isaías menezes pereira

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A VOZ DE DAVID ZÉ NA LUTA PELA INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA. 1966-1977 (Isaías Menezes Pereira Aluno regular do Mestrado Profissional de História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas. UFRB Cachoeira.) Introdução David Zé (1944-1977), nome artístico de David Gabriel José Ferreira, é uma peça fundamental para a compreensão de um tema ainda pouco abordado pela historiografia brasileira e angolana: as reações artísticas dos angolanos frente ao golpe-contragolpe fraccionista de 27 de maio de 1977. Neste episódio, temos mais quatro personagens de suma importância: Nito Alves (1945-1977), ex-dirigente do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), revoltado com a postura ideológica do seu superior, o primeiro presidente republicano, Agostinho Neto (1922- 1979), um dos principais responsáveis pelo processo de descolonização. Dessa revolta, resultaria uma oposição entre outros dois movimentos ditos nacionalistas, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), liderada pelo falecido General Mobuto Sese Seko. De uma nova fragmentação será criada a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), por Jonas Malheiro Savimbi. Nossa proposta gira em torno dos movimentos culturais desse período, num contexto em que política e cultura estão intrinsecamente ligadas, principalmente quando se percebe uma lacuna historiográfica no que diz respeito às manifestações artísticas frente ao golpe fraccionista angolano. Antes, porém, é preciso fazer a contextualização, do ponto de vista de uma leitura, vista de cima, dita tradicional, para depois problematizar a relação entre a política e a cultura angolana no processo de independência e no pós-independência. A denominação golpe-contragolpe fraccionista, está relacionada à tentativa por parte de Nito Alves de fracionar o MPLA e a um atentado contra a vida do então presidente, Agostinho Neto. Ambas as tentativas de golpe fracassaram e os “Nitistas” (seguidores de Nito Alves) foram perseguidos, presos, torturados e mortos

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Page 1: Isaías Menezes Pereira

A VOZ DE DAVID ZÉ NA LUTA PELA INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA. 1966-1977

(Isaías Menezes Pereira – Aluno regular do Mestrado Profissional de História da

África, da Diáspora e dos Povos Indígenas. UFRB – Cachoeira.)

Introdução

David Zé (1944-1977), nome artístico de David Gabriel José Ferreira, é uma peça

fundamental para a compreensão de um tema ainda pouco abordado pela

historiografia brasileira e angolana: as reações artísticas dos angolanos frente ao

golpe-contragolpe fraccionista de 27 de maio de 1977. Neste episódio, temos mais

quatro personagens de suma importância: Nito Alves (1945-1977), ex-dirigente do

Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), revoltado com a postura

ideológica do seu superior, o primeiro presidente republicano, Agostinho Neto (1922-

1979), um dos principais responsáveis pelo processo de descolonização. Dessa

revolta, resultaria uma oposição entre outros dois movimentos ditos nacionalistas, a

Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), liderada pelo falecido General

Mobuto Sese Seko. De uma nova fragmentação será criada a União Nacional para a

Independência Total de Angola (UNITA), por Jonas Malheiro Savimbi.

Nossa proposta gira em torno dos movimentos culturais desse período, num

contexto em que política e cultura estão intrinsecamente ligadas, principalmente

quando se percebe uma lacuna historiográfica no que diz respeito às manifestações

artísticas frente ao golpe fraccionista angolano. Antes, porém, é preciso fazer a

contextualização, do ponto de vista de uma leitura, vista de cima, dita tradicional,

para depois problematizar a relação entre a política e a cultura angolana no

processo de independência e no pós-independência.

A denominação golpe-contragolpe fraccionista, está relacionada à tentativa – por

parte de Nito Alves − de fracionar o MPLA e a um atentado contra a vida do então

presidente, Agostinho Neto. Ambas as tentativas de golpe fracassaram e os

“Nitistas” (seguidores de Nito Alves) foram perseguidos, presos, torturados e mortos

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no contragolpe. Não se sabe a data exata em que Nito Alves foi preso, mas,

segundo rumores, foi fuzilado e se fez desaparecer o seu corpo, afundando-o no

mar amarrado a pedras. Sobre a intransigente intolerância ao fraccionismo, é o

próprio Agostinho Neto quem afirma:

Portanto, quando nós dizemos fraccionismo, significa que alguém dentro da Organização, dentro do país, quis formar grupos que fossem diferentes do MPLA. Ora neste país, o único Movimento que existe é o MPLA e quem defender outro Movimento qualquer, não pode ser tolerado. (António Agostinho Neto. Textos políticos escolhidos. [S.l.]: Edições DIP, 1985. 253 p.)

Inspirado no modelo político do leste europeu, quando assumiu a presidência,

Agostinho Neto instaurou o regime mono-partidário e esta era uma das maiores

indignações dos seus inimigos. Falecendo em 1979, deixou como sucessor José

Eduardo dos Santos, presidente de Angola até a atualidade.

David Zé, foco da nossa atenção nesse trabalho, no meio dessa turbulenta ditadura,

expõe sua arte. “Suas letras trazem mensagens implícitas sobre o sentimento da

revolução angolana. Com poesias dotadas de um conteúdo de caráter muito

politizado, David Zé defendia nas suas canções as ideias nacionalistas do MPLA de

Agostinho Neto. Independentemente desse conteúdo, musicalmente, David Zé foi

um dos grandes da história angolana. Morreu durante os tristes episódios do golpe-

contragolpe de 27 de maio de 1977.”i Esta é uma das raríssimas informações sobre

David Zé, disponíveis na internet, onde só foi encontrado um site com uma sucinta

biografia sua. Por outro lado, o artista é saudado pelos angolanos entrevistados

como “O guerreiro revolucionário! O Maior compositor de todos os tempos”.

Perguntado sobre o que representa David Zé para ele e para a Angola, Raul Jorge

de Resende Rosário1 responde:

“David Zé foi o Bob Marley de Angola... poeta, intérprete e músico à frente da sua época... cantava sobre igualdade social e opinava sobre política internacional... ele mais um trio de músicos eram os mais da época... Urbano de Castro, David Zé, Artur Nunes e Sofia Rosa... a revolução apanhou-os com tanta popularidade em Luanda e a Angola ... que acabaram mortos em 77 misteriosamente na chacina do 27 de maio...

1 Ator e Músico. Combateu a UNITA ao lado do MPLA durante a guerra civil de Angola em 1992.

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Até hoje as causas são estranhas... pois estes cantavam também e acima de tudo ao amor à igualdade... e com uma sonoridade e música acima da média...

Ouvi falar de David Zé pela primeira vez quando tinha 5 anos. Em 1977 estavam em Luanda os três movimentos de libertação: FNLA, ao norte, apoiadas pelo ex-Zaire e mercenários franceses; MPLA, no centro, apoiada pelos comunistas e com os intelectuais mulatos e brancos e a UNITA, ao sul, apoiada pelos racistas sul-africanos. Ganhou o MPLA e declarou a independência. A FNLA enfraqueceu e a UNITA combateu o governo com armas até 2004. Estive nos confrontos em Luanda somente em 1992 quando a UNITA não aceitou as primeiras eleições gerias. (Raul Jorge de Resende Rosário, depoimento concedido em 18/09/2014)

Perguntado sobre o que levou David Zé – um músico tão popular, que acompanhou

o presidente Agostinho Neto em diversas viagens e apresentações – a ser posto na

linha de frente da guerra civil, Raul Jorge sugeriu a sua hipótese:

“Eu era pequeno, mas hoje sei que houve ciúmes dos militares e políticos em relação à popularidade dos artistas e intelectuais que já na altura tinham mais fama e também tinham os seus ideais. Isso abalou a cultura popular angolana até hoje.” (Raul Jorge de Resendo Rosário, depoimento concedido em 18/09/2004)

Quanto à vida de David Zé, sabe-se apenas sobre sua filiação à moral baseada na

Igreja Metodista, o casamento, o serviço Militar pela FAPLA, a profissão de professor

e fundidor. Iniciou sua carreira artística em 1966 e gravou 14 singles até 1975.

Tratam-se de informações muito vagas e incompletas.

O campo de problemas desta pesquisa começa por perguntar sobre as dificuldades

vividas pelos artistas angolanos naquele contexto histórico. Quais foram as suas

influências e invenções? O que estava por trás da história de David Zé – um poeta

que acompanhou várias vezes o presidente Augustinho Neto −, para ter sido enviado

às trincheiras como soldado e, por fim, assassinado no episódio de maio de 1977?

Para Finalmente indagar sobre como trabalhar este tema na sala de aula do ensino

médio e como pensar sobre materiais didáticos para dinamizar a compreensão

desses temas, ou seja, dos conflitos políticos e da música de uma África

contemporânea, a partir do exemplo do que ocorreu em Angola. São as primeiras

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perguntas que a minha proposta de pesquisa objetiva responder para demonstrar

como a história de David Zé pode ser uma excelente ferramenta educacional, para

discutirmos não só o ensino de história da África, mas também o papel da música e

outras manifestações artísticas na política e na cultura, levando-as para a sala de

aula.

Justificativa

Este projeto tem um potencial interdisciplinar capaz de envolver algumas, se não

todas as disciplinas da área de humanas. Além dos dois conteúdos obrigatórios por

lei, mas nem sempre efetivados na prática na maioria das escolas – quais sejam, o

Ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e a Música como Conteúdo

Obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular −, aspectos geográficos

do continente africano ou restritamente angolano, as correntes e ideias filosóficas

que influenciaram tanto os músicos, quanto os políticos que perderam a vida ou

foram responsáveis pela morte de milhares de angolanos, são assuntos e temas que

também poderão se beneficiar dos resultados e produtos desse projeto de pesquisa,

que a principio, pretende produzir um documentário com depoimentos de Angolanos

em Luanda e/ou Angolanos que moram no Brasil para abordar o tema da

independência pelo viés musical, cultural.

Tive a oportunidade de participar como músico, do II Festival Internacional de Teatro

em Luanda em maio de 2013. Neste intercâmbio cultural, descobri que nas salas de

aula de Luanda, o ensino de história está restrito apenas à história geral, ou apenas

à história de Portugal, o conteúdo sobre a história de Angola não está presente nas

salas de aula de Angola, nem, efetivamente, do Brasil.

O artigo denominado A formação de professores de história e a problemática da

diversidade cultural em Angola, publicado por Ana Luzia Pires Lobo Jacinto, do

Instituto Superior de Ciências da Educação, discute as contradições da Lei de Base

do Sistema de Educação (L.B.S.E.), lei nº 13/01 de 31 de Dezembro de 2001,

argumentando que esta

constitui a base legal da última Reforma Educativa em Angola; nela constam as orientações e bases legais para todo o sistema educativo. O primeiro artigo define que o “sistema de educação é o conjunto de estruturas e modalidades através dos quais se realiza a educação

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tendente a formação harmoniosa e integral do indivíduo com vista à construção de uma sociedade livre, democrática, de paz e progresso” (ANGOLA, 2001, p. 76). Quanto aos objetivos gerais da educação foram definidos os seguintes: a) Desenvolver harmoniosamente as capacidades físicas, intelectuais, morais, cívicas, estéticas e laborais da jovem geração, de maneira contínua e sistemática, e elevar o seu nível científico, técnico e tecnológico, a fim de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país; b) Formar um indivíduo capaz de compreender os problemas nacionais, participação ativa na vida social, à luz dos princípios democráticos. (JACINTO, 2011, p. 1-2)

A autora questiona se os professores angolanos estão preparados para lidarem com

as várias aspirações relacionadas à diversidade cultural angolana. Vê-se que os

programas de História, direcionados para a formação de professores de estudos

sobre o continente africano, só são abordados em função da presença europeia em

algumas regiões do continente.

O programa da 10ª classe está constituído pelos seguintes eixos temáticos: introdução à História; origem e evolução do homem; civilizações fluviais e as primeiras sociedades de classe; civilizações mediterrâneas; Europa feudal; África antes do século XV; Ásia antes do século XV. Por seu turno, o programa de História da 11ª classe abarca essencialmente aspectos ligados à História Universal, dentre os quais temas relacionados com a expansão européia, a formação da mentalidade moderna, as revoluções liberais, a cultura e a ideologia do século XX, a Europa no século XX. Encontra-se também um tema relacionado com os continentes africano e asiático que é o nº 3, assim discriminados: Sobre o continente africano consta o seguinte tema: “a era do tráfico de escravos,” constituído pelos seguintes subtemas: os factores do surgimento do tráfico, as condições dos escravos durante a travessia atlântica, o desenvolvimento do tráfico de escravos e a resistência africana, as sociedades africanas não afectadas pelo tráfico e pela presença europeia, as consequências (em África: caso de Angola; na América e na Europa). Esses temas constam igualmente nos programas da 4ª e 8ª classe, pretende-se deste modo, que se faça um aprofundamento dos mesmos na 11ª classe. . (JACINTO, 2011, p. 3-4)

Como se percebe, nos programas de ensino não consta o estudo da dimensão

multicultural angolana, constata-se a existência obrigatória de conteúdos mais

relacionados com a história universal, enquanto que, em nossa opinião, o estudo

das sociedades africanas, e angolana em particular, permitiria que os estudantes

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tivessem uma visão real do modus vivendi dessas sociedades, o que possibilitaria o

desenvolvimento de valores socioculturais (JACINTO, 2011, p. 4-5). Portanto,

dedicar uma pesquisa sobre as reações políticas e culturais, a partir da trajetória e

produção artística de David Zé, é reafirmar a Lei 10.639/03, incluindo o estudo da

História da África e dos Africanos nas escolas Brasileiras e a possibilidade de

ensinar uma história interdisciplinar, mais lúdica, livre dos dogmas tradicionais sem

perder os limites clássicos. Para esta última justificativa, podemos ainda ressaltar a

inoperância da Lei nº 11.769/08, que prevê a obrigatoriedade do ensino da música

na educação básica e onde – no Art. 3o –, lê-se: Os sistemas de ensino terão 3

(três) anos letivos para se adaptarem às exigências estabelecidas nos arts. 1o e

2o desta Lei. A mesma já completa cinco anos e pouco ou nada se fez.

Angola foi escolhida como lugar da nossa proposta como uma forma de

agradecimento à excelente receptividade que foi concedida a um grupo de artistas

valencianos, no qual também me encontrava. A troca de experiências no meio do

teatro, da música e outras artes foram as causas que me fizeram escolher o recorte

temporal e nosso personagem principal: David Zé e golpe e contra-golpe fraccionista

de maio de 1977, pelo estranho fato do “maior compositor de todos os tempos, o

guerrilheiro, o revolucionário,” cantor e professor só ter disponível na internet apenas

um site (Wikpédia), contendo a sua biografia com apenas cinco pequenos

parágrafos.

Considerações Teórico-Metodológicas A música sempre esteve presente nas escolhas que fiz. Quando graduando

em Licenciatura Plena em História pelo Campus V da UNEB, decidi pesquisar a vida

e a obra de Raul Seixas diante das mazelas da Ditadura Militar no Brasil, suas

técnicas de drible à censura, influências filosóficas e musicais. Esse projeto de

pesquisa me permitiu um apoio da FAPESB para a Iniciação Científica durante dois

anos. Neste período, publiquei alguns artigos e finalizei meu Trabalho de Conclusão

de Curso com o artigo denominado “Eu não sou besta pra tirar onda de herói: Uma

micro-história da juventude brasileira nos anos de chumbo. 1964-1985”.

Durante os estágios ( de Observação, Oficina e Regência) , levava o violão

pra a sala de aula e aprendi como utilizar a música de diversas formas, seja

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reproduzindo-as sozinho, ensaiando corais ou auxiliando os alunos na composição

de paródias relacionadas aos temas propostos para as séries em que realizei os

referidos estágios.

Em 2012, nosso grupo teatral de Valença foi contemplado no edital

Calendário das Artes do Governo do Estado da Bahia para apresentar a peça A Órfã

do Rei, escrita pelo dramaturgo angolano José Mena Abrantes. O drama conta a

história das órfãs portuguesas enviadas para Angola e submetidas ao casamento

forçado, entre outras estratégias de dominação colonialista, com a finalidade de

“higienizar” a população da colônia. Compus a trilha sonora deste espetáculo e o

apresentamos em Valença e em duas comunidades quilombolas do Baixo Sul:

Laranjeiras e Boitaraca.

Em 2013, fui contemplado novamente pelo Calendário das Artes no projeto

Musicalizar nas escolas. Com este novo projeto, promovemos um bate papo nas

quatro escolas estaduais da zona urbana de Valença. Acompanhado pela minha

banda, Os Aimorés, cantávamos 12 músicas do período da Ditadura Militar e

dividíamos em quatro blocos de discussão com os professores de filosofia,

português e história de cada escola.

Atualmente, trabalho na Escola Estadual Gentil Paraíso Martins, em Valença,

e – desde o maio de 2014 − venho promovendo o projeto Música na Ditadura.

Neste, realizo uma apresentação, seguida de debate, aula-show, lembrando os 50

anos do Golpe Militar de 1964. Através de canções, que canto acompanhado do

violão, letras, imagens, trechos de filmes, vídeos e clipes musicais, demonstrando as

estratégias de sobrevivência que os artistas e jovens brasileiros encontraram para

fugir dos porões da Ditadura. Este projeto foi apresentado pela primeira vez na

Escola Estadual da Cachoeira, através da ONG Casa de Barro. Em seguida, percorri

as oito escolas estaduais de Valençaii. Cinco na zona rural e três na cidadeiii. O

projeto Música na Ditadura também já foi apresentado na cidade de Gandu, pela

Secretaria de Cultura, na cidade de Cruz das Almas, no Colégio Montessori e, até o

final de 2014, percorrerá várias cidades do estado da Bahia, como parte do

calendário pedagógico da rede estadual pelo programa “Direito à Memória”.

Este pequeno curriculum é uma forma de demonstrar que sempre tive a

intenção de procurar me aprimorar nos meus estudos para continuar pondo a teoria

em prática. Penso que a música é uma excelente ferramenta para a sala de aula.

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Ressalto que não é preciso ser músico para trabalhar com ela, mas é preciso estar

atento às reflexões que uma canção possibilita. Sobre a produção historiográfica

contemporânea, Maria Izilda Santos de Matos ressalta, em seu artigo História e

música: reflexões, pesquisa e ensino:

A produção musical se apresenta como um corpo documental particularmente instigante, já que por muito tempo constituiu um dos poucos documentos sobre certos setores relegados ao silêncio, centrando-se na expressão de sentimentos e abordando temáticas tão raras em outros documentos. Trata-se de uma documentação muito rica e pouco explorada pela análise histórica, como grande potencial para a revelação do cotidiano, das sensibilidades e das paixões, como algo que todos os dias penetra pelos ouvidos e está na boca de todos. (MATOS,2003, p58)

Como estamos tratando de um estudo histórico das experiências de um

músico, professor e guerrilheiro angolano (David Zé), entraremos em contato com

uma cultura diferente, etnias, idiomas e ritmos que interessam ao ramo da História

Cultural proposta por Peter Burke. O autor provoca os historiadores no artigo

Abertura: A Nova História, seu passado e seu futuro:

Quer gostem, quer não, os historiadores estão tendo de se preocupar com questões que por muito tempo interessaram a sociólogos e a outros cientistas sociais. (BURKE, 1992, p. 31)

Ainda nesse recorte, podemos analisar a história política de Angola e a guerra

pela independência, a violência que causou a morte de David Zé, de outros artistas

populares e de milhares de cidadãos angolanos. No seio de todo este tormento, a

história cultural ainda nos permitirá analisar as emoções que este artista

proporcionou e proporciona até hoje nos cidadãos e cidadãs angolanos, bem como,

poderá proporcionar aos alunos e alunas na sala de aula aqui no Brasil, na Bahia.

David Zé é lembrado pelos angolanos pelas suas letras de conteúdo politizado e

libertador, de caráter nacionalista, como podemos analisar na canção Mwangolé (O

guerrilheiro):

Eu guerrilheiro Que passa o tempo lá na mata (2x)

Lá na Mata do Maiome Lá nas zonas do leste

Aonde chove todos os dias Aonde os mosquitos não se contam

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Os muruins já não se contam A gente as vezes passa fome

Pra libertar o nosso povo Esse é o preço da revolução.

Ê Mwangolá, Ê Mwangolé, Ê Mwangolá

O imperialista diz que Cabinda não é Angola O americano diz que Cabinda não é Angola

Eles só tentam separar-nos Espalhando boatos e mentiras

Mas eles nunca dizem nunca [...] Eles só tentam dividir-nos

Angola hoje deu um passo bem em frente

A união dos movimentos Se fosse feita na prática A reação não passaria

Ê Mwangolá, Ê Mwangolé, Ê Mwangolá

Este foi o guerrilheiro Que passou as estações na mata

Foi o guerrilheiro Que passou o natal na mata

O ano novo lá na mata O carnaval foi lá na mata Pra libertar o seu povo

Esse é o preço da revolução. (David Gabriel José Ferreira, 1972)

As palavras de David Zé listam as dificuldades diárias enfrentadas por aqueles que

vivem nos campos de batalha: O tédio, a fome, o isolamento, o mal-estar. Esses

guerrilheiros não foram célebres guerreiros treinados para tal, mas homens comuns

que por ideologia ou a força, abdicaram do conforto do lar e da família.

A música Guerrilheiro é composta em um tom que evoca o sobrenatural. Poucas e

repetidas notas, lembra o som hipnótico, talvez fazendo alusão à sensação de

cansaço e mal-estar impostos aos guerrilheiros nos campos de batalha. David Zé

canta quase suplicando e no refrão outras vozes o acompanham em um coro

sombrio.

Essas canções nos fazem refletir, como o fez Aby Warburg, que “Deus está no

particular”, nos detalhes, nos sinais, nas pistas, por consequência nas descobertas e

finalmente nas transformações que estas descobertas proporcionarão à sociedade e

aos seus indivíduos como agentes sociais, cientes da sua história.

Page 10: Isaías Menezes Pereira

Através deste documentário, pretendemos refletir sobre a contribuição de David Zé

para a cultura, a política e a educação de Angola de 1966 a 1977; Ampliar a

biografia de David Zé bem como a produção historiográfica sobre a época em que

Produzir materiais didáticos que reflitam a atuação de David Zé na luta pela

independência de Angola e promover o debate sobre as possibilidades de execução

das Leis 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre

História e Cultura Afro-Brasileira nos níveis médio e fundamental e da lei 11.769 de

18 de agosto de 2008 que torna obrigatório mas não exclusivo, o ensino de música

no componente curricular.

O fato mais intrigante desta pesquisa é a ausência de informações do nosso objeto

na internet. As únicas informações encontradas foram: uma biografia, no site onde

as informações têm sempre um caráter duvidoso, o Wikpédia; um site de rádio,

Lastfmiv, onde encontramos dois pequenos parágrafos sobre David Zé; e um blog,v

onde o texto se encontra em inglês com algumas informações mais ricas. Além

destes, encontrei 23 músicas com o nome de David Zé no youtubevi. Alguns desses

vídeos trazem as letras das canções, mas a grande maioria não está nem nos

vídeos do youtube, nem em lugar algum. A canção o guerrilheiro, citada acima, por

exemplo, foi redigida enquanto eu ouvia a canção. Apesar de ser um português

aparentemente compreensível, em algumas canções David Zé canta trechos,

quando não toda a música, em diferentes idiomas das etnias africanas. Uma delas

se chama 1º de agostovii. É cantada em kimbundu, uma língua africana falada ao

noroeste de Angola. A letra neste idioma não se encontra disponível na internet. No

site citado, existe uma tradução que diz:

O 1º de Agosto é um dia das forças armadas angolanas, vamos erguer as raízes. Pretos e mulatos e até brancos, vão cultivar café, cortar a cana de açúcar, para fazermos a revolução da Namíbia do Zimbábue em África, quebrar o inimigos da África, rapazes rapazes, ergamos as raízes.

A canção é um semba, bastante percussivo, com solos de guitarra que lembram a

salsa. No final da música David Zé explica, em português, o motivo da nome

escolhido para a música: “1º de agosto. Dia das Forças Armadas Populares de

Libertação de Angola. 1º de agosto é um dia de luta. 1º de agosto é o dia da

Page 11: Isaías Menezes Pereira

solidariedade com todos os povos oprimidos do mundo”. (David Gabriel José

Ferreira, 1972)

Esta canção será uma das fontes que pretendo analisar no documentário. Com ela,

podemos proporcionar aos discentes um contato com uma das línguas africanas,

além de contextualizá-la diante da luta pela descolonização angolana. As Forças

Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) era o exército do MPLA, o

mesmo em que David Zé prestou serviço militar e foi diretor musical do agrupamento

Aliança FAPLA-POVO. Através desta ligação, David Zé acompanhou o presidente

Agostinho Neto aos festejos de independência de Moçambique, São Tomé e

Príncipe e Guiné-Bissau, onde cantou a canção Quem Matou Amílcar Cabralviii,

político de Guiné-Bissau, assassinado por dois membros do seu próprio partido, o

Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Coincidência ou não, os angolanos afirmam que quem matou David Zé foi o MPLA,

seu próprio partido.

A maior parte das minhas fontes serão as canções de David Zé. Pretendo ainda

entrevistar pessoas que conviveram com David Zé em Angola e as comunidades

angolanas no Brasil. Para isso, utilizarei os contatos que fiz na minha experiência

cultural em Luanda, onde pude conversar com pessoas que participaram

efetivamente da guerra civil. São pessoas que estiveram tanto no campo político e

cultural quando no campo de guerra.

Entrelaçando as particularidades destas fontes orais, textuais e sonoras, pretendo

remontar o episódio de maio de 1977 em Angola, propondo estratégias, dinâmicas e

metodologias pedagógicas que permitam levar este capítulo da história para as

salas de aula do ensino médio.

Bibliografia:

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Page 12: Isaías Menezes Pereira

BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 07-37.

BURKE, Peter. O que é História Cultura? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

FIÚZA, Alexandre Felipe. “Deixa cantar de novo o trocador”: Considerações acerca do trabalho com a canção na sala de aula. UNICAMP.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes, o cotidiano e as idéias de moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Compainha das Letras, 1987.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história SP: Companhia das Letras. 1989. GINZBURG, Carlo. O nome e o como. In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p.173-174. HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução Jefferson Luiz Camargo 2ªed. SP: Martins Fontes, 2001.LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter. A Escrita da História: novas perspectivas .São Paulo: UNESP, 1992. MATOS, Maria Izilda Santos de. História e música: reflexões, pesquisa e ensino. PUC-SP MATTOS, Hebe; ABREU, Martha; DANTAS, Carolina Viana; MORAES. Personagens negros e livros didáticos: Reflexões sobre a ação política dos afrodescendentes e as representações da cultura brasileira. UFF. p. 299-319 MELLO, Adilson da Silva; JUNIOR, Otávio Candido da Silva. Uma leitura da “circularidade” entre culturas em Carlo Ginzburg. Janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006. PARANHOS, Adalberto. Sons de sins e nãos: a linguagem musical e a produção de sentidos. Projeto História, São Paulo: EDUC/FAPESP/FINEP, n. 20, p. 221-226, 2000. VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: Ensaios da teoria e metodologia. RJ: Campus, 1997.

REFERÊNCIAS DA INTERNET

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Page 13: Isaías Menezes Pereira

http://pt.wikipedia.org/wiki/David_Z%C3%A9

http://www.lastfm.com.br/music/David+Z%C3%A9

http://exoticinvasive.blogspot.com.br/2011/07/david-ze-guerrilheiro.html

https://www.youtube.com/results?search_query=David+Z%C3%A9