isto não é um programa - tiqqun

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Isto não é um programa TIQQUN Em que se lembra que a “luta contra o terrorismo” não é um artifício da geopolítica recente, e sim um ato constituinte de qualquer soberania há pelo menos sessenta anos, Em que se explica como uma civilização cega pode se encontrar exposta a um inimigo invisível, Em que se elucida o sentido da pichação “mais 77 que 68” feita diante da Sorbonne no vaivém de uma manifestação contra a CPE, Em que nalmente se entende por que a herança do movimento operário cou tão venenosa por todos os lados, Em que se tira do armário o cadáver que os discípulos de Toni Negri levam na boca, Em que se mostra como as estratégias autônomas são as únicas capazes de destruir o Império e como uma máquina de guerra pode não se degenerar na forma de exército ou, simetricamente, em gueto, Em que se estabelece por que, no momento da dominação do visível, nosso partido é considerado imaginário, Em que se lembra que a vitória é possível, provável, necessária, E guerra ao trabalho! TIQQUN foi uma revista francesa dedicada a “exercícios de metafísica crítica”, autodesignada “órgão consciente do Par- tido Imaginário”, foi publicada entre 1999 e 2001. Em suas páginas apareceu pela primeira vez o Comitê Invisível, que tem publicado no Brasil o livro A insurreição que vem (Edições Baratas, 2013). Seus diálogos críticos com a losoa política abarcam um amplo espectro, que vai do movimento okupa a Giorgio Agamben, de Georges Bataille à Autonomia, de Mi- chel Foucault à Internacional Situacionista. TIQQUN é tam- bém a insígnia que aparece em capas de livros como Materiais preliminares para uma teoria da menininha (2001), Teoria do Bloom (2004), Isso não é um programa (2006) e Contribuição à guerra em curso (2009). TIQQUN não é um autor. TIQQUN - Isto não é um programa

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Este livro foi traduzido e editado pela revista de crítica de arte de São Paulo (Brasil) Dazibao (http://dazibao.cc) em 2014. O texto que constitui essa publicação foi publicado pela primeira vez pelo Tiqqun, na segunda edição da apostila com o mesmo nome do "autor", com o subtítulo 'Orgão de ligação de dentro do Partido Imaginário - Zona de Opacidade Ofensiva'. TIQQUN foi uma revista francesa dedicada a “exercícios de metafísica crítica”, que foi publicada entre 1999 e 2001. Em suas páginas apareceu pela primeira vez o Comitê Invisível, que também se configura como um grupo que vêm escrevendo textos insurrecionais e de análise da crise contemporânea.

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  • Isto no um programaTIQQUNEm que se lembra que a luta contra o terrorismo no um

    artifcio da geopoltica recente, e sim um ato constituinte de qualquer soberania h pelo menos sessenta anos,

    Em que se explica como uma civilizao cega pode se encontrar exposta a um inimigo invisvel,

    Em que se elucida o sentido da pichao mais 77 que 68 feita diante da Sorbonne no vaivm de uma manifestao contra a CPE,

    Em que !nalmente se entende por que a herana do movimento operrio !cou to venenosa por todos os lados,

    Em que se tira do armrio o cadver que os discpulos de Toni Negri levam na boca,

    Em que se mostra como as estratgias autnomas so as nicas capazes de destruir o Imprio e como uma mquina de guerra pode no se degenerar na forma de exrcito ou, simetricamente, em gueto,

    Em que se estabelece por que, no momento da dominao do visvel, nosso partido considerado imaginrio,

    Em que se lembra que a vitria possvel,provvel,necessria,

    E guerra ao trabalho!

    TIQQUN foi uma revista francesa dedicada a exerccios de metafsica crtica, autodesignada rgo consciente do Par-tido Imaginrio, foi publicada entre 1999 e 2001. Em suas pginas apareceu pela primeira vez o Comit Invisvel, que tem publicado no Brasil o livro A insurreio que vem (Edies Baratas, 2013). Seus dilogos crticos com a !loso!a poltica abarcam um amplo espectro, que vai do movimento okupa a Giorgio Agamben, de Georges Bataille Autonomia, de Mi-chel Foucault Internacional Situacionista. TIQQUN tam-bm a insgnia que aparece em capas de livros como Materiais preliminares para uma teoria da menininha (2001), Teoria do Bloom (2004), Isso no um programa (2006) e Contribuio guerra em curso (2009).

    TIQQUN no um autor.

    TIQQUN

    - Isto no um program

    a

  • Isto no um programa

    TIQQUN

  • ndice

    nota da edio 5

    rede!nir a con"ituosidade histrica! 7

    extirpar-se da morti!cao francesa! 15

    maio rastejante contra maio triunfante! 19

    o partido imaginrio e o movimento operrio 25

    esmagar o socialismo! 29

    armar o partido imaginrio! 39

    a autonomia vencer! 57

    viver-e-lutar 69

    os infortnios do guerreiro civilizado 79

    guerrilha difusa! 89

    e o Estado naufraga no partido imaginrio... 98

    a fbrica do cidado 112

    a tradio da biopoltica 120

    refutao do negri-ismo 131

    e guerra ao trabalho! 140

    notas 154

  • 5nota da edio

    As citaes que aparecem ao longo do texto ora foram tra-duzidas de suas lnguas originais, ora retiradas de edies consolidadas em portugus, ora feitas a partir da edio francesa, conforme indicado.

    O texto original de Isto no um programa (TIQQUN, Ceci nest pas un programme. Rouen: ditions VLCP, 2006) no apresenta notas explicativas ou bibliogr!cas. Considerando-se a situao espec!ca do leitor brasileiro alheio ao (ou ao menos distanciado do) contexto da pu-blicao original , optou-se aqui por incluir tais notas, conforme a edio estadunidense (TIQQUN, !is is not a program. Los Angeles: Semiotext(e), 2011). Assim, as referncias bibliogr!cas no corpo do texto foram man-tidas como no original e completadas em nota de rodap por pesquisa desta traduo ou partindo do que j havia sido estabelecido na edio estadunidense. Procedeu-se do mesmo modo com as notas explicativas sobre siglas, gru-pos polticos ou conceitos.

  • redefinir a conflituosidade histrica!

    No acredito que as pessoas simples pensem que exista, a

    curto prazo, o risco de uma dissoluo rpida e violenta do

    Estado e de uma guerra civil aberta. Em vez disso, o que

    ganha espao a ideia de uma guerra civil latente, para

    empregar uma forma jornalstica, de uma guerra civil de

    posio que retiraria toda a legitimidade do Estado.

    Terrorisme et dmocratie, ditions sociales, 1978. 1

    7

  • 8De novo a experimentao s cegas, sem protocolo ou quase isso. To pouco nos foi transmitido; esta talvez pu-desse ser uma oportunidade. De novo a ao direta, a des-truio sem sentenas, o enfrentamento bruto, recusa de qualquer mediao: aqueles que no querem compreender no obtero nenhuma explicao de nossa parte. De novo o desejo, o plano de consistncia2 de tudo o que fora re-primido por vrias dcadas de contrarrevoluo. De novo tudo isso, a autonomia, o punk, a orgia, a revolta, mas sob um prisma indito, amadurecido, pensado, desembaraa-do das esquivas do novo.

    Por meio de muita arrogncia, operaes da polcia in-ternacional e comunicados de vitria permanente, um mundo que se apresentava como sendo o nico possvel, como o coroamento da civilizao, soube se tornar violen-tamente detestvel. Um mundo que acreditava ter esva-ziado seu entorno descobre o mal nas suas entranhas, em meio a seus !lhos. Um mundo que celebrou uma vulgar mudana de ano como uma mudana milenar comea a temer por seu milnio. Um mundo que se posicionou de maneira durvel sob o signo da catstrofe percebe a con-tragosto que o desmoronamento do bloco socialista no pressagiava seu triunfo, mas sim a inelutabilidade de seu

  • 9prprio desmoronamento. Um mundo que se fartava com os sons do !m da Histria, do sculo americano e da falha do comunismo dever pagar por sua leveza.

    Nessa conjuntura paradoxal, esse mundo, ou seja, no fun-do, sua polcia, recompe um inimigo altura, folclrico. Ele fala de Black Bloc, de circo anarquista itinerante, de uma ampla conspirao contra a civilizao. Ele faz pensar na Alemanha descrita por Von Salomon em Os Reprova-dos,3 assombrada pelo fantasma de uma organizao secre-ta, a O.C., que se expande como uma nuvem carregada de gs e a quem SE4 atribui todos os re"exos intensos de uma realidade sujeita guerra civil. Uma conscincia culpada busca conjurar a fora que a ameaa. Ela cria para si um espantalho a que possa importunar de acordo com sua von-tade, e acredita, assim, garantir sua segurana, no isso?

    Afora essas elucubraes convencionais da polcia impe-rial, no h legibilidade estratgica nos acontecimentos atuais. No h legibilidade estratgica nos acontecimentos atuais porque isso suporia a constituio de algo comum, algo minimamente comum entre ns. E esse algo comum assusta a todo mundo, faz Bloom5 recuar, provoca suor e estupor porque leva a univocidade at o centro de nossas

  • 10

    vidas suspensas. De modo geral, aprendemos o hbito dos contratos. Fugimos de tudo o que se parea com um pacto, porque um pacto no pode ser rescindido; ou ele respeitado ou trado. E, no fundo, isso o mais dif-cil de entender: que o impacto de uma negao depende da positividade de algo comum; que a nossa maneira de dizer eu que determina a fora da nossa maneira de di-zer no. Muitas vezes !camos admirados com a ruptura de qualquer transmisso histrica, com o fato de que, h pelo menos cinquenta anos, mais nenhum pai seja capaz de contar sua vida a seus !lhos, de fazer uma narrativa disso que no seja um descontnuo salpicado de anedotas ridculas. O que se perdeu, na verdade, foi a capacidade de estabelecer uma relao comunicvel entre nossa his-tria e a Histria. No fundo disso tudo, existe a crena de que, renunciando a qualquer existncia singular, abdican-do de qualquer destino, ganharamos um pouco de paz. Os Bloom acreditaram que bastava desertar do campo de batalha para que a guerra parasse. Mas no foi nada disso. A guerra no parou, e aqueles que se recusavam a assu-mir isso atualmente se encontram apenas um pouco mais desarmados, um pouco mais des"gurados que os outros. Todo o grandioso magma de ressentimento que borbulha hoje nas entranhas dos Bloom, e que jorra num desejo para

  • 11

    sempre no cumprido de ver cabeas rolando, de encontrar culpados, de obter uma espcie de penitncia generalizada por toda a histria passada, brota da. Temos necessidade de uma rede!nio da con"ituosidade histrica que no intelectual, vital.

    Eu digo rede"nio porque uma de!nio da con"ituosi-dade histrica nos precede, e a ela era reportado qualquer destino no perodo pr-imperial: a luta de classes. Essa de!-nio no funciona mais. Ela condena paralisia, m-f e falao. Mais nenhuma guerra pode ser empreendida, nenhuma vida pode ser vivida nessa armadura de outra poca. Para continuar na luta hoje, preciso livrar-se da noo de classe e, junto, tambm de todo seu cortejo de origens certi!cadas, de sociologismos reconfortantes, de prteses de identidade. A noo de classe atualmente s serve para organizar a banheira de neuroses, de separao e de processo permanente na qual SE deleita de maneira to mrbida na Frana em todos os meios e h tanto tem-po. A con"ituosidade histrica no ope mais dois gran-des aglomerados molares, duas classes, os explorados e os exploradores, os dominantes e os dominados, os dirigentes e os executantes, entre os quais, a cada caso, seria possvel traar uma separao. A linha de frente no passa mais

  • 12

    bem no meio da sociedade, mas sim bem no meio de cada um, entre o que faz de algum um cidado, seus predica-dos, e o restante. Da mesma forma, em cada meio que a guerra se sujeita entre a socializao imperial e aquilo que desde j lhe escapa. Um processo revolucionrio pode ser empenhado a partir de qualquer ponto do tecido biopol-tico, a partir de qualquer situao singular, acusando at a ruptura da linha de fuga que a atravessa. Na medida em que ocorrem tais processos e rupturas, existe um plano de consistncia que lhes comum, o da subverso anti-impe-rial. O que d generalidade luta o prprio sistema do poder, todas as suas formas de exerccio e aplicao.6 A esse plano de consistncia chamamos de Partido Imagin-rio, para que em seu prprio nome !que exposto o artifcio de sua representao nominal e, a fortiori, poltica. Como todo plano de consistncia, o Partido Imaginrio est, ao mesmo tempo, j atuando e sendo construdo. Construir o Partido, daqui em diante, no quer mais dizer construir a organizao total dentro da qual todas as diferenas ti-cas poderiam ser colocadas entre parnteses em vista da luta; construir o Partido, de agora em diante, quer dizer estabelecer as formas de vida em suas diferenas, intensi"-car, complexi"car as relaes entre elas, e elaborar entre ns a guerra civil da maneira mais sutil possvel. Uma vez que o

  • 13

    mais temvel estratagema do Imprio amalgamar numa grande representao de destaque a da barbrie, das faces, do terrorismo, qui at dos extremismos opostos tudo o que se ope a ele, lutar contra ele pas-sa essencialmente pelo fato de nunca deixar confundir as fraes conservadoras do Partido Imaginrio milicianos libertrios, anarquistas de direita, fascistas insurrecionais, jihadistas qutbistas, partidrios da civilizao camponesa com suas fraes revolucionrio-experimentais. Assim, construir o Partido no se coloca mais em termos de orga-nizao, mas em termos de circulao. Isso signi!ca que, se ainda h um problema de organizao, este o da organizao da circulao dentro do Partido. Pois somente a intensi!cao e a elaborao de encontros entre ns po-dem contribuir para o processo de polarizao tica e para a construo do Partido.

    certo que a paixo pela Histria , de modo geral, com-partilhada por corpos incapazes de viver o presente. Por isso, no considero despropositado voltar s aporias do ciclo de lutas iniciado no comeo dos anos 60, agora que um novo ciclo se abre. Nas pginas seguintes, sero feitas vrias referncias Itlia dos anos 70, uma escolha que no arbitrria. Se eu no receasse me prolongar muito,

  • 14

    mostraria facilmente como aquilo que ento estava em jogo, em sua forma mais desnudada e brutal, ainda conti-nua, em grande medida, da mesma forma para ns ainda que os nimos por ora estejam menos extremados. Guat-tari escreveu em 1978: Mais do que considerar a Itlia como um caso parte, cativante, mas aberrante no !nal das contas, no deveramos buscar esclarecer de fato ou-tras situaes sociais, polticas e econmicas, de aparncia mais estvel, oriundas de um poder estadstico mais bem assegurado, por meio da leitura das tenses com as quais esse pas lida hoje?7 A Itlia dos anos 70 continua sendo, em todos os aspectos, o momento de insurreio mais pr-ximo de ns. desse ponto que devemos partir, no para contar a histria de um movimento passado, mas para a!ar as armas da guerra em andamento.

  • extirpar-se da mortificao francesa!

    15

  • 16

    Ns, que operamos provisoriamente na Frana, no leva-mos vida fcil. Seria absurdo negar que as condies em que conduzimos nossas atividades so determinadas, e at mesmo sordidamente determinadas. parte o fanatismo da separao que imprimiu nos corpos uma educao de Estado soberana, e que faz da escola a inconfessvel utopia plantada em todos os crnios franceses, existe essa descon-!ana, essa descon!ana pegajosa em relao vida, em relao a tudo o que existe sem se desculpar por isso. E a reti-rada do mundo na arte, na !loso!a, na boa mesa, em sua prpria casa, na espiritualidade ou na crtica como linha de fuga exclusiva e impraticvel a partir da qual se nu-tre o espessamento dos "uxos de morti!cao local. Uma retirada umbilical que convoca a onipresena do Estado francs, esse mestre desptico que parece agora governar at mesmo suas contestaes cidads. Assim caminha a grande sarabanda dos crebros franceses, cautelosos, pa-ralisados e retorcidos, que nunca terminam de se retorcer dentro de si prprios e, a cada segundo, se sentem mais ameaados por alguma coisa que venha lhes tirar de sua tristeza complacente.

    Quase em todo o mundo, os corpos debilitados tm algum cone histrico do ressentimento a que se apegar, algum

  • 17

    movimento facistoide orgulhoso que repinta em grande estilo o braso da reao. Na Frana, nada disso. O con-servadorismo francs nunca teve estilo. E nunca o teve por ser um conservadorismo burgus, um conservadorismo do estmago. Que ele tenha se elevado, com esforo, ao posto de re"exividade doentia, no muda nada. No o amor por um mundo em vias de ser liquidado que lhe move, mas sim o terror da experimentao, da vida, da experi-mentao-vida. Nesse conservadorismo, enquanto subs-trato tico de corpos especi!camente franceses, se distin-gue todo tipo de posio poltica, todo tipo de discurso. ele que estabelece a continuidade existencial, tanto secreta quanto bvia, que sela o pertencimento de Bov,8 do bur-gus do XVIIe arrondissement, do escrivo da Encyclopdie des Nuisances9 e do notvel provinciano ao mesmo partido. Em seguida, pouco importa que os corpos em questo en-contrem ou no reservas a pronunciar em relao ordem existente; vemos claramente se tratar da mesma paixo das origens, das rvores, do chiqueiro e dos vilarejos que se pronunciam hoje contra a especulao !nanceira mundial e que amanh ir reprimir o menor movimento de dester-ritorializao revolucionria. O mesmo odor de merda que exala das bocas que s sabem falar em nome do estmago est por todos os lados.

  • 18

    A Frana certamente no seria a ptria do cidadanismo mundial de se temer que, num futuro prximo, o Le Monde Diplomatique no seja traduzido em tantas lnguas quanto O Capital , epicentro ridculo de uma contesta-o fbica que ambiciona desa!ar o Mercado em nome do Estado, caso no SE tivesse conseguido chegar a esse ponto impermevel a tudo aquilo de que somos contemporneos politicamente, especialmente Itlia dos anos 70. desse capricho bloomesco de deixar o mundo histrico que se observa, de Paris a Porto Alegre, um pas por vez, a expan-so agora mundial da ATTAC.10

  • maio rastejante contra maio triunfante!

    77 no foi como 68. 68 foi contestador, 77 foi radical-

    mente alternativo. Por esse motivo, a verso o"cial

    apresenta 68 como o bom e 77 como o mau; na verda-

    de, 68 foi recuperado enquanto 77 foi negado. Por esse

    motivo, diferente de 68, 77 nunca poder ser objeto de

    uma celebrao fcil.

    Nanni Balestrini e Primo Moroni, LOrda doro. 11

    19

  • 20

    A novidade de uma situao de insurreio na Itlia, situ-ao que durava mais de dez anos e qual no SE conse-guiu colocar um !m seno com a priso de mais de 4.000 pessoas em uma noite, ameaava repetidamente chegar at a Frana nos anos 70. Houve, a princpio, as greves selva-gens do Outono Quente (1969) que foram vencidas pelo Imprio com o massacre a bombas na Piazza Fontana. Os franceses, cuja classe operria (s) tirava a bandeira ver-melha da revoluo proletria das frgeis mos dos estu-dantes para assinar os acordos de Grenelle, no podiam ento acreditar que um movimento vindo das universi-dades pudesse amadurecer a ponto de atingir as fbricas. Com todo o rancor de sua relao abstrata com a classe operria, eles se sentiam vivamente atingidos, o maio de-les tinha sido menos impactante. Assim, deram situao italiana o nome de maio rastejante.

    Dez anos depois, quando j estvamos celebrando a me-mria do acontecimento primaveril e que seus elementos mais de!nidos tinham se integrado suavemente s insti-tuies republicanas, novos ecos chegavam da Itlia. Era mais confuso, s vezes porque os paci!cados crebros fran-ceses j no compreendiam grande coisa da guerra em que todavia estavam envolvidos, e tambm porque rumores

  • 21

    contraditrios falavam tanto de prisioneiros revoltados quanto de contracultura armada, de Brigadas Vermelhas (BR)12 e de outras coisas que eram um pouco fsicas demais para que SE pudesse entender na Frana. Esticvamos um pouco as orelhas por curiosidade, para depois voltar s nossas pequenas insigni!cncias nos dizendo que, deci-didamente, eram bem ingnuos esses italianos que conti-nuavam a se revoltar quando ns j estvamos comemo-rando. Voltou-SE ento a assumir a posio de denunciar os gulags, os crimes do comunismo e outras delcias da nova !loso!a. Assim, evitava-SE ver que, na Itlia, se revoltavam contra aquilo que o maio de 68, por exemplo, tinha se tornado na Frana apreender que o movimento italiano contestava os professores que se glori!cavam de um passado soixante-huitard13 porque eram, na verdade, os mais ferozes campees da normalizao socialdemocra-ta (Tutto Citt 77), certamente conferia aos franceses um sentimento desagradvel de histria imediata. Resguar-dando a honra, SE con!rmava, ento, a certeza do maio rastejante, graas ao qual SE podia guardar longe da vista esse movimento de 77, a partir do qual tudo ainda vir.

    Kojve, que era inigualvel em apreender o que importa, en-terrou o maio francs com uma bela frmula. Alguns dias

  • 22

    antes de sucumbir a uma crise cardaca numa reunio da OCDE,14 ele declarou o seguinte sobre os acontecimen-tos: No houve morte. No aconteceu nada. Natural-mente, era preciso um pouco mais para enterrar o maio rastejante italiano. Foi quando surgiu outro hegeliano, que tinha um crdito no menor do que o primeiro, mas oriundo de outros meios. Disse ele: Escutem, escutem, no aconteceu nada na Itlia. So s alguns desesperados manipulados pelo Estado que, para aterrorizar a popula-o, sequestraram homens polticos e mataram alguns ma-gistrados. Nada de notvel, como vocs bem podem ver. Assim, graas interveno sensata de Guy Debord, nunca soubemos, do lado de c dos Alpes, que algo acontecia na Itlia nos anos 70. At hoje, todas as iluminaes francesas em relao a isso se reduziram a especulaes platnicas sobre a manipulao das BR por este ou aquele servio do Estado e o massacre da Piazza Fontana. Se Debord foi um mediador execrvel do que a situao italiana continha de explosiva, por outro lado, ele introduziu na Frana o es-porte favorito do jornalismo italiano: a retrologia. Por re-trologia disciplina cujo axioma primordial poderia ser a verdade est em outro lugar , os italianos designam esse jogo de espelhos paranoico ao qual se dedica aquele que no pode mais acreditar em nenhum acontecimento e em

  • 23

    nenhum fenmeno vital, e que deve, por isso, ou seja, por causa de sua doena, supor a ao de algum por trs do que acontece a loja P2, a CIA, o Mossad ou ele prprio. Ganha aquele que fornecer a seus camaradinhas os motivos mais slidos para descon!ar da realidade.

    Passamos a entender melhor por que os franceses falam de um maio rastejante em relao Itlia. porque eles tm um maio orgulhoso, pblico, de Estado.

    Maio de 68, em Paris, pde se manter como smbolo do antagonismo poltico mundial dos anos 60-70 na medida exata em que a realidade deste estava em outro lugar.

    No entanto, nenhum esforo foi empreendido para trans-mitir aos franceses um pouco da insurreio italiana; houve os Mil plats e a Revoluo molecular, houve a Au-tonomia e o movimentos dos squats, mas nada que fosse vigorosamente armado para perfurar a muralha de men-tiras do esprito francs. Nada que SE pudesse !ngir no ter visto. Em vez disso, preferia-SE falar da Repblica, da Escola e da Seguridade Social, da Cultura, da Moderni-dade e do Vnculo Social, do Mal-estar das Periferias, da Filoso!a e do Servio Pblico. E ainda disso que SE fala

  • 24

    quando os servios imperiais ressuscitam a estratgia da tenso na Itlia. Decididamente, falta um elefante nessa loja de cristais. Algum que coloque na mesa de maneira um pouco grosseira e de uma vez por todas as provas so-bre as quais todo mundo est sentado, correndo o risco de quebrar um pouco esse andaime ideal.

    Quero falar aqui, entre outros, aos camaradas, queles com quem eu sei poder partilhar o partido. Estou um pouco cansado do confortvel retardo terico da ultra-esquerda francesa. Estou cansado de ouvir h dcadas os mesmos falsos debates de um submarxismo retrico: espontaneidade ou organizao, comunismo ou anarquis-mo, comunidade humana ou individualidade rebelde. Ainda existem partidrios do bordiguismo, do maosmo e do conselhismo na Frana. Isso sem falar dos peridicos revivals trotskistas e do folclore situacionista.

  • o partido imaginrio e o movimento operrio

    O que estava acontecendo naquele momento "cou claro:

    o sindicato e o PCI15 te atacavam como a polcia, como

    os fascistas. Naquele momento "cou claro que havia

    uma ruptura irremedivel entre eles e ns. Ficou claro

    a partir daquele instante que o PCI no teria mais di-

    reito de fala no movimento.

    Uma testemunha dos enfrentamentos de 17 de fe-

    vereiro de 1977 diante da Universidade de Roma,

    citado em LOrda doro.

    25

  • 26

    Em seu ltimo livro, Mario Tronti constata que o mo-vimento operrio no foi vencido pelo capitalismo; o movimento operrio foi vencido pela democracia. Mas a democracia no venceu o movimento operrio como uma criatura estranha a ele: ela o venceu como seu limite interno. A classe operria foi, apenas de forma passageira, o lugar privilegiado do proletariado, do proletariado enquanto classe da sociedade civil que no seja uma classe da socie-dade civil, enquanto estamento que seja a dissoluo de todos os estamentos (Marx).16 A partir do entreguerras, o proletariado comea claramente a transbordar a classe operria, a ponto das fraes mais avanadas do Partido Imaginrio comearem a reconhecer nela, em seu traba-lhismo fundamental, em seus supostos valores, em sua satisfao classista de si prpria, en!m, em sua situao de classe homloga da burguesia, o seu inimigo mais temvel e o mais potente vetor de integrao sociedade do Capital. O Partido Imaginrio ser, portanto, a forma de apario do proletariado.

    Em todos os pases ocidentais, 68 marca o encontro e o confronto entre o velho movimento operrio, fundamen-talmente socialista e senescente, e as primeiras fraes cons-titudas do Partido Imaginrio. Enquanto dois corpos se

  • 27

    confrontam, a direo resultante desse encontro depende da inrcia e da massa de cada um deles. O mesmo acontece em cada pas. Nos lugares onde o movimento operrio ain-da era vigoroso, como na Itlia e na Frana, os magros des-tacamentos do Partido Imaginrio se in!ltraram em suas formas carcomidas e delas macaquearam tanto a linguagem quanto os mtodos. Assistamos, assim, ao renascimento de prticas militantes do tipo Terceira Internacional. Foi a histeria dos grupelhos e a neutralizao na abstrao polti-ca. Foi, ento, o breve triunfo do maosmo e do trotskismo na Frana (GP, PC-mlF, UJC-ml, JCR, Parti des Travail-leurs etc.), dos partitini ou partidinhos (Lotta Continua, Avanguardia Operaia, MLS, Potere Operaio, Manifesto)17 e outros grupos extraparlamentares na Itlia. Nos lugares onde o movimento operrio fora liquidado h muito, como nos Estados Unidos ou na Alemanha, houve uma passagem imediata da revolta estudantil luta armada, passagem em que a hiptese de prticas e tticas prprias ao Partido Ima-ginrio foi mascarada por um verniz de retrica socialista, qui terceiro-mundista. Na Alemanha, foi o movimento de 2 de junho, a Rote Armee Fraktion (RAF) ou a Rote Zellen, e, nos Estados Unidos, o Black Panther Party, os Weathermen, os Diggers ou a Manson Family, emblema de um movimento prodigioso de desero interna.

  • 28

    O elemento prprio da Itlia, nesse contexto, foi que o Partido Imaginrio, tendo con"udo em massa nas estru-turas de carter socialista dos partitini, ainda encontrou foras para faz-los explodir. Quatro anos depois que 68 manifestou a crise da hegemonia do movimento operrio (R. Rossanda), a bala que at ento tinha falhado acabou disparando por volta de 1973 para despertar o nascimento do primeiro levante de envergadura do Partido Imaginrio em uma regio-chave do Imprio: o movimento de 77.

    O movimento operrio foi vencido pela democracia, ou seja, nada do que oriundo dessa tradio est em con-dies de enfrentar a nova con!gurao de hostilidades. Pelo contrrio. Quando o hostis18 no mais uma poro da sociedade a burguesia , mas sim a sociedade enquan-to tal, enquanto poder, e que nos percebemos tendo de lu-tar no contra as tiranias clssicas, mas contra as democra-cias biopolticas, sabemos que todas as armas, assim como todas as estratgias, esto por ser reinventadas. O hostis se chama Imprio e, para ele, somos o Partido Imaginrio.

  • esmagar o socialismo!

    No sois do castelo, no sois da aldeia, no sois nada.

    Franz Kafka, O Castelo. 19

    29

  • 30

    O elemento revolucionrio o proletariado, a plebe. O proletariado no uma classe. Como j sabiam os alemes do sculo passado, es gibt Pbel in allen Stnden, a ple-be existe em todas as classes. A pobreza em si no torna ningum parte da plebe: esta s determinada como tal pelo estado de nimo que se combina com a pobreza, pela revolta interna contra os ricos, contra a sociedade, contra o governo, etc. A isso est ligado, ademais, que o homem, porque est entregue contingncia, torna-se leviano e avesso ao trabalho, como, por exemplo, os lazzaroni em Npoles. (Hegel, Princpios da "loso"a do direito, aditivo ao 244)20 A cada tentativa de se de!nir como classe, o proletariado esvaziou-se de si prprio, tomando como mo-delo a classe dominante, a burguesia. Enquanto no classe, o proletariado no se ope burguesia, mas sim pequena burguesia. Enquanto o pequeno-burgus acredita poder se desvencilhar nitidamente do jogo social, ele persuadido a acreditar que se sair bem ao faz-lo individualmente; j o proletrio sabe que seu prprio destino depende de sua colaborao com os seus e que precisa deles para continuar a ser, ou seja: que sua existncia individual , a princpio, coletiva. Em outros termos: o proletrio aquele que expe-riencia a si mesmo como forma de vida. Ou ele comunista, ou no nada.

  • 31

    A cada poca, a forma de apario do proletariado se re-de!ne em funo da con!gurao geral das hostilidades. A mais lamentvel confuso em relao a isso diz respei-to classe operria. Como tal, a classe operria sempre foi hostil ao movimento revolucionrio e ao comunismo. Ela no foi socialista por acaso, ela o foi por essncia. Se tirarmos dele os elementos plebeus, o que signi!ca preci-samente aquilo que ele no podia reconhecer como ope-rrio, o movimento operrio coincide ao longo de toda sua existncia com a parte progressista do capitalismo. De fevereiro de 1848 at as utopias autogestionrias dos anos 70, passando pela Comuna, o movimento operrio ape-nas reivindicou para seus elementos mais radicais o direi-to dos proletrios de gerir o Capital por conta prpria. Na realidade, somente trabalhou pela ampliao e aprofun-damento da base humana do Capital. Os regimes ditos socialistas realizaram seu programa verdadeiramente: a integrao de todos relao capitalista de produo e a insero de cada um no processo de valorizao. Em recompensa, seu desmoronamento apenas atesta a impos-sibilidade do programa capitalista total. Assim, foi pelas lutas sociais, e no contra elas, que o Capital se instalou no interior da humanidade, que esta se reapropriou efeti-vamente dele at tornar-se, estritamente falando, o povo do

  • 32

    capital. Ento, o movimento operrio foi essencialmente um movimento social, e como tal que ele se perpetua. Em maio de 2001, um chefe menor dos Tute bianche21 ita-lianos veio explicar aos jovens imbecis do Socialisme par en bas22 como se tornar um interlocutor !vel do poder, como entrar pela janela no jogo da poltica clssica. Ele explicava, dessa forma, o funcionamento dos Tute bian-che: Para ns, os Tute bianche simbolizam todos os su-jeitos ausentes da poltica institucional, todos aqueles que no so representados por ela: os imigrantes ilegais, os jo-vens, os trabalhadores em situao precria, os drogados, os desempregados, os excludos. O que queremos dar uma representao a essas pessoas que no a tm. Nisso, o movimento social de hoje, com seus neossindicalistas, seus militantes informais, seus porta-vozes espetaculares, seu stalinismo nebuloso e seus micropolticos, herdei-ro do movimento operrio: ele pechincha com os rgos conservadores do Capital a integrao dos proletrios ao processo reformado de valorizao. Em troca de um reco-nhecimento institucional incerto incerto em virtude da impossibilidade lgica de representar o no representvel, o proletariado , o movimento operrio e, posteriormen-te, social se engajou em garantir a paz social ao Capital. Quando Susan George, uma de suas musas desrticas,

  • 33

    denuncia depois de Gotemburgo esses arruaceiros cujos mtodos so to antidemocrticos quanto as instituies que pretendem contestar, ou quando em Gnova os Tute bianche denunciam aos policiais supostos elementos inen-contrveis dos Black Bloc os quais eles difamam pa-radoxalmente como sendo in!ltrados pela mesma polcia , os representantes do movimento social nunca deixam de me lembrar a reao do partido operrio italiano con-frontado ao movimento de 77. L-se no relatrio apresen-tado por Paolo Bufalini em 18 de abril de 1978 ao Comit Central do PCI: As massas populares, todos os cidados com sentimentos democrticos e cvicos, continuaro seus esforos para dar uma contribuio preciosa s foras da ordem, aos agentes e aos militares envolvidos na luta con-tra o terrorismo. A contribuio mais importante deles o isolamento poltico e moral dos brigatisti vermelhos, seus simpatizantes e apoiadores, para retirar deles todos os libis, todas as colaboraes externas, todos os pontos de apoio. Em relao a eles, trata-se de isol-los, de deix-los como peixes fora dgua. No se trata de um trabalho pe-queno, se imaginarmos como os participantes dessas ativi-dades criminosas devem ser numerosos. Como ningum tem mais interesse do que ele na manuteno da ordem, o movimento social esteve, est e estar na vanguarda da

  • 34

    guerra travada contra o proletariado. De agora em diante, contra o Partido Imaginrio.

    Nada melhor do que a histria do maio rastejante para demonstrar a maneira pela qual o movimento operrio sempre foi veculo da Utopia-Capital, aquela da comuni-dade do trabalho, onde existem somente produtores, sem desocupados nem desempregados, e que faria a gesto do capital sem crises nem desigualdades, formando-se assim a Sociedade (Philippe Riviale, La ballade du temps pas-s).23 De maneira oposta ao que sugere a expresso, o maio rastejante no foi nem um pouco um processo contnuo, disseminado ao longo de dez anos; pelo contrrio, foi um coro muitas vezes cacofnico de processos revolucionrios locais que moviam-se sozinhos, cidade a cidade, de acordo com um ritmo prprio feito de suspenses e retomadas, de estagnaes e aceleraes, e que respondiam umas s ou-tras. No entanto, uma ruptura decisiva surgiu na opinio geral com a adoo, por parte do PCI, da linha poltica do compromisso histrico, em 1973. O perodo anterior, de 1968 a 1973, havia sido marcado pela luta entre o PCI e os grupos extraparlamentares pela hegemonia da representa-o do novo antagonismo social. Em outros lugares, hou-vera o sucesso efmero da segunda ou nova esquerda.

  • 35

    A questo desse perodo era aquilo que SE chamava de sada poltica, ou seja, a traduo das lutas concretas numa gesto alternativa e ampliada do Estado capitalista. Lutas que o PCI encarava a princpio com bons olhos, at mesmo a incentivando aqui e ali, pois isso contribua para aumentar seu poder contratual. Mas, a partir de 1972, o novo ciclo de luta comea a vacilar em escala mundial. Torna-se urgente para o PCI monetizar o mais rpido possvel uma capacidade social de incmodo que estava em queda livre. Alm disso, a lio chilena um partido socialista cuja adeso ao poder resultou, em pouco tem-po, num golpe imperial teleguiado tende a dissuadi-lo de alcanar sozinho a hegemonia poltica. Ento, o PCI elabora a linha do compromisso histrico. Com a reunio do partido operrio ao partido da ordem e o encerramento subsequente da esfera da representao, toda mediao po-ltica se dissimula. O Movimento se encontra s consigo mesmo, impedido de elaborar sua prpria posio alm de um ponto de vista de classe; os grupos extraparlamentares e sua fraseologia so brutalmente desertados; sob efeito pa-radoxal da palavra de ordem des/agregazione, o Partido Imaginrio comea a se formar em plano de consistncia. Diante dele, a cada nova etapa do processo revolucionrio, logicamente o PCI que ele encontrar como o adversrio

  • 36

    mais resoluto. Os enfrentamentos mais difceis do movi-mento de 77 sejam aqueles de Bolonha ou os da Uni-versidade de Roma, com os autonomistas e os ndios Me-tropolitanos de um lado, e o servio de ordem de Luciano Lama, lder da CGIL,24 e a polcia do outro , colocaro o Partido Imaginrio em con"ito com o partido operrio; e, mais tarde, sero naturalmente os magistrados verme-lhos que lanaro a ofensiva judicial antiterrorista de 1979-1980 e sua sucesso de investidas. a que devemos buscar a origem do discurso cidado que perora na Frana atualmente, e nesse contexto que sua funo estratgi-ca ofensiva deve ser apreciada. Escrevem os membros do PCI: Est bem claro que os terroristas e os militantes da subverso se propuseram a frustrar a marcha progressiva dos trabalhadores rumo direo poltica do pas, a causar dano estratgia fundada sobre a extenso da democracia e sobre a participao das massas populares, a recolocar em questo as escolhas da classe operria para poder en-volv-la num confronto direto, numa lacerao trgica do tecido democrtico. [...] Se uma grande mobilizao po-pular se cria no pas, se as foras democrticas acentuam sua ao unitria, se o governo sabe dar diretivas !rmes aos aparelhos de Estado reformados de maneira adequada e tornados mais e!cazes, o terrorismo e a subverso sero

  • 37

    isolados e derrotados, e a democracia poder eclodir num Estado profundamente renovado. (Terrorisme et dmo-cratie) A injuno para denunciar esta ou aquela pessoa como terrorista , ento, a injuno para se distinguir de si prprio enquanto ser capaz de violncia, para projetar sua prpria latncia guerreira para longe de si, para introduzir em si a ciso econmica que far de cada um de ns um su-jeito poltico, um cidado. nesses termos bastante atuais que Giorgio Amendola, o!cial executivo do PCI poca, atacava o movimento de 77: Somente aqueles que visam destruio do Estado republicano tm interesse em semear o pnico e pregar a desero.

    isso mesmo.

  • armar o partido imaginrio!

    Os pontos, os ns, os focos de resistncia disseminam-se

    com mais ou menos densidade no tempo e no espao, s

    vezes provocando o levante de grupos ou indivduos de

    maneira de"nitiva, in#amando certos pontos do corpo,

    certos momentos da vida, certos tipos de comportamen-

    to. Grandes rupturas radicais, divises binrias e maci-

    as? s vezes. mais comum, entretanto, serem pontos

    de resistncia mveis e transitrios, que introduzem na

    sociedade clivagens que se deslocam, rompem unida-

    des e suscitam reagrupamentos, percorrem os prprios

    indivduos, recortando-os e remodelando-os, traando

    neles, em seus corpos e almas, regies irredutveis. Da

    mesma forma que a rede das relaes de poder acaba

    formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e

    as instituies, sem se localizar exatamente neles, tam-

    bm a pulverizao dos pontos de resistncia atravessa

    as estrati"caes sociais e as unidades individuais. E

    certamente a codi"cao estratgica desses pontos de re-

    sistncia que torna possvel uma revoluo.

    Michel Foucault, A vontade de saber. 25

    39

  • 40

    O Imprio esse tipo de dominao que no se reconhece de Fora, que chegou ao ponto de se sacri!car enquanto Mesmo para no mais ter um Outro. O Imprio no ex-clui nada substancialmente, ele exclui somente o que se apresente a ele como outro, que se furte equivalncia ge-ral. O Partido Imaginrio, portanto, no nada especi!-camente; ele tudo o que produz um obstculo, que mina, que arruna, que desmente a equivalncia. Seja falando pela boca de Putin, de Bush ou de Jiang Zemin, o Imprio sempre ir quali!car seu hostis como criminoso, ter-rorista, monstro. No limite, ele organizar por conta prpria e na surdina as aes terroristas e monstruosas que atribuir depois ao hostis ser que nos lembramos das inspiraes edi!cantes de Boris Iltsin diante dos aten-tados perpetrados em Moscou por seus prprios servios especiais, especialmente de seu discurso ao povo russo, em que nosso bufo o convocava luta contra o terrorismo checheno, contra um inimigo interior que no tem cons-cincia, nem piedade, nem honra, que no tem rosto, na-cionalidade ou religio? Pelo contrrio, o Imprio nunca reconhecer suas prprias operaes militares como atos de guerra, mas apenas como operaes de manuteno da paz, assuntos de polcia internacional.

  • 41

    Antes que a dialtica, a dialtica enquanto pensamento da reintegrao "nal, voltasse para se gabar em favor de 68, Marcuse tinha tentado pensar essa curiosa con!gurao das hostilidades. Numa interveno datada de 1966 e in-titulada Sobre o conceito de negao na dialtica, Mar-cuse ataca o re"exo hegeliano-marxista que leva inter-veno da negao dentro de uma totalidade antagnica, que seja entre duas classes, entre o campo socialista e o campo capitalista, ou entre o Capital e o trabalho. A isso ele ope uma contradio, uma negao que vem de fora. Ele discerne que a mise-en-scne de um antagonismo so-cial dentro de uma totalidade, que tinha sido o elemento prprio do movimento operrio, no passa de um dispo-sitivo pelo qual SE congela o acontecimento, prevenindo sua ocorrncia por fora da verdadeira negao. Em suas palavras: O externo de que falo no deve ser entendido mecanicamente em sentido espacial, e sim como a dife-rena qualitativa que vai alm das oposies existentes no interior do todo-parte antagnico e que no redutvel a essas oposies. [...] A fora da negao, como sabemos, no est hoje concentrada em classe alguma. Ela hoje ain-da uma oposio catica e anrquica, poltica e moral, racional e instintiva: a recusa a participar e colaborar, o nojo diante de toda prosperidade, o impulso de protesto

  • 42

    uma oposio dbil e no organizada. Mas, creio, ela se baseia em impulsos e objetivos que se encontram em con-tradio irreconcilivel com o todo existente.26

    A partir do entreguerras, a nova con!gurao das hos-tilidades ganhou espao. De um lado, havia a adeso da URSS Liga das Naes, o pacto Stalin-Laval, a estra-tgia de fracasso do Komintern, a adeso das massas ao nazismo, ao fascismo e ao franquismo, ou seja: a traio, por parte dos operrios, de seu encontro com a revoluo. Por outro lado, era o transbordamento da subverso social fora do movimento operrio no surrealismo, no anar-quismo espanhol ou com os hobos americanos. Num s golpe, a identi!cao do movimento revolucionrio e do movimento operrio entrou em colapso, desnudando o Partido Imaginrio como excesso em relao a este ltimo. A palavra de ordem classe contra classe, que, a partir de 1926, se torna hegemnica, entrega seu contedo latente somente se observarmos que ele domina precisamente o momento da desintegrao de todas as classes sob efei-to da crise. Classe contra classe na verdade quer dizer classes contra no classe, traindo a determinao de absorver, de liquidar esse restante sempre mais massivo, esse elemento "utuante, irrenuncivel socialmente, que

  • 43

    ameaa levar toda interpretao substancialista da socie-dade, tanto a da burguesia quanto a dos marxistas. Na verdade, o stalinismo se interpreta a princpio como endu-recimento do movimento operrio diante de seu transborda-mento efetivo pelo Partido Imaginrio.

    Reunido em torno de Boris Souvarine, o Crculo Comu-nista Democrtico havia ento, na Frana dos anos 30, tentado rede!nir a con"ituosidade histrica, algo que conseguiu apenas pela metade, mas conseguiu, ainda as-sim, identi!car as duas principais armadilhas do marxis-mo: o economicismo e a escatologia. O ltimo nmero de sua revista La critique sociale constatava a seguinte falha: Nem a burguesia liberal nem o proletariado inconsciente se mostraram capazes de absorver, em suas organizaes polticas, as foras jovens e os elementos sem classe cuja in-terveno cada vez mais ativa acelera o curso dos aconteci-mentos (La critique sociale, n 11, maro de 1934) Como no nada espantoso num pas em que tudo costuma ser dissolvido, especialmente a poltica, nos escritos de Bataille, no domnio da literatura, que se encontra, nesse ltimo nmero, o primeiro esboo de uma teoria do Par-tido Imaginrio. O artigo se chama Psychologie de masse du fascisme.27 Na obra de Bataille, o Partido Imaginrio

  • 44

    se ope sociedade homognea. A base da homogeneidade social a produo. A sociedade homognea a sociedade produtiva, ou seja, a sociedade til. Qualquer elemento intil excludo no da sociedade total, mas de sua par-te homognea. Nessa parte, cada elemento deve ser til a outro sem que a atividade homognea jamais possa atingir a forma de atividade vlida por si s. Uma atividade til sempre tem uma medida comum com outra atividade til, mas no com uma atividade por si s. A medida comum, fundamento da homogeneidade social e da atividade oriun-da dela, o dinheiro, ou seja, uma equivalncia quanti!c-vel dos diferentes produtos da atividade coletiva. Bataille apreende aqui a constituio contempornea do mundo em tecido biopoltico contnuo, que s se d conta da soli-dariedade fundamental entre os regimes democrticos e os regimes totalitrios, de sua in!nita reversibilidade uns com os outros. O Partido Imaginrio, portanto, aquilo que se manifesta como heterogneo formao biopoltica. O prprio termo heterogneo indica se tratar de elementos impossveis de assimilar, e essa impossibilidade que est na base da assimilao social diz respeito, ao mesmo tempo, assimilao cient!ca. [...] A violncia, a desmesura, o del-rio e a loucura caracterizam os elementos heterogneos em diferentes nveis: ativos, enquanto pessoas ou multides,

  • 45

    eles se produzem rompendo as leis de homogeneidade social. [...] Em sntese, a existncia heterognea pode ser representada em relao vida normal (cotidiana) como sendo completamente outra, como incomensurvel, carre-gando essas palavras com o valor positivo que elas tm na experincia afetiva vivida. [...] Alm disso, o proletariado encarado assim no pode se limitar a si prprio: na ver-dade, ele no passa de um ponto de concentrao para todos os elementos sociais dissociados e rejeitados na he-terogeneidade. O erro de Bataille, e que na sequncia ir sobrecarregar toda a empresa do Collge de Sociologie e da Acphale, foi de ainda conceber o Partido Imaginrio como uma parte da sociedade, de ainda reconhec-la como um cosmos, como uma totalidade representvel acima de si, e de fazer consideraes a partir desse ponto de vista, isto , a partir do ponto de vista da representao. Toda a ambigui-dade das posies de Bataille em relao ao fascismo vem de sua vinculao s velharias dialticas, a tudo aquilo que o impede de compreender que, sob o Imprio, a negao vem de fora, que ela intervm no como heterogeneidade em relao ao homogneo, mas como heterogeneidade em si, heterogeneidade entre formas de vida que jogam dentro de sua diferena. Em outros termos, o Partido Imagin-rio nunca pode ser individualizado como um sujeito, um

  • 46

    corpo, uma coisa ou uma substncia, nem mesmo como um conjunto de sujeitos, de corpos, de coisas e de subs-tncias, mas apenas como o acontecimento de tudo isso. O Partido Imaginrio no substancialmente um resto da totalidade social, mas o fato desse resto, o fato de que haja um resto, que aquilo que representado exceda sem-pre sua representao, que aquilo sobre o qual se exerce o poder lhe escapa para sempre. Aqui jaz a dialtica. Todas as nossas condolncias.

    No existe identidade revolucionria. Sob o Imprio, justamente o contrrio, a no identidade, o fato de trair constantemente os predicados que em ns SE a!xam, que revolucionrio. H muito tempo os sujeitos revolucio-nrios s existem pelo poder. Tornar-se qualquer um, tor-nar-se imperceptvel, conspirar signi!ca distinguir entre nossa presena e aquilo que somos para a representao, a !m de jogar com isso. Na medida exata em que o Imp-rio se uni!ca, em que a nova con!gurao de hostilidades adquire um carter objetivo, existe uma necessidade es-tratgica de saber o que somos para ele; mas nos tomar-mos como tais, como um Black Bloc, como um Partido Imaginrio ou qualquer outra coisa seria nossa derrota. Para o Imprio, o Partido Imaginrio apenas a forma da

  • 47

    pura singularidade. Do ponto de vista da representao, a singularidade como a abstrao concluda, a identidade vazia do hic et nunc. Da mesma forma, do ponto de vista do homogneo, o Partido Imaginrio ser simplesmente o heterogneo, algo puramente irrepresentvel. Sob pena de mastigar o trabalho para a polcia, preciso ento que nos preservemos de acreditar na capacidade de fazer ou-tra coisa alm de indicar o Partido Imaginrio quando ele surge, como: descrev-lo, identi!c-lo, localiz-lo sobre o territrio ou de!ni-lo como um segmento da sociedade. O Partido Imaginrio no um dos termos da contradi-o social, mas sim o fato de que h contradio, a alteri-dade no absorvvel daquilo que determinado diante da universalidade onvora do Imprio. E somente para o Imprio, ou seja, para a representao, que o Partido Ima-ginrio existe como tal, isto , enquanto negativo. Conferir quilo que lhe hostil os hbitos da negatividade, da contestao ou da rebeldia no passa de uma ttica de que se vale o sistema da representao para trazer para seu plano de inconsistncia a positividade que lhe escapa, mesmo que custa de enfrentamento. O erro cardinal de toda subverso se concentra, a partir de ento, no fetichis-mo da negatividade, no fato de se apegar sua potncia de negao como se fosse o mais prprio de seus atributos,

  • 48

    justamente quando esse seu elemento mais dependente do Imprio e de seu reconhecimento. O militantismo e o militarismo encontram aqui sua nica sada desejvel: cessar de apreender nossa positividade, que toda nossa fora, tudo aquilo que carregamos do ponto de vista da representao, isto , como algo irrisrio. E, certamente, para o Imprio toda determinao uma negao.

    Tambm Foucault prestar uma contribuio determi-nante para a teoria do Partido Imaginrio com suas falas sobre a plebe. Foi num debate com os maostas sobre a justia popular, em 1972, que Foucault evocou pela primeira vez o tema da plebe. Criticando a prtica mao-sta dos tribunais populares, ele relembrou que todas as revoltas populares desde a Idade Mdia foram revoltas antijudicirias, que a constituio de tribunais do povo durante a Revoluo Francesa corresponde precisamente ao momento de sua retomada pela burguesia e que, por !m, a forma-tribunal, ao reintroduzir uma instncia neu-tra entre o povo e seus inimigos, reintroduz o princpio do Estado na luta contra ele. Quem diz tribunal, diz que a luta entre as foras em presena est, quer queiram quer no, suspensa.28 Desde a Idade Mdia, a funo da justia foi, segundo Foucault, a de separar a plebe proletarizada,

  • 49

    e, portanto, integrada enquanto proletariado e includa no modo de excluso, da plebe no proletarizada, a plebe pro-priamente dita. Ao serem isolados na massa dos pobres, os criminosos, os violentos, os loucos, os vagabundos, os perversos, os bandidos, o pessoal do submundo, no SE retira do povo somente sua poro mais perigosa para o poder, aquela que est pronta a qualquer momento para a ao insurgente e armada; proporciona-SE tambm a possibilidade de devolver ao povo seus elementos mais ofensivos. Isso se tornar a chantagem permanente de ou voc vai preso, ou vai para o exrcito, ou voc vai preso, ou parte para as colnias, ou voc vai preso, ou entra para a polcia etc. Todo o trabalho do movimento ope-rrio para distinguir os trabalhadores honestos eventual-mente em greve dos provocadores, vndalos e outros descontrolados prolonga esse modo de opor a plebe ao proletariado. Ainda hoje, de acordo com a mesma lgi-ca que a ral se transforma em vigia: para neutralizar o Partido Imaginrio colocando uma de suas fraes contra as outras. A noo de plebe ser explicitada por Foucault quatro anos mais tarde, em outra fala. No se deve, sem dvida, conceber a plebe como o fundo permanente da histria, o objetivo !nal de todos os assujeitamentos, o fogo nunca inteiramente extinto de todas as revoltas. Sem

  • 50

    dvida, no h realidade sociolgica da plebe. Mas h sempre, com certeza, alguma coisa no corpo social, nas classes, nos grupos, nos prprios indivduos que escapa, de um certo modo, s relaes de poder; alguma coisa que no a matria primeira mais ou menos dcil ou recalci-trante, mas que o movimento centrfugo, a energia inver-sa, a escapada. A plebe sem dvida no existe, mas existe algo de plebe. H algo de plebe nos corpos e nas almas, h algo dela nos indivduos, no proletariado, na burgue-sia, mas com uma extenso das formas, das energias, das irredutibilidades diversas. Essa parte de plebe menos o exterior, no que diz respeito s relaes de poder, do que seu limite, seu avesso, seu contragolpe; o que responde a todo avano do poder atravs de um novo desenvolvi-mento das redes de poder. [...] Tomar a plebe deste ponto de vista, que o do avesso e o do limite em relao ao poder, portanto indispensvel para fazer a anlise de seus dispositivos.29

    Mas no nem a um escritor nem a um !lsofo francs que se deve a contribuio mais decisiva teoria do Par-tido Imaginrio: aos militantes das Brigadas Vermelhas, Renato Curcio e Alberto Franceschini. Em 1982 foi pu-blicado um suplemento no Corrispondenza Internazionale,

  • 51

    o pequeno volume intitulado Gocce di sole nelle citt degli spettri.30 Enquanto a disputa entre as Brigadas Vermelhas de Moretti e seus chefes histricos encarcerados se trans-forma numa guerra aberta, Franceschini e Curcio elabo-ram o programa do efmero partido-guerrilha que foi o terceiro desdobramento da imploso das BR, ao lado da coluna de Walter Alasia e das BR do Partido Comunista Combatente. Reconhecendo nas sees do movimento de 77 o quanto se falou deles por parte da retrica convencio-nal da revoluo, a Terceira Internacional, eles rompem com o paradigma clssico da produo, retirando-o da f-brica e expandindo-o para a Fbrica Total da metrpole, onde domina a produo semitica, ou seja, um paradig-ma lingustico da produo. Repensada como um sistema totalizante (diferenciado em subsistemas ou campos fun-cionais interdependentes e privados de capacidade decisiva autnoma e de autorregulao), isto , como um sistema corporativo-modular, a metrpole informatizada aparece como uma ampla penitenciria mal disfarada, na qual cada sistema social, assim como cada indivduo, se move nos corredores rigidamente diferenciados e regulados pelo conjunto. Uma penitenciria tornada transparente pelas redes informticas que a vigiam incessantemente. Nesse modelo, o espao-tempo social metropolitano se imprime

  • 52

    sobre o esquema de um universo previsvel num equilbrio precrio, sem inquietude acerca de sua tranquilidade for-ada, subdividido em compartimentos modulares dentro dos quais cada executor trabalha encapsulado feito um peixe dourado em seu aqurio dentro de uma funo coletiva precisa. Um universo regulado por dispositivos de retroao seletivos e simuladores da neutralizao de cada perturbao do sistema de programas de!nidos pelo executivo. [...] Nesse contexto de comunicao absurda e insustentvel, no qual cada um preso fatalmente como na armadilha de uma injuno paradoxal para falar, deve-se renunciar a comunicar, para comunicar, deve-se renunciar a falar! , no de impressionar que se a!rmem estratgias de comunicao antagonistas que recusam as linguagens autorizadas do poder; no surpreendente que os signi!cados produzidos pela dominao se encontrem rejeitados e combatidos, opondo-lhes a novas produes descentralizadas. Produes no autorizadas e ilegtimas, mas organicamente ligadas vida e que, consequentemen-te, orbitam e compem a rede underground clandestina da resistncia e da autodefesa contra a agresso inform-tica dos idiomas dementes do Estado. [...] Aqui se situa a principal barricada que separa o campo da revoluo social daquele de seus inimigos: ela acolhe os resistentes

  • 53

    isolados e os "uxos esquizo-metropolitanos num territrio comunicativo antagnico quilo que gerou sua devastao e sua revolta. [...] Para a ideologia do controle, um divduo em risco j sinnimo de terrorista louco em potencial, de fragmento de matria social com alta probabilidade de exploso. Eis por que so !guras monitoradas, espio-nadas e seguidas, que o grande olho e o grande ouvido acompanham com a discrio e a continuidade infatigvel do caador. Figuras que, por esse mesmo motivo, se en-contram posicionadas no centro de um intenso bombar-deio semitico e intimidador que tende a dedicar pulsos !rmes aos farrapos da ideologia o!cial. [...] assim que a metrpole realiza sua qualidade espec!ca de universo concentrador que, para desviar de si o antagonismo social gerado incessantemente, integra e manobra simultanea-mente os artifcios da seduo e os fantasmas do medo. Artifcios e fantasmas que assumem a funo central do sistema nervoso da cultura dominante e recon!guram a metrpole num imenso alambique psiquitrico a mais total das instituies totais , uma conexo labirntica de unidades penitencirias de segurana mxima, sees de controle contnuo, gaiolas para loucos, contineres para presos, reservas para escravos metropolitanos voluntrios, zona bunkerizadas para fetiches delirantes. [...] Exercer a

  • 54

    violncia contra os fetiches necrotrpicos do Capital o maior ato consciente da humanidade possvel na metr-pole, porque atravs dessa prtica social que o proletaria-do constri ao se apropriar do processo produtivo vital seu saber e sua memria, ou seja, seu poder social. [...] Produzir a destruio do velho mundo na transgresso re-volucionria e fazer brotar dessa destruio as mltiplas e surpreendentes constelaes de novas relaes sociais so processos simultneos que, no entanto, falam lnguas di-ferentes. [...] Os agentes da criao do imaginrio deliram na vida real, impedindo-se de comunic-la; eles fabricam anjos da seduo e pequenos monstros do medo com a !-nalidade de exibi-los ao pblico miservel atravs de redes e circuitos que transmitem a alucinao autorizada. [...] Levantar-se de seu lugar numerado, subir no palco e des-truir a representao fetiche, eis a escolha praticada pela guerrilha metropolitana da nova comunicao, desde suas origens. [...] Na complexidade do processo metropolitano revolucionrio, o partido no pode ter uma forma exclu-siva ou eminentemente poltica. [...] O partido no pode revestir uma forma exclusivamente combatente. O poder das armas no evoca a potncia absoluta, como acreditam os militaristas, porque a potncia absoluta o saber-poder que reuni!ca as prticas sociais. [...] Um partido guerrilha

  • 55

    quer dizer um partido saber/partido poder. [...] O partido guerrilha o agente mximo da invisibilidade e da exterio-rizao do saber-poder do proletariado. [...] Isso signi!ca que quanto mais o partido invisvel e se manifesta em re-lao contrarrevoluo imperialista global, mais ele vi-svel e se torna interno ao proletariado, ou seja, mais ele se comunica com o proletariado. [...] Nisso, o partido guerri-lha o partido da comunicao social transgressora.

  • a autonomia vencer!

    E por causa de propenses semelhantes, muito mais do

    que pela violncia delas, que os jovens de 77 se tornaram

    indecifrveis para a tradio do movimento operrio.

    Paolo Virno, Do you remember Counterrevolution? 31

    57

  • 58

    Gnova foi devastada por hordas32 de corpos mascarados, um novo squat abriu as portas, os operrios da Cellatex ameaavam explodir a fbrica, uma periferia se in"amava, atacava os servios pblicos e os meios de comunicao mais prximos, uma manifestao acabou em algazarra, um campo de milho transgnico foi destrudo durante a noite. Independente de qual seja o discurso marxista-leninista, reivindicativo, islmico, anarquista, socialista, ecologista ou estupidamente crtico que permeia esses atos, eles so eventos do Partido Imaginrio. Pouco im-porta que esses discursos continuem sendo moldados, da primeira letra maiscula at o ponto !nal, pela grade de signi!cados da metafsica ocidental: pois eles falam, desde o princpio, uma outra linguagem.

    Para ns, o desa!o certamente reproduzir o evento da ordem do gesto num evento da ordem da linguagem. Foi uma conjuno assim que a Autonomia italiana realizou ao longo dos anos 70. A Autonomia nunca foi um mo-vimento, mesmo que SE designasse, na poca, como o Movimento. O territrio da Autonomia foi o plano de consistncia onde con"uram, se cruzaram, se agrega-ram e se des/agregaram uma grande quantidade de fu-turos singulares. A uni!cao desses futuros sob o termo

  • 59

    Autonomia um puro artifcio signi!cante, uma con-veno enganadora. O grande mal-entendido aqui que a autonomia no era o atributo reivindicado pelos sujeitos que democrtico e enfadonho isso teria sido se tratasse de reivindicar sua autonomia enquanto sujeito , mas sim pelos futuros. Dessa forma, a Autonomia possui inmeras datas de nascimento, ela no passa de uma sucesso de certides de nascimento, e tambm de certides de seces-so. Portanto, a autonomia dos operrios, a autonomia de base em relao aos sindicatos, uma base que, desde 1962, em Turim, saqueou a sede de um sindicato moderado na Piazza Statuto. Mas tambm a autonomia dos operrios em relao ao seu papel de operrios: recusa do trabalho, sabotagem, greve selvagem, absentesmo, estranhamento das condies de explorao e da totalidade capitalista. a autonomia das mulheres: recusa do trabalho domstico, recusa de reproduzir em silncio e na submisso a fora de trabalho masculina, autoconscincia, tomada da pala-vra, sabotagem de comrcios afetivos cagados; autonomia, ento, das mulheres em relao ao seu papel de mulher e em relao civilizao patriarcal. a autonomia dos jovens, dos desempregados e dos marginais que recusam seu papel de excludos, que no querem mais se calar, que se convidam cena poltica, que exigem a garantia de um

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    salrio social, que constroem uma correlao de foras mi-litar para serem pagos sem ter que foder ningum. Mas tambm a autonomia dos militantes em relao "gura do militante, em relao aos partitini e lgica dos grupelhos, em relao a uma concepo de ao que adiada at mais tarde na existncia. Contrariamente ao que a bobagem so-ciologizante deixa entender, sempre vida por descontos rentveis, o fato marcante aqui no a a!rmao como novos sujeitos polticos, sociais ou produtivos, para os jovens, mulheres, desempregados ou homossexuais, mas, ao contrrio, sua dessubjetivao violenta, prtica, em ao, a rejeio e a traio do papel que recai sobre eles enquanto sujeitos. O que os diferentes futuros da Autono-mia tm em comum a reivindicao de um movimento de separao em relao sociedade, em relao totalidade. Essa secesso no a a!rmao de uma diferena esttica, de uma alteridade essencial, de um novo compartimento na rede de identidades cuja gesto garantida pelo Im-prio, mas sim fuga, linha de fuga. A separao era ento grafada como Separ/azione.

    Esse movimento de desero interna, de subtrao bru-tal, de fuga renovada incessantemente, essa irredutibi-lidade crnica ao mundo da dominao tudo o que o

  • 61

    Imprio teme. A nica maneira de construir nossa cul-tura e de viver nossas vidas, da maneira como sabemos, estando ausentes, anunciou o fanzine mao-dadasta Zut, em sua edio de outubro de 76. Que !cssemos ausentes de suas provocaes, indiferentes a seus valores, que dei-xssemos seus estmulos sem resposta, eis o pesadelo per-manente da dominao ciberntica: aquilo que o poder responde com a criminalizao de todo comportamento de estranhamento e recusa do capital. (Vogliamo tutto, n 10, vero de 76) Portanto, Autonomia quer dizer desero, desero da famlia, desero do escritrio, desero da escola e de todas as tutelas, desero do papel de homem, de mulher e de cidado, desero de todas as relaes de merda s quais SE acredita estar preso, desero sem !m. A cada nova direo que damos ao nosso movimento, essencial aumentar nossa potncia, sempre seguir a linha de crescimento potencial para ganhar fora de desterrito-rializao, para ter certeza de que no SE impedir to cedo. Nesse caminho, o que mais devemos temer, o que mais devemos trair so todos aqueles que nos vigiam, nos rastreiam, nos acompanham de longe, buscando de uma maneira ou de outra capitalizar o dispndio de energia de nossa fuga: todos os gestores, todos os manacos da re-territorializao. Eles existem do lado do Imprio, claro,

  • 62

    so aqueles que inventam moda sobre o cadver de nossas invenes, os capitalistas moderninhos e outros crpulas sinistros. Mas tambm existem do nosso lado. Na Itlia dos anos 70, eles so os obreiristas, os grandes uni!cadores da Autonomia Organizada, que conseguiram burocrati-zar o prprio conceito de autonomia (Neg/azione, 1976). Estes sempre tentaro transformar nossos movimentos em UM movimento, para em seguida poderem falar em nome dele, dedicar-se com fervor a seu jogo favorito: a ventrilo-quia poltica. Assim, nos anos 60 e 70, todo o trabalho dos obreiristas foi de reconciliar com os termos e modos do movimento operrio aquilo que estava transbordando dele por todos os lados. Partindo da estranheza tica ao trabalho que se manifestava em massa entre os operrios que tinham migrado recentemente do sul da Itlia, eles passaram a teorizar contra os sindicatos e os burocratas do movimento operrio clssico acerca da autonomia operria da qual esperavam tornar-se metaburocratas espontneos; e isso sem ter se dado ao trabalho de escalar os degraus hie-rrquicos de um sindicato clssico: o metassindicalismo. Donde vem o tratamento que eles reservavam aos elemen-tos plebeus da classe operria, a recusa em deixar que os operrios se tornassem outra coisa que no operrios, a sur-dez para o fato de que a autonomia que ento se a!rmava

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    no era uma autonomia operria, mas sim uma autonomia em relao identidade de operrio. Um tratamento que, na sequncia, eles estenderam s mulheres, aos desem-pregados, aos jovens, aos marginais, en!m: aos aut-nomos. Incapazes de travar qualquer intimidade consigo mesmos ou com qualquer outro mundo, eles buscaram desesperadamente transformar um plano de consistncia, territrio da Autonomia, numa organizao, e se possvel numa organizao combatente, que faria deles, em ltima hiptese, interlocutores de um poder dos desesperados. a Asor Rosa, um terico obreirista, que devemos natural-mente o mais notvel e popular travestismo do movimento de 77: a chamada teoria das duas sociedades. De acordo com Asor Rosa, teramos acompanhado o enfrentamento de duas sociedades, a dos trabalhadores garantidos de um lado, e a dos no garantidos de outro (jovens, pessoas em situao precria, desempregados, marginais etc.). Mesmo que essa teoria tenha o mrito de romper com a teoria que todos os socialismos e, por extenso, todas as esquerdas, buscam preservar, mesmo se valendo de massacres para tanto a !co de uma unidade !nal da sociedade , ela oculta duplamente: 1) que a primeira sociedade no existe mais, entrou num processo de imploso contnua; 2) que o Partido Imaginrio, aquilo que se recompe

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    como tecido tico alm dessa imploso, no em hiptese alguma um, em todo caso, tampouco uni!cvel numa nova totalidade isolvel, a segunda sociedade. exata-mente essa operao que Negri reproduz hoje, de forma atvica, chamando de multido, no singular, qualquer coi-sa cuja essncia , segundo seus prprios dizeres, ser uma multiplicidade. Esse tipo de embuste terico nunca vai ser to medocre quanto a !nalidade a que se presta: uni!car espetacularmente em um sujeito o que, a seguir, poder se apresentar como intelectual orgnico.

    Para os obreiristas, a autonomia foi de uma ponta a outra uma autonomia de classe, autonomia de um novo sujeito social. Ao longo dos vinte anos de atividade do obreirismo, esse axioma pde ser mantido graas a uma noo opor-tuna, a de composio de classe. Ao sabor das circunstncias e de clculos polticos de viso curta, uma e outra nova categoria sociolgica seriam includas na composio de classe, e, sob o pretexto de uma pesquisa operria, se pos-sibilitaria a tais categorias, de modo fundamentado, virar a casaca. Quando os operrios se cansarem de lutar, ser decretada a morte do operrio-massa e ele ser substitu-do no papel de insurgente global pelo operrio social, ou seja, praticamente qualquer um. Por !m, acabaremos

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    encontrando virtudes revolucionrias na Benetton, nos pequenos empreendedores berlusconianos do nordeste da Itlia (ver Des entreprises pas comme les autres)33 e at mes-mo, quando necessrio, na Liga do Norte.

    Ao longo do maio rastejante, a autonomia foi apenas esse movimento incoercvel de fuga, um staccato de rupturas, de rupturas claras com o movimento operrio, algo que at Negri reconhece: A polmica contundente que se abre em 68 entre o movimento revolucionrio e o movimento operrio o!cial se torna, em 77, uma ruptura irreversvel, escreve ele em LOrda doro. O obreirismo, enquanto cons-cincia retardatria porque vanguardista do Movimento, no parou de absorver essa ruptura, de interpret-la nos termos do movimento operrio. O que se desempenha no obreirismo, assim como na prtica das BR, menos um ataque contra o capitalismo do que uma concorrncia in-vejosa com a direo do partido comunista mais poderoso do Ocidente, o PCI; uma concorrncia na qual o que est em jogo justamente o poder SOBRE os operrios. S podamos falar de poltica atravs do leninismo. Enquanto no houvesse uma composio de classe diferente, nos en-contrvamos na situao em que se encontram vrios ino-vadores: a de precisar explicar o novo com uma linguagem

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    velha, reclama Negri em entrevista concedida em 1980. , portanto, coberto de marxismo ortodoxo e sombra de uma !delidade retrica ao movimento operrio que cres-ce a falsa conscincia do movimento. No faltaram vozes, como a dos Gatti Selvaggi, que se ergueram contra esse vi-garismo: Somos contra o mito da classe operria porque ele nocivo, a princpio contra si prprio. O obreirismo e o populismo so ditados somente pelo projeto milenar de utilizar as massas como peo nos sales de jogos do poder. (n 1, dezembro de 1974) Mas a enganao era grande demais para no funcionar. E, de fato, funcionou.

    Considerando o provincianismo inato da contestao fran-cesa, a lembrana do que aconteceu h trinta anos na Itlia no se reveste com um carter de anedota histrica, pelo contrrio: os problemas que ento foram colocados aos autnomos italianos sequer chegaram at ns. Nessas con-dies, a passagem das lutas nos locais de trabalho para as lutas territoriais, a recomposio de um tecido tico sobre as bases da secesso, a questo da reapropriao dos meios de vida, luta e comunicao entre ns, compem um ho-rizonte inatingvel a ponto de no ser admitida a prvia existencial da separ/azione. Separ/azione signi!ca que no temos nada a ver com esse mundo. No temos nada a lhe

  • 67

    dizer nem nada a lhe explicar. Nossos atos de destruio e sabotagem no precisam vir acompanhados de uma ex-plicao devidamente validada pela Razo humana. No agimos em virtude de um mundo melhor, alternativo, vindouro, mas sim em virtude daquilo que experimenta-mos desde j, em virtude da irreconciliabilidade radical do Imprio e dessa experimentao da qual a guerra faz parte. E ao passo que as pessoas razoveis, os legisladores, os tecnocratas e os governantes perguntam Mas ento o que vocs querem? diante desse tipo de crtica massiva, nossa resposta : Ns no somos cidados. Ns jamais adotaremos seu ponto de vista da totalidade, seu ponto de vista da gesto. Ns nos recusamos a jogar o jogo, isso. No cabe a ns dizer a vocs com que molho queremos ser comidos. A principal fonte de nossa paralisia, aquilo com que devemos romper, a utopia da comunidade humana, a perspectiva da reconciliao !nal e universal. At mesmo Negri, na poca de Domination et sabotage, tinha dado esse passo fora do socialismo: No represento para mim a his-tria da conscincia de classe maneira de Lukcs, como destino de uma recomposio integral, mas, ao contrrio, como momento de enraizamento intensivo em minha pr-pria separao. Sou outro, tambm outro o movimento coletivo de prxis no qual me insiro. Isso de que participo

  • 68

    um outro movimento operrio. Certamente sei quantas crticas esse discurso pode levantar do ponto de vista da tradio marxista. No que me diz respeito, tenho a im-presso de me manter no limite signi!cante extremo de um discurso poltico de classe. [...] Devo, ento, assumir a diferena radical como condio metdica da conduta subversiva, do projeto de autovalorizao proletria. E mi-nha relao com a totalidade histrica? Com a totalidade do sistema? Chegamos, ento, segunda consequncia dessa a!rmao: minha relao com a totalidade do desen-volvimento capitalista, com a totalidade do desenvolvi-mento histrico, garantida apenas pela fora de desestru-turao que o movimento determina, pela sabotagem total da histria do capital operada pelo movimento. [...] Passo a me de!nir me separando da totalidade, e de!no a totalida-de como diferente de mim, como uma rede que se expande sobre a continuidade da sabotagem histrica operada pela classe. Naturalmente, no existe outro movimento ope-rrio assim como no h uma segunda sociedade. O que existe, ao contrrio, so os futuros cinzelamentos do Partido Imaginrio e a autonomia deles.

  • viver-e-lutar

    O mais suave vence o mais forte, como o cavaleiro que

    controla seu corcel.

    Lao Tse, Tao Te King. 34

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  • 70

    A primeira campanha ofensiva contra o Imprio falhou. O ataque da RAF contra o sistema imperialista, o das BR contra o SIM (Stato Imperialista delle Multinazionali) e tantas outras aes de guerrilha foram facilmente rejei-tados. No foi uma falha cometida por esta ou aquela or-ganizao combatente, por este ou aquele sujeito revolu-cionrio, mas sim a falha de uma concepo da guerra; de uma concepo da guerra que no podia ser retomada alm dessas organizaes, porque ela era por si s uma retomada. Exceto alguns textos da RAF ou do movimento de 2 de ju-nho, ainda hoje h muito poucos documentos oriundos da luta armada que no sejam redigidos nessa linguagem ar-ti!cial, fossilizada, quadrada, que no culmine de uma for-ma ou de outra no kitsch da Terceira Internacional. Como se fosse o caso de dissuadir algum de juntar-se a ela.

    Agora, quase vinte anos depois da contrarrevoluo, o segundo ato da luta anti-imperial que se inicia. Enquanto isso, a queda do bloco socialista e a converso socialde-mocrata dos ltimos destroos do movimento operrio liberaram de!nitivamente nosso partido de tudo o que ele ainda poderia conter de inclinaes socialistas. Na verda-de, a caducidade de todas as antigas concepes da luta se manifestou a princpio com o desaparecimento dela.

  • 71

    E depois disso, no momento atual, com o movimento antiglobalizao, por meio da pardia, numa escala supe-rior, das antigas prticas militantes.

    O retorno da guerra exige uma nova concepo dela. Pre-cisamos inventar uma forma de guerra tal que a derrota do Imprio no residir mais no dever de nos matar, mas sim no de saber que estamos vivos, cada vez mais VIVOS.

    Fundamentalmente, nosso ponto de partida no muito diferente do da RAF quando esta constata que: O sistema monopolizou a totalidade do tempo livre do ser humano. explorao fsica nas fbricas se junta a explorao do pensamento e dos sentimentos, das aspiraes e das utopias por parte das mdias e do consumo de massa. [...] Nas me-trpoles, o sistema conseguiu mergulhar as massas to pro-fundamente na sua prpria merda que elas aparentemente perderam a percepo de si prprias enquanto exploradas e oprimidas; de modo que, para elas, um carro, um segu-ro de vida ou um emprstimo imobilirio fazem com que aceitem todos os crimes do sistema e que no consigam representar nem esperar nada alm de um carro, frias ou um belo banheiro.35 O elemento essencial do Imprio foi ter estendido seu front de colonizao sobre a totalidade da

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    existncia e daquilo que existe. No foi apenas o Capital que ampliou sua base humana, mas ele tambm aprofun-dou a ancoragem de seus motores. Melhor ainda, sobre a base da desintegrao !nal tanto da sociedade quanto de seus sujeitos, o Imprio atualmente se prope a recriar um tecido tico somente para si; da que o pessoal moder-ninho, com seus bairros, sua imprensa, seus cdigos, suas comidas e suas ideias modulares so, ao mesmo tempo, cobaias e vanguarda. E por isso que, do East Village a Oberkampf, passando por Prenzlauer Berg, o fenmeno moderninho teve, de cara, uma envergadura mundial.

    sobre esse terreno total, o terreno tico das formas de vida, que acontece atualmente a guerra contra o Imprio. Essa uma guerra de aniquilao. Diferente daquilo em que acreditavam as BR, para quem o desa!o da retirada de Moro era explicitamente o reconhecimento do partido armado por parte do Estado, o Imprio no o inimi-go. O Imprio apenas o meio hostil que se ope a cada passo de nossas aes. Estamos envolvidos numa luta cujo desa!o a recomposio de um tecido tico. Isso se l so-bre o territrio, no processo progressivo de transformar em moderninhos lugares que antes eram secessionistas, na extenso ininterrupta das cadeias de dispositivos. Aqui, a

  • 73

    concepo clssica e abstrata de uma guerra que culmina-ria no enfrentamento total, onde ela se juntaria !nalmente sua essncia, est caduca. A guerra no mais se deixa organizar como um momento isolvel de nossa existncia, o momento do confronto decisivo; de agora em diante, a nossa prpria existncia, em todos os seus aspectos, que a guerra. Isso quer dizer que o primeiro movimento des-sa guerra de reapropriao. Reapropriao dos meios de viver-e-lutar. Reapropriao, portanto, dos lugares: squat, ocupao ou comunizao de espaos privados. Reapro-priao do comum: constituio de linguagens, de sinta-xes, de meios de comunicao e de uma cultura autno-mos retirar a transmisso da experincia das mos do Estado. Reapropriao da violncia: comunizao das tc-nicas de combate, formao de foras de autodefesa, arma-mento. En!m, reapropriao da sobrevivncia elementar: difuso dos saberes-poderes mdicos, das tcnicas de voo e de expropriao, organizao progressiva de uma rede autnoma de reabastecimento.

    O Imprio se armou o bastante para lutar contra os dois ti-pos de secesso que ele reconhece: a secesso de cima, dos golden ghettos a secesso, por exemplo, das !nanas mun-diais em relao economia real ou da hiperburguesia

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    imperial em relao ao restante do tecido biopoltico , e a secesso de baixo, das zonas de no direito a dos con-juntos habitacionais, periferias e favelas. Basta-lhe, a cada vez que uma ou outra delas ameaa seu equilbrio metaes-tvel, colocar uma contra a outra: a modernidade civilizada dos moderninhos contra a barbrie retrgrada dos pobres, ou as exigncias da coeso social e da igualdade contra o egosmo incorrigvel dos ricos. Trata-se de conferir uma coerncia poltica a uma entidade social e espacial a !m de evitar qualquer risco de secesso da parte dos territrios habitados seja pelos excludos das redes socioeconmicas ou pelos vencedores da dinmica econmica mundial. [...] Evitar toda forma de secesso signi!ca encontrar os meios de conciliar as exigncias dessa nova classe social e as dos excludos das redes econmicas que tm tal concentrao espacial a ponto de induzir a comportamentos desviados, j teorizam os conselheiros do Imprio neste caso, Cyn-thia Ghorra-Gobin em Les tats-Unis entre local et mon-dial.36 Da mesma forma, o Imprio incapaz de impedir o xodo, a secesso que preparamos na medida exata em que seu territrio no mais unicamente fsico, mas sim total. O compartilhamento de uma tcnica, a de!nio de uma expresso, uma certa con!gurao do espao bastam para ativar nosso plano de consistncia. Toda nossa fora est a:

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    numa secesso que no pode ser registrada nos mapas do Imprio porque no uma secesso de cima nem de baixo, e sim uma secesso pelo meio.

    Isso de que falamos aqui apenas a constituio de m-quinas de guerra. Por mquina de guerra entenda-se certa coincidncia entre o viver e o lutar, uma coincidncia que nunca acontece sem exigir, ao mesmo tempo, sua constru-o. Pois a cada vez que um de seus termos se encontra de qualquer modo separado do outro, a mquina de guerra se degenera, descarrila. Se o movimento do viver uni-lateral, ela se torna um gueto. isso que testemunham os sinistros atoleiros do alternativo, cuja vocao aparece inequvoca para comercializar o Mesmo disfarado de di-ferente. A maioria dos centros sociais ocupados da Alema-nha, da Itlia ou da Espanha demonstra claramente como a exterioridade simulada para o Imprio pode constituir um trunfo precioso na valorizao capitalista. O gueto, a apologia da diferena, o privilgio concedido a todos os aspectos introspectivos e morais, a tendncia a se cons-tituir em sociedade separada que renuncia a atacar a m-quina capitalista, a fbrica social, ser que tudo isso no seria um resultado das teorias aproximativas e rapsdicas de Valcarenghi [diretor da publicao de contracultura Re

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    Nudo] e seus comparsas? E no estranho que eles nos ta-xem de subcultura justamente agora que entrou em crise toda a merda "orida e no violenta que os acompanha?, escreveram os autnomos da Senza Tregua em 1976. Por outro lado, se o momento de lutar que est hipostasia-do, a mquina de guerra degenerada na forma de exrci-to. Todas as formaes militantes, todas as comunidades terrveis so mquinas de guerra que sobreviveram a sua prpria extino sob essa forma petri!cada. esse excesso da mquina de guerra em relao a todos os seus atos de guerra que j apontava a introduo da coletnea de tex-tos sobre a Autonomia publicado em 1977 com o ttulo Il diritto allodio: Fazendo, assim, a cronologia desse sujeito hbrido e, em muitos aspectos, contraditrio que se ma-terializou no domnio da Autonomia, me pego exercendo um processo de reduo do movimento a uma soma de acontecimentos, enquanto a realidade de seu devir-mqui-na de guerra se a!rma apenas pela transformao que o sujeito elabora de maneira concntrica ao redor de cada momento de enfrentamento efetivo.

    Mquinas de guerra s existem em movimento, mesmo que travado, mesmo que seja imperceptvel, um movi-mento que siga sua inclinao de crescimento de potncia.

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    esse movimento que garante que as relaes de fora que as atravessam nunca se !xem em relaes de poder. Nossa guerra pode ser vitoriosa, ou seja, pode continu-ar e aumentar nossa potncia, desde que sempre deixe o enfrentamento subordinado nossa positividade. Nunca golpear alm de sua positividade, eis o princpio bsico de toda mquina de guerra. Cada espao conquistado do Im-prio no meio hostil deve corresponder nossa capacidade de preench-lo, con!gur-lo, habit-lo. No h nada pior do que uma vitria com a qual no se sabe o que fazer. Basicamente, nossa guerra ser surda; ela ir tergiversar, fugir de enfrentamentos diretos, proclamar pouco. Dessa forma, ir impor sua prpria temporalidade. Quando mal comearmos a ser identi!cados, j soar o toque de dis-perso, sem nunca nos deixarmos ser pegos pela represso, para depois nos recompormos em algum local insuspeito. De que importa esta ou aquela localidade quando todos os ataques locais so, de agora em diante e este o nico ensinamento vlido da farsa zapatista , um ataque contra o Imprio? O mais importante jamais perder a inicia-tiva, no deixar que a temporalidade hostil se imponha. E, sobretudo, nunca esquecer que nossa fora de combate s est ligada a nosso nvel de armamento em virtude da positividade que nos constitui.

  • os infortnios do guerreiro civilizado

    Eu me distancio daqueles que esperam do acaso, do so-

    nho ou de uma revolta a possibilidade de escapar da

    insu"cincia. Eles se parecem demais com aqueles que,

    noutros tempos, recorreram a Deus preocupados em

    salvar suas existncias perdidas.

    Georges Bataille 37

    79

  • 80

    Comumente se admite que o movimento de 77 foi der-rubado por ter sido incapaz, especialmente nos encontros de Bolonha, de estabelecer uma relao maior com sua potncia ofensiva, com sua violncia. Toda a estratgia imperial em sua luta contra a subverso consiste, e isso volta a se veri!car a cada ano, em isolar da populao seus elementos mais violentos transgressores, descontro-lados, autnomos, terroristas etc. Contra a viso poli-cial do mundo, preciso a!rmar que no existe problema com a luta armada: nunca nenhuma luta consequente foi conduzida sem armas. O problema da luta armada s exis-te para aquele que quer conservar seu prprio monoplio de armamento legtimo, o Estado. O que existe, por outro lado, efetivamente uma questo de uso das armas. Quan-do, em maro de 77, 100.000 pessoas se manifestam em Roma, dentre as quais 10.000 armadas, e ao !m de um dia de enfrentamentos nenhum policial foi morto ou grave-mente ferido, quando teria sido muito fcil fazer um mas-sacre, percebemos um pouco melhor a diferena que existe entre o armamento e o uso de armas. Estar armado um elemento da correlao de foras, a recusa de permanecer de maneira desprezvel merc da polcia, uma maneira de se arrogar nossa impunidade legtima. Resolvido esse assunto, resta a questo da relao com a violncia, uma

  • 81

    relao cuja falha de elaborao prejudica em toda parte os progressos da subverso anti-imperial.

    Toda mquina de guerra , por natureza, uma socieda-de, uma sociedade sem Estado; mas sob o Imprio e sua situao obsidional, soma-se a isso uma determinao. Faz-se uma sociedade de tipo particular: uma sociedade de guerreiros. Se cada existncia, em seu mago, essen-cialmente uma guerra e saber tomar parte no enfren-tamento quando chegar o momento, uma minoria de seres deve considerar a guerra como objeto exclusivo de sua existncia. Eles sero os guerreiros. A partir disso, a mquina de guerra dever se defender no apenas dos ataques hostis, mas tambm da ameaa de sua minoria guerreira se separar dela, de no se tornar uma casta nem uma classe dominante, de no formar um embrio do Estado e, transformando em meios de opresso os meios ofensivos de que dispe, que ela no tome o poder. Para ns, estabelecer uma relao maior com a violncia quer dizer apenas estabelecer uma relao maior com a mino-ria de guerreiros. Curiosamente, num texto de 1977, o ltimo de Clastres, chamado Infortnio do guerreiro selvagem,38 que se encontra o primeiro esboo de uma relao assim. Talvez fosse necessrio derrubar toda a

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    propaganda clssica de virilidade para que uma empresa dessas fosse levada a cabo.

    Ao contrrio daquilo que SE diz para ns, o guerreiro no uma !gura da plenitude, menos ainda da plenitude viril. O guerreiro uma !gura da amputao. O guerreiro esse ser que s tem acesso ao sentimento de existir no comba-te, no confronto com o Outro; um ser que no consegue obter por conta prpria o sentimento de existir. No fundo, no h nada mais triste do que o espetculo dessa forma de vida que, a cada situao, busca no corpo a corpo o remdio para sua ausncia de si. Mas tambm no h nada mais emocionante; porque essa ausncia de si no uma simples falta, uma falha de intimidade consigo prprio, mas sim o contrrio, uma positividade. O guerreiro real-mente animado por um desejo, e at mesmo por um desejo exclusivo: o de desaparecer. O guerreiro quer deixar de ser, mas anseia que esse desaparecimento tenha certo estilo. Ele quer humanizar sua vocao para a morte. por isso que ele nunca consegue se misturar de fato ao resto dos humanos, porque estes se preservam espontaneamente do seu movimento rumo ao Nada. Na admirao a que se de-dicam, pode-se medir a distncia que eles colocam entre si e os demais. Assim, o guerreiro est condenado solido.

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    Uma grande insatisfao se vincula a ele nesse aspecto, naquilo que faz com que ele no consiga ser de nenhuma comunidade, exceto da comunidade falsa, a comunidade terrvel dos guerreiros, que s tm sua solido para com-partilhar. O prestgio, o reconhecimento e a glria no so tanto uma exclusividade do guerreiro, mas sim a nica forma de relao compatvel com essa solido. Sua salva-o e sua danao esto igualmente contidas nela.

    O guerreiro uma !gura da inquietude e da devastao. Por no estar presente, por existir somente pela morte, sua imanncia se tornou miservel, e ele sabe disso. porque ele nunca se acostumou com o mundo. Por esse motivo, o guerreiro no se apega a ele, somente espera por seu !m. Mas existe tambm uma ternura, at mes-mo uma delicadeza do guerreiro, que esse silncio, essa semipresena. Se ele no est presente, normalmente porque, numa situao contrria, ele s conseguiria en-volver aqueles que o cercam em seu caminho rumo ao abismo. assim que o guerreiro ama: preservando os outros da morte que ele carrega no corao. Dessa for-ma, o guerreiro costuma preferir a solido companhia dos homens. E isso mais por benevolncia do que por desgosto. Ou ento ele se juntar tropa enlutada dos

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    guerreiros, que se observam deslizando um a um rumo morte. Porque essa sua propenso.

    Em certo sentido, a prpria sociedade s pode descon!ar de seu guerreiro. Ela no o exclui nem o inclui verdadei-ramente; ela o exclui no seu modo de incluso e o inclui em seu modo de excluso. O terreno do entendimento entre eles o do reconhecimento. por meio do prestgio que nele reconhece que a sociedade mantm o guerreiro distncia, por isso que ela se vincula a ele e por isso que ela o condena. Escreve Clastres: Para cada feito de armas realizado, o guerreiro e a sociedade enunciam o mesmo juzo. Diz o guerreiro: Est bem, mas posso fazer mais, posso adquirir ainda mais glria. Diz a sociedade: Est bem, mas voc deve fazer mais, obter de ns o reconhe-cimento de um prestgio superior. Dito de outra manei-ra, tanto por sua prpria personalidade (a glria antes de tudo) quanto por sua dependncia total em relao tribo (quem mais poderia conferir a glria?), o guerreiro, volens nolens, encontra-se prisioneiro de uma lgica que o leva implacavelmente a querer fazer sempre um pouco mais. Sem isso, a sociedade perderia rapidamente a memria de suas proezas passadas e da glria que elas lhe proporcio-naram. O guerreiro s existe na guerra, e como tal ele

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    votado ao ativismo e ento, prontamente, morte. Se, dessa forma, o guerreiro dominado e alienado para a so-ciedade, a existncia, em uma determinada sociedade, de um grupo organizado de guerreiros pro!ssionais tende a transformar o estado de guerra permanente (situao geral da sociedade primitiva) em guerra efetiva permanente (si-tuao particular das sociedades de guerreiros). Ora, uma tal transformao, levada at seu limite, acarretaria con-sequncias sociolgicas considerveis, na medida em que, tocando na prpria estrutura da sociedade, alteraria seu ser indiviso. O poder de deciso quanto guerra e quan-to paz (poder absolutamente essencial) no pertenceria mais, com efeito, sociedade como tal, mas confraria dos guerreiros, que colocaria seu interesse privado antes do interesse coletivo da sociedade, que faria do seu ponto de vista particular o ponto de vista geral da tribo. [...] De incio grupo de aquisio de prestgio, a comunidade guerreira se transformaria em seguida em um grupo de presso, tendo em vista levar a sociedade a aceitar a inten-si!cao da guerra.

    A contrassociedade subversiva deve, e ns tambm deve-mos reconhecer em cada guerreiro, em cada organizao combatente, o prestgio ligado a suas exploraes. Ns

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    devemos admirar a coragem desta ou daquela faanha em combate, a perfeio tcnica desta