jean jacques rousseau

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ROUSSEAU

JEAN-JACQUES

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Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva

Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

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ROUSSEAUMichel SotardTraduo e organizao Jos Eustquio Romo e Verone Lane

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ISBN 978-85-7019-544-9 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Reviso tcnica Clio da Cunha, Jeanne Sawaya, Larissa Vieira Leite e Mnica Salmito Noleto Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Sotard, Michel. Jean-Jacques Rousseau / Michel Sotard; traduo: Verone Lane Rodrigues Doliveira. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 100 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-544-9 1. Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778. 2. Educao Pensadores Histria. I. Ttulo. CDU 37

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SUMRIO

Apresentao, por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Michel Sotard, 11 A filosofia da educao, 12 Os mal-entendidos, 18 Uma posteridade contraditria, 24 Textos selecionados, 33 Educao natural, indireta ou negativa, 34 Puericentrismo, 54 Paradoxo, 55 Bom selvagem, 56 Jusnaturalismo, 57 Contratualismo, 57 Vontade Geral, 58 Eurocentrismo, 59 Sobre Rosseau, 61 Importncia, educao natural, indireta ou negativa, puericentrismo, paradoxo e contratualismo Cronologia, 83

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Bibliografia, 87 Obras de Jean-Jacques Rousseau, 87 Obras sobre Jean-Jacques Rousseau, 88 Obras sobre Jean-Jacques Rousseau em portugus, 88 Outras obras e refncias sobre Jean-Jacques Rousseau, 89

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APRESENTAO

O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educadores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colocar disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos planos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao instituiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a coleo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos maiores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto.7

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Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favorece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a prtica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coincide com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de esperanas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulgao do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Universidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passado, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possibilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas educacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprovao, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetizadas pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

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A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume.

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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanismo de estado para a implementao do Plano Nacional da Educao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educacional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos problemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado.

Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao

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JEAN-JACQUES ROUSSEAU 1 (1712-1778)Michel Sotard2

Jean-Jacques Rousseau, que preferiu assumir o risco de se apresentar como um homem de paradoxos em lugar de permanecer como um homem de pr-conceitos prope ao historiador do pensamento educacional um paradoxo fundamental: a obra cuja influncia foi, sem contestao, a mais profunda e a mais durvel no desenvolvimento do movimento pedaggico, a que, segundo a frmula de Pestalozzi, marcou o centro do movimento do antigo e do novo mundo em matria de educao, se fundamenta em um total desprezo da prtica, descartada pela pena de Rousseau no prefcio do livro LEmile ou de lducation [Emlio ou da educao], ridicularizada em um momento em que um entusiasmado pai apresentava o filho educado segundo os novos princpios, mas, profundamente contraditrio, pois abandonara seus

1 Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle dducation compare. Paris, Unesco: Escritrio Internacional de Educao, n. 3-4, pp. 443-456, 1994. 2 Michel Sotard (Frana) doutor em letras e cincias humanas, professor de Histria do Pensamento Pedaggico e de Filosofia da Educao no Instituto de Cincias da Educao, Universidade Catlica do Oeste, Angers (Frana) e diretor de pesquisa na Universidade Lumire, Lyon-2. Autor de Pestalozzi ou la naissance dun ducateur (1981), de Pestalozzi (1987), de Rousseau (1988) e de Frbel (1990). Colaborou em vrias obras e dicionrios e autor de numerosos artigos, escritos para revistas francesas, alems, suas e italianas sobre a histria da pedagogia e sobre os problemas atuais da educao. Professor visitante das universidades de Wurzburgo (Alemanha) e de Pdua (Itlia). Membro do conselho da Associao Mundial de Cincias da Educao (AMSE) e do Comit Executivo do Instituto para a Formao Europeia (ISFE), Secretrio-Geral da Associao Francesa de Educao Comparada (AFEC).

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prprios filhos. Rousseau no foi um bom preceptor, longe disso. O enigma permanece: por que prticos como Pestalozzi, Frbel, Makarenko, Dewey, Freinet todos engajados em experincias histricas jamais puderam se afastar de Emlio, essa obra de pura utopia, e a ela sempre retornaram regularmente, como o sequioso volta a uma fonte de guas lmpidas? A ele retornaram em busca de consolo a seus prprios fracassos, ou a obra do genebrino apresentava-lhes qualquer coisa de particular, que no cessava de inspir-los e cujos efeitos no parecem ainda estar esgotados?A filosofia da educao

A questo frequentemente posta: Onde reside a originalidade do enfoque rousseauniano em matria de educao?. As respostas so numerosas e necessrio submet-las ao crivo da crtica. Rousseau, iniciador de uma revoluo coperniciana, situou a criana no centro do processo educacional. O livro Emlio, com certeza, contribuiu fortemente, mas necessrio observar que aps um longo perodo de indiferena, o interesse pela criana era prprio da poca e at tendia a converter-se em modismo: moralistas, autoridades administrativas e mdicos redobravam os argumentos para incitar as mes a se ocuparem com sua prole, comeando pelo aleitamento. Rousseau participou do desenvolvimento deste sentimento pela infncia, em torno do qual se constituiu a famlia nuclear. Entretanto, ele reagiu tambm contra a complacncia desmedida do adulto em relao ao que tendia a se tornar o centro do mundo: se, por um lado, necessrio rejeitar a imagem da criana, fruto do pecado, por outro, no se pode divinizar seus desejos. Na poca em que Rousseau escreveu Emlio, a literatura sobre educao j era abundante. So incontveis os livros, captulos e artigos que lhe eram consagrados. Todo mundo opinava sobre o tema: filsofos como Helvtius, para quem tudo depende da educao, trate-se do homem ou do Estado (ver De lesprit [Do Esprito]

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publicada em 1758); sbios e utopistas como o abade de Saint-Pierre, autor de Projet pour perfectionner lducation [Projeto para aperfeioar a educao]; at os poetas colocavam em trovas, as mximas da educao. A mesma poca, v florescer uma infinidade de manuais que se prope a iniciar a criana, desde a mais tenra idade, no mtodo experimental. Em 1732, por exemplo, foi inventado o escritrio tipogrfico, que se propunha a ensinar a leitura s crianas por meio de tipos mveis que elas mesmas dispunham em compartimentos apropriados. La Chalotais se apressou a publicar seu Essai dducation nationale [Ensaio de educao nacional], no qual observa que, neste domnio, se produz uma espcie de fermentao no pblico europeu. Muitos tm se esforado para demonstrar o que Rousseau deve tanto a seus grandes antecessores como a seus brilhantes contemporneos: Montaigne, citado doze vezes no Emlio; Locke, a quem critica, mas acabando por tornar evidente o que lhe deve; Fnelon, Condillac... No difcil encontrar nesses autores consagrados, assim como em outros que a histria no distinguiu como o sbio Fleury, afortunado autor de um Trait du choix et de la mthode des tudes [Tratado da escolha e do mtodo de estudos], publicado em 1686 e reeditado em 1753 e 1759; o sbio Rollin e seu Trait des tudes [Tratado dos estudos] , um grande nmero de ideias que anunciavam as de Rousseau. No entanto, parece indiscutvel que o autor do Contrato social e Emlio est a salvo de qualquer ecletismo. De fato, seus emprstimos so refundidos no interior de um pensamento que se apresenta sistemtico e inovador: No sobre as ideias dos outros que escrevo, observa ele no prefcio de Emlio, sobre as minhas. No vejo da mesma forma que os demais; faz tempo que me reprovam (...) O gnio de Rousseau, que consagra a originalidade radical de sua empreitada, o de ter pensado a educao como uma nova forma de um mundo engajado, contraditoriamente, em um processo histrico de deslocamento. Enquanto seus contemporneos

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mais ativos, tambm tocados pela graa educacional, ocupamse de fabricar a educao; e os mestres do pensamento se esforavam, por meio da educao, de remodelar o homem, tornando-o seno um humanista, um bom cristo, um cavalheiro, um bom cidado, Rousseau deixa de lado o conjunto das tcnicas, rompendo com todos os modelos e proclamando que a criana no tem que se tornar outra coisa seno naquilo que ela deve ser; Viver o ofcio que eu quero lhe ensinar. Saindo de minhas mos ela no ser, reconheo, nem magistrado, nem soldado, nem sacerdote; antes de tudo ela ser um homem3. O grande problema que o homem do humanismo, aquele que vivia em harmonia com a natureza e com seus semelhantes, no seio de instituies cuja tutela no discutia, sobreviveu. Agora a necessidade se libertou da natureza, engendrando no homem uma paixo de possuir e um esprito de ambio que alimenta, por sua vez, a corrida ao poder. Transbordando os limites da necessidade natural, o interesse prolifera e contamina rapidamente todo o tecido social. As instituies que tinham tradicionalmente a tarefa de cont-lo se apresentam, contudo, como os instrumentos de uma vasta manipulao, tendendo a manter o poder dos mais fortes. Esse saber do qual o homem espera a salvao, desde Plato, um engano: as cincias nasceram do desejo de se proteger, as artes do af de brilhar, a filosofia da vontade de dominar. A requisitria pronunciada nos Discours (Discursos) de 1750 e 1755 impede, radicalmente, toda a tentativa a se definir, a priori, uma essncia de homem, dado que, manifestamente, toda definio se situa no nvel da representao social e participa da corrupo pelo interesse que caracteriza nossas sociedades histricas. Certamente, o Contrato social permite sonhar com um mundo em que os conflitos de interesses ficariam apaziguados, naquilo3 ROUSSEAU, J. -J. Oeuvres compltes, tomo 4. Paris: Gallimard, 1969. (Bibliothque de la Pliade). p. 252.

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que a vontade geral seria a expresso adequada da vontade de cada um. Mas que outra coisa se pode fazer alm de se sonhar em um mundo condenado insatisfao? Ai de quem se atrever a dar a esse sonho uma consistncia histrica! Ele se exporia a ver os interesses artificialmente contidos pela instaurao autoritria de uma sociedade da natureza neste mundo civilizado, instalando, com violncia, uma estrutura muito maior e que lhe seria completamente estranha. A sociedade vai deriva: Aproximamo-nos do estado de crise e do sculo das revolues. Quem pode vos dizer o que ser de vs mesmos? Isto no faz seno reforar a urgncia da exortao: Adaptar a educao do homem ao homem e, no, ao que ele no . No vedes que se se tratar de o formar exclusivamente para um Estado, o tornareis intil para todos os demais4? necessrio, ento, deixar-se levar pelo movimento geral e aceitar o fato consumado do deslocamento social, jogando sem escrpulos o jogo de interesses e da artificialidade mundana? Rousseau pode, em sua existncia errante e parasitria, passar por um pensador irnico e ctico. Mas isso supe desconhecer sua vontade de servir ao homem, seu sentimento calvinista do dever ser da lei, mesmo que ela seja esvaziada de todo contedo histrico, e o papel que ele atribui sociedade para o desenvolvimento das qualidades humanas; supe, tambm, esquecer que Rousseau sempre manifestou repulsa anarquia e amor quase obsessivo pela ordem: vestimenta sempre cuidada, interior impecvel, caligrafia aplicada, discursos meticulosamente ordenados... Seu pensamento, sistemtico em sua forma, est em constante busca da unidade. Sendo o mundo como , o que fazer, ento? Rousseau nos oferece, finalmente, a resposta nessa obra que, a princpio, parecia ser mera reunio de algumas reflexes, mas que logo adquiriria as dimenses de verdadeiro tratado sobre a bondade original do homem, intitulada Emlio, e que ele considera no s como o melhor de seus escritos, como tambm o mais importante, permitindo-lhe pretender o reconhecimento dos homens e de Deus: a partir de ento, tratase de educar. A educao ser a arca que permitir a salvao da huma4

Idem, ibidem, p. 468.

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nidade social do dilvio. Quando o homem j no pode desenvolver suas potencialidades, abandonando-se ao puro movimento da natureza, quando corre o risco de sofrer uma outra alienao, convertendo-se em uma unidade fracionada que apenas responde ao denominador e cujo valor consiste em sua relao com o todo que o corpo social, no existe seno uma forma de ao especfica, a que permita o encontro do desejo (natural) e da lei (estabelecida), de tal maneira que o Homo educandus estabelea sua prpria lei, que se torne autnomo, no sentido etimolgico do termo.

Em outras palavras, a ideia de educao, longe de dar lugar a uma nova ideologia, no cessa de arraigar-se na condio contraditria do homem. A obra de Rousseau e, sobretudo Emlio, efetivamente um ponto de encontro das grandes correntes e contra-correntes da poca, as mesmas que, de fato, no haviam cessado de trabalhar em profundidade o pensamento ocidental, desde suas origens platnico-crists. Necessidade e liberdade, corao e razo, indivduo e Estado, conhecimento e experincia: cada termo destas antinomias encontra alimento no Emlio, publicado em 1762. Rousseau continua sendo um produto genuno do Sculo das Luzes, mas seu racionalismo coabita abertamente, nele, com seu adversrio de sempre aquele contra o qual Plato e Descartes erigiram seus sistemas de pensamento: o eu sensvel, que afirma sua prpria verdade na autenticidade de uma existncia coerente consigo mesma. Assim, para Rousseau, a educao ser a arte de gerir os contrrios, na perspectiva do desenvolvimento da liberdade autnoma. Consideremos, por exemplo, o problema da liberdade e da autoridade. Rousseau critica de incio toda a forma de educao fundada sobre o princpio de uma autoridade que submeta a vontade da criana de seu mestre. H que deixar, ento, a criana entregue sua prpria vontade? Sendo o mundo o que , seria um erro fatal e que comprometeria o seu desenvolvimento: se o eu sensvel quiser ascender conscincia autnoma, tem que se chocar com a realidade e seria pura iluso criar ao redor da criana uma

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forma de paraso, forosamente artificial, no qual o desejo dela se realizaria plenamente: parecendo seguir a natureza, ela no seguiria seno a opinio dos outros. Como demonstra bem o desenvolvimento do heri epnimo Emlio, preciso, ao contrrio, conquistar a prpria liberdade e autonomia pessoal alm do encontro conflituoso com a dura realidade do mundo, com a realidade do outro, com a da sociedade. , ento, que o educador recupera um papel decisivo, favorecendo a experincia formadora, acompanhando a criana ao longo de todo o seu itinerrio, pleno de provas e de emboscadas, enfim e sobretudo, estimulando-o no momento em que se deve esforar-se por reconstituir-se, por meio da ruptura de seu desejo. A arte do pedagogo consiste em atuar de maneira tal que sua vontade no substitua jamais a vontade da criana. Consideremos, em seguida, o encontro entre o conhecimento e experincia. Trata-se de afrontar, tambm aqui, uma situao contraditria. Se bem que certo que o conhecimento mata a experincia naquilo que ela tem de espontneo e de imprevisvel, no menos verdadeiro que ela seja vital para o homem comprometido com este mundo de interesses e clculos. por isto que o ensino essencial. Mas, a pura e simples transmisso do saber que se necessita para viver em sociedade pode originar uma alienao no indivduo; se a cincia liberta o homem, ela pode, tambm, encerr-lo em um novo tipo de conformismo intelectual. necessrio, pois, organizar a transmisso do conhecimento de maneira que a prpria criana se encarregue desta tarefa. nessa etapa em que se impe uma pedagogia que no seja um simples processo de adaptao da mensagem a um receptor, mas que se baseie no mesmo sentido do saber relacionado ao interesse de cada um. Desse modo, a sociedade necessita, de agora em diante, criar em seu seio um ambiente pedaggico que favorea, por meio de uma ao adequada aos fins perseguidos, o acesso de cada um liberdade autnoma. Pensamos na escola, mas o propsito de Rousseau

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vai mais alm dos limites da instituio, seja ela escolar ou familiar e, de uma maneira geral, dos limites da instituio social, para buscar uma forma de ao que permita ao homem fazer-se livre, apesar da mutilao a que a sociedade submete o seu eu sensvel.Os mal-entendidos

Pode-se compreender que este tipo de argumentao, to habilmente matizada e to sutilmente dialtica, tenha dado lugar a muitos mal-entendidos. H, primeiro, aqueles que se obstinam em buscar no Emlio um tratado prtico de educao. Ora, trata-se, ao contrrio, de uma fico romanesca em que a reflexo pedaggica apresentada com um heri, Emlio, de perfil muito impreciso, e um preceptor sem nome, nem biografia, que vivem uma srie de experincias que parecem fabricadas e inventadas para ilustrar um enfoque particular. No terceiro Dilogo, em que se coloca como juiz de Jean-Jacques, Rousseau acaba por convencer-se que seu Emlio, livro to lido, to pouco compreendido e tal mal avaliado, no , afinal de contas, seno um tratado sobre a bondade original do homem, destinado a mostrar como o erro e o vcio, estranhos sua constituio, a se introduzem, desde o exterior, alterando-a insensivelmente (...)5. Assim como os dois Discursos haviam operado uma desconstruo completa do universo humano, a obra de Emlio encarregar-se- de reconstru-lo, por meio de uma metafsica da educao, que trata, exclusivamente, de formular princpios, pouco importando-se com sua aplicao, como afirma no prefcio. at mesmo temerria uma escrupulosa aplicao literal do Emlio: o educador pode ser levado a uma catstrofe. Pestalozzi ter essa dolorosa experincia na educao do prprio filho Jakob: a criana de quatro anos ficou entregue a seu livre arbtrio, mas o pai se dedicou sobremaneira a quebrar, sem explicao alguma,5

ROUSSEAU, J. -J. Oeuvres compltes, tomo 1. Paris: Gallimard, 1959. p. 934.

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sua sensibilidade egocntrica, na esperana de que do choque de vontades nascesse, no interessado, o sentido da lei e da autoridade. Na realidade, o resultado de tudo isso foi uma criana que no compreendia que pai tinha: por um lado, um extremo liberal, mas, por outro, um tirano insuportvel. O sistema nervoso de Jakob, j frgil por natureza, sofreu danos irreparveis6. H, tambm, aqueles que no aceitam as antinomias de Rousseau e o interpretam no sentido que lhes convm, segundo suas prprias pressuposies, ou com a representao social de uma determinada poca. Por isso, o Emlio, muitas vezes, foi considerado, tanto por aqueles que queriam uma revanche contra a Revoluo Francesa com a qual Rousseau se viu comprometido muito a contragosto , como pelos nostlgicos da revoluo pedaggica, que o consideram verdadeira bblia das pedagogias da liberdade, que advogam a libertao da criana e a proibio de se intervir em seu desenvolvimento. certo que Rousseau estabeleceu, deliberadamente, seus preceitos sobre o princpio da liberdade: toda atitude que coloca a vontade de Emlio sob a dependncia de outra vontade rechaada sistematicamente. Sua vontade no menos formada graas a uma ao permanente e enrgica sobre esse amor de si mesmo, que se constitui como sua raiz. Emlio deve dar a si mesmo uma lei e esta lei no pode cair do cu, nem, muito menos, brotar unicamente da expresso de seu prprio interesse; mas, deve forj-la no encontro conflitivo com o outro. Com efeito, a atmosfera da obra de Rousseau no tem nada de paradisaco; o heri no perambula vontade em uma natureza idlica e os episdios que se sucedem so, em sua maioria, dramticos. Com frequncia se tem recorrido exortao de Rousseau sobre a necessidade de se observar e de se conhecer uma criana, reduzindo-se o projeto dele a uma psicologia aplicada educao.6 SOTARD, M. Pestalozzi ou la naissance de lducateur. Berne: P. Lang, 1981. p. 84 e ss.; p. 204 e ss.

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Agir assim esquecer que sua psicologia muito aproximativa e longe de ser cientfica, no sentido que a compreendem nossos experimentadores modernos. Apesar de Rousseau ter sido um apaixonado, sem dvida, pela experimentao cientfica, os conceitos por ele utilizados (paixo, interesse, desejo etc.) so permanentemente marcados por equvocos. Psiclogos e psicanalistas poderiam, com toda a razo, sorrir diante de tal amadorismo, mas a questo no esta. A Rousseau interessa certamente que o educador conhea bem o sujeito que deve educar, quer dizer, a criana e as Cincias Humanas, ento nascentes, poderiam contribuir para essa investigao. Entretanto, sem dvida, o educando no para ele mais que um sujeito, quer dizer, um ser livre, que reage a todo intento de determinao a priori do que e do que pode chegar a ser: Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser (...). Se a psicologia, como toda cincia humana, baseia seu propsito e suas pesquisas no pressuposto de uma natureza constituda e que ser alhures interpretada segundo tantos pontos de vista existentes nas cincias , a pedagogia se une a uma natureza plenamente aberta a infinitas possibilidades da liberdade. No menor o mal-entendido dos pedagogos, que tm confundido a proposio de um princpio de ao com uma diretiva que deve ser aplicada tal e qual. Quando Rousseau retarda, o mais possvel, o acesso de Emlio leitura, ele no quer dizer de modo algum que rechaa os livros, como tampouco que o Discours sur les sciences et les arts [Discurso sobre as cincias e as artes] visa destruio da cultura. O que quer dizer Rousseau que caso se apresente, prematuramente, criana, textos j elaborados, juzos estabelecidos e abstraes sem sentido, encerra-se ela em um mundo pr-fabricado, no qual s se pensa por intermdio de outros. Se o conceito, a frase estruturada e o texto escrito permanecem como instrumentos, por excelncia, que asseguram ao homem o controle intelectual do mundo, tambm preciso que se lhe deem meios para che-

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gar a esse controle por si mesmo. Este ser o sentido pleno de uma pedagogia da leitura. A leitura no um fim em si mesma, mas deve iniciar-se no momento oportuno que pode ser muito diferente de uma criana para outra no processo de re-apropriao intelectual do mundo. , com efeito, este o movimento que d sentido leitura: na medida em que ela iniciada e desenvolvida oportunamente que se forma na criana o desejo de ler. Outro tema de controvrsia a educao de Sofia e a maneira como o pensador da igualdade parece abandonar seu princpio assim que se encontra em presena de um ser de outro sexo. Certas frmulas do livro V do Emlio de fato provocaram a clera das feministas: A mulher feita especialmente para agradar ao homem; deve ser educada conforme os deveres de seu sexo, evitando a busca de verdades abstratas ou especulativas, limitando-se gesto domstica e s tarefas do lar. Se falta a Rousseau audcia neste domnio, seguramente em boa parte por causa de sua busca patolgica da mulher-refgio em um mundo que havia se tornado totalmente estranho. Mas, nem por isso se deve esquecer os extratos do mesmo livro V em que Rousseau denuncia a armadilha que representam as doutrinas igualitrias que reclamam as mulheres. Dotadas de uma natureza essencialmente sensvel e prtica, as mulheres dispem de um talento que as coloca em igualdade de condies com seus companheiros: Em seus encantos est sua prpria fora (...). Esta habilidade peculiar de seu sexo uma mui justa compensao da fora que lhe falta, sem a qual a mulher no seria a companheira do homem, seno sua escrava. graas a esta superioridade de talento que ela permanece como sua igual e lhe governa, obedecendo-lhe... Ah! Escolhei a alternativa de as educar como homens e eles o consentiro de bom grado; porque quanto mais as mulheres quiserem se parecer com os os homens, menos elas os governaro e, ento, eles sero realmente seus mestres7.7

ROUSSEAU, J. -J. Oeuvres compltes, tomo 4. Op. cit. p. 701.

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Este debate nos leva a tentar esclarecer o princpio da igualdade em Rousseau, tal como ele se exprimiu no Discurso de 1755 e assim que conseguiu sua realizao no projeto educativo do Emlio. No percamos de vista que a referncia continua sendo esse estado da natureza, evocado na primeira parte do Discours sur lorigine de lingalit [Discurso sobre a origem da desigualdade], que se caracteriza por uma total desigualdade de foras, que cada um pode desenvolver com toda a liberdade, em um mundo sem obstculos. Uma vez no campo social, essas foras tendem a chegar a um acordo entre si e acabam entregando seu poder a uma fora superior capaz de arbitrar os conflitos. Ora, eis que este poder entrou, tambm, em uma era de contestao generalizada que libera, uma vez mais, as foras naturais. neste contexto que se inscreve a misso da pedagogia: trabalhar intensamente a gesto dos contrrios determina! favorecer a integrao social do desejo natural em um universo ameaado pela violncia e promover a liberao deste desejo de autonomia, no contexto de insatisfao social que caracteriza nossas sociedades modernas. Em outras palavras, a misso da escola no tanto garantir a igualdade, mediante uma integrao forada, mas a de dar a cada um os instrumentos de sua liberdade, em um contexto de responsabilidade e solidariedade ativas8. Convm, pois, pensar duas vezes antes de considerar Rousseau como pai da educao republicana. J no tempo da Revoluo Francesa, os que organizavam a instruo pblica, mesmo que tenham pago tributo a Rousseau, experimentaram as maiores dificuldades ao integrar, em seus projetos, os esquemas de Emlio, que eram antes de tudo considerados como um modelo de educao privada. Eles foram, ento, obrigados a deduzir, a partir de uma interpretao8

Uma excelente ilustrao desta forma de ao figura na Lettre de Stans [Carta de Stans], publicada por Pestalozzi em 1799. De uma maneira geral, o procedimento de Pestalozzi retrata bem, por meio de uma obra consagrada inteiramente prtica, a evoluo de Rousseau desde a aplicao literal de seu projeto at a compreenso de seu esprito (SOTARD, M. Rousseau. Genebra: ditions Coeckelberghe, 1988. p. 149-150).

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estritamente poltica do Contrato social, a necessidade de uma educao cvica elaborada na nica perspectiva de assegurar a integrao nova cidadania, e atribuindo as frases embaraosas do Emlio subjetividade exarcebada de seu autor. A publicao pstuma do manuscrito das Considrations sur le gouvernement de Pologne [Consideraes sobre o governo da Polnia], em que Rousseau aconselha a instalao de um sistema de educao nacional, surge para respaldar a tese sociocntrica. Esta interpretao poltica tem a desvantagem de esquecer rapidamente algumas frases contundentes que se abrem e fecham o Emlio: A instituio pblica j no existe e no pode existir mais; porque onde no h mais ptria, j no pode haver cidados. Estas duas palavras, ptria e cidado, devem ser apagadas das lnguas modernas (Livro I); Vo esperar a liberdade sob a tutela das leis. Leis! Onde esto as leis e onde so respeitadas? Por todo o lado no se v reinar sob este nome seno o interesse particular das paixes dos homens (...) (Livro V). Vale dizer que o ceticismo de Rousseau sobre todas as formas de governo permanece intacto desde as anlises corrosivas dos Discursos. Dada a corrupo das instituies, o Contrato social continua sendo, certamente, um sonho, uma necessidade, que orienta a ao poltica... mas, um sonho do qual preciso se precaver de transform-lo em realidade. A realidade humana, da em diante, ser um processo essencialmente educativo que requer uma reconstruo da humanidade na base de interesses que cada um tem nela, comeando pelo adolescente que tem a vantagem de poder viver este processo desde a sua origem. E graas educao que a poltica, ela mesma enredada em uma contradio sem sada, pode de novo recuperar seu sentido. Com este raciocnio, apenas tentamos recuperar a profunda relao entre Emlio e o Contrato social, tal como pensava Rousseau. Efetivamente, ele atribua mais importncia ao seu tratado de educao do que a seu opsculo poltico, compndio de uma obra mais ampla sobre as instituies polticas que ele jamais pde concluir;

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se os dois juntos formam um todo, escreveu ele a um correspondente, fica claro que o Contrato social deve se tornar uma espcie de apndice ao tratado de educao9. verdade que toda substncia do Contrato social se encontra no Livro V do Emlio, mas sob a forma de proposies e questes, que devem ser examinadas e que no se transformam em princpios, antes de serem suficientemente resolvidas10. dessa forma, que se pe o dedo nas razes da poltica no universo da educao. De todos os mal-entendidos que pesaram na interpretao do Emlio, o poltico , sem dvida alguma, o mais carregado de consequncias. Ele ops obstculos perspectiva antropolgica original que Rousseau havia elaborado em torno da ideia de educao e que conferia s aes humanas nova base de significado. Pode se explicar este desvio pelo cuidado que tiveram nossas sociedades modernas nascidas da comoo de 1789 de recuperar, a qualquer custo, uma estabilidade. J que a ideia revolucionria esgotou seus efeitos, cabe esperar que a crtica devolva educao todas as suas chances de xito.Uma posteridade contraditria

Evocando Rousseau e sua contraditria posteridade, um analista do pensamento educacional contemporneo fez a seguinte observao:Compreende-se que leitores apurados, pedagogos pouco ciosos de seu dever, para assimilar as teorias educativas de Rousseau e aprofundar suas ideias filosficas, ignoraram os sutis equilbrios do pensamento de Rousseau. Emlio foi, desde o sculo XVIII e ainda hoje o , uma leitura equivocada... 11.

Compartilhamos inteiramente desta opinio.9 10 11

Correspondance gnerle de J. J-Rousseau. Paris: P. P. Plan, v. 6, p. 233, 1924-1934. ROUSSEAU, J. -J. Oeuvres compltes, tomo 4. Op. cit. p. 837.

ULMANN, J. , Introduo. In: ______. La pense ducative contemporaine. Paris: Vrin, 1982.

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Mas Rousseau pode assumir sem problemas esta posteridade contraditria. assim que tantos os partidrios da no interveno do adulto na autodeterminao infantil (as comunidades escolares de Hamburgo, a escola de A. S. Neill, em Summerhill), como aqueles que se limitam a facilitar o livre desenvolvimento do desejo natural de aprender da criana (Rogers e a no-diretividade), podem se apoiar legitimamente sobre princpio da educao negativa, segundo a qual o mestre chamado a fazer tudo sem fazer nada e dar criana o desejo de aprender, sendo-lhe bom qualquer mtodo. Mas, quem assim pensa refora a desnaturalizao do desejo das instituies sociais. Nossa sociedade sendo o que , como escreve acertadamente Georges Sniders, seria uma iluso deixar a criana sua prpria espontaneidade, porque o que se exprimiria nela no seria jamais a natureza, mas um conjunto das influncias no criticadas e no corrigidas que a recobrem. E este autor ainda cita a passagem do livro III do Emlio: Um homem que quisesse ver a si mesmo como um ser isolado, no levando nada em considerao e se bastasse a si mesmo, seria, inevitavelmente, um ser miservel12. Os libertadores do desejo natural acabaram rapidamente por aceitar, a realidade obriga, numerosos compromissos com as instituies sociais das quais pretendiam prescindir anteriormente. Assim, o educador no pode fugir de suas responsabilidades neste mundo tal qual ele ; dever, apesar da oposio geral , fazer a obra da educao, mas de tal maneira que vosso aluno creia sempre ser o mestre e que vs mesmos que o sejais13. O pedagogo dever, pois, cuidar do desejo da criana, deixando-a livre e at obrigando-a a s-lo. Para garantir o respeito a essa segunda exigncia recorrer-se- a um projeto pedaggico claro e preciso em que a instruo se far por necessidade das coisas, fora da vontade humana. O nico problema que este projeto s poder se estabelecer sobre a12 13

SNYDERS, G. La pdagogie en France aux XVII et XVIII sicles. Paris: PUF, 1965. ROUSSEAU, J. -J. Oeuvres compltes, tomo 4. Op. cit. p. 362.

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base de um pressuposto fundado no ponto de vista sobre o homem e sobre o que ele deve ser. aqui que, partindo do Emlio, vo se desenhar as grandes correntes que constituiro a histria da pedagogia e cujo desenvolvimento prefigurou Pestalozzi em torno de trs grandes eixos orientados por trs elementos: corao, cabea e mo. Rousseau abriu as portas da humanidade ao corao a sensibilidade, o sentimento, a paixo , exigindo que ele estivesse em igualdade com a razo. Toda uma coorte de pedagogos enveredar-se- por este caminho, desejosos de fundamentar sua ao sobre o primado do amor, da confiana, da unidade da vida: de Frbel a Korczak, passando por todas as experincias que se esforaram para criar em torno da criana um lugar de vida, at nossos modernos educadores vidos de comunicao e que buscam a identidade na transparncia da relao. Todos eles se esquecem, entretanto, que o personagem que encarna, sem dvida, o melhor pedagogo para Rousseau Julia, na Nouvelle Hlose [Nova Helosa]. Se ele se deixa levar por arroubos pr-romnticos, manifesta, no menos, uma distncia permanente em relao atmosfera do livro e, em particular, de suas crianas. Jlia revelar-se-, na obra, mais como uma mulher do dever do que do amor. Rousseau o ser, da mesma maneira, naquilo que diz respeito frieza e indiferena aparentes do preceptor. V-se, tambm, que o sentimento que une Emlio a seu mentor mistura ao afeto uma espcie de temor e amor apoiado na estima. Para o preceptor, com efeito, tudo parece se resolver em uma perspectiva superior e calculada. Vista desse ngulo, a pedagogia seria, essencialmente, uma questo de inteligncia, de uma inteligncia apta, sobretudo, para captar as leis que regem o desenvolvimento da natureza humana e para antecipar, assim, sua evoluo. aqui que se abre a grande corrente dos pedagogos que se apoiaram sobre um conhecimento positivo dos fatores que determinam a evoluo da humanidade sejam de ordem biopsquica

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(Decroly, Montessori), seja psicolgica (de Herbart a Piaget), seja sociolgica (Spencer, Durkheim, a Emanzipationspdagogik). Deparamo-nos aqui com uma encruzilhada de interpretaes em que todas podem se legitimar recorrendo obra de Rousseau: a lei do interesse vital coabita com o enfoque gentico, todo ele sobre um fundo de crtica social constante. Alm disso, desde o Discurso sobre as Cincias e as Artes, sabemos o que necessrio pensar sobre esses saberes sociais e sobre a pretenso de cada um deles em responder sobre a natureza humana em sua integralidade. Uma outra grande corrente apoiar sua inspirao no fato de que Emlio est sempre situado onde lhe exigida uma ao, em que se v regularmente engajado em uma prtica sobre a qual ele levado a refletir a posteriori; a exigncia que lhe imposta de ter um trabalho manual o situa na esfera do trabalho social. Para esta corrente, a educao ser essencialmente uma questo prtica. Nesta corrente, encontrar-se-o os mtodos da Pedagogia Ativa como os que tenderam a fazer da criana um tcnico de seu prprio saber (Freinet), ou as experincias de formao pelo trabalho (Dewey, Makarenko) at a utilizao das tecnologias modernas que seriam chamadas a transformar o comportamento e as prticas dos educadores. No obstante, Rousseau proclama em toda a sua obra que, se a criana deve se realizar na e pela ao, esta prxis somente tem sentido em uma compreenso superior que no prpria da esfera da ao: trata-se uma vez mais de compreender o que est em jogo no ato educativo. Pedagogias do corao, pedagogias da cabea, pedagogias da mo: Rousseau assume inteiramente as contradies de que se encarregou sua posteridade. Mas, ele ainda est vivo, quando no declnio de seu desafio histrico, esses entusiastas defensores da relao afetiva, da inteligncia discursiva, ou da ao produtiva, formulavam invariavelmente a pergunta: tem a pedagogia a possibilidade de abrir caminho neste mundo histrico em que sua ao tenha

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acabado de se encalhar? Quando chega a desesperana como em Pestalozzi, em seu retiro de Neuhof voltam-se as vistas para Emlio, esse livro de sonho, que releem avidamente, como se, todavia, ele no tivesse ainda confiado seu segredo, como se continuasse um livro lacrado, segundo a expresso de Pestalozzi, no crepsculo de sua existncia rica de experincias. E qual esse segredo? Talvez, seja simplesmente, que o homem e antes de tudo, o Homo educandus esteja muito alm daquilo que possamos pensar em termos cientficos, filosficos e polticos; que seja essencialmente livre e que todos os esforos que se faam para am-lo, entend-lo e coloc-lo em ao, duvidando dessa liberdade, estejam condenados ao fracasso. Se a educao , efetivamente, uma questo de amor, a cada instante se corre o risco de asfixiar a criana com excesso de afeto. , pois, indispensvel que o amor permanea dentro dos limites de uma atitude de f no que a natureza tem, verdadeiramente, de inteno de fazer pelo outro, no caso, pela criana. Se a educao consiste em compreender de maneira positiva o sujeito que ser formado e os fatores que o determinam, corre-se o risco de fazer dessa pessoa um simples resultado destas determinaes. Convm, por isso, vigiar o limite alm do qual este conhecimento positivo anula o poder do homem controlar sua prpria natureza. Se a educao , essencialmente, uma questo de ao, o perigo estaria em fazer do educando um simples produto tcnico; neste caso, convm resituar, constantemente, essas tcnicas dentro da esfera da liberdade e da independncia., seguramente, de acordo com o esprito do Emlio, que a educao ser menos um projeto que deva ser inscrito na realidade histrica do que uma forma a ser dada ao pedaggica em si mesma, levando em conta o que pesquisado por meio dela e os equilbrios que ela provoca. Este no seria o menor paradoxo da obra de Rousseau: este sonhador da educao, porque soube ir at o limite de seu sonho, revelar-se-ia, definitivamente, um mestre em prticas pedaggicas.

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E indubitavelmente sob este ponto de vista que Rousseau soube ver, na ideia da educao, a pedra angular de nossa modernidade, ainda que persistamos, apoiando-a em projetos sem sada. E nisto, Rousseau segue adiante de ns e continua tendo o que nos dizer ante os grandes desafios de nosso tempo.Basta, por exemplo, observar os conflitos culturais que debilitam cada vez mais as estruturas de nossas naes e ameaam romp-las irremediavelmente. Dividido ele mesmo entre dois mundos o de Genebra (republicano, calvinista e particularista) e o de sua ptria de predileo, a Frana (monrquica, catlica e universalista) , Rousseau formulou, em seus dois Discursos o impiedoso diagnstico da dissociao dos universos culturais cuja estabilidade parecia garantida para a eternidade. A cultura, longe de planar em cu ideal, est vinculada aos interesses vitais dos que a ela se aderem e fomenta os que possuem um sentimento de dominao. No nasceram as cincias da necessidade de se proteger, as artes do af de brilhar e a filosofia do desejo de dominar? O poder pertence aos mais cultos, aos mais hbeis no manejo desse floro da cultura que a palavra. Com esta tomada de conscincia se abre a crise da cultura. No se pode esperar que os Estados histricos superem uma crise na qual esto eles mesmos implicados. Necessita-se, pois, de um espao social especfico, no qual possa se desenvolver em liberdade um processo de reconstruo da cultura, que transcenda sua diversidade reencontrada, na qual sua forma, universal apesar de tudo, possa se dar um novo contedo, mais conforme com os interesses de quem se adere a ela: um espao educativo. Mas, tampouco, aqui, seria menos uma questo de instituio, merc da loucura e das contradies dos homens, que o efeito de uma ao pedaggica apta a favorecer em cada um, mais alm do conflito social das culturas, a capacidade de descobrir e de se (re)apropriar dos valores que os sustentam. Quando, no Livro V do Emlio, o jovem regressa de seu priplo europeu, em que apreendeu toda a medida da diversidade histrica dos povos e da relatividade de suas constituies sociais, ele acaba por se convencer que, se o homem deve muito ptria que o viu nascer e cultura que o alimentou, ele no deve esperar mais do que elas podem lhe dar dentro dos limites histricos que lhes so prprios. E , definitivamente, de um modo socrtico, do fundo de si mesmo, em

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seu corao de homem livre, que ter de encontrar a energia para a indispensvel regenerao cultural. Rousseau abriu-nos, assim, mediante a anlise das contradies que continuam esgarando nosso tecido social, as portas da modernidade, indicando-nos o caminho que devemos seguir: a educao e a formao dos homens. Se ele mesmo no segue essa senda porque, depois de descartar toda a prtica estabelecida, no queria satisfazer-se com uma meia prtica pedaggica14. O que importa, como explicou ainda no prlogo do Emlio, era que a educao proposta foi conveniente para o homem e bem adaptada ao corao humano. ela ainda vlida para o final do sculo XX? claro que as contradies tm se radicalizado: nunca as pretenses da cincia e da tcnica tinham sido to grandes; mas, jamais seu poder foi to contestado; o desejo de comunicao jamais foi to profundo quanto em uma poca em que se produzem tantos meios para que ela seja satisfeita e nunca se falou tanto na ao, sem se deixar de ser consciente quanto s incoerncias da prtica. Tudo isso testemunha, definitivamente, de uma grande fragilidade conceitual, particularmente manifesta na reflexo sobre a educao, estilhaada entre as paixes e as modas da poca. Se Rousseau pudesse nos ajudar a recriar a ideia deveramos a ele um reconhecimento histrico.

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NT. No original, em francs, o autor se vale de uma metfora une bonne demi, que literalmente quer dizer uma meia empregada.

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TEXTOS SELECIONADOS

As antologias so organizadas de acordo com os mais diversos critrios, mas sempre obedecem ao objetivo de representar, significativamente, o pensamento de determinado(s) autor(es). Neste caso, como uma das finalidades da obra reconstituir o significado de determinado pensador na educao e no pensamento pedaggico brasileiros, escolhemos as categorias, atribudas a Rousseau, mais recorrentes entre ns, seja nas aplicaes dos educadores, seja nos discursos dos pesquisadores deste campo no Brasil. Entre elas, sejam as relativas ao campo poltico, sejam as referentes ao campo da educao, destacamos: 1. Educao natural, indireta ou negativa; 2. Puericentrismo; 3. Paradoxo; 4. Bom selvagem; 5. Jusnaturalismo; 6. Contratualismo e 7. Vontade geral. Ao lado das categorias propostas intencionalmente pelo autor de O contrato social, destacamos, tambm, o eurocentrismo, prprio de um projeto burgus global, que se iniciara no sculo XVI e se consolidava no sculo XVIII, atingindo, hoje, atingiu os mais recnditos lugares do Planeta. Esta antologia foi extrada das duas obras capitais de Rousseau: Emlio ou da educao e O contrato social.33

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ROUSSEAU, J. -J. Emlio ou da educao. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. Trad. Roberto Leal Ferreira.Educao natural, indireta ou negativa

1. [...] Queixamo-nos da condio infantil e no vemos que a raa humana teria perecido se o homem no tivesse comeado por ser criana. Nascemos fracos, precisamos de fora; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistncia; nascemos estpidos, precisamos de juzo. Tudo o que no temos ao nascer e do que precisamos quando grandes nos dado pela educao. Essa educao vem-nos da natureza ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos rgos a educao da natureza; o uso que nos ensinam a fazer deste desenvolvimento a educao dos homens; e a aquisio de nossa prpria experincia sobre os objetos que nos afetam a educao das coisas. Assim, cada um de ns formado por trs tipos de mestres. O discpulo em quem suas diversas lies se opem mal educado e jamais estar de acordo consigo mesmo; aquele em que todas elas recaem sobre os mesmos pontos e tendem aos mesmos fins vai sozinho para seu objetivo e vive consequentemente. S esse bem educado. Ora, dessas trs educaes diferentes, a da natureza no depende de ns, a das coisas, s em alguns aspectos. A dos homens a nica de que somos realmente senhores; mesmo assim, s o somos por suposio, pois quem pode esperar dirigir inteiramente as palavras e as aes de todos os que rodeiam uma criana? (p. 9). 2. Mas talvez o termo natureza tenha um sentido vago demais. Cumpre determin-lo aqui. Dizem que a natureza apenas o hbito. Que significa isso? No existem, hbitos que s se contraem pela fora e jamais abafam a

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natureza? Assim , por exemplo, o hbito das plantas cuja orientao vertical contrariada. Posta em liberdade, a planta conserva a inclinao que a foraram tomar, mas nem por isso a seiva muda sua direo primitiva e, se a planta continuar a vegetar, seu prolongamento voltar a ser vertical. O mesmo ocorre com as inclinaes dos homens. Enquanto permanecemos na mesma direo, podemos conservar as que resultam do hbito e nos so menos naturais; mas, assim que a situao muda, o hbito cessa e a natureza retorna. A educao certamente no seno um hbito. Ora, no h pessoas que esquecem ou perdem a educao, e outras que a conserva? De onde vem essa diferena? Se para restringir o nome da natureza aos hbitos conformes natureza, podemos poupar este galimatias15 (p. 10). 3. [...] com essas disposies primitivas que deveramos relacionar tudo, e isso s seria possvel se nossas trs educaes fossem apenas diferentes; que fazer, porm, se so opostas, se, em vez de educar um homem para si mesmo, queremos educ-lo para os outros? (p. 10). 4. O homem natural tudo para si mesmo; a unidade numrica, o inteiro absoluto, que s se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil apenas uma unidade fracionria que se liga ao denominador, e cujo valor est em sua relao com o todo, que o corpo social. As boas instituies sociais so as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existncia absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada particular j no se julgue como tal, e sim como uma parte da unidade, e s seja perceptvel no todo (pp. 11 e 12). 5. Tampouco considero a educao da sociedade, pois, tendendo essa educao a dois fins contrrios, no atinge nenhum dos dois; s serve para criar homens de duas faces, que sempre parecem atribuir tudo aos outros, e nunca atribuem nada seno a15

Discurso verborrgico, esquisito, hermtico e ininteligvel at para seu prprio autor (nota dos organizadores).

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si mesmos. Ora, sendo comuns a todos, estas demonstraes no enganam ningum. So preocupaes vs (p. 13). 6. Arrastados pela natureza e pelos homens a caminhos contrrios, forados a nos dividir entre esses diversos impulsos, seguimos uma composio que no nos leva nem a um, nem a outro objetivo. Assim, combatidos e errantes durante toda a nossa vida, terminamo-la sem termos podido entrar em acordo com ns mesmos, nem para os outros (pp. 13 e 14). 7. Resta, enfim a educao domstica ou da natureza, mas o que se tornar para os outros um homem que tenha sido educado unicamente para si mesmo? Se porventura o duplo fim que nos propomos pudesse reunir-se em um s, suprimindo as contradies do homem, suprimiramos um grande obstculo sua felicidade. Para julgar sobre isso, seria preciso v-lo todo formado; seria preciso ter observado suas inclinaes, ter visto seus progressos, seguido sua marcha; numa palavra, seria preciso conhecer o homem natural [...] Para formar este homem raro, o que temos de fazer? Muito, sem dvida: impedir que algo seja feito. Quando se trata apenas de ir contra o vento, bolinamos; se, porm, o mar estiver agitado e quisermos permanecer parados, deveremos lanar ncora. Toma cuidado, jovem piloto, para que teu cabo no se desamarre ou a ncora no se solte, e o barco se ponha deriva antes que o percebas (p. 14). 8. Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocao comum a condio do homem, e quem quer que seja bem educado para tal condio no pode preencher mal as outras relacionadas com ela. Pouco me importa que destinem meu aluno espada, Igreja ou barra. Antes da vocao dos pais, a natureza o chama para a vida humana. Viver o ofcio que quero ensinar-lhe. Ao sair de minhas mos, concordo que no ser nem magistrado, nem soldado, nem padre; ser homem, em primeiro lugar; tudo o que o homem deve ser, ele ser capaz de ser, se preciso, to bem quanto qualquer outro; e, ainda que a fortuna o faa mudar de lugar, ele sempre estar no seu.

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Nosso verdadeiro estudo a condio humana (pp. 14 e 15). 9. [...] a verdadeira educao consiste menos em preceitos do que em exerccios. Comeamos a nos instruir quando comeamos a viver; nossa educao comea junto conosco; nosso primeiro preceptor a nossa ama-de-leite. Assim, a palavra educao tinha entre os antigos um sentido diferente, que j no lhe damos: significava alimentao (p. 15). 10. Observai a natureza e segui a rota que ela vos traa. Ela exercita continuamente as crianas, enrijece seu temperamento com provas de toda a espcie e cedo lhes ensina o que sofrimento e dor. [...] Eis a regra da natureza. Por que as contrariais? No vedes que, acreditando corrigi-la, destrus sua obra, impedis o resultado de seu trabalho? Fazer por fora o que ela faz por dentro , segundo vs, duplicar o perigo; mas, pelo contrrio, atra-lo para longe, canslo. [...] O destino do homem sofrer em todos os tempos. [...] Lamentamos a sorte da infncia, mas a nossa que deveramos lamentar. Nossos maiores males vm-nos de ns mesmos (pp. 24 e 25). 11. Uma criana passa assim seis ou sete anos entre as mos das mulheres, vtima dos caprichos delas e dos seus e, depois de lhe terem ensinado isso e aquilo, vale dizer, depois de terem enchido sua memria ou de palavras que no pode entender, ou de coisas que no lhe servem para nada, depois de terem sufocado a natureza pelas paixes que fizeram nascer, colocam este ser factcio nas mos de um preceptor que acaba de desenvolver as sementes artificiais que j encontra completamente formadas, e lhe ensina tudo, exceto a se conhecer, exceto a tirar partido de si mesmo, exceto a saber viver e se tornar feliz. Enfim, quando essa criana, escrava e tirana, cheia de cincia e carente de juzo, igualmente dbil de corpo e alma, jogada no mundo, mostrando sua incapacidade, seu orgulho e todos os seus vcios, isso faz com que deplorem a misria e a perversidade humanas. engano; aquele o homem de nossas fantasias; o da natureza feito de outra maneira (pp. 25 e 26).

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12. Quereis que a criana conserve sua forma original? Preservaia desde o instante em, que vem ao mundo. Assim que nasce, tomai conta dela e no a deixeis at que seja adulta; jamais tereis xito de outra maneira. [...] Ela seria mais bem educada por um pai judicioso e limitado do que pelo mais hbil professor do mundo, pois o zelo suprir melhor o talento do que o talento ao zelo (p. 26). 13. Nossa mania professoral e pedantesca de sempre ensinar s crianas o que aprenderiam muito melhor por si, e esquecer o que s ns lhe poderamos ensinar. Haver algo mais tolo do que o trabalho que temos para ensin-las a andar, como se tivssemos visto algum que, por descuido da ama-de-leite, no soubesse andar quando adulto? Pelo contrrio, quantas pessoas vemos que andam mal por toda a vida porque lhes ensinaram mal a andar! (p. 71). 14. Respeitai a infncia e no vos apressei em julg-la, quer para bem, quer para mal. Deixai as excees se revelarem, se provarem, se confirmarem muito tempo antes de adotar para elas mtodos particulares. Deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu lugar, temendo contrariar suas operaes. Dizei que conheceis o valor do tempo e no quereis perd-lo. No vedes que o perdeis muito mais empregando-o mal do que no fazendo nada, e que uma criana mal instruda est mais distante da sabedoria do que aquela que no foi absolutamente instruda. Ficais alarmados por v-la consumir seus primeiros anos sem nada fazer. Como! No nada ser feliz? No nada saltar, brincar, correr o dia todo? Em toda sua vida, nunca estar to ocupada. Plato em sua Repblica, considerada to austera, s educa as crianas em festas, jogos, canes, passatempos; dir-se-ia que ele terminou quando lhes ensinou a se divertirem bem, e Sneca, falando da antiga juventude romana, disse: ela estava sempre de p; no lhe ensinavam nada que ela devesse aprender sentada. Teria por isso valido menos, quando chegou idade viril? No admireis muito, portanto que, para aproveitar toda a vida, no quisesse dormir nunca?

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Direis: este homem louco; no desfruta o tempo, mas perde-o; para fugir do sono, corre da morte. Considerai, pois, neste caso ocorre a mesma coisa, e a infncia o sono da razo (p. 119). 15. Embora a memria e o raciocnio sejam duas faculdades essencialmente diferentes, uma no se desenvolve realmente sem outra. Antes da idade da razo, a criana no recebe ideias, apenas imagens, e a diferena entre uma e outras que as imagens so apenas pinturas absolutas de objetos sensveis, e as ideias so noes dos objetos determinadas por relaes. Uma imagem pode estar sozinha no esprito que a imagina, mas toda ideia supe outras ideias. Quando imaginamos, no fazemos nada alm de ver; quando concebemos, comparamos. Nossas sensaes so meramente passivas, ao passo que todas as percepes ou ideias nascem de um princpio ativo que julga. Isso ser demonstrado em seguida (p. 120). 16. No existe lngua bastante rica para fornecer tantos termos, expresses e frases quantas so as modificaes que nossas ideias podem ter (nota de rodap, Livro II, p. 121). 17. Tem-se muito trabalho para buscar os melhores mtodos de ensinar a ler; inventam-se escrivaninhas, mapas; faz-se do quarto da criana uma oficina grfica. Locke pretende que a criana aprenda a ler com os dados. No uma inveno bem pensada? Que pena! Um meio mais seguro do que tudo isso aquele que sempre esquecido: o desejo de aprender. Dai esse desejo criana, e depois deixai vossas escrivaninhas e vossos dados, pois qualquer mtodo lhe servir (p. 135). 18. Quanto mais insisto sobre o meu mtodo inativo, mais percebo que as objees se reforam. Se vosso aluno nada aprende de vs, aprender com outros. Se no prevenirdes o erro com a verdade, ele aprender mentiras; os preconceitos que temeis lhe dar , ele os receber de tudo que o rodeia, eles entraro por todos os seus sentidos, ou corrompero a sua razo entes mesmo que ela esteja formada, ou ento seu esprito, embotado por uma longa inao,

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absorver-se- na matria. A falta de hbito na infncia de pensar suprime a faculdade de faz-lo para p resto da vida (p. 136). 19. Tomai com vosso aluno o caminho oposto; que ele sempre acredite ser o mestre, e que sempre o sejais vs. No h sujeio mais perfeita do que a conserva a aparncia de liberdade; assim se cativa a prpria vontade. A pobre criana que nada sabe, que nada pode, que nada conhece, no est vossa merc? No dispondes, com relao a ela, de tudo que a cerca? No podeis agir sobre ela como quereis? Seus trabalhos, suas brincadeiras, seus prazeres, seus sofrimentos, no est tudo em vossas mos sem que ela saiba? Sem dvida, ela s deve fazer o que quer, mas s deve querer o que quereis que ela faa. Ela no deve dar um passo sem que o tenhais previsto; no deve abrir a boca sem que saibais o que vai dizer. [...] Deixando-a assim dona de suas vontades, no incentivareis caprichos. Fazendo sempre apenas o que lhe convm, logo ela s far o que deve fazer, quando se tratar de seu interesse presente e sensvel vereis toda a razo de que capaz desenvolverse bem melhor e de uma maneira bem mais apropriada a ela do que em estudos de pura especulao (pp. 140 e 141). 20. por esses e outros meios semelhantes que, durante o pouco tempo que estive com ele, consegui fazer com que fizesse tudo o que eu queria, sem lhe ordenar nada, sem lhe proibir nada, sem sermes, sem exortaes, sem aborrece-lo com aulas inteis. Assim, enquanto eu falava, ele ficava contente; ele compreendia que algo no ia bem, e sempre a lio vinha-lhe da prpria coisa (p. 147). 21. Mostrando em que devemos empregar a longa ociosidade da infncia, entrarei num pormenor que parecer ridculo. Engraadas lies, diro, que, caindo sob vossa prpria crtica, se limitam a ensinar que ningum precisa aprender! Por que gastar tempo com instrues que vm sempre por si mesmas, e que no custam nem sofrimentos nem cuidados? Que criana de doze anos no sabe tudo o que quereis ensinar ao vosso aluno e mais o que seus professores lhe ensinaram?

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Senhores, estais enganados; ensino a meu aluno uma arte muito longa. Difcil, que vossos alunos certamente no tm: a arte de ser ignorante, pois a cincia daquele que s acredita saber o que sabe reduz-se a pouqussima coisa. Dais a cincia cedo; eu me ocupo do instrumento prprio para adquiri-la [...] (p. 149). 22. Segue-se da que os gostos mais naturais devem ser tambm os mais simples, pois so aqueles que se transformam mais facilmente, ao passo que, ao se aguarem, ao se irritarem com nossas fantasias, eles assumem uma forma que no muda mais. O homem que no de nenhum pas adaptar-se- sem dificuldades aos costumes de qualquer pas, mas o homem de um pas j no se torna o de um outro pas. Isso me parece verdadeiro em todos os sentidos, e mais ainda quando aplicado ao gosto propriamente dito. [...] A primeira vez que um selvagem bebe vinho, ele faz careta e o recusa; e, mesmo entre ns, quem quer que tenha vivido at os vinte anos sem provar licores fermentados no conseguir acostumar-se com eles. Seramos todos abstmios se no nos tivessem dado vinho em nossa juventude. Finalmente, quanto mais nossos gostos so simples, mais eles so universais; as mais comuns repugnncias recaem sobre os pratos compostos. Viu-se alguma vez algum que tivesse averso pelo po ou pela gua? Eis o rastro da natureza, eis portanto tambm a nossa regra. Conservemos na criana o seu gosto primitivo o mais possvel; que sua comida seja comum e simples, que seu paladar s se familiarize com os sabores pouco picantes e no forme para si um gosto exclusivo (p. 191). 23. O grande inconveniente dessa primeira educao que ela s perceptvel aos homens clarividentes e, numa criana educada com tanto cuidado, olhos vulgares enxergam apenas um moleque. Um preceptor pensa mais em seus interesses do que nos de seu aluno; tenta provar que no est perdendo tempo e ganha bem o

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dinheiro que lhe do; oferece-lhe um saber de fcil exibio, que se possa mostrar quando se quiser; no que o que lhe ensina seja til, contanto que seja facilmente visvel. Amontoa, sem escolha, sem distino, cem coisas em sua memria. Quando se trata de examinar a criana, fazem-no desembrulhar sua mercadoria; ele a exibe, todos ficam contentes; em seguida, ele embrulha de novo o pacote e vai embora. Meu aluno no to rico assim, no tem pacote para desembrulhar, nada tem para mostrar, a no ser ele mesmo. Ora, uma criana, assim como um homem, no se v num instante. Onde esto os observadores que sabem distinguir ao primeiro olhar os traos que a caracterizam? Tais pessoas existem, mas so poucas; e, dentre cem mil pais, no se encontrar nenhuma delas (p. 209). 24. A inteligncia humana tem seus limites. No somente um homem no pode saber tudo, como nem pode saber completamente o pouco que sabem os outros homens. J que a contraditria de cada proposio falsa uma verdade, o nmero de verdades inesgotvel, assim como o de erros. H, portanto, uma escolha das coisas que devemos ensinar, assim como do tempo prprio para ensin-las. Dos conhecimentos que esto ao nosso alcance, uns so falsos, outros so inteis e outros servem para alimentar o orgulho de quem os tem. Os poucos que realmente contribuem para o nosso bem-estar so os nicos dignos das pesquisas de um homem sbio e, portanto, de uma criana que queiramos tornar sbia. No se trata de saber o que existe, mas apenas o que til (p. 213). 25. Transformemos nossas sensaes em ideias, mas no saltemos de repente dos objetos sensveis para os objetos intelectuais. pelos primeiros que devemos chegar aos outros. Nas primeiras operaes do esprito, sejam os sentidos sempre seus guias: nenhum livro alm do livro do mundo, nenhuma instruo alm a no ser os fatos. A criana que l no pensa, s l; no se instrui, aprende palavras. Tornai vosso aluno atento aos fenmenos da natureza e logo o tornareis curioso; mas, para alimentar sua curiosidade, nunca vos

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apressei em satisfaz-la. Colocai questes ao seu alcance e deixai que ele as resolva. Que nada ele saiba porque lho dissestes, mas porque ele prprio compreendeu; no aprenda ele a cincia, mas a invente. Se alguma vez substituirdes em seu esprito a razo pela autoridade, ele j no raciocinar e no ser mais do que joguete da opinio dos outros (p. 216). 26. medida que a criana progride em inteligncia, outras consideraes importantes obrigam-nos a escolher melhor suas ocupaes. Assim que ela consegue conhecer suficientemente a si mesma para compreender em que consiste o seu bem-estar, assim que ela consegue entender relaes bastante amplas para julgar o que lhe convm e o que no lhe convm, est em condies de perceber a distncia entre o trabalho e a diverso e s considerar esta ltima como descanso do outro. Ento, objetos de utilidade real podem entrar em seus estudos e lev-la a dar-lhes uma ateno mais constante do que dava a meras diverses. Sempre renascente, a lei da necessidade cedo ensina o homem a fazer o que no gosta para prevenir um mal que lhe desagradaria ainda mais. Este o uso da previdncia, e da previdncia bem ou mal ordenada nasce toda a sabedoria ou toda misria humana (p. 232). 27. Para que serve isto? Eis, doravante, a palavra sagrada, a palavra determinante entre ele e mim em todas as aes de nossa vida; eis a questo que de minha parte segue-se infalivelmente a todas as suas perguntas, e que serve de freio quele amontoado de interrogaes tolas e aborrecidas com que as crianas cansam sem cessar e sem resultados todos os que a cercam, mais para exercer sobre eles algum tipo de domnio do que para tirar algum proveito. A criana a quem, como sua mais importante lio, ensinamos a s querer saber coisas teis interroga como Scrates; no faz nenhuma pergunta sem dar a si mesma a razo que sabe que lhe pediro antes de respond-la. Vede que poderoso instrumento coloco entre vossas mos para agir sobre vosso aluno. No sabendo a razo de nada, ei-lo quase

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reduzido ao silncio quando quiserdes; e vs, pelo contrrio, que vantagem vossos conhecimentos e vossa experincia vos do para lhe mostrar utilidade de tudo o que lhe propondes! Pois, no vos enganeis, fazer-lhe essa pergunta ensinar-lhe a faz-la a vs por sua vez, e deveis estar certo de que, sobre tudo o que lhe propuserdes da em diante, ele, seguindo vosso exemplo, no deixar de dizer: Para que serve isto? (pp. 234 e 235). 28. [...] J que precisamos absolutamente de livros, existe um que oferece , ao meu ver, o melhor tratado de educao natural. Ser o primeiro livro que Emlio ler; sozinho, constituir por bastante tempo sua biblioteca inteira, e nela sempre ocupar lugar de destaque. Ser o texto a que todas as nossas conversas sobre as cincias naturais serviro apenas de comentrios. Servir de prova durante o nosso aprendizado sobre o estado de nosso juzo e, enquanto nosso gosto no se corromper, sua leitura sempre nos agradar. Qual , ento, esse livro maravilhoso? Ser Aristteles? Ser Plnio? Buffon? No, Robinson Cruso (p. 244). 29. Uma profisso para meu filho! Meu filho, arteso! Senhor, pensais nisto? Penso melhor do que vs, minha senhora, que quereis reduzi-lo a jamais poder ser seno um lorde, um marqus, um prncipe, e talvez, um dia, menos do que nada; de minha parte, quero dar-lhe uma posio que no possa perder, uma posio que o homem honre em todos os tempos; quero eleva-lo condio de homem e, digais o que dissestes, ele ter menos pares com esse ttulo do que com todos os que receber de vs (pp. 262 e 263). 30. Eis-nos de volta a ns mesmos. Eis nossa criana prestes a deixar de s-lo, de volta ao seu indivduo. Ei-la sentindo mais do que nunca a necessidade que a une s coisas. Depois de ter comeado por exercitar seu corpo e os seus sentidos, exercitamos seu esprito e seu juzo. Finalmente reunimos o emprego de seus membros ao de suas faculdades; fizemos um ser ativo e pensante; para terminar o homem, s nos resta fazer um ser amoroso e sensvel,

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isto , aperfeioar a razo pelo sentimento. Mas, antes de entrar nesta nova ordem das coisas, consideremos a ordem de que samos e vejamos o mais exatamente possvel at onde chegamos. No comeo, nosso aluno s tinha sensaes e agora tem ideias; ele apenas sentia, agora julga. Pois da comparao de vrias sensaes sucessivas e simultneas e do juzo que delas fazemos nasce uma espcie de sensao mista ou complexa que chamo de ideia. A maneira de formar ideias o que d um carter ao esprito humano. O esprito que s forma suas ideias sobre relaes reais um esprito slido; aquele que se contenta com relaes aparentes um esprito superficial; aquele que v relaes tal como so um esprito justo; aquele que as aprecia mal um esprito falso; aquele que inventa relaes imaginrias que no tem nem realidade nem aparncia um louco; aquele que no compara um imbecil. A aptido maior ou menor para comparar ideias e para descobrir relaes o que constitui nos homens mais ou menos esprito, etc. (pp. 274 e 275). 31. Assim que o homem precisa de uma companheira, ele j no um ser isolado, seu corao j no est sozinho. Todas as suas relaes com sua espcie, todas as afeies de sua alma nascem com esta. Sua primeira paixo logo faz fermentarem as outras. A inclinao do instinto indeterminada. Um sexo atrado pelo outro, eis o movimento da natureza. A escolha, as preferncias, o apego pessoal so obra das luzes, dos preconceitos, do hbito. preciso tempo e conhecimento para nos tornarmos capazes do amor; s amamos aps ter julgado, s preferimos aps ter comparado. Esses juzos fazem-se sem que nos demos conta, mas nem por isso so menos reais. Diga-se o que disser, o verdadeiro amor sempre ser honrado pelos homens, pois, embora seus arroubos nos desorientem, embora no exclua do corao que o sente qualidades odiosas, e at mesmo as produza, ele no entanto dispes sempre de qualidades estimveis, sem as quais o homem no estaria em condies de senti-lo. Essa escolha que se pe em

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oposio razo vem-nos dela. Diz-se cego o amor, porque ele tem olhos melhores do que os nossos e v relaes que no conseguimos perceber. Para quem no tivesse ideia alguma de mrito ou de beleza, toda mulher seria igualmente boa, e a primeira a aparecer seria sempre a mais amvel. Longe de vir da natureza, o amor a regra e o freio de suas inclinaes; por ele que, com exceo do objeto amado, um sexo no mais nada para o outro. Queremos obter a preferncia que concedemos; o amor deve ser recproco. Para ser amado, preciso tornar-se amvel; para ser preferido, preciso tornar-se mais amvel do que os outros, mais amvel do que qualquer outro, pelo menos aos olhos do objeto amado. Da os primeiros olhares para os semelhantes; da as primeiras comparaes com eles, da a emulao, as rivalidades, o cime. Um corao cheio de sentimento que transborda gosta de se extravasar; da necessidade de uma amante logo nasce a de um amigo. Quem sente como doce ser amado gostaria de s-lo por todos, e, se todos pudessem querer suas preferncias, haveria muitos descontentes. Com o amor e a amizade nascem os desentendimentos, a inimizade e o dio [...] (pp. 290 e 291). 32. A fraqueza do homem torna-o socivel e nossas misrias comuns levam nossos coraes humanidade; nada lhe deveramos se no fssemos homens. Todo apego sinal de insuficincia; se cada um de ns no tivesse nenhuma necessidade dos outros, no pensaria em unir-se a eles. Assim, de nossa mesma imperfeio nasce nossa frgil felicidade. Um ser realmente feliz um ser solitrio; s Deus goza de felicidade absoluta; quem de ns, porm, tem alguma ideia do que seja isso? Se algum ser imperfeito pudesse bastar-se a si mesmo, de que gozaria ele? Estaria s, seria miservel. No posso conceber que quem de nada precisa possa amar algo; no consigo conceber que quem nada ama possa ser feliz (p. 301). 33. preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade; quem quiser tratar separadamente a poltica e a

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moral nada entender de nenhuma das duas. Abordando primeiramente as relaes primitivas, vemos como os homens devem ser afetados por elas e que paixes devem nascer delas; vemos que em reciprocidade ao progresso das paixes que essas relaes se multiplicam e se estreitam. menos a fora dos braos do que a moderao dos coraes que torna os homens independentes e livres. Quem deseja pouca coisa depende de pouca gente mas, sempre confundindo nossos vos desejos com nossas necessidades fsicas, aqueles que fizeram destas ltimas os fundamentos da sociedade humana sempre tomaram os efeitos pelas causas e apenas se desorientaram em todos os seus raciocnios (p. 325). 34. O que seria preciso, ento, para bem observar os homens? Um grande interesse por conhec-los, uma grande imparcialidade para julg-los, um corao suficientemente sensvel para compreender todas as paixes humanas e suficientemente calmo para no experiment-las. Se h na vida um momento favorvel a esse estudo, este que escolhi para Emlio; mais cedo, ser-lhe-iam estranhos, mais tarde ele seria semelhante a eles. A opinio cujo funcionamento ele v ainda no adquiriu domnio sobre ele; as paixes cujo efeito percebe no abalaram seu corao. Ele homem, interessa-se por seus irmos; equitativo e julga seus pares. Ora, com certeza, se os julgar bem, no querer estar no lugar de nenhum deles, pois a meta de todos os tormentos que causam a si mesmos, estando fundamentados em preconceitos que ele no tem, parece-lhe construda no ar. De sua parte, tudo o que deseja est a seu alcance. De quem dependeria ele, bastando a si mesmo e livre de preconceitos? Ele tem braos, sade, moderado, tem poucas necessidades e tem como satisfaz-las. Tem crescido em meio absoluta liberdade, o maior dos males que pode conceber a servido. Ele tem pena dos miserveis reis, escravos de todos os que lhe obedecem; tem pena dos falsos sbios, acorrentados a sua v reputao; tem pena dos ricos tolos, mrtires de seu luxo; tem

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pena dos voluptuosos de ostentao que entregam a vida inteira ao tdio para parecer que sentem prazer. Teria pena do inimigo que fizesse mal a ele, pois veria sua misria em suas maldades. Pensaria: Ao se dar o trabalho de me prejudicar, este homem fez com que sua sorte dependesse da minha (p. 339). 35. Mas considerai primeiro que, querendo formar o homem da natureza, no se trata por isso de fazer dele um selvagem e de releg-lo ao fundo dos bosques, mas, envolvido em um turbilho social, basta que ele no se deixe arrastar nem pelas paixes nem pelas opinies dos homens; veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu corao; no o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua prpria razo. Nessa posio, claro que a multido de objetos que o impressionam, os frequentes sentimentos de que afetado, os diversos meios de satisfazer suas necessidades reais devem dar-lhe muitas ideias que ele nunca teria, ou que teria adquirido mais lentamente. O progresso natural do esprito acelerado, mas no invertido. O mesmo homem que deve permanecer estpido nas florestas deve tornar-se razovel e sensato nas cidades, se permanecer como mero espectador. Nada mais propcio a nos tornar sbios do que as loucuras que vemos sem compartilhar, e aquele mesmo que as compartilha tambm se instrui, contanto que seja enganado por elas e no cometa o erro dos que as praticam (p. 356). 36. Posso prever como meus leitores ficaro surpresos ao me verem atravessar toda a primeira idade de meu aluno sem lhe falar de religio. [...] Se eu tivesse a estupidez deplorvel, pintaria um pedante a ensinar o catecismo s crianas; se eu quisesse enlouquecer uma criana, obrig-la-ia a explicar o que diz quando recita o catecismo. Objetar-me-o que, sendo mistrios a maioria dos dogmas do cristianismo, esperar que o esprito humano seja capaz de compreend-los no equivale a aguardar que a criana torne-se adulta, mas a aguardar que o homem j no exista. A isso respondo em primeiro lugar que h mistrios que impossvel ao homem no s

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os conceber como acreditar neles, e que no vejo o que se ganha ensinando-os s crianas, a no ser ensin-las a mentir desde cedo. Digo alm disso que so incompreensveis, e as crianas no so capazes nem mesmo dessa concepo. Para a idade em que tudo mistrio, no h mistrios propriamente ditos (p. 360). 37. Na unio dos sexos cada um concorre igualmente para o objetivo comum, mas no da mesma maneira. Desta diversidade nasce a primeira diferena assinalvel entre as relaes morais de um e de outro. Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco; preciso necessariamente que um queira e possa; basta que o outro resista pouco. Estabelecido este princpio, segue-se que a mulher foi feita especialmente para agradar ao homem. Se, por sua vez, o homem deve agradar a ela, isso de necessidade menos direta; seu mrito est na sua potncia, ele agrada s por ser forte. Concordo que essa no a lei do amor, mas a natureza, anterior ao prprio amor. Se a mulher foi feita para agradar e para ser subjugada, deve tornar-se agradvel ao homem em vez de provoc-lo; sua violncia prpria est em seus encantos; por eles que ela deve for-lo a descobrir sua fora e a usar dela. A arte mais certeira de animar essa fora torn-la necessria pela resistncia. Ento o amorprprio une-se ao desejo e um sai vencedor com a vitria que o outro o faz alcanar. Da nascem o ataque e a defesa, a audcia de um sexo e a timidez do outro, enfim, a modstia e a vergonha com que a natureza armou o fraco para sujeitar o forte (p. 517). 38. Eis, portanto, uma terceira consequncia da constituio dos sexos, que a de que o mais forte seja aparentemente o senhor, mas dependa de fato do mais fraco; e isso no por um frvolo costume de galanteria, nem por uma orgulhosa generosidade de protetor, mas por uma invarivel lei da natureza, que, dando mulher maior facilidade de excitar os desejos do que ao homem de satisfaz-los, faz com que este, mesmo contra a sua vontade, dependa do bel-

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prazer do outro sexo e obriga-o tambm a procurar agrad-la para que ela consinta em deix-lo ser o mais forte. Ento, o que h de mais doce para o homem em sua vitria conjecturar se a fraqueza que cede fora, ou se a vontade que se rende; e a astcia comum da mulher sempre deixar essa dvida entre ela e ele. O esprito da mulher neste ponto corresponde perfeitamente sua constituio; longe de corar por sua fraqueza, as mulheres orgulham-se dela; seus tenros msculos no oferecem resistncia, elas dizem no poder carregar os mais leves fardos, e teriam vergonha de ser fortes. Por qu? No apenas para parecerem delicadas, mas por uma precauo mais hbil; preparam de longe as desculpas e o direito de serem fracas quando preciso (p. 519). 39. Por seu lado, as mulheres no param de protestar que ns as educamos para serem vaidosas e coquetes, que ns as divertimos continuamente com puerilidades para permanecermos senhores com maior facilidade. Culpam-nos pelos defeitos que lhe atribumos. Que loucura! E desde quando so os homens que cuidam da educao das moas? O que impede as mes de educ-las como quiserem? Elas no tm colgios: que infelicidade! Ah! Quisera Deus que tampouco existissem colgios para os rapazes! Eles seriam educados de modo mais sensato e honesto. Sero vossas filhas foradas a perder seu tempo com bobagens? Fazem-nas passar, contra a vontade, metade da vida preocupando-se com a aparncia, como vs? Impedem-nos de instru-las e de faz-las serem instrudas como de vosso agrado? Ser culpa nossa se elas nos agradam quando so bonitas, se seus dengues nos seduzem, se a arte que aprendem conosco nos atrai e nos agrada, se gostamos de v-las vestidas com gosto, se deixamos que afiem vontade as armas com que nos subjugam? Ah! Empenhai-vos em educ-las como homens: eles consentiro de corao. Quanto mais se parecerem com eles, menos elas os governaro, e ento sero eles realmente os senhores (p. 525).

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40. Entreguemos ao nosso Emlio a sua Sofia; ressuscitemos essa moa amvel para lhe da uma imaginao menos viva e um destino mais feliz. Queria representar uma mulher comum e, de tanto elevar sua alma, perturbei sua razo; eu mesmo me desorientei. Voltemos atrs. Sofia tem apenas uma boa ndole numa alma comum; tudo o que ela tem a mais do que as outras mulheres fruto de sua educao. meu propsito neste livro dizer tudo o que se podia fazer, deixando a cada um a escolha do que est ao seu alcance no que posso ter dito de bom. Desde o comeo eu pensara em formar de longe a companheira de Emlio, e em educ-los um para o outro. Mas, ao refletir, achei que todas essas combinaes prematuras demais no tinham cabimento e que era absurdo destinar duas crianas a se unirem antes de poder saber se tal unio pertencia ordem da natureza e se teriam entre si as relaes convenientes para realiz-las. No se deve confundir o que natural no estado selvagem com o que natural no estado civil. No primeiro estado todas as mulheres convm a todos os homens, porque ainda s tm a forma primitiva e comum; no segundo, tendo cada carter sido desenvolvido pelas instituies sociais e tendo cada esprito recebido sua forma prpria e determinada, no apenas da educao, mas da contribuio bem ou mal ordenada do temperamento e da educao, agora s podemos uni-los apresentandoos um ao outro, ou para preferir pelo menos a escolha que apresente maior nmero dessas convenincias (pp. 595 e 596). 41. Se quiseres prolongar pela vida inteira o efeito de uma boa educao, conservai ao longo da juventude os bons hbitos da infncia e, quando vosso aluno for o que deve ser, fazei com que seja o mesmo em todos os tempos; eis a ltima perfeio que vos resta dar vossa obra. sobretudo por isso que importante continuar com um preceptor para os rapazes, pois alis no h muito porque temer que no saibam fazer o amor sem ele. O que

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engana os educadores, e principalmente os pais, acreditarem que uma maneira de viver exclui a outra, e que assim que se adulto preciso renunciar a tudo o que se fazia quando pequeno. Se fosse assim, de que serviria cuidar da infncia, j que o bom e o mau uso que dela se fizesse desapareceria com ela e, adquirindo-se maneiras de viver absolutamente diferentes, assumir-se-iam necessariamente outras maneiras de pensar (p. 636). 42. Emlio ama Sofia; quais so, porm, os primeiros encantos que o atraram? A sensibilidade, a virtude, o amor pelas coisas honestas. Ao amar este amor em sua amada, t-lo-ia ele mesmo perdido? Por sua vez, que preo atribuiu Sofia a si mesma? O de todos os sentimentos que so naturais ao corao de seu namorado: a estima dos verdadeiros bens, a frugalidade, a simplicidade, o desinteresse generoso, o desprezo pelo luxo e pelas riquezas. Emlio j tinha essas virtudes antes que o amor lhe impusesse. Em que, ento, Emlio realmente mudou? Ele tem novas razes para ser ele mesmo: este o nico ponto em que est diferente do que era (p. 638). 43. til ao homem conhecer todos os lugares em que pode viver, para que em seguida escolha aqueles onde pode viver mais comodamente. Se cada um bastasse a si mesmo, s lhe importaria conhecer a extenso do pas que pode sustent-lo. O selvagem, que no precisa de ningum e nada ambiciona, no conhece e no procura conhecer outras regies alm da sua. Se forado a se propagar para subsistir, evita os lugares habitados pelos homens; s visa aos animais, e s precisa deles para se alimentar. Quanto a ns, para quem a vida civil necessria e que j no podemos dispensar-nos de comer homens, o interesse de cada um de ns frequentar os pases onde os encontramos em maior nmero para serem devorados. Eis por que tudo aflui para Roma, para Paris e para Londres. sempre nas capitais que se vende o sangue humano mais barato. Assim s conhecemos os grandes povos, e os grandes povos so todos parecidos (pp. 670 e 671).

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44. [...] Digo-lhe ento: Muito bem, meu amigo, lembr