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Júlio Dinis - As Pupilas Do Senhor Reitor

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As Pupilas do Senhor Reitor

As pupilas do senhor reitor, de Jlio Dinis

Fonte:DINIS, Jlio. As Pupilas do Senhor Reitor. 8 ed., So Paulo: Editora tica, 1987. (Srie Bom Livro)

Texto proveniente de:A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de So PauloPermitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:Srgio Luiz Simonato (Campinas/SP)

Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para .

Estamos em busca de patrocinadores e voluntrios para nos ajudar a manter este projeto. Se voc quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para e saiba como isso possvel.

As Pupilas do Senhor ReitorJlio Dinis

Captulo I

Jos das Dornas era um lavrador abastado, sadio e de uma to feliz disposio de gnio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e no do rir dos Demcritos de todos os tempos - rir cptico, forado, desconsolador, que mil vezes pior do que o chorar.

Em negcio de lavoura, dava, como se costuma dizer, sota e s ao mais pintado. At o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e atividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer j no tinha para ele segredos no revelados. O sol encontrava-o sempre de p, e em p o deixava ao esconder-se.

Estas qualidades, juntas a uma longa experincia adquirida custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem esforo de malquerenas e murmuraes. Diz-se que quem mais faz menos merece e que mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga, e no sei o que mais; ser assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado, ou pelo menos que o fato das madrugadas no exclura o auxlio providencial, porque Jos das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de agosto era um tal de entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel mais farto poucos se gabavam de ter. Que abundncia por aquela casa! Ningum era pobre com ele; louvado Deus!

Como homem de famlia, no havia tambm que por a boca em Jos das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos com sua mulher, e ento, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, no revelada por meiguices - que lhe no estavam no gnio - mas que, nas ocasies, se denunciava por sacrifcios de fazerem hesitar os mais extremosos.

Eram dois estes filhos - Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais velho, no podia negar a paternidade. Ver o pai era v-lo a ele; a mesma expresso de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleio, a mesma excelncia de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade no viera ainda curvatura de certos contornos e ampliar-lhe as dimenses transversais, como j no pai acontecia. Conservava-se ainda correto aquele vivo exemplar do Hrcules escultural.

Pedro era, de fato, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adoo o que quer que seja de franzino e delicado, que no foi por certo o caracterstico dos mais perfeitos homens de outras eras.

A organizao talhara Pedro para a vida de lavrador, e parecia apont-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direo dos trabalhos agrcolas.

Assim o entendera Jos das Dornas, que foi amestrando o seu primognito e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a foice, a vara, a rabia, e confiar-lhe a chave do cabanal, to repleto em ocasies de colheita.

Daniel j tinha condies fsicas e morais muito diferentes. Era o avesso do irmo e por isso incapaz de tomar o mesmo rumo de vida.

Possua uma constituio quase de mulher. Era alvo e louro, de voz efeminada, mos estreitas e sade vacilante.

O sangue materno girava-lhe mais abundante nas veias, do que o sangue cheio de fora e vida, ao qual Jos das Dornas e Pedro deviam aquela invejvel construo.

Votar Daniel vida dos campos seria sacrific-lo. Apertava-se o corao do pobre pai, ao lembrar-se que os sis ardentes de julho ou os tufes regelados de dezembro haviam de encontrar sem abrigo aquela dbil criana, que mais se dissera nascida e criada em beros almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e na grosseira enxerga alde.

E desde ento, desde que pensou nisto, um idia fixa principiou a laborara no crebro daquele pai extremoso e a monopolizar-lhe as poucas horas que o trabalho no absorvia.

De vez em quando o encontravam os amigos deveras preocupado, o que, sendo nele para estranhar, excitava curiosidades e receio e desafiava interrogaes.

O reitor foi um dos que mais se importou com a preocupao do nosso homem.

Era este reitor um padre velho e dado, que h muito conseguira na parquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evangelho no corao - o que vale muito mais ainda do que t-lo na cabea.

A qualidade de egresso no tolhia os ser liberal de convico. Era-o como poucos.

homem de Deus - disse pois o reitor um dia, resolvido deveras a sondar as profundezas daquele mistrio - que tens tu h tempos a esta parte? Que empresa essa em que me andas a cismar h tantos dias?

Que quer, Sr. Padre Antnio? um homem de famlia tem sempre em que cuidar; tem a sua vida e tem a dos filhos.

Foi a resposta que obteve.

Ora essa! - insistiu o padre - Bem alegre te via eu, em tempos mais azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem outras razes para o contrrio. Mas tu! Que mais queres? Tens bons haveres para deixares a teus filhos.; mas, quando no os tivesses, sempre eram dois rapazes; e deixa l, Jos; um homem outra coisa que no uma mulher; onde quer se arranja; toda a terra sua; em toda a parte encontra o que fazer, e qualquer trabalho lhe est bem. Agora os pobres que vejo por ai com um rancho de raparigas, coitadinhas, que ficam mesmo ao desamparo de todo, se a sorte lhes roubar o pai... esses, sim, que no sei como podem ter um momento de alegria; e contudo encontr-los nas festas, que um louvar a Deus.

assim, Sr. Reitor, eu sei que os h por a mais infelizes do que eu, mas...

Mas ento, quem tem sade e a quem Deus no falta com o po nosso cotidiano, s deve erguer as mos ao cu para lhe tecer louvores. Mareia a tua vida, que teus filhos no so nenhuns aleijados para precisarem pedir esmolas.

Graas a Deus que no so, Sr. Reitor. O Pedro, sobretudo, no me d cuidados. O Senhor f-lo robusto e fero; um homem para o trabalho; e quem pode trabalhar no precisa de outra herana. Pelo trabalho, e com a ajuda de Deus, fiz eu esta minha casa, que no das piores, vamos; ele, com menos custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas o Daniel j no assim. Aquilo outra me - o Senhor a chame l. Um dia de ceifa bastante para mo matar. a sorte dele que me d cuidado. - Ento s isso? Ora valha-te Deus! verdade. O pequeno fraquito e decerto no pode com o trabalho do campo, mas... para que queres tu o dinheiro, Jos? Acaso no ters alguns centos de mil-ris ao canto da caixa para pr o rapaz nos estudos? No podes fazer dele um lavrador? F-lo padre, letrado ou mdico, que no ficars pobre com a despesa.

Jos das Dornas ao ouvir assim formulado o conselho do reitor sorriu com a visvel satisfao que sempre experimentamos, vendo que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovao de algum, antes de lho revelarmos.

Nisso mesmo penava eu. J me lembrou mand-lo estudar, mas tinha c certos escrpulos.

Escrpulos! Valha-te no sei que diga! Pois ainda s desses tempos? Que escrpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos? Fazes-me lembrar um tio meu que nunca permitiu que as filhas aprendessem a ler; como se pela leitura se perdesse mais gente do que pela ignorncia.

No isso, Sr. Padre Antnio, no isso o que eu quero dizer; mas custa-me dar a meus filhos uma educao desigual. V Vossa Senhoria. So irmos e , mais tarde, o que tomar melhor carreira e se elevar pelo estudo, h de desprezar o que seguir a vida do pai, a ponto de que os filhos dum e doutro quase no se conhecero: o que mais vezes se v. No uma injustia que fao a Pedro a educao que der a Daniel?

Homem de Deus, no h desigualdade verdadeira, seno a que separa o homem honrado do criminosos e mau. Essa sim, que estabelecida por Deus, que, na hora solene, extremar os eleitos dos rprobos. Educa bem os teus filhos em qualquer carreira em que os encaminhes; educa-os segundo os princpios da virtude e da honra, e no os distanciar, acredita; porque, cumprindo cada um com o seu dever, sero ambos dignos um do outro e prontos apertaro as mos onde quer que se encontrem. E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais feliz Daniel, por o elevares a uma classe social acima da tua! A, homem, como viver enganado! o quinho de dores e provaes foi indistintamente repartido por todas as classes, sem privilgio de nenhuma. H infortnio e misrias que causam o tormento dos grandes e poderosos, e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer. Grande nau grande tormenta: hs de ter ouvido dizer. Sabes que mais Jos? - concluiu o reitor - manda-me o rapaz l por casa, que eu lhe irei ensinado o pouco que sei do latim, e deixa-te de malucar!

Com estas e idnticas razes foi o bom do padre convencendo Jos das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser convencido - e, decorridos oito dias, via-se j Daniel passar, com os livros debaixo do brao, a caminho da casa do reitor.

Captulo II

ti'Tomsia - dizia, ao v-lo passar, uma velha que, sentada ao soalheiro, fiava, rezava padre-nossos e cabeceava com sono - o pequeno do Jos das Dornas anda agora nos estudos?

Pois no sabe que o pai o quer pr a padre? - respondeu a vizinha da porta de cima, ao passo que desenredava uma meada e fazia soltar dobadoura os mais inarmnicos gemidos.

Toma que te dou eu! A coisa vai ser grande ento!

Bem se diz: mais anda quem tem o bom vento, do quem muito rema. Ver voc, ti'Custdia, que o Pedro, que se mata com trabalho, h de ter sempre vida de gals, sem nunca levantar cabea; e o pelm do irmo que h de pimpar de senhor e dar leis em casa.

Uma coisa assim! J agora havia mister de um senhor abade ou cnego na famlia! Ora este mundo sempre est!.

E ento veja que padre aquele! A mim no me engana a pinta. de boa raa. No tem dvida nenhuma.

Sai ao lado da me, vizinha. Lembra-se do tio dele - o Joaquim do Morgado? - Que menino!.

A inflexo com que este - que menino! - foi pronunciado era altamente significativa. de crer que o referido Joaquim do Morgado, cunhado de Jos das Dornas, deixasse indelveis recordaes entre as mulheres de sua poca.

Se me lembra! Aquilo era uma coisa por maior. Bastava dar-lhe um pouco de trela, que ele a estava! Nanja eu, comigo nunca ele fez farinha.

E dizendo isto, desviava a cara a abaixava-se para apanhar o novelo que deixara cair, enquanto a vizinha fazia um gesto e resmoneava um aparte ininteligvel, que ambos pareciam contrariar a ltima assero da velha e pr em dvida a sua apregoada iseno de outros tempos.

Nem comigo, ti'Tomsia - disse, em tom j elevado, esta do aparte - nem comigo, que ele bem sabia com quem se metia.

Desta vez, gesto e aparte pertenceram outra interlocutora, e tinham a mesma significao.

certo, porm, que Daniel ia andando com seu latim e, dentro em pouco tempo, j papagueava os substantivos e os adjetivos com incrvel e surpreendente velocidade.

Jos das Dornas divertia-se excessivamente a ouvi-lo. As declinaes ditas pelo filho em voz alta "l lhe caiam no goto" como ele dizia; e j procuravam imit-lo nas suas horas de bom humor, que, segundo j afirmamos, eram numerosas.

Dize l, rapaz, dize l. Ento como ? Como ? Altrotoro, altrotoro, altrotoro. tranca, trinque, ai, diabos, diabos, diabos. Ah! Ah! Ah! Ora dize l, rapaz, dize l.

E Daniel principiava a repetir as lies acompanhado das gargalhadas de Jos das Dornas que, sem o saber, ia demonstrando com o exemplo um grande preceito de instruo, tantas vezes recomendado: - o de vencer, pelo estmulo do agradvel, o fastio que acompanha o estudo. De fato, a facilidade com que Daniel retinha j as enfadonhas lies da arte do Padre Pereira era em parte devida maneira por que lhas amenizavam estes gracejos do pai; quanto mais arrevesados eram os nomes, com mais vontade os decorava Daniel, para despertar com eles a estranheza e hilaridade paternas.

Que estrondosas gargalhadas se no deram na noite em que repetia em voz alta a declinao do relativo Qui e seus compostos!

Ora essa! - dizia Jos das Dornas - que vem c a ser isso? Qui, qui, qui, qui... Ai que o Sr. Reitor quer ensinar-me ao filho a lngua dos cevados!

E toda a famlia desatava a rir, e Daniel mais que todos.

E assim procedia o menino Daniel nos seus estudos com grande aprazimento do reitor, que muitas vezes dizia ao pai, em tom confidencial.

Sabes que mais, Jos? O rapaz esperto, e era at um pecado desvi-lo do estudo, para que tem tanta queda. Olha que me estudou as linguagens em oito dias!

Jos das Dornas no podia avaliar ao certo e gnero e grau de dificuldade que vencera o filho; mas entendeu, l de si para si, que fora alguma coisa de herico, e nesse dia no pode deixar de olhar para o rapaz como se ele tivesse no rosto o que quer que fosse de estranho - a aurola dos predestinados para grandes coisas.

E ento, Sr. Reitor - perguntou ele um dia ao mestre - o pequeno vai bem?

Otimamente. O Sulpicio para ele j como gua de unto. Qualquer dia passo-o para o Eutrpio e dentro em pouco para o Cornlio.

Estas sucessivas passagens do Sulpicio para o Eutrpio, e do Eutrpio para o Cornlio, impressionaram profundamente Jos das Dornas.

L lhe pareceu aquilo uma faanha ginstica admirvel.

Faremos dele um padre Sr. Reitor?

Que dvida? E um padre s direitas.

Ora aqui que o bom do proco se enganava, como, pouco tempo depois, ele prprio reconheceu.

Foi o caso que, ai por volta de um ano depois que o Daniel principiara os estudos - tinha ele ento doze para treze anos - comeou o reitor a observar que o rapaz lhe vinha um pouco mais tarde para a lio. Ao princpio eram cinco, dez minutos, um quarto de hora de diferena. Depois cresceu a demora a vinte, vinte cinco minutos, meia hora, e o padre ps-se a parafusar:

J no me vai parecendo bem a histria. Dar-se- o caso que o rapaz me ande por a a garotar? Se eu o sei! E ento que ia to bem! Deixa-o vir, que eu sempre hei de querer saber o que isto . Nada, no vamos assim minha vontade. Deixa-o vir.

Se bem o pensou, melhor o fez. Chegou o pequeno, todo ofegante e suado, como quem viera s carreiras, e o reitor, fitando-o com olhar severo e penetrante, disse-lhe antes de lhe dar as bnos, que ele, de chapu na mo, lhe pedia:

Olha c, Daniel; donde vens tu a estas horas?

O rapaz fez-se vermelho como um lacre, e no atinou com a resposta. Ficou-se a coar na cabea, a encolher-se, a engolir em seco, a rosnar no sei o qu, e ... mais nada.

Anda que eu desconfio que me vais saindo garoto. E, se assim , tens que ver comigo. Grandessssimo brejeiro! Teu pais manda-te para o estudo ou para andares jogando pedra com a outra canalha?

Eu no andei jogando pedra, no senhor! - exclamou Daniel com uma to eloqente vivacidade que, sem possvel iluso, atestava que ele no mentia.

Ento que fez vossemec at estas horas?

Nova confuso do rapaz.

Eu hei de saber; hei de mand-lo vigiar, e depois direi a seu pai.

Nos quinze dias que se seguiram a esta cena, Daniel foi pontual s horas da escola. O reitor estava satisfeito com a emenda do rapaz, e lisonjeado, l muito para si, com o seu poder persuasivo e a converso que operava com uma simples admoestao.

Ao fim de duas semanas encontrou-se por acaso com Jos das Dornas, e j no se lembrava at de lhe fazer queixa do filho, que assim entrara obediente no bom caminho do dever. Jos das Dornas, porm, que se mostrava preocupado. Quanto mais o padre lhe gabava a habilidade de Daniel, tanto mais o bom homem parecia constrangido, limitando-se a soltar uns ininteligveis monosslabos em sinal de aprovao.

Que tens tu, Jos? A modo que te estou estranhando! - exclamou o reitor, j um pouco impaciente.

que, Sr. Padre Antnio, eu... a falar a verdade... queria dizer-lhe uma coisa.

Pois dize, homem, dize para ai. Ento deste agora em fazer cerimnias comigo?

Eu sei o grande favor que o Sr. Reitor me faz ensinando o pequeno...

Bem, bem, adiante; deixemo-nos agora disso. Se eu o ensino, porque quero e gosto. O que estimo que ele aproveite, como de fato aproveita; o mais so histrias.

Pois muito agradecido. Mas dizia eu... sim... custa-me a explicar...

Com S. Pedro! Fala, homem, dize l o que tens a dizer.

que o rapaz a modo que fraquito, e ento...

E ento o qu ?

Tenho medo que, estudando demais, me adoea por a, e ...

Mas ele estuda demais?

No, senhor; mas... sim... queria eu dizer, que talvez fosse bom que o Sr. Reitor o demorasse menos na aula. Digo eu isto, mas se vir que...

Sim, sim, mas ento... vamos a saber, ento ele demora-se muito?

No digo que seja muito. Tudo necessrio, bem sei...Mas... quero eu dizer... para quem fraco como ele... Como sai s duas horas e vem s s trindades... e s vezes noite fechada...

O Reitor ficou como se lhe cara o corao aos ps, ficou... - diga-se a frase, visto que a autorizou quem podia - ficou desapontado. Das duas horas s trindades, e noite cerrada, s vezes, quando ele lhe entrava em cada s trs e lhe saia pouco depois das cinco! Tinha assim o padre de modificar duplamente o seu juzo - quanto ao rapaz e quanto a si - descrendo da converso do primeiro e do seu prprio poder de catequese. Este sacrifcio em duplicado, custou-lhe e conservou-o por algum tempo mudo. Esteve para contar ao pai a histria toda, mas calou-se. Tinha um corao generoso afinal de contas e compreendeu que a revelao, iria afligir o velho.

Tens razo, homem - limitou-se pois a dizer - Tens razo. O rapaz h de sair mais cedo. Eu olharei por isso. Mais alguns dias s, para chegar c a um ponto que eu quero, e depois ser como dizes.

E l consigo dizia o bom padre.

Deixa estar, meu Danielzinho, que eu hei de saber por onde tu me vais, depois que te mando embora. Deixa estar, deixa, que me no tornas a enganar, meu menino.

E foi para casa com firme resoluo de elucidar este negcio.

Captulo III

No dia seguinte deu Daniel a lio de costume, e s cinco horas recebeu ordem de se retirar, - ordem cuja execuo, como era natural, no se fez esperar muito.

Ele a voltar costas, e o reitor a pr o chapu na cabea para lhe ir na pista.

A tarefa no era fcil; basta lembrar-mos da agilidade de Daniel, natural sua idade, e compar-la com os j trpegos movimentos do velho padre, que, com a pressa que levava, impelia diante de si todas as pedras soltas do caminho.

Foi seguindo direito pelas ruas que o conduziam a casa de Jos das Dornas e perguntando a quantos conhecidos encontrava, sentados pelas portas ou debruados nas janelas, se tinham visto passar o pequeno. Por muito tempo foram as respostas afirmativas, o que satisfazia o reitor, pois indicavam-lhe que, at aquele ponto, o rapaz no se havia extraviado, deixando de seguir o caminho de casa.

Chegou, porm, a um largo, onde desembocavam diferentes ruas e azinhagas, e as coisas mudaram ento de face.

O reitor continuando a seguir seu sistema de indagaes, tomou a direo que devia ser mais prontamente o pequeno Daniel aos lares paternos.

A porta duma casa trrea, que havia na esquina, dobava uma velha, a qual, ao ver aproximar-se o reitor, ergueu-se, com toda a cortesia da cadeira em que estava sentada.

Muito boas tardes, tia Bernarda. Diga-me, viu passar por aqui o pequenito do Jos das Dornas?

Nosso Senhor venha na companhia de V.S.. Pois nada, no senhor, Sr. Reitor. O rapazito passava dantes por aqui todas as tardes; mas haver coisa de quinze dias, ou trs semanas, que j o no tenho visto.

O reitor ps-se a coar na orelha. O delito comeava a fazer-se evidente.

Esta agora - murmurava ele deveras zangado, e depois acrescentou mais alto: - E eu que me esqueci de lhe dar um recado para o pai! Diacho!

Se V.S.. quer, eu mando l a minha neta.

Nada, no; obrigado. A coisa tambm tem tempo. Fique-se com Deus, tia Bernarda, e agradecido.

Nanja por isso, meu senhor - E a velha fez reverncia.

Temos histria - dizia o reitor, franzindo o sobrolho e tomando por outro dos caminhos que comunicavam com o largo. - Perguntemos aqui - e parou junto dum alpendre rstico, debaixo do qual estava sentado um velho quase paraltico, que procurava nos raios do sol o calor que lhe escasseava nos membros, j regelados pela idade.

Boas tardes, tio Bonifcio - disse o reitor, elevando a voz e parando defronte dele.

Sr. Padre Antnio, um criado de V. Rev.ma.

Sabe me dizer, tio Bonifcio, se o pequeno do Jos das Dornas passou h pouco tempo por aqui?

O velho, j meio surdo, fez repetir a pergunta em tom mais elevado, e depois dum momento de silncio, durante a qual pareceu interrogar a memria, j perra e enfraquecida.

Sim senhor, vi - respondeu, acenando afirmativamente com a cabea - Vi sim senhor. Passou aqui com os bois, h meia hora.

Com os bois!... A, esse o Pedro. Falo no pequeno: no Daniel.

Ah!... nada... esse... ah! sim, sim... um que anda nos estudos?

Esse mesmo.

Sim, pelos modos que... agora neste instante passou ele a correr, para o lado dos audes.

Obrigado, tio Bonifcio.

O mafarrico do rapaz que ter para fazer do lado dos audes? - dizia o padre consigo, tomando a direo indicada. Efetivamente pelo novo caminho que seguia, iam-lhe dando informaes de Daniel, acrescentando de mais a mais, que, havia coisa de duas semanas, era ele certo por ali todas as tardes.

O reitor dava-se a perros, para atinar com o motivo de semelhante rodeio.

Em nome do Padre, do Filho e do Esprito Santo! Para que vir o rapaz dar esta esquisita volta?

De certo ponto por diante faltaram-lhe as informaes, porque o stio tornava-se quase despovoado.

A tarde ainda estava longe do seu fim; mas umas nevoazitas comeavam a levantar-se dos campos e lameiros, e o reitor, que tinha o seu reumtico a atender, j ia perdendo grande parte daquele fogo com que encetara a pesquisa.

No meio dum estreito e alagado caminho, que seguia tortuosamente por entre dois campos de centeio, parou e entrou a refletir:

O rapaz sumiu-se. Para o ir procurar assim toa e a estas horas do dia no estou eu. Vo l atrs do homem da capa preta. Quem sabe onde o diabrete foi dar agora consigo? O pai que o procure que tem obrigao disso. O melhor retirar em boa ordem, antes que venha o frio da noite.

J se preparava para seguir o prudente conselho, que a si prprio acabava de dar, quando lhe despertou a ateno um assobio agudo e vibrante, cujo timbre lhe era to conhecido como a toada da cantiga que executava.

Ol - disse o reitor, parando equilibrado sobre duas alpondras no meio do lamaal do caminho - Moiro na costa, ou eu me engano muito!

Ps-se a escutar de novo, e cada vez mais parecia confirmar as suas suspeitas, acabando de se convencer de todo, quando, ao assobiar, sucedeu uma voz infantil, que ele logo reconheceu como a do discpulo, cantando, ainda na mesma toada, que era de uma msica popular, as seguintes coplas (7):

Morena, MorenaDe olhos castanhosQuem te deu, morena,Encantos tamanhos?Encantos tamanhosNo vi nunca assim

Morena, morena,Tem pena de mim Morena, morena,De olhos rasgadosTeus olhos, morena,So os meus pecados. So os meus pecadosUns olhos assim

Morena, morena,Tem pena de mim Morena, morena,Dos olhos galantesTeus olhos, morena,So dois diamantes So dois diamantesOlhando-me assim

Morena, morena,Tem pena de mim. Morena, morena,Dos olhos morenosO olhar desses olhosConcede-me ao menos Concede-me ao menosNo sejas assim

Morena, morena

Tem pena de mim - Temos o homem - disse o reitor, depois de ouvir a cantiga, e enfiou resoluto pela rua adiante. Mas tendo dado alguns passos mais, parou como se mudasse de teno. - Nada, no convm que ele me veja. preciso espi-lo sem que ele d por isso.

Feita esta reflexo, passou um rpido exame ao terreno e retrocedeu. Dobrou novamente a esquina da viela em que se introduzira; costeou o campo do lado direito, at se lhe deparar uma cancela rstica, que no lhe ops a mnima resistncia, e oculto pelo centeio, caminhou, o mais prudentemente que pde, at o lugar correspondente quele de onde partia a voz e da por diante at descobrir a caa que procurava. No levou muito tempo a realizar o seu intento.

Eis a cena que viu o reitor, acocorado ente o centeio, com a bengala fixa no cho, mos apoiadas na bengala, o queixo apoiado nas mos

Captulo IV

Defronte do campo, donde, com as melhores intenes deste mundo, o reitor estava espionando, e separado apenas dele pela estreita e mida rua, de que j falamos, estendia-se um trato de terreno inculto, muito coberto de tojo e de giestas, e dessa espontnea vegetao alpestre, que, no nosso clima, enflora ainda mais os montes mais ridos e bravios.

Dispersas por toda a extenso deste pasto, erravam as ovelhas e cabras de um numeroso rebanho, de que eram os nicos guardadores, um enorme e respeitvel co pastor e uma rapariguita de, quando muito, doze anos de idade.

At aqui nada de notvel para o reverendo proco.

Mas o que o maravilhou foi o grupo que formavam, naquele momento, a pequena zagala, o co e o nosso conhecido Daniel, por via de quem o bom do padre empreendera to trabalhosa excurso.

A pequena sentada junto de uma pedra informe e musgosa, folheava com ateno um livro, dirigindo, de tempos em tempos, meios sorrisos para Daniel, que, deitado aos ps dela, de bruos, com os cotovelos fincados no cho e o queixo pousado nas mos, parecia, ao contemplar embevecido os olhos da engraada criana, estar divisando neles todos os dotes mencionados na cano da Morena, que lhe ouvimos cantar.

Jaziam ao lado dos dois uma roca espiada e os livros de Daniel.

Completava o grupo o co, enroscado junto do pequeno estudante com desassombrada familiaridade, e denunciando assim que o conhecimento entre eles, e por conseguinte de Daniel com a pastora, no era j de recente data.

Este grupo, apesar de toda a sua beleza artstica, realada pelas meias tintas do crepsculo e por o fundo alaranjado do cu, sobre que se desenhavam os rendados das rvores ao longe, no agradou de maneira nenhuma ao reitor, que, com um franzir de sobrolho, mostrou claramente a contrariedade que ele lhe fazia experimentar.

Esteve para surgir entre o centeio e mostrar-se aos enlevados personagens deste idlio infantil, severo e terrvel, como o velho vulto do gigante Adamastor, nas estncias do grande pico.

Pde, porm, conter-se e constrangeu-se a observar a cena, com mal reprimido desagrado.

A pequena, que estivera por muito tempo inclinada sobre o livro, como a lutar com alguma dificuldade de leitura, que procurava vencer por si, acabou por fazer um gesto de impacincia, e, apontando com o dedo a palavra da dvida, colocou a pgina diante de dos olhos de Daniel, perguntando-lhe:

Isto que quer dizer?

Daniel olhou por algum tempo para o livro, e afinal respondeu:

Cataclismo.

E o que vem a ser cataclismo?

Daniel ficou embaraado. A falar a verdade, ele no sabia bem o que era cataclismo. No teve coragem para o dizer francamente e titubeou:

Cataclismo... sim... cataclismo ... sim... eu sei o que ... agora para to dizer que ... Cataclismo...

O reitor apesar da posio crtica em que estava, no deixou de se zangar l consigo, ao ver um discpulo seu no poder desenredar-se de tais dificuldades filolgicas.

Margarida, que era este o nome da pequena, adivinhou a causa da hesitao de Daniel e delicadamente lhe ps fim, olhando outra vez para o livro e continuando a estudar em silncio.

Da a pouco voltou, porm, a consultar o seu pequeno mestre.

E isto? Como se l?

Metempsicose - foi a reposta de Daniel

E o que vem a ser?

Desta vez ainda o embarao de Daniel era maior. Nunca ele soubera o que fosse metempsicose, e, como pela segunda vez se via pilhado em falso, perdeu a pacincia. Saiu-se do aperto, como alguns professores em casos anlogos.

Ora! Isso uma coisa que leva muito tempo a explicar.

Margarida resignou-se a no entender.

Uma terceira interrogao. Desta vez foi a palavra pragmtica que a originou.

Daniel estava em mar de infelicidades. Esta acabou de o impacientar. Tirando o livro comprometedor das mos da discpula, disse com certo despeito mal encoberto:

Deixa-te de estudar, Margarida; no estou agora para isso.

Mas depois... amanh...

Amanh! Que tem? Sossega, que no te castigo. E demais ainda tens muito tempo. No vs que s venho e tarde?

Mas...

Mas... agora no quero que estudes, quero que cantes.

Ora cantar! Que hei eu de cantar?

A cantiga da Morena.

Eu no gosto dela.

No?

Eu, no.

Ento de qual gosta mais, Guida? - perguntou Daniel, dando pergunta, e sobretudo quela familiar alterao do nome de Margarida, uma msica de afetuoso galanteio, que no deixaria ficar mal ningum.

A da Cabreira, muito mais bonita.

J no me lembra bem. Pois ento canta a da Cabreira.

Agora no.

Agora sim; e por que a no hs de cantar agora?

A minha irm Clara que a sabe cantar bem, eu no.

Ora adeus, ela ainda uma criana - disse Daniel com um soberbo gesto de homem - Eu quero-a ouvir de ti.

Eu julgo que nem a sei.

Sabes, sabes, ora vamos a ver.

Olhe... eu canto, mas...

E Margarida ps-se a cantar e com a voz to sonora e agradavelmente infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, em uma posio mais cmoda e disposto a julgar com imparcialidade, confessaria que era excelente. Mas na ausncia destas condies de juzo desapaixonado, foi um crtico como quase todos.

Ai vai o que ela cantava. em uma dessas singelas e montonas melopias de quase todas as xcaras populares:

Andava a pobre cabreira

O seu rebanho a guardar,

Desde que rompia o dia

Ate a noite fechar.

De pequenina nos montes

No tivera outro brincar,

Nas canseiras do trabalho

Seus dias vira passar

Assim como tu - disse Daniel.

Margarida sorriu, fazendo com a cabea um movimento afirmativo, e continuou:

Sentada no alto da serra

Ps-se a cabreira a chorar,

Por que chorava a cabreira,

Ides agora escutar "A! que triste a sina minha,

A que triste o meu penar

Que no sei de pai nem me,

Nem de irmos a quem amar De pequenina nos montes

Nunca tive outro brincar

Nas canseiras do trabalho

Meus dias vejo passar". Mas, ao desviar os olhos

Uma coisa que a fez pasmar.

Uma cabra toda branca

Se lhe fora aos ps deitar.

Assim, pouco mais ou menos - disse Daniel, pousando a cabea nos braos encruzados sobre as urzes do cho.

Margarida prosseguiu

Branca toda, como a neve,

Que nem se deixa fitar,

Coberta de finas sedas,

Que era coisa singular! E, maliciosamente, com um sorriso de travessura infantil, passou os dedos por entre os cabelos de Daniel.

Nunca a tinha visto antes

No seu rebanho a pastar,

E foi a fazer-lhe festa...

E foi para a afagar... E continuava a correr as mos pela cabea de seu jovem companheiro, que sorria

Eis vai a cabra fugindo

Pelos vales sem parar;

Ia a cabreira atrs dela

Mas no a pde alcanar.

E andaram assim trs dias.

E trs noites sempre a andar!

At que a porta de uns paos

Afinal foram parar. Chorava o rei e a rainha

H dez anos sem cessar,

Que lhe roubaram a filha

Numa noite de luar E dez anos so passados

Sem mais dela ouvir falar,

Eis chega a cabreira porta

porta foi se sentar "Ai que bonita cabreira...

E Margarida, ao cantar este verso, no pde conservar-se sria, vendo Daniel levantar os olhos para ela.

Que l embaixo vejo estar!

E uma cabra toda branca

Que nem se deixa fitar Meus criados e escudeiros

Ide a cabreira buscar".

Isto dizia a rainha,

Este foi seu mandar. Foram buscar a cabreira

E a cabra de a acompanhar

At a sala dos paos

Onde o rei a viu chegar. "Pela minha c'roa de ouro

Eu quero agora apostar,

Que esta a filha roubada

Numa noite de luar".

Milagre! Quem tal diria!

Quem tal pudera contar!

A cabrinha toda branca

Ali se ps a falar.

A seguinte quadra foi cantada tambm por Daniel e sem ofensa da harmonia:

"Esta a filha roubada

Numa noite de luar,

Andou sete anos no monte

Quem nasceu para reinar!"

O resultado da interveno de Daniel foi acabarem os dois a rir, com grande risco de deixarem incompleta a cantiga.

A rogos do seu companheiro, Margarida, passados alguns momentos, concluiu:

Que alegrias vo nos paos,

E que festas sem cessar!

A filha h tanto perdida,

No trono os pais vo sentar, E vm damas p'ra vesti-la

E vm damas p'ra calar,

E as mais prendadas de todas

Para as tranas lhe enfeitar Vo procurar a cabrinha...

Ningum a pde encontrar;

Mas...

Foi olhando Daniel que a pequena Guida terminou:

Mas um anjo de asas brancas

Viram as cus a voar E assim acabou a ltima quadra da xcara, e por algum tempo, as duas crianas se conservaram caladas, como se quisessem seguir ainda, at as derradeiras vibraes, as notas melodiosas daquela voz, ao desvanecerem-se no espao.

Daniel foi o primeiro a romper o silncio,

Ento, vs como a soubeste at o fim? E cantaste-a to bem!

Ora!

Mas noite, Guida, Repara. Olha que so horas de tu ires juntar o gado.

E acrescentou, suspirando melancolicamente:

Daqui a pouco estou eu de volta com o meu latim! E que lio tamanha me marcou o padre esta manh!

Ento de que tamanho ?

Olha; vai vendo - disse Daniel, abrindo a Seleta e mostrando a Margarida as folhas que o reitor lhe marcara para estudar. - esta lauda... e esta... e esta, at aqui.

E ento isso diz o que diz?

Conta a vida l de uns generais antigos que fizeram guerras mortes e que quase sempre se matavam a si, quando no os matavam a eles.

E para que preciso que saiba estas histrias quem quer ser padre?

Eu sei l! Mas que ests tu a dizer? Padre! padre! No me fales em ser padre, Guida. Eles cuidam que eu quero mesmo ser padre, estou querendo.

Ento?

Ora quando chegar a hora eu lhas cantarei. Ainda est por nascer o barbeiro que me h de abrir a coroa. O tio Joo das Bichas disse-me noutro dia - a rir, j se sabe - que j tinha em casa uma navalha afiada para isso; eu fui-lhe dizendo que bem deixava ento a navalha para o barbearem em morto.

Mas o seu pai mata-o!

Meu pai? Deixa-te disso. Meu pai no h de querer fazer-me padre a fora.

Mas o Sr. Reitor?

O Sr. Reitor no c chamado. Que se meta com a sua vida. Ora muito boa!

E por que no quer ser padre, Danielzinho?

Olhem que pergunta! No quero ser padre, porque no quero, porque gosto de ti, e, porque, afinal de contas, hei de vir a casar contigo.

Ora!

Hei de, sim. Vers.

E dizendo isso, passou facilmente o brao pelo pescoo da pequena Guida, e pousou-lhe na fronte um beijo que ainda nem sequer a fazia corar.

O reitor estava escandalizado e estupefato por quanto vira e ouvira.

Tivesse assistido em pessoa ao aparecimento do anticristo, que no se maravilhara tanto.

Esta cena inofensiva, esta cloga entre duas crianas, parecia-lhe mais abominvel do que a outro qualquer as mais impudicas aventuras daquele heri, que Byron imortalizou com o nome de D.Juan, nome, j antes dele, de pouco austera memria.

Ao chegar a seus atnitos ouvidos, a vibrao sonora do beijo, que terminou o dilogo, o padre estremeceu como se acabasse de escutar um silvo de serpente cascavel, e no pde reprimir uma interjeio desaprovadora, bastante audvel, para ser percebida por todas as personagens da cena que descrevemos.

No ouviste, Guida? Que foi aquilo? - disse Daniel, j meio erguido e olhando com inquietao ao redor de si.

No nada - respondeu esta, com pouco mais de frieza de nimo.

Mas, neste tempo, j o co se havia levantado e ladrava furiosamente na direo do lugar onde o reitor estava escondido.

Aqui, Gigante, aqui! - bradava-lhe, em vo, Margarida.

O que estar acol no centeio para o co ladrar assim? - perguntou Daniel, j sem pinta de sangue.

E o co ladrava cada vez mais, e parecia pronto para arremeter contra um inimigo oculto.

O reitor, como de prever, comeava a achar-se muito pouco vontade.

Aqui, Gigante - continuava a pequena, j cansada de bradar.

Mas Daniel, assustado, valeu-se do co, como instrumento de explorao e defesa, e soltou uma palavra imprudente:

Busca, Gigante, pega!

No foi preciso mais nada.

O Gigante galgou de um salto o estreito caminho que o separava do campo onde o reitor cada vez suava mais com a iminncia do perigo, e rompendo por entre o centeio, veio pousar triunfantemente as patas dianteiras sobre os ombros do pobre velho, que julgou ver a morte na figura deste monstruoso co.

Como esses bonecos que fazem as delcias dos pequenos feirantes de S. Miguel e do S. Lzaro, no Porto, e que ao abrir-se a caixa que os contm, so repentinamente expelidos por uma mola interior, o proco, ao toque mgico do agigantado quadrpede, ergueu-se, de sbito, sobre os calcanhares, e, meio sufocado pelo susto e com as faces enfiadas, bradou para Daniel:

Chama este co rapaz endemoniado! Ele mata-me!

Daniel que no podia lhe valer, to embasbacado ficou com a inesperada apario do mestre. A mulher de L por certo no se conservou to imvel, depois do fatal momento em que cedeu sua irresistvel curiosidade.

A pequena Margarida que salvou a situao - como me parece que se costuma dizer em poltica. Armou-se da maior severidade que lhe era possvel, e com a inflexo de voz imperiosa, pronunciou um -"aqui Gigante!" - que foi prontamente obedecido.

O reitor estava salvo, mas ainda no senhor seu, e deveras chufado com as circunstncias ridculas que acompanharam a sua descoberta. Ora, como sempre acontece , estas circunstncias inabilitavam-no para assumir o carter severo, grave e pedaggico, necessrio a quem se prope a dar uma repreenso ou a fazer uma prtica de moral.

Com muito bom senso renunciou, pois, o reitor a este projeto, e sem dar palavras, virou costas e abandonou o lugar dessa aventura, interiormente quase to pouco satisfeito consigo como com o seu discpulo.

Daniel, passados alguns momentos mais de silencioso pasmo, desatou a rir, a rir, a rir, desse expansivo e contagioso rir de criana, que no tem outro igual. Esqueceu o que para ele havia de estranho e srio em tudo aquilo, e as conseqncias que poderia ter, para s se lembrar da carantonha que fazia o reitor a gritar que lhe acudissem, do susto que apanhara, do aspecto sorumbtico que levava ao partir, e por isso tudo ria s bandeiras despregadas.

Vejam l se o padre no fez bem em adiar o sermo para ocasio mais oportuna?

Porm. Margarida? Essa que no ria. Certo instinto de delicadeza inato em quase todas as mulheres, no sei que vaga prescincia de infortnio, que algumas, de criana possuem, parecia-lhe estar dizendo que tudo aquilo, sem saber por qu, lhe poderia vir a ser funesto.

E enquanto Daniel ria, ela, coitada, no se pde conter, e comeou a chorar.

Que tens tu, Guida? Isso que ? - perguntou-lhe Daniel, j srio e meio sensibilizado - Por que choras assim?

Deixe-me. No sei bem... mas sinto uma tristeza... e tamanha... tamanha! Vamos. tarde, vou juntar o gado.

E eu ajudo-te.

No. V para casa e corra bem, antes que o Sr. Reitor chegue l primeiro.

Pois ele ir?

Ande... corra.

Foi ento que Daniel reconheceu que Margarida podia ter alguma razo em no levar o caso a rir, e que no devia ser para ele uma coisa de todo insignificante a apario do padre ali. Por isso disse adeus sua companheira, e deitou a correr para casa.

Captulo V

No dia seguinte, que era um domingo, vestia-se o reitor, na sacristia, para celebrar a missa conventual. Entre as diversas pessoas que assistiam ao ato, avistou ele o nosso conhecido Jos das Dornas, e a lembrana do ocorrido na vspera surgiu-lhe outra vez ao esprito, acompanhada de todas as circunstncias desagradveis que se deram ento. Durante a noite, havia o padre, ss com o travesseiro, tomado uma resoluo. Foi, pensando nela, que no momento em que Jos das Dornas se aproximou mais do lugar, em que ele se paramentava, lhe disse:

Logo, depois da missa, espera-me l fora, no adro, que temos que conversar.

Jos das Dornas fez um sinal de assentimento, e entrou para a capela.

Nada ocorreu durante a missa, que exija especial referncia. Foi dita pela reitor com todas as formalidades do rito, e escutada pelo auditrio, e principalmente por Jos das Dornas, com respeitosa ateno.

Acabada ela, formaram-se diferentes grupos pelo adro, do qual uma frondosa alameda fazia, naquela poca do ano, um dos lugares mais apetecveis da terra; Jos das Dornas trocou meia dzia de palavras com alguns conhecidos seus. Falou no tempo, no aspecto das searas, nas mudanas da lua, e pouco a pouco, foi ficando cada vez mais desacompanhado, porque os aldees iam dispersando, atrados pela lembrana do jantar que os esperava.

Finalmente achou-se de todo s e ps-se de mos nos bolsos, a passear no adro. No entretanto ia fazendo suas conjeturas sobre os motivos que levariam o reitor a mand-lo esperar e sobre a natureza da conversao que ia ter com ele.

De fato no tardou. O reitor saiu finalmente da sacristia, e dirigiu-se imediatamente para Jos das Dornas, que se descobriu ao avist-lo.

Est vontade, Jos, est vontade. Ora... ns temos que falar a respeito do teu pequeno.

Ento preciso comprar-lhe mais alguns livros? O que V.S. vir que...

Nada, nada. A coisa agora muito diferente.

Ento?

que... Ora escuta, Jos. Lembras-te de que eu te disse, aqui h tempos, que o rapaz havia de ser padre?

Se lembra? Muito bem. E eu disse...

Bem, bem. Pois ... se queres que te fale a verdade... parece-me que o melhor... dar-lhe outra arrumao.

Jos das Dornas parou e ps-se a olhar boquiaberto para o reitor.

Ento... o pequeno no tem memria para os estudos?

Tem, tem e at demais... Mas... ouve c; esta vida de sacerdote quer vocaes decididas. No as havendo, um grande erro abra-la, e um grande pecado constranger algum a segui-la contra a vontade.

Credo! pois quem diz menos disso? Mas ento, acha o Sr. Reitor que o rapaz no ter queda?

Hum, hum... - murmurou o reitor.- Parece-me que no tem grande queda, no.

Valha-me Deus, mas... por que julga V.S. isso? E queira perdoar se sou confiado em perguntar.

C por certas coisas.

E eu que at me parecia que o pequeno fora mesmo talhado para a vida!

Tambm eu o julgava.

O seu gosto era ajudar a missa.

Olha l se o vs agora!

At pelos seus brinquedos. Olhe que no havia para ele como armar igrejinhas e pregar sermes.

Isso agora... quanto a gostos e brinquedos... parece-me que houve sua mudana ultimamente.

Ento?

O reitor hesitava em falar a verdade inteira a Jos das Dornas; por isso, a esta pergunta, comeou ainda a titubear, e respondeu evasivamente:

Sim... creio que j no se entretm muito com igrejinhas...

Ah! pois sim... mas... que agora tem j outras canseiras... Os estudos...

Ah! os estudos... o que me lembra.

Olhe, Sr. Reitor - continuava Jos das Dornas, um tanto incrdulo a respeito da mudana de inclinao do filho - eu finalmente... sim... como o outro que diz... - no sei l as razes que tem V.S. para pensar dessa forma... mas a mim est-me a parecer que V.S. se engana.

O reitor tinha atingido os limites de sua grande pacincia. Esta dvida de Jos das Dornas, ainda que formulada a medo, acabou por resolv-lo ser mais explcito.

E se eu te disser, Jos das Dornas, - exclamou ele, parando e voltando-se para o seu interlocutor - se eu te disser que teu filho Daniel apesar dos seus doze ou treze anos, que ser a idade dele, tem j na aldeia a sua conversada?

Jos das Dornas parou como fulminado.

O reitor continuou seu caminho

Que diz, Sr. Reitor?! - exclamou afinal Jos das Dornas, atrasado j uns cinco ou seis passos, e na mesma posio em que o deixara a revelao.

O que sei! - respondeu o reitor, com eloqente laconismo.

Em nome do Padre, do Filho e do Esprito Santo! Est o mundo roto! Pois o rapaz... Oh, Sr. Reitor, palavra, que se fosse outra pessoa que mo dissesse, eu no acreditava.

E se eu te afirmar que vi, com os meus olhos, o teu Daniel sentado no monte ao p de da rapariga, cantando juntos, lendo juntos, e afirmando-lhe o rapaz que nunca h de ser padre, pois queria casar com ela?

Ora, ora, Sr. Reitor, essa demais. H de perdoar, mas essa...

E se eu te disser que ele lhe deu um beijo - acrescentou o padre em tom confidencial.

Um beijo!

E se eu te disser que ele, todos os dias, me sai da aula s cinco horas, e passa o resto da santa tarde junto da pequena?

Ora o rapazinho!

Ento, j vs que no convm faz-lo padre. Para dar maus exemplos, temos c, infelizmente, bastantes. E quando o pano assim em amostra, que far a pea inteira.

Mas que lhe havemos de fazer agora?

Se te guiares pelos meus conselhos, a tens um plano: deixa-te de ordenar o rapaz. Pega nele e remete-o quanto antes para um colgio, onde no lhe deixem por o p em ramo verde. F-lo depois mdico... advogado... o que quiseres e que ele no repugne...

Ento quer dizer que o mande para Coimbra?

Para Coimbra?... Eu sei?... Homem, a falar a verdade, semente desta em Coimbra, para dar uns frutos por a alm. Para o Porto, onde ele possa estar sob as vistas dos parentes que l tens, vai muito melhor. Pe-mo a cirurgio. Eles hoje, dizem, que saem de l como de Coimbra, e olha que uma boa carreira. O nosso Joo Semana est velho, e, morrendo ele, no temos por aqui mais ningum. Mas preciso tratar j disso. Impe-me o rapaz daqui para foras, se queres fazer dele alguma coisa de jeito.

Mas, Sr. Reitor, e quem era a cachopa?

Isto agora que j no da tua conta. Faze o que eu te digo, e deixa o resto.

E nestes termos se separaram os dois, tomando cada um a direo da casa.

Jos das Dornas ainda este por algum tempo impressionado com o que lhe acabara de dizer o reitor.

H notcias de uma digesto demorada e laboriosa, como a de certos alimentos.

Enquanto ela dura, o esprito no se acha vontade e como que se agita sob a influncia de uma incmoda sensao; mas, pouco a pouco, opera-se um ntimo trabalho assimilador, acalma-se a espcie de febre digestiva, que acompanhara aquela elaborao mental, e tudo entra na ordem. A notcia, que nos impressionara, perde enfim quanto se nos havia figurado de estranho; sentimo-nos mais livres e em mais felizes disposies para encararmos os fatos.

Assim aconteceu como Jos das Dornas: o que, ao princpio, lhe avultara como calamidade, acabou por se transformar em uma coisa naturalssima e engraada at; o que lhe parecera desmoronamento de um belo edifcio em construo, convenceu-se em pouco tempo que no passava de uma reforma preparatria para futuro melhor; e de carrancudo e pesaroso que ficara ao princpio, acabou por se tornar prazenteiro e quase risonho.

O rapaz sai-me da pele do diabo! Com qu, j tinha tambm a sua conversada! Havia mister! Ah!, ah!, ah! E o reitor atrapalhado! Ah!, ah!, ah! Agora que eu lhe acho graa! E como soube dizer que no havia de ser padre, porque queria casar. Ora o rapazinho! Esperto ele! Oh l! Mas como diabo o ouviu o reitor? A falar a verdade... o pequeno tem razo. Eu, que to bem me dei com aquela santa, que est no cu, como havia de obrigar um filho meu a no gozar de uma felicidade como a minha! Deixar o rapaz... Quer casar?... Faz ele muito bem. Deus lhe depare uma boa cachopa, que seja mulher de casa... Mas quem seria a tal? Isso que o padre no diz. Pois hei de sab-lo. Sempre mandarei o pequeno para o Porto... E que dvida! Nas terras grandes que se fazem os homens... H de ser cirurgio, se quiser. O reitor l nisso diz bem, O Joo Semana est acabado... Padres no faltam... e com a esperteza do Daniel, era uma pena no fazer dele uma outra coisa... A o rapazinho que os meus pecados! Ah!, ah!, ah! Sume-te! J tem o sangue na guelra. Madruga!

E com estes monlogos e as mais fagueiras disposies de nimo, chegou Jos das Dornas a casa, e jantou com apetite. mesa lanava, s furtadelas, maliciosos olhares para o filho mais novo, o qual, sentindo-se sob iminente pronncia, no levantava os seus. O pai a custo podia suster o riso ao observ-lo.

Captulo VI

E ainda bem no tinha decorrido uma semana, depois do que referimos, j o pequeno Daniel era transferido para o Porto na melhor gua da casa, em conformidade com o plano traado pelo reitor.

O rapaz chorou muito ao partir. O pai sensibilizou-se, mas foi dominando a sua emoo conforme pde.

Daniel entrou na cidade invicta com pouca disposies de se lhe afeioar. Matavam-no saudades da terra, da famlia, e mais que todas a da sua pequena Guida, de quem nem ao menos lhe tinha sido possvel despedir-se, pois nem para isso lhe haviam dado ensejo.

Desde a tarde em que fora surpreendido pelo reitor no inocente colquio que tanto escandalizou o bom do proco, nunca mais a tornara a ver, nem dela ouvira falar. Somente, ao despedir-se do seu mestre, este lhe disse, afagando-o nas faces e sorrindo afavelmente: -"Vai, que eu continuarei com a lio da tua discpula". - Daniel no pde responder e partiu. Mas, ao ver sumirem-se atrs de si as copas das rvores, a cuja sombra o esperava talvez Margarida, borbulhavam-se as lgrimas nos olhos. Pobre criana!

E Margarida?... Essa mais pungentes sentia ainda as saudades. Sempre assim acontece. Em todas as separaes, tem mais amargo quinho de dores o que fica, do que o que vai partir. A este esperam-no novos lugares, novas cenas, novas pessoas; sobretudo espera-o o atrativo do desconhecido, que de antemo lhe absorve quase todos os pensamentos. Vai experimentar outras sensaes, e fora de distrair os sentidos, raro que no acabe por distrair o corao. Mas ao que fica... l esto todos os objetos que v a recordar-lhe as venturas que perdeu; ali as flores que colheram juntos, para as trocar depois; acol, a rvore a cuja sombra se sentaram; alm o ribeiro que arrebatou na corrente as ptalas, desfolhadas um dia, do bem-me-quer fatdico, que os amantes interrogam; o tronco onde se gravaram unidas as iniciais de dois nomes; o canto dos pssaros que tantas vezes escutaram; o ponto da perspectiva, mais procurado pela vista de ambos... Oh!, h bem mais alimentos para as saudades assim! E depois, o que se ausenta vai esperanado nisto mesmo: em que a afeio, que deixa, lhe ser fielmente mantida at a volta; que evitaro o esquecimento das promessas feitas tantas testemunhas que as presenciaram e que, sem cessar, as recordaro; os que ficam antevem que, longe de tudo que possa falar-lhes delas, pouco a pouco se varrero essas promessas da memria do ausente, e, ao dizer o adeus da despedida, um amargo pressentimento lhes segreda que dizem adeus a uma iluso.

Ora preciso saber que Margarida se sentia triste, profunda e inconsolavelmente triste, sem que lhe acudisse idia tudo quanto havemos dito. Porm, a ns, -nos lcito analisar aquele tenro corao de criana, afeioado para os sentimentos e dotado de delicadssimos instintos, como o de poucos, Alma voltada melancolia e que se habituara a sentir, sem se estudar! No h para mim mais simptica espcie de sofredores! os mrtires que se analisam, e nos fazem resenha e inventrio dos seus tormentos; esses que, todos os dias, desenvolvem em estilo imaginoso a fisiologia do prprio corao indagam a teoria do padecer, que, dizem eles, os tortura e o fazem com uma profundeza de vistas, verdadeiramente filosfica... esses mrtires... para falar a verdade, no creio muito neles. Quem sofre deveras, tenho eu para mim, acha-se com pouca vontade de esquadrinhar os mistrios do sofrimento e no se pe com grandes filosofias a esse respeito. Eu julgo mais natural e sincero fazer como a pequena Margarida, depois da partida de Daniel: subindo todas as tardes ao outeiro silvestre onde tantas vezes ele se viera sentar tambm, sentia cerrar-se-lhe o corao de tristeza, e ... desatava a chorar. No sei que moda anda agora de se no considerar o choro como a mais eloqente expresso do pesar! Eu, por mim, dos sinais em que deposito mais f.

Era bem justificada a saudade de Margarida. A curta biografia dela a far compreender.

Guida era o fruto nico do primeiro matrimnio de seu pai, cuja morte recente acabara de a fazer rf de todo. Entregue ao domnio de um madrasta, que no desmentia pela sua parte, a fama que de ordinrio acompanha este pouco simptico nome, tivera a experimentar, nos maus tratamentos recebidos e na frieza ou declarada averso, como que lhe dispensavam os poucos cuidados de que se via objeto, toda a amargura de uma existncia sem carinhosas afeies, esse to necessrio alimento ao corao das crianas. Arredada de propsito de casa, e passando dias inteiros nos montes, a acompanhar o gado, habituou-se de pequena a vida da solido - e sabido que hbitos de melancolia se adquirem nesta escola. Foi, pouco a pouco, contraindo o carter triste e sombrio que o trao indelvel que fica de uma infncia, qual se sufocaram as naturais expanses e folguedos, em que precisa de transbordar a vida exuberante dela. Por isso se afeioara a Daniel, o nico que a viera procurar sua solido e oferecer-se como o suspirado companheiro das suas horas infantis. V-lo desaparecer agora, era assistir ao desvanecimento da mais grata das iluses, da mais intensa das suas alegrias; e a sensibilidade nascente da pobre criana recebia uma nova tmpera nesta separao dolorosa.

Captulo VII

Mas deixemos as lgrimas, e as ntimas e no ostentosas tristezas de Margarida, e vamos chamar ao primeiro plano da cena uma personagem que, contra seus direitos de primogenitura, temos at agora deixado oculta na penumbra dos bastidores.

Falamos de Pedro, o filho mais velho de Jos das Dornas.

Pedro, mais idoso que seu irmo cinco anos, teve uma infncia mais trabalhosa que a dele, mas bem menos digna de meno no romance. Votado, como j disse, aos trabalhos da lavoura, as horas que tinha de ociosidade empregava-as a dormir, sono que as fadigas do dia faziam digno de inveja.

Por certo que os leitores no quereriam que eu lhes referisse aqui as pequenas diverses daquela vida de rapaz da aldeia. Seria uma fastidiosa enumerao de jogos e freqentes lutas com os companheiros, por vrios motivos pueris. Isto quase aos dezessete anos. Enquanto que Daniel estudava o latim e se distraia j da aridez das regras da sintaxe, conversando a ss no monte com Margarida, Pedro trabalhava, dormia, ou brincava no terreiro com os rapazes de sua idade, sem sentir outras aspiraes e achando-se at pouco a vontade junto das mulheres, com quem no sabia conversar.

No eram porm definitivas estas disposies de esprito em Pedro, como se vai mostrar. Aos dezoito anos operou-se a revoluo.

Isto no quer dizer que a febre da adolescncia principiasse a fazer circular nas veias do moo lavrador esse sangue inflamado que devora como uma oculta labareda; que ele tivesse dessas tristezas sbitas, desses devaneios e no sei que fantasiar mal distintas felicidades, desses arroubamentos, desse amor ideal, sem objeto, que o mais puro e espontneo culto do corao humano. Nada disso. A natureza no afinara a alma de Pedro para as sutilssimas vibraes desta ordem. Esta quinta-essncia da sensibilidade no lhe fora concedida. A gente da aldeia no conhece os prenncios do amor, que os poetas tm apregoado no seu lirismo, a ponto de se acreditar por a na universal realidade deles; sendo foroso confessar que muita gente h, que nunca na vida sentiu os tais vagos e errticos sintomas a que me refiro, e que contudo amam ou amaram deveras. Se sero os bens ou mal organizados, no me atreverei a decidir, mas que os h, isso, sustento eu. E Pedro era dos tais.

Querem saber como principiou nele a transformao a que aludo?

Tudo veio naturalmente, sem aquela intensidade de fenmenos precursores, que, imitao dos mdicos, poderamos talvez chamar de crticos.

Um dia foi convidado para um sero. Aceitou contra vontade. L divertiu-se mais do que julgou, e voltou contente, dormindo a sono solto depois. Da por diante no faltava a nenhuma dessas assemblias campestres: fiadas, esfolhadas, espadeladas, ripadas; l ia a toda com sua viola, traste indispensvel aos dandys da localidade.

Habituou-se por l a conversar com as raparigas, e, dentro em pouco, era mestre em trocadilhos e conceitos amorosos. Aventurou-se uma vez a cantar ao desafio; a musa auxiliou-o, e dali em diante foi-lhe concedida a palma nesse gnero de certames.

Com tais predicados no lhe podiam escassear aventuras de amores; e no lhe escassearam.

Mas, em todo esse tempo, e apesar de todas as ocorrncias, continuava dormindo as suas noites placidamente e de um sono s, dando assim uma excelente lio a esses amantes wertherianos que, por as mais pequenas coisas, perdem o sono e o apetite. Ele no. Os seus arrufos, as suas contrariedades no chegavam a esses excessos. Com o amor d-se o mesmo que com o vinho - Perdoem-me as leitoras o pouco delicado da confrontao; mas bem vem que ambos eles embriagam. portanto lcito compar-los. Diz de certas pessoas - que tm o vinho alegre - de outras que - o tm triste - estpido - bulhento - conforme d a alguns a embriaguez para a hilaridade.; a outros para os sentimentalismo, a outros para a modorra ou para brigas. Pois com o amor o mesmo. Amantes h que celebram os seus amores, e at suas infelicidades amorosas sempre em estilo de anacrentica - esses tm o amor alegre; outros que, quando amam, embora sejam ardentemente correspondidos, suspiram, procuram os bosques solitrios, que enchem de lamentos, e as praias desertas, onde carpem com o alcio penas imaginrias - tm estes o amor sombrio; a outros serve-lhes o amor de pretexto para espancarem ou esfaquearem quantas pessoas imaginam que podem ser-lhes rivais ou estorvos, e, nesses acessos de fria, chegam a espancar e esfaquear o objeto amado - so os do amor bulhento e intratvel; h-os que emudecem e embasbacam diante da mulher dos seus afetos, que em tudo lhe obedecem, que a seguem como o rafeiro segue o dono, e experimentam um prazer indefinvel de adormecer-lhe aos ps - pertencem aos do amor impertinente e estpido. Poderia ir muito longe essa classificao, se fosse aqui o lugar prprio para ela.

Basta, porm, que diga que o amor de Pedro das Dornas pertencia a primeira categoria; - tinha de fato ele o amor alegre.

Pedro cantava sempre; tudo lhe servia de tema a uma srie de quadras improvisadas, de que fazia uso para alentar-se no trabalho. verdade que talvez isso fosse porque Pedro no tinha ainda encontrado o verdadeiro amor, aquele que, dizem, uma vez s na vida se experimenta. Em todo caso era o que sucedia com ele.

Mas o reitor estava sempre a pregar-lhe.

Pedro, tu andas por a muito solta! V l onde vais cair.

Sr. Padre Antnio, a gente tambm precisa de se divertir um bocado.

Pois sim, mas tudo se quer em termos e que no venham depois as lgrimas e os arrependimentos!

Eu no hei de fazer coisa que...

Sim, sim... Sabes o que eu te digo? O melhor, rapaz, procurares o que te faa arranjo, e ento que seja deveras. Casa-te e deixa-te de andar desnorteado, e nessa vida airada, que raro d para bem.

Ora, Sr. Reitor, ainda to novo, hei de j tomar canseiras de famlia?

Queira Deus que, conservando-te assim como ests, nas as acarrete mais pesadas ainda.

No obstante os conselhos do reitor, Pedro no se sentia com grande vocao matrimonial. Todas as suas afeies eram efmeras, e daquelas, em cujo futuro o prprio que as sente no acredita, mas - l vem uma vez que de vez - diz o ditado: e, com Pedro, no estava esta frmula de sabedoria popular destinada a ser desmentida.

Vejamos como foi isto. Ia Pedro nos vinte e sete anos j - era ento um rapaz vigoroso e sadio, de belas cores e msculos invejveis. Andava certa manh ocupado a cortar milho em um campo, propriedade da casa, o qual ficava situado na margem do pequeno rio, que atravessava a aldeia em continuados meandros.

Prximo havia uma ponte de pedra de dois arcos, construo j antiga, mas bem conservada ainda; o rio era nesse lugar pouco fundo, e deixava flor da gua as maiores das pedras espalhadas pelo seu leito, permitindo assim a passagem, a p enxuto, de uma para outra margem.

De joelhos sobre essas poldras, como por l lhe chamam, desde o arco at alguma extenso no sentido contrrio ao da corrente, um bando de lavadeiras molhava, batia, ensaboava, esfregava e torcia a roupa, ao som de alegres cantigas, interrompidas s vezes por estrepitosas gargalhadas; outras estendiam-na pelos coradouros vizinhos, e, algumas, mais madrugadoras, principiavam a dobrar a que o sol da manh havia j secado.

Pedro, do campo onde trabalhava, via estas raparigas, conhecidas quase todas, mas sem que o v-las o distrasse da tarefa em que andava empenhado.

medida, porm, que, prosseguindo na ceifa, se aproximava mais da beira do campo, imediato ao rio, como o adiantado do trabalho lhe concedia mais vagares, ps-se a reparar com ateno para uma das lavadeiras e a achar certo prazer na contemplao.

Era uma rapariga de cintura estreita, mos pequenas, formas arredondadas, vivacidade de lavandisca, digna efetivamente das atenes de Pedro e at de qualquer outro mais exigente que ele.

As mangas da camisa alvssima, arregaadas, deixavam ver uns braos bem modelados, nos quais se fixavam os olhos com insistncia significativa. Um largo chapu de pano abrigava-a do ardor do sol e fazia-lhe realar o rosto oval regular de maneira muito vantajosa.

De quando em quando, levantava ela a cabea e sacudia, com um movimento cheio de graa, a trana mais indomvel, que, desprendendo-se-lhe do leno escarlate que a retinha, parecia vir afagar-lhe as faces animadas, beijar-lhe o canto dos lbios, efetivamente de tentar.

Em um desses movimentos freqentes, reconheceu que era observada, se que certo instinto, peculiar das mulheres bonitas, lho no fizera j adivinhar. Sabendo-se observada, conjeturou que era admirada tambm - conjetura que por mulher alguma feita com indiferena e muito menos por Clara - era o nome da rapariga - porque diga-se o que verdade, tinha um tanto ou quanto de vaidosa.

Lisonjeada, pois, com a descoberta, sentiu Clara desejos de se fazer apreciar mais do que pelos olhos, de cujo conceito ela no j podia duvidar.

Elevou para isso a voz, e em uma toada conhecida, em uma dessas eternas e popularssimas msicas da nossa provncia, das que mais espontaneamente entoam as lavadeiras nos ribeiros e as barqueiras aos remos, cantou a seguinte quadra: rio das guas claras,

Que vais correndo pro mar; Na pausa que, segundo as exigncias da msica, se faz ao fim de dois versos, Clara torceu a roupa que estava lavando, e lanou com disfarce, os olhos para o lugar, onde Pedro a escutava; e depois concluiu:

Os tormentos que eu padeo

Ai, no os v declarar Pedro efetivamente estava recebendo com prazer o timbre agradvel daquela voz feminina; sentiu em si uma comoo estranha, visitou-a a musa rstica, e atirando-se com vontade ao trabalho, elevou tambm a voz, j to conhecida por todos os freqentadores de arraiais e esfolhadas, e respondeu

No declara quem no pode,

E no tem que declarar; Na pausa olhou tambm para o lado onde estava Clara, a qual ria ocultamente com as companheiras, que eram todas ouvidos. A luva fora levantada e principiava o certame. O momento era solene! Pedro terminou:

Pois quem como tu bela,

No pode ter que penar Um murmrio de aprovao se levantou do conclave feminino.

A reputao de Pedro no fora desmentida desta vez ainda.

Mas Clara no era menos repentista. Tinha fama de nunca haver cedido o passo nestas pugnas incruentas, mas renhidas. verdade que, no caso presente, o contendor era de respeito; ela porm aventurou-se e no fez esperar a resposta:

O que eu peno ningum sabe,

Ningum o pode saber;

Porque eu peno e no me queixo,

Em segredo sei sofrer. Novos sinais e aprovao das mulheres, os quais estimularam a emulao de Pedro. Ele respondeu:

Pois o sofrer em silncio

um dobrado sofrer;

Melhor contarmos tudo

A quem os possa entender. Esta quadra ainda produziu mais efeito, do que as precedentes - graas insinuao que nela se fazia, e tendncias que mostrava para dar novo carter ao desafio.

Clara aceitou a direo que lhe era indicada assim, e respondeu: A quem me possa entender

Tudo eu quisera contar;

Mas os amigos so raros,

No sei onde os encontrar. E logo Pedro:

Encontra-os em cada canto

Quem os quiser procurar;

E um dos mais verdadeiros

Aqui te est a escutar. Chegadas as coisas a este ponto, o combate prolongou-se por bastante tempo, sustentado de parte a parte com igual denodo e percia. No entanto, a roupa ia-se lavando e o milho achava-se quase todo ceifado. Os contendores, cada vez mais prximos, pareciam cada vez mais e corao empenhados na luta. Mas tudo tem um fim neste mundo.

Com as respectivas tarefas, terminou a justa, ficando ambos os campees vencidos um por outro, pois ambos se reconheciam j seriamente apaixonados.

Pedro passou as canas de milho para o carro. Clara meteu a roupa na canastra; e puseram-se a caminho. Encontraram-se na ponte, e travaram ento um dilogo em prosa, que foi a confirmao de quanto, em verso, tinham dito j. E da se originou uma afeio mtua, que, desde o princpio assumiu em Pedro carter mais grave e prometedor de bons resultados, do que as antecedentes.

O reitor, que andava com os olhos sempre em cima do rapaz, disse-lhe dias depois:

Lembra-te dos meus conselhos, Pedro. No vs mais longe. Fica por onde ests, que no ficas mal.

Pedro j lhe no ops os acostumados argumentos antimatrimoniais, Calou-se. que desta vez a coisa era mais sria; e demais Pedro ia nos vinte e sete, e por isso comeava a sorrir-lhe mais afavelmente o remanso do matrimnio.

Mas para justificarmos a opinio do reitor a respeito da nova inclinao de Pedro, digamos quem era Clara que assim de repente pusemos diante do leitor sem prvia apresentao.

Captulo VIII

Clara era a filha do segundo matrimnio do pai daquela mesma Margarida ou Guida, cujos amores infantis tanto haviam j dado que entender ao reitor.

O pai de Margarida fora pela primeira vez casado com uma prima, que nada mais lhe havia trazido em dote, alm de um afeio ilimitada e de um corao excelente.

Durante a vida da primeira mulher viveu sempre ele a custa de muito trabalho, pelo ofcio de carpinteiro, no podendo at mandar aprender a ler filha, nico fruto desta primeira unio, pois que de pequenina a teve de ocupar no trabalho.

A me de Margarida morreu, porm, deixando-a de idade de cinco anos. O pai, como j dissemos, deu-lhe em pouco tempo madrasta, e, na opinio do mundo, fez um timo negcio o carpinteiro.

De fato, a segunda mulher trouxe-lhe um dote avultado, e, dentro de alguns dias, viam-no abandonar a ferramenta do ofcio e entregar-se todo ao fabrico e administrao de suas novas terras, tornando-se um dos mais conceituados lavradores dos arredores. Mas a prspera fortuna do recente lavrador converteu-se em tormento e desventura para a desamparada criana.

A madrasta, em pouco tempo me de uma outra rapariga, ciosa de toda afeio e carcias paternas, que Margarida pudesse disputar a sua filha, aborrecia-se e procurava sempre pretextos para a trazer por longe.

Da, a causa daquela solido a que fomos encontrar, quando pela primeira vez nos apareceu. Margarida chorava sozinha ou baixava a cabea resignada. Tinha um carter dcil e submisso, e no se atrevia a protestar nem sequer por uma daquelas espontneas e irrefletidas revoltas, to prprias da infncia atribulada.

Com a morte do pai agravaram-se ainda mais estas tristes circunstncias. Livre da nica represso que podia coagir a completa m vontade que tinha enteada, aquela mulher de gnio violento acabou por desprez-la de todo. A cada passo lhe lanava em rosto a pobreza de condio em que nascera, clamando que o po que lhe dava a comer era um roubo que fazia a sua prpria filha.

Margarida ouvia; humilhavam-na estas contnuas e injustas recriminaes, mas at as lgrimas procurava ocultar, com medo que dessem causa a novas iras. Limitava-se a rezar muito a Nossa Senhora, para que a levasse para si.

A pobrezinha olhava para o futuro e via-o cerrado, sem um nico raio de luz em que fitasse os olhos, para atravessar com mais nimo as trevas completas do presente.

Uma s compensao experimentava a triste e desarrimada criana, em troca de tantas dores e constante suplcio: - era a amizade de sua irm.

Clara no herdara da me durezas de corao nem violncias de gnio. Afvel no meio de suas alegrias de infncia, compadecia-se j pelo que via sofrer a irm, e admirando aquela resignao de mrtir, que ela bem se conhecia incapaz de mostrar em ocasio alguma da vida, principiou a olhar para Margarida com certo respeito, que, pouco a pouco, degenerou em prestgio e lhe cultivou no corao uma verberao sem limites.

Muitas vezes as rudezas da me para com Margarida faziam-na chorar tambm, e, s ocultas, vinha pedir perdo a esta de um tratamento, de que ela bem percebia ser a causa involuntria.

Margarida, da sua parte, sentia-se grata ao generoso afeto de Clara, e em pouco tempo ficou sendo esse lao o nico pelo qual ela parecia prender-se ainda ao mundo, que to despovoado destas sedues lhe andara sempre.

Pequenos episdios, na aparncia insignificantes, corroboraram em uma e outra estes sentimentos e influram na sorte futura das duas irms, que, ainda crianas, se diziam j amigas inseparveis.

Em uma noite de inverno, a me de Clara deitara-se s nove horas com a filha; e por um requinte de crueldade estpida obrigara Margarida a conservar-se a p serandando, at concluir certa tarefa que lhe marcara; e ao deix-la s, dirigiu-lhe estas palavras cheias de humilhao para a pobre rapariga:

Minha rica, quem vier a este mundo, sem meios de levar melhor a vida, no deve perder o costume de trabalhar, nem ganhar outros, com que, ao depois, no possa. Fica a p e tem-me essa obra acabada.

Margarida no tentou uma s queixa ou splica, em seu favor. Calou e obedeceu.

Era, como disse, no inverno; fazia um frio excessivo. A lareira estava apagada j; da parede defumada pendia uma candeia, cuja luz bruxuleante era a nica a iluminar o recinto. O vento assobiava nas inmeras fendas da porta da cozinha e entrava em correntes impetuosas pelo tubo da chamin, indo inteiriar os membros regelados da desditosa criana, que, s a custo podia j suster a roca e torcer o fio, para terminar o trabalho. O silncio da noite era interrompido por mil rudos sinistros, prprios para amedrontar as imaginaes supersticiosas como sempre, mais ou menos, so as da gente de campo.

Margarida, naquele momento, sentiu mais amarga que nunca, a sua orfandade e o seu desamparo. Chorou, chorou a ponto de se sufocar, e pediu Virgem que se compadecesse dela.

Lembrou-se ento de quando a mandavam sozinha para o monte, e daquelas raras entreabertas de felicidade que lhe fizera sentir a companhia do pequeno Daniel.

As saudades desses dias nunca mais a deixaram. Com ela vivia sempre, com elas se achava s, quando, olhando para o passado, lhe pedia uma recordao de prazer, em paga de tanta tristeza que, no presente, lhe oferecia a vida, de tantas sombras, com que lhe vinha o futuro.

Nessa noite pensou tambm em Daniel; pensado nele, e naqueles breves momentos que vivera, esquecida do infortnio, na solido dos montes, chegou a iludir-se, a imaginar-se transportada l; e esqueceu o frio e o medonho da noite - que um outro lhos fizera desvanecer a vara mgica da fantasia; - e insensivelmente parou-lhe a mo que fiava, descaram-lhe os braos, vergou a cabea melanclica, e o pensamento perdeu-se em longa e abstrata contemplao que, sem transio aprecivel, terminou em um sono profundo. Encontraram-se e confundiram-se os ltimos devaneios da viglia, com os primeiros sonhos em que flutuavam ridentes as mesmas imagens, fantasiadas ou recordadas naquela.

Clara no pudera, porm, adormecer com a idia do sacrifcio imposta irm. Do leito, onde se deitara com a me, ouvia o som do soluar de Margarida, e isto era um martrio para ela. A boa rapariga pedia a Deus que olhasse por a pobre desvalida da irm, que j no tinha nenhum amparo, e, rezando assim, chorava ainda mais do que ela. Cedo, porm, um alto e pausado respirar deu-lhe a certeza de que a me havia j cado no sono.

Clara no hesitou mais.

Com todas as precaues possveis, deixou-se escorregar de mansinho entre o leito e a parede, colocou sobre os ombros uma capa de baeta que encontrou mo, e, com muita cautela, passou-se para a cozinha, onde Margarida j tinha adormecido. Clara no a acordou. Depois de a agasalhar com uma manta do leito, agachou-se ao lado dela e tirando-lhe sutilmente a roca da cinta, ps-se por sua vez a trabalhar.

Eram duas horas da noite e a tarefa estava terminada. Margarida dormia... sonhava ainda.

Neste instante, um som, que julgou partir da alcova, fez recear a Clara que a me tivesse acordado; por isso, mal teve tempo de correr a meter-se no leito, procurando no excitar a desconfiana materna, e no pde chamar a irm para a mandar deitar.

Passados alguns momentos, Margarida despertou. Ao lembrar-lhe que adormecera com o trabalho mal principiado ainda, apertou-se-lhe o corao, e a pobre criana juntou as mos de desesperada. Mas que espanto ao ver espiada a roca e fiadas as estrigas que lhe haviam dado por tarefa!

A sua primeira idia foi que tinha sido aquilo um milagre da Senhora, a quem se havia encomendado e cujo auxlio fervorosamente suplicara. Tinham-lhe contado a lenda daquela freira que, abandonado um dia a ermida da Virgem, de quem era devota, cega por uma paixo mundana, voltara mais tarde s portas do claustro, coberta de arrependimento e de vergonha: e, quando esperava recriminaes e oprbrios, soube que ningum tinha lhe dado pela falta, porque a Senhora se compadecera dela, e revestindo a sua imagem, viera todos os dias fazer o servio da clausura.

Margarida acreditou em outro milagre desse gnero e com estas idias se foi deitar, rendendo expansivas aes de graas Virgem, por to miraculosa intercesso.

Mas, pouco a pouco, a verdade foi lhe aparecendo mais distinta, e pela madrugada acabaram de confirm-la alguns vestgios evidentes de Clara ter estado junto de si nessa noite, e enquanto ela dormia; denunciou-a um leno que ela deixara cair na pressa com que voltara alcova.

Nessa manh, pois, Margarida aproximou-se da irm, e beijou-a com efuso.

Obrigada, Clarinha, Deus te h de recompensar essa bondade.

Se achas que mereo alguma recompensa, por que ma no ds tu mesma Guida?

Eu, meu corao? Que recompensa podes esperar de uma pobre?

Que no queiras muito mal a minha me por tanto que te mortifica, e que... me tenhas um pouco de amizade.

Querer mal a tua me, doida! E posso eu querer mal a quem me d o po, de que me sustento, o teto e os vestidos que me cobrem? Que eu nada disto tenho, Clarinha.

No me digas isso.

A minha amizade, pedes-me tu! E um pouco de amizade disseste! E, a no ser a ti, a quem queres que eu v dar toda esta que Deus me ps no corao para dar? Da tua me recebo eu a esmola do po e do abrigo, agradeo-lha e rogo a Deus por ela; a ti devo-te mais; devo-te a esmola da consolao e do conforto; por isso te estremeo e quero, Clarinha. E tu duvida-lo?

Esmola! esmola! Que palavra! De quem recebes tu esmola em casa de teu pai, Guida? - perguntou Clara, com uma viva expresso de nobre orgulho que lhe estava no carter.

Margarida sorriu melancolicamente a esta exaltao da sua irm e respondeu:

Esta casa no de meu pai, de minha ...

Ia dizer madrasta, mas conteve-se, receando dar palavra uma entonao menos afetuosa.

Clara saltou-lhe ao pescoo, e, por um daqueles impulsos irresistveis da sua ndole generosa e expansiva, exclamou, beijando-a nas faces.

Guida, Guida, esta casa ainda h de ser minha, e ento veremos se me fazes a desfeita de lhe no chamares de tua tambm.

Doutra vez tinha ido Margarida vender fruta ao mercado. Com inacreditvel exigncia havia-lhe a madrasta fixado, de antemo, qual seria o preo da venda, no lhe permitindo baix-lo, e obrigando a pequena, ao mesmo tempo, a no voltar para a casa sem a ter realizado.

Os maus tratos e speras repreenses esperavam infalivelmente Margarida naquele dia, visto a exorbitncia dos preos estabelecidos e uma to grande afluncia de fruta na praa, que barateara o gnero. A rapariga chorava e lamentava-se, enquanto os compradores sorriam ao ouvir o preo excessivo que ela pedia pela fruta.

Nisto apareceu Clara, que, por acaso, atravessava a feira naquele momento. Viu a irm assim aflita, e aproximou-se dela.

Que isso, Guida? Tu choraste?

E admiras-te ainda de me veres choras, Clarinha?

Mas... dize-me, por que foi isto?

Margarida contou-lhe tudo.

Clara ficou a olhar para o cho pensativa.

E de tanta gente rica que h por a, ningum ter alma de pagar mais cara alguns vintns esta fruta, para fazer bem a uma pobre rapariga.

O acaso fez com que descobrisse um velho, que, naquele momento, atravessava o lugar, fazendo proviso de fruta, e parecendo no regatear muito.

Ai - disse Clara, ao encarar com ele - o meu padrinho, o Sr. Cnego Arouca! Queres tu ver, Guida, como eu te vendo a fruta?

Que vais fazer, Clarinha?

Escuta.

E, imediatamente, arrebatando a canastra das mos da irm, Clara correu a colocar-se no caminho do velho cnego, quando este prosseguia no seu feirado.

Muito bons-dias, meu padrinho, deite-me as suas bnos.

Tu por aqui, Clarita? Deus te abenoe, rapariga. Ento que fazes tu?

Sou muito pouco afortunada, meu padrinho. Sabe?

Sim, pequena? Ento por qu? No encontraste noivo ainda?

Ora! est a brincar. No isso.

Ento?

Trago feira uma canastra cheia de frutas, e ainda no encontrei compradores.

E o defeito da fruta, ou de quem a vende?

H de ser de quem a vende que l a fruta... essa boa .

Boa, sim; mas cara...

Ora essa! meu padrinho. Ns c no somos mais do que as outras. Vendemos pelo mesmo preo que elas vendem.

Ora deixa c ver a fruta. Ento quanto queres tu por isso? Um dinheiro?

Este exame era simplesmente por formalidade, pois o cnego tinha resolvido, de si para si, ser o feirante de toda a fruta, embora fosse dura como pedra, e cara como o aafro.

Se for para o meu padrinho, o que quiser - respondeu Clara.

Est bom. No m de todo. Passa-me ai para a canastra do criado, enquanto eu fao as contas.

E, ao passo que a filhada cumpria a ordem recebida, ele mexia, e remexia nos bolsos do colete, donde tirou no sei que moeda em ouro, que quadruplicava o preo da fruta, e passou-a para as mos de Clara, dizendo:

A tens; o que crescer para um leno.

Ento muito obrigada, meu padrinho. E deite-me suas bnos.

Vai com Deus, rapariga, e faz visitas tua gente - respondeu o cnego, dando-lhe a mo a beijar.

Clara voltou a correr para junto de Margarida, bradando-lhe:

V, v, no te aflijas. Fruta vendida, e uns crscimos para tremoos.

Margarida agradeceu-lhe com um olhar, orvalhado de lgrimas de gratido.

Assim continuou este viver por muitos anos mais, at que a me de Clara adoeceu. Durante a molstia, foi Margarida desvelada e incansvel enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e speros, expresses inequvocas de averso que nunca deixava de sentir por ela. A herica rapariga no afrouxava por isso na afetuosa caridade com que a tratava.

A doena agravou-se, e a morte foi declarada inevitvel.

Neste momento solene, como que se abrandou o corao e falou a conscincia da moribunda, mostrando-lhe a injustia do seu procedimento para com Margarida.

hora da morte chamou-a junto de si, e, apertando-lhe as mos, disse-lhe entre soluos:

Guida - pela primeira vez lhe deu este nome afetuoso - perdoa-me! Deus alumiou-me o esprito. S agora conheo a minha maldade e as tuas virtudes. Perdoa-me minha filha, e s generosa at o fim,. Clara fica s, ainda muito criana. Lembra-te que ela tua irm, aconselha-a, e estima-a, olha-me por ela. Perdoa-lhe o ser filha de tua madrasta.

Foram as derradeiras palavras que disse.

Margarida caiu sufocada de choro, junto do leito da morta. No lhe restava no corao a menor sombra de ressentimento contra aquela que a fizera to infeliz. Eram sinceras, como poucas, as lgrimas dessa rf.

Passado tempo, sentiu que um brao a levantava. Voltou-se: era o reitor, que olhava para ela comovido.

Muito bem, Guida, muito bem! - exclamou o velho com entusiasmo - Essas lgrimas so generosas, so verdadeiras jias da tua boa alma. Elas devem ser de grande alvio para aquela cujo maior pecado neste mundo foi o muito que te fez padecer.

E da por diante ficou o reitor tendo por sbito conceito a Margarida.

Captulo IX

Depois da morte da madrasta, a sorte de Margarida tomou uma feio mais favorvel.

Vivendo na companhia da irm, nunca mais teve que suportar aquelas humilhaes continuadas que a faziam corar.

Antes, no modo porque era tratada em casa, parecia ser ela a senhora de tudo, e Clara a que recebia o benefcio; contra estas aparncias s a sua modstia protestava.

Clara possua um corao excelente, mas faltava-lhe cabea para superintender nos negcios da casa; por isso pedira a Margarida que os gerisse ela e lhe deixasse ir gozando a apetecida liberdade dos seus dezoitos anos.

O proco, por tutor das duas rfs, sancionou e dirigiu com seus conselhos esta disposio de coisas.

Mas um tal sistema de viver no podia bastar por muito tempo a Margarida. Havia no carter desta rapariga um fundo de dignidade pessoal que lhe no deixava aceitar a vida plcida, que cordialmente a irm lhe talhara.

Habituara-se muito cedo ao trabalho e como ele contava.

Se o desprezo agora - dizia ela a si mesma, pensando nisto, - quem sabe se um dia, ao procur-lo, ele fugir?

Sentia-se jovem, com foras e coragem; envergonhava-se da ociosidade. Entre os projetos, que formou ento, um lhe sorriu sempre mais que todos.

Margarida tinha uma educao pouco vulgar para a sua condio. Vrias circunstncias haviam gradualmente concorrido para lhe aperfeioar. Daniel fora, como sabemos, o seu primeiro mestre, e quando outra razo no houvesse, as saudades que a vista e a leitura dos livros ainda lhe causavam, lembrando-lhe aquele tempo, lev-la-iam a procur-los com prazer. Seguira-se a Daniel o reitor, conforme ao que prometera ao discpulo. Vendo o padre a inclinao da sua pupila para a leitura, fazia-lhe, de quando em quando, alguns presentes de livros, depois de os passar pela crtica dos seus rgidos princpios morais, e julg-los salutares. Margarida lia-os com ardor, e, pouco a pouco, costumou-se a l-los com reflexo tambm. No sendo muito abundantes as bibliotecas da terra, era obrigada a reler, mais que uma vez, os mesmos livros - o que sempre uma vantagem para a instruo colhida neles.

Alm do interesse crescente que ia encontrando na leitura, um motivo mais oculto lhe alimentava esse ardor - motivo que ele prpria quase ignorava, ou pelo menos no dizia a si. - Como que desta se forma se aproximava de Daniel. Das duas inteligncias de criana, que se tinham visto a par, como duas aves que brincam na relva, uma levantara vo e subira; que admirava que a outra, saudosa, ensaiasse as foras para a acompanhar? Para, ao menos, a no perder de vista de todo? H destes motivos ocultos das nossas aes, que passam desconhecidos.

O que certo que a sede de saber devorava Margarida. O hbito da meditao, que adquirira, permitia sua inteligncia tirar grandes riquezas da pequena mina em que trabalhava.

Um acontecimento favoreceu ainda estas tendncias.

Um dia, acolheu-se aldeia, a viver vida e privaes de misria, um destes desgraados, a quem as ondas do mundo arrojam, nufragos e quebrantados, praia. Era um homem, que, saindo em criana ainda, daquela mesma aldeia, entrara, sob os sorrisos da sorte, na vida das cidades. A instruo, a riqueza, as honras, tudo o rodeara do prestgio que parece assegurar a felicidade. Se ele a sentiu ento, no o sei eu; - um dia, porm, como o J da Escritura, viu as mo da desgraa baixar sobre sua cabea, priv-lo das riquezas, das dignidades e da famlia, e deix-lo s; s ao declinar a vida, s quando j no h no corao fogo para alimentar esperanas, vigor no brao para arrotear caminhos novos!

Este homem sacudiu a poeira dos sapatos porta das cidades, onde sonhara meio sculo, e veio, tendo por nico arrimo a conscincia, procurar o teto que, nu, o abrigara na infncia e quase o recebia na velhice como de l sara, - teto que nem j era seu.

uma histria vulgar a deste homem. Insistir nela seria contar ao leitor coisas sabidas.

A quem reservar a sorte o privilgio de ignorar uma histria assim?

Era, pois, um desgraado. Isto bastava para que, ao seu lado, visse, olhando-o compadecido, o rosto de Margarida e, animando-o, os sorrisos de Clara.

O infortnio chamou para junto do leito da misria deste velho desanimado, estas duas mulheres. Ao lado de todas as cruzes aparecem desses vultos compassivos.

Com que havia de recompensar a devoo herica de duas juventudes velhice empobrecida, quem nada tinha a dar?

No lhe exigiam elas a recompensa, certo; mas pedia-lha a alma.

Dos amigos que tivera, s lhe restavam quatro; e esses lhe valeram. Eram quatro livros...

Talvez os leitores j estivessem imaginado que este homem trouxera ainda quatro amigos para a diversidade, sem serem livros. Custa-me desengan-los; mas no trouxe. Foi nestes livros que Margarida encontrou novos alimentos para a leitura. No sei bem ao certo quais eram eles.

Estas leituras, dirigidas agora pela crtica esclarecida e o so juzo do pobre velho, valeram imenso a Margarida, que, dentro em pouco chegou a uma cultura intelectual, a que nunca tinha aspirado.

Por isso, na ocasio de formar projetos, para se dignificar aos prprios olhos pelo trabalho, sorria-lhe principalmente a carreira do ensino. Ensinar era aprender, ensinar era amar; e estas duas necessidades daquele esprito generosos, aprender e amar, se satisfaziam assim.

Cultivar inteligncias e cultivar afeies!... Que futuro! A alma no ntimo apaixonada, de Margarida, exultava s com a idia.

Restava obter o consentimento de Clara, e que ttica nos seria necessria para isso?

Clarinha - disse-lhe pois um dia Margarida - vou pedir-te um favor!

possvel! - exclamou Clara, sinceramente admirada. - esta a primeira vez que me pedes um favor, Guida. repara bem.

Tanto mais razo para mo concederes, filha; no verdade?

Assim me pedisses mil, Guida, para todos te conceder tambm. Ora dize.

Sabes que eu no me dou com esta vida de senhora, em que tu me tens. Que queres, minha filha? Isto de trabalhar hbito que se ganha de pequena e no se perde mais...

Mas, ento - disse Clara, pondo-se sria como se suspeitasse vagamente o que a irm lhe ia dizer.

Queria que me deixasses trabalhar.

Mas no trabalhas tu tanto, mais do que eu, Guida? Podia eu, sem ti, olhar por estas coisas de casa, de que no entendo, de que no quero entender? S se queres vir a lavar ao ribeiro comigo. Ora! Guida, essas mos delgadas j no foram feitas para isso.

O que dizes que eu tenho que fazer, Clarinha, no trabalho que ocupa muitas horas, como sabes. Resta-me ainda tanto tempo!... Olha que os dias so muito grandes.

Mas que queres tu afinal?

Sabes?... uma coisa que eu desejava... uma coisa que me faria alegre at!... no desejas tu ver-me andar alegre? no me ralhas tu pelas minhas tristezas?

Mas vamos ver o que tu querias; o que que te daria essas alegrias grandes? Alguma loucura grande tambm?

No , no. Olha... se eu tivesse umas poucas crianas para ensinar...

Clara no a deixou continuar.

Tu, tu, minha irm!... Ensinares tu as filhas dos outros?! Viveres de educar filhos alheios!

Oh! orgulhosa! Ento isso alguma vergonha? Anda, l, que o Sr. Reitor te ouvia...

Mas que se diria de mim, Guida? Sempre tem coisas! Repara