, 569.57. Sobre a família de Marx, ver H. F. Peters, Red Jenny: A Life With Karl Marx [Jenny, acomunista: sua vida com Karl Marx] (Londres, 1986); Yvonne Kapp, "Karl Marx's children:Family Life 1844-55" ["Os filhos de Karl Marx: a vida em família, 1844-55"], in Karl Marx:100 years on [Karl Marx: 100 anos depois] (Londres, 1983), pp. 273-305, e seu livroEleanor Marx (2 vols., Londres, 1972).58. Payne, p. 257.59. As autoridades soviéticas, tendo publicado uma versão expurgada, possui omanuscrito conservado que está guardado no Instituto Marx-Engels-Lenin, em Moscou.Uma outra versão, possivelmente também censurada, foi publicada em Leipzig, em 1965.60. Sobre esse e outros períodos da vida de Marx, ver o estudo cronológico feito porMaximilien Rubel em Marx: Life and Works [Marx: vida e obras] (trad., Londres, 1980); aexistência do filho ilegítimo foi revelada pela primeira vez em W. Blumenberg, Karl Marx:An Illustrated Biography [Karl Marx: uma biografia ilustrada] (1962, trad. inglesa Londres,1972).61. Ver Payne, pp. 538-39.