indagações metafísicas na obra de elisa lispector

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This article was downloaded by: [Columbia University] On: 04 October 2014, At: 13:59 Publisher: Routledge Informa Ltd Registered in England and Wales Registered Number: 1072954 Registered office: Mortimer House, 37-41 Mortimer Street, London W1T 3JH, UK Kentucky Romance Quarterly Publication details, including instructions for authors and subscription information: http://www.tandfonline.com/loi/vzrq20 Indagações Metafísicas na Obra de Elisa Lispector Pietro Ferrua a a Lewis and Clark College , USA Published online: 09 Jul 2010. To cite this article: Pietro Ferrua (1979) Indagações Metafísicas na Obra de Elisa Lispector, Kentucky Romance Quarterly, 26:4, 415-420, DOI: 10.1080/03648664.1979.9926353 To link to this article: http://dx.doi.org/10.1080/03648664.1979.9926353 PLEASE SCROLL DOWN FOR ARTICLE Taylor & Francis makes every effort to ensure the accuracy of all the information (the “Content”) contained in the publications on our platform. However, Taylor & Francis, our agents, and our licensors make no representations or warranties whatsoever as to the accuracy, completeness, or suitability for any purpose of the Content. Any opinions and views expressed in this publication are the opinions and views of the authors, and are not the views of or endorsed by Taylor & Francis. The accuracy of the Content should not be relied upon and should be independently verified with primary sources of information. Taylor and Francis shall not be liable for any losses, actions, claims, proceedings, demands, costs, expenses, damages, and other liabilities whatsoever or howsoever caused arising directly or indirectly in connection with, in relation to or arising out of the use of the Content.

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This article was downloaded by: [Columbia University]On: 04 October 2014, At: 13:59Publisher: RoutledgeInforma Ltd Registered in England and Wales Registered Number: 1072954Registered office: Mortimer House, 37-41 Mortimer Street, London W1T 3JH,UK

Kentucky Romance QuarterlyPublication details, including instructions forauthors and subscription information:http://www.tandfonline.com/loi/vzrq20

Indagações Metafísicas na Obrade Elisa LispectorPietro Ferrua aa Lewis and Clark College , USAPublished online: 09 Jul 2010.

To cite this article: Pietro Ferrua (1979) Indagações Metafísicas na Obrade Elisa Lispector, Kentucky Romance Quarterly, 26:4, 415-420, DOI:10.1080/03648664.1979.9926353

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INDAGA~OES METAF~SICAS NA OBRA DE ELISA LISPECTOR

Pietro Ferrua

Situar Elisa Lispector no h b i t o da literatura brasileira nao serb tarefa simples para o futuro historiador da literatura, pois ela parece ter nascido nas letras daquele pais por um fen6meno de geragao espontlnea, nao devendo nada h tradicao. Como a de Samuel Rawet, Astrid Cabral e alguns outros, a linguagem desta escritora nao revela infludncias aut6ctones e nenhuma filiacao particular. As semelhancas com o estilo e 0 s temas da irma Clarice nao denotam imitacao nem inspiracao, sendo mais ou menos simulthea a evolucao litertiria de ambas. 0 soci6logo da literatura 6 quem nao deixari de explicar um dia as razoes do surgimento repentino de uma narrativa desligada da realidade nacional. Nataniel Dantas observara esta ausbncia de elementos geogrificos ao escrever a critica de Sangue no sol,’ enquanto Homero Senna ao falar de 0 muro de pedras ji havia notado que o livro era “pouco brasileiro.”2 De fato, Elisa Lispector foge de qualquer tentaqao folcl6rica, ou colorista e afasta-se da visa0 de araras e mulatos, sobrados e mocambos, cangaceiros sertanejos e pescadores baianos, garotos de calcada e garotas de Ipanema, que tbm alimentado a literatura brasileira desde a Cpoca colonial at6 nossos dias. A h i c a concessao hist6ria e a geografia 6 o romance No exi7i0,~ de cunho aparentemente autobiogrifico, que descamba as vezes para a polCmica politica e o engajamento e que, por essa razao mesma, talvez seja o menos bem-sucedido de seus livros. Nos outros h i , quando “muito, alusoes, tais como “as chuvas torrenciais que se seguiram a esse period0 de verao obrigaram-na a refugiarse em casa,” (UP, p. 122) que consentem reconhecer condicoes climiticas tropicais, ou at6 um janeiro tipico da Guanabara. Em geral, as paisagens de Elisa Lispector sao, sobretudo, interiores. Trata-se de uma literatura intimista at6 entao desconhecida nas letras brasileiras, pel0 menos com tamanha intensidade, reduzida a vida do pensamento, e na qua1 a aqao ou 6 ausente ou nunca predomina. Para a sua introspeccao a escritora recorre a uma linguagem depurada de qualquer coloquialismo, de qualquer conotaqao que possa fixi-la no tempo ou no espaqo e liga-la a uma sociedade ou a um momento hist6rico dado. Elisa realiza o velho sonho de uma linguagem tao cristalina e decantada que poderia ter sido concebida em qualquer Bpoca ou pais e que pode ser traduzida em qualquer outro idioma sem nada perder de sua elegancia e precisao.

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Mais d o que Kafka e Mansfield, corno sugere Dantas: o rnundo da escritora lernbra a literatura francesa: o classicisrno n o que diz respeito A sobriedade d o estilo, o existencialismo no que concerne a tematica, 0s rnoralistas e 0s ensaistas (de Pascal a Cioran) pela visao rnetafisica. A cultura da autora, porbm, transparece com muita parcimhnia. 0 Gnico pensador diretarnent rnencionado C Maimanides (UP, p. 100) enquanto Pirandello pode ser reconhecido a t r b d o discurso relativista ern 0 dia mais longo de Thereza (p. 72), Carnus e Sirnone de Beauvoir ensaistas em varias ocasioes, se bern que possa tratar-se de influEncias rnediatizadas e indiretas. 0 s temas filosoficos, que predorninarn na obra de Elisa Lispector, sao 0s d a cultura conternporlnea: angGstia existencial, (UP, p . 79 e passim); relativi- dade temporal (SuS, pp. 13, 15; DT, pp. 9-10); o monadisrno leibniziano corrigido por Sartre (“Cada rnundo C urn rnundo a parte. Cada ser um ser isolado.” [ S n S , p. 1041 ); o neo-ceticisrno (“Nada serve para nada.” “Tudo C urn engano.” [UP, p. 1001 ); entre outros.

As preocupacoes filosbficas da autora sao tao preponderantes que fizerarn Dantas afirrnar que ela nao cria personagens. Significaria isto que ela nao faz senao ventilar ideias as custas da expressao artistica? Muito pelo contririo. A tentaqao ensaistica nunca vence ou diminui 0s perso- nagens, cuja intensidade vital adquire uma dimensao mais a u t h t i c a . Ce- sario de Mello insiste justamente sobre este aspecto, ao notar: “Elisa Lispector conhece profundamente o poder de transposicao da realidade psiquica para o plano literario, sem que essa autCntica palpitaqao de vida perca a intensidade ao ser transplantada para o narrativo.”’ De acordo corn varios criticos poder-se-ia sintetizar o sentido da obra de Elisa como urna inquiriqao nos rneandros da solidao e da incornunicabilidade, ele- rnentos obsessivos e onipresentes. Talvez a definiqao mais feliz seja a de “solidao ontologica” proposta por Bella Jozef: “A ternatica obsessiva na autora-a impossibilidade de dialogo na sociedade burguesa, dando corno resultado a solidao e o desespero d o hornem-assume dimensao ontolbgica nessa obra.”6 Corn efeito, Lispector nao cria personagens prostrados por urna banal solidao de seres ternporlneamente aflitos por problerninhas e caprichos; na sua obra o conflito da personagem corn o mundo C um estado perrnanente de individuos que nao “ligam” com outrern. Do plano ontologico ao metafisico ha apenas um passo e Elisa o percorre rapida- niente no seu opus. Urn critic0 franc& ja afirmara, a proposito de 0 dza rriais /ongo tlc, Thereza, que “Si bien ce roman a quelque chose d’existen- tialiste, en tout cas il fait penser a I’existentialisme, meme si sa conception se prolonge jusqu’a une transcendance m i t a p h y ~ i q u e . ” ~

A indagaqao sobre o enigma d o ser es t i presente ern todos 0s romances de Lispector, Essa interrogaqao C tipica de todos seus personagens centrais, geralmente mas nao exclusivamente feniininos, em busca de si mesmos, quer cles suctimbam na procura 011 triunfem. Trata-se em geral de uma

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mulher sb, enfrentando um mundo hostil ou indiferente, o que h e oferece a oportunidade de pbr em questao as relaqoes humanas a todos 0 s niveis (do casal, da familia, dos vizinhos, da mizade, do trabalho). Marta (MP, p. 154) chega a conclusao que nao 6 fora de si, por6m no imago da propria personalidade que se encontra a resposta: “E de repente ela tombou na tragica realidade de que o ser 6 so ele, e que knicamente no aprofunda- mento interior se reencontra e 6.” Pois a solidao nao 6 ausCncia de afeiGoes ou de contatos, mesmo com aigu6m ao lado esse sentimento radical permanece. Eduardo pensa, por exemplo, que a sua presenqa ao lado de Thereza deveria bastar para que esta nao se sinta mais sb: “Voc6 fala em solidao,” retrucou Eduardo. “Entao nao me tem a mim? ” “-Nao, a solidao que sinto B maior, e assola tudo. 0 vazio que sinto dentro de mim C algo mais profundo, e mais fatal. E tao fatal quanto a propria morte, de que ninguCm sera capaz de nos resgatar” (DT, p. 56).

Essa incomunicabilidade dos seres mesmo ao interior do casal mostra como at6 o amor C &s vezes impotente para estabelecer uma completa comunhao entre 0 s seres. Nao que a tentaGao do amor nao esteja presente na obra de Elisa. Como prova disso, basta citar uma cena de seduqao de grande poder e de grande ternura, a de Mauricio se insinuando junto a Marta:

Depois Mauricio tirou-a para danqar, ela ainda querendo esboGar um movimento de resisthcia, pois lhe parecia, at& onde se lembrava, nunca ter danqado at6 entao. Mas sua resistencia era tao dCbil, tao dCbil, e a pressao da mao de Mauricio tao suave e tao convincente. E o mar mbrno intumescia e subia em vagas tao mansas e aveludadas, e afagava tao deliciosamente. Como era agradavel banhar-se nessas ondas acari- ciantes, e fechar suavemente 0s olhos ao fulgor resplandecente da luz se partindo em faiscas de fog0 e cristal nas espumas rbseas das vagas. Pois sim, diziam aquiescendo 0 s lhbios sorridentes a sua volta, pois sim. E tudo era tao ficil, que ela nem sentia os pCs tocarem o chao. (MP, p. 81)

Essa sensualidade muito contida deixa apenas transparecer o vigor das sensaqoes e dos sentimentos das personagens lispectorianas. Escolhendo um estilo de grande elegancia e alusividade, a autora pinta quadros a maneira de De Chirico ou Morandi, onde a profunda tensao emocional 6 dissimulada por tris de uma aparhcia de algidez. 0 amor, porkm, nao dura. Sua fragilidade e caducidade sao freqiienternente denunciadas, e quando Ana comeqa a escrever (a autora do livro escrevendo um livro sobre um personagem que escreve um livro: procedimento de tip0 nou- veau-roman que evocou para Bella Jozef “mise en abime”)* C para regis- trar no seu bloco de notas a eclosao do seu desamor (UP, p. 37). 0 pior 6 quando o amor nao volta podendo isso ser o suficiente para levar a

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personagem ao desespero e i aniquilaqao, como 6 o caso de Evangelina no conto “A fabula se faz de tempo” (SnS, pp. 11-15). 0 amor vai se escoando gota a gota (UP, p. 65) at6 sua fonte secar (UP, p. 51). 0 personagem, porCm, nao afasta de si o amor, deliberadamente; tudo acontece quase em virtude de uma obscura condenaGao, ma1 aceita por ele. “A verdade 6 que lhe custara viver sem amor.” (UP, p. 101) descobre Ana, lamentando que na idade madura persista ainda o apelo dos sentimentos em vez da paz que ela esperava que 0s velhos tivessem (UP, p. 41). Essa C uma das contradiGoes d o ser humano posta em relevo pela autora: a necessidade do amor e sua impossibilidade. A vida d o personagem 6 um balancear perp6tuo entre 0s dois p6los. 0 essencial C nao cair vitima dessa contraditoriedade, 6 ficar lucido, apesar da fragilidade humana (0 mistbrio do homem que fdz a barba e saiu de casa sem saber que ia morrer [ D T , p. 191 ), apesar do perigo da superficialidade das relaGoes humanas, apesar da impossibilidade de convencer ou conquistar alguem, apesar da cardncia de calor humano, apesar d o perigo da trivialidade da existkncia, da ameaqa do efemero. 0 essencial C lembrar que “cada qua1 deve seguir o seu destino, viver a pr6pria vida (NE, p. 155), se bem que essa vida mesma possa ser um sonho, como pensa Lizza (NE, p. 135).

0 personagem tem um dever para consigo m e m o : 6 “valer-se a si mesmo” ( N E , p. 155), 6 aprender o duro oficio de viver, o que nao 6 facil, porCm, como o revela Marta, que “se afligia por nao saber de onde lhe adviria o conhecimento necessario para vivd-10s [ 0s anos] . . . ” (MP, p. 26). Esta sabedoria s6 se adquire depois de uma inquiriGao” desassosse- gada” (UP, p. 92) ao longo de uma vida que talvez seja “uma caminhada inutil” (LIT, p. 1 l ) , dentro de um grande “circulo de solidao” (MP, p. 24), no meio de um “sofrimento em pura perda” (MP, p. 32), mas que 6 tamb6m o unico escape.

Configura-se assim o itinerario espiritual de Elisa Lispector. A idCia de que a vida C mais forte do que a nossa pr6pria vontade ja aflorava em N o exilio. A vida fora mais forte d o que a doenCa e o desespero para Lizza depois de dezoito meses de sanatorio. “A vida C mais forte d o que n6s . . .” ( N E , p. 149) havia-lhe dito Mercddes que acreditava numa aceitaqao quase fatalista da vida. Nao resta ao ser humano senao olhar n o fundo de si mesmo com coragem e aceitar-se em sua solidao, pois ele n a o pode ir alCm de si mesmo. A solitude pode ser tamb6m um estado de perfeiqao, dificil de atingir sem se encontrar em estado de graqa, parece concluir Thereza; pois “quem Ihe podia assegutar que nao fBra para a solitude d o ser dentro do mundo que o homem nascera? ” (MP, p. 180). 0 caminho metafisico da autora nos lembra aqui o do Camus e o estoicismo das personagens dele avoca o mito de Sisifo e a conclusao camusiana de que devemos imaginar Sisifo feliz apesar da aparente inanidade de seus esforcos.

“-Quem sou eu, quem sou eu? ”- pergunta-se Ana ao inicio de A

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ultima porta. Ao cab0 de sua indagaqao e no fim do livro ela parece concluir simplemente: "-EU sou! " ". . . como se houvesse alcanqado o puro estado de ser na sua esstncia" (UP, p. 125). A vida nao parece ter nenhuma outra justificativa do que a vida mesma. 0 homem nao esta destinado a nada de especial. Deus i uma presenqa rara a quem 0 s personagens preferem nao fazer apelo. Ele tambim esti rodeado de mis- t i n o e faz parte de enigma. A precauqao do agnosticism0 6 possivelmente um incentivo para o individuo nao renunciar busca perpCtua de uma significaqao, de um sentido, ao percorrer a sua breve passagem c6smica. 0 essencial C a busca e nas piginas que h e sao dedicadas, ecoam as medi- taqoes pascalianas sobre o mesmo assunto. Exemplo admiravel desta neces- sidade de persisttncia 6 o epiddio da mosca, em Sangue n o sol:

Se ela fbsse paciente e persistisse primeiro num sentido, ap6s no outro, terminaria encontrando a saida. Mas ela se desesperou e ronda num mesmo circulo restrito, cada vez mais estonteada. Nao, decididamente por si mesma nao escapara. Enquanto assim penso, continua a debater- se dentro da mesma irea de incerteza. Agora parou, exausta. Mas eu, que sou Todo-Poderoso em relaqao a mosca, pois tenho mais visao que ela, ou pelos menos, tenho ca 0 s meus designios, e tanto posso con- tinuar sentado, contemporizando, quanto posso liberta-la de seu mar- tirio, vou exercer o ato de miseric6rdia de um Todo-Poderoso que tem a faculdade, senao de salvar almas, pel0 menos de salvar uma mbsca. Pronto. (p. 67)

Esta parabola simboliza bem a relaqao entre o homem (a mbsca) e Deus (0 Todo-Poderoso). Tendo absoluto dom inio sobre o gtnero humano Deus pode nos salvar ou nlo. A escritora, ao sugerir que a mosca poder-se-ia evadir se em sua h s i a de liberdade pusesse mais pacitncia ou mais mCtodo, implica que o homem tambkm, em seus movimentos brownianos no emaranhado das situaqoes vitais, poderia acabar encontrando sua saida, sua soluqao, seu salvamento, se usasse de mais persevergnqa em sua busca. Elisa Lispector nos propicia uma liqao de estoicismo, num clima de austeridade absoluta. S6 e deserdado, afundando cada vez mais no proprio desespero, o homem deve porim resistir a atraqao da auto-destruiqao que aflige a maior parte dos personagens. A danaqao da qual fala tia Cordilia em 0 dia mais longo de Thereza poderia muito bem ser a tentaqao do suicidio, negaqao suprema do ser contra a qual a vida so pode apor luta, luta para a afirmaqao. Em nome de que? Elisa Lispector nao nos propoe nenhuma soluqao f a d , nenhuma religiao, nenhuma ideologia, nenhuma panaciia. Seus contos e romances as vezes parecem nao ter final, o que deu a Homero Senna uma sensaqao de inacabado.' Parecenos portanto que se trata de uma ambigiiidade deliberada que tem uma dupla funqao. No plano

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artistico, ela entretem a atmosfera evanescente na qual mergulham sew personagens, no plano metafisico sua finalidade B deixar plena liberdade de interpretaGao sobre o destino do personagem.

Que haverl alBm da ultima porta? Ana, no mais depurado dos ro- mances da autora, conclui metafisicamente: “A ultima porta poderl ser o limiar do Tudo. Ou do Nada” (UP, p. 123).

LEWIS AND CLARK COLLEGE

NOTAS

1. Nataniel Dantas, “Contista da solidao,” Suplemento Literdrio do Estado de Sio Paulo, 5 de setembro de 1970, 2.

2. Homero Senna, “0 Muro de pedras,” Correio da Manha, 10 de de agosto de 1963.

3. Elisa Lispector, No exilio (Rio de Janeiro: Pongetti, 1948). A seguir desig- nado NE. As outras obras aqui examinadas sao: 0 muro de pedras (Rio de Janeiro: Jos6 Olympio, 1963) abreviado MP; 0 dia mais Iongo de Thereza (Rio de Janeiro: Grifica Record, 1965) abreviado DT; Sangue no sol (Brasfiia: Ebrasa, 1970), abre- viado SnS; A ultima porta (Rio de Janeiro: Editora Documentkio, 1975) abreviado UP.

4. Nataniel Dantas, op. cit., 2. 5 . Jornal do Comkreio, Recife, 17 de janeiro de 1963. Trecho transcrito i

miquina que me foi fornecido pela autora sem nenhuma indicagao de ti’tulo ou de paginagio, como 6 o caso de algumas outras criticas aqui mencionadas.

6. “A ultima porta: Ruptura e metacriagao,” Minus Gerais (Suplemento Liter- ario), 17 de maio de 1975, 4. Deixamos h autora do artigo a responsabilidade da afirmagao um quanto grathita em relagao, i impossibilidade de didogo na sociedade burguesa.

7. J. Roche, em Bulletin de I’Universitk de Toulouse, No. 7 (19661,679. 8. Bella Jozef, op. cit., 4. 9. Homero Senna, op. cit., 0 que ele diz a respeito de 0 muro de pedras

poder-se-ia aplicar a vkias outras obras.

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