imagens e narrativas: a cultura nÔmade dos pixadores de fortaleza

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS JULIANA ALMEIDA CHAGAS IMAGENS E NARRATIVAS: A CULTURA NÔMADE DOS PIXADORES DE FORTALEZA. FORTALEZA 2012

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Essa pesquisa designa a estudar a categoria social do pixadores na cidade de Fortalezainvestigando suas práticas urbanas pela cidade através de um processo investigativo dasimagens e narrativas construídas pelos pixadores nas redes sociais da internet. Ospixadores interferem na paisagem urbana através da pixação, a pixação é ummovimento juvenil comumente encontrado nas metrópoles brasileiras, suas inscriçõesatestam uma comunicação simbólica através dos muros e espaços físicos da cidade. Oxarpi é a marca representativa do pixador que numa rede de interação promovesociabilidades e conflitos na cultura da pixação. O xarpi faz com que o pixador exista nacidade multiplicadas vezes através desse “nome de guerra”, é uma presença simbólicademarcada em inúmeros territórios ao mesmo tempo.A pesquisa identificou dois momentos na cultura da pixação de Fortaleza, o primeirotrata-se da geração da década de 80 e 90, o segundo dos anos 2000 a atualidade dapresente investigação. Entre semelhanças e diferenças constatadas concluímos que apixação é um movimento em constante crescimento e inovações de carga semântica esimbólica.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS

    JULIANA ALMEIDA CHAGAS

    IMAGENS E NARRATIVAS: A CULTURA NMADE DOS PIXADORES DE

    FORTALEZA.

    FORTALEZA

    2012

  • 2

    JULIANA ALMEIDA CHAGAS

    IMAGENS E NARRATIVAS: A CULTURA NMADE DOS PIXADORES DE

    FORTALEZA.

    Monografia apresentada ao curso de

    graduao em Cincias Sociais do

    Departamento de Cincias Sociais da

    Universidade Federal do Cear, como

    parte dos requisitos para a obteno do

    ttulo de Bacharel em Cincias Sociais.

    Orientadora: Prof. Dr. Glria Digenes

    FORTALEZA

    2012

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo em primeiro lugar a Deus que permitiu mais essa conquista na minha

    vida, que me deu foras pra escrever cada captulo desta pesquisa.

    Agradeo minha famlia que sempre apoiou meus gostos e decises.

    Agradeo ao meu namorado Hermes pela pacincia, amor e ajuda prestada.

    Agradeo minha orientadora Glria Digenes que uma excelente professora e

    pesquisadora; que abraa os alunos que desejam pesquisar sujeitos inusitados; que

    uma mulher jovem e motivadora das juventudes.

    Agradeo aos pixadores de Fortaleza das dcadas de 80, 90, 2000 e 2010, aqui

    misturados, em suas contribuies e aparies nessa pesquisa: Fuga RM, Snow TB,

    Seco GDR, Pango SA, Sask DNG, Zarco PNG, Tira GU, Gordo GDR, Strayck RAP,

    Doido VS, Muleka EF, Rato PCX, Mala VS, Tefinha VS, Bafu GDR, Liso GDR,

    Scorpion SR, Mutreta , Pato GT, Master AC, Cancao RPM, Raposo FG, Cupim RM,

    Kakinho GUP, Falco GDR, Taz SF, Rato MP, Pastor FG, Kite FG, Grud FG, Sombra

    FG, Tatoo FG, Guga FG, Osso LSD.

    Agradecimento em especial ao pixador Fuga RM que est produzindo um

    trabalho incrvel de catalogar e entrevistar os primeiros pixadores de Fortaleza,

    disponibilizando esses vdeos livremente na internet pelo site Youtube.

    Agradeo, tambm, aos pixadores de So Paulo e do Rio de Janeiro que em suas

    falas muito contriburam para essa pesquisa: Caroline Pivetta, Cripta Djan, Nuno DV.

  • 4

    OrAo DoS PiXaDoReS 1

    LaTa NoSsA QuE EsTaIs Na MoChIlA

    BeM SaTiSfAtOrIo SeJa O SeU LiQuIdO

    VeM A NS A SuA TiNtA

    SeJa FeItA A NoSsA GrIfF2...

    AsSiM No MuRo CoMo Nu PoRtO

    O SpRaY De CaDa DiA NoS DI Hj

    PeRdOe NoSsOs ErRiNhOs

    AsSiM CoMo NoS PeRdOaMoS Os BaFoS

    tOdo NoSsO!

    NO NoS DeIxE CaIr NaS MO DoS GaMb!

    MaS LiVrAi-NoS Do DiStRiTo!!!

    --------------------------------------------

    1 : Visualizada no blog de um pixador. Disponvel em: http://robsoninfor.blogspot.com.br/2008/09/orao-

    dos-pixadores.html Acesso em 14/05/12, s 21h55.

    2

    : As palavras em itlico nesta pesquisa tero seus significados explicados no Glossrio presente na

    pgina 78.

    http://robsoninfor.blogspot.com.br/2008/09/orao-dos-pixadores.html%20Acesso%20em%2014/05/12,%20s%2021h55http://robsoninfor.blogspot.com.br/2008/09/orao-dos-pixadores.html%20Acesso%20em%2014/05/12,%20s%2021h55
  • 5

    RESUMO

    Essa pesquisa designa a estudar a categoria social do pixadores na cidade de Fortaleza

    investigando suas prticas urbanas pela cidade atravs de um processo investigativo das

    imagens e narrativas construdas pelos pixadores nas redes sociais da internet. Os

    pixadores interferem na paisagem urbana atravs da pixao, a pixao um

    movimento juvenil comumente encontrado nas metrpoles brasileiras, suas inscries

    atestam uma comunicao simblica atravs dos muros e espaos fsicos da cidade. O

    xarpi a marca representativa do pixador que numa rede de interao promove

    sociabilidades e conflitos na cultura da pixao. O xarpi faz com que o pixador exista na

    cidade multiplicadas vezes atravs desse nome de guerra, uma presena simblica

    demarcada em inmeros territrios ao mesmo tempo.

    A pesquisa identificou dois momentos na cultura da pixao de Fortaleza, o primeiro

    trata-se da gerao da dcada de 80 e 90, o segundo dos anos 2000 a atualidade da

    presente investigao. Entre semelhanas e diferenas constatadas conclumos que a

    pixao um movimento em constante crescimento e inovaes de carga semntica e

    simblica.

    Palavras-chave: pixao, pixadores, juventude, territrio, rede social, sociabilidade,

    conflito, Fortaleza.

  • 6

    LISTA DE ILUSTRAES

    IMAGEM 01: Anos 89/90, galera da F.G. ...................................................................18

    IMAGEM 02: Estilo grfico de pixao no Rio de Janeiro. .........................................19

    IMAGEM 03: Estilo grfico de pixao de So Paulo. ................................................19

    IMAGEM 04: Pixao em altura. .................................................................................24

    IMAGEM 05: Pixadores simbolizam as iniciais da sigla com as mos VS. .............27

    IMAGEM 06, 07, 08: Trs exemplos de pixao. .........................................................30

    IMAGEM 09: Homenagem a um pixador. ....................................................................32

    IMAGEM 10: Os xarpis. ...............................................................................................34

    IMAGEM 11: A lenda vive. ......................................................................................37

    IMAGEM 12: Dedicatria de TEFINHA V.S. para CURU, de corao. .................38

    IMAGEM 13: Xarpi com a simbologia do n 1. ...........................................................40

    IMAGEM 14: Grfico enqute Qual melhor visual pra colocar um xarpi?. .............41

    IMAGEM 15: Esquadro da Zona Rebelde + Liberdade Vigiada. ..............................42

    IMAGEM 16: Convite virtual para reunio de pixadores. ...........................................44

    IMAGEM 17: Fachada do Cameldromo. ...................................................................47

    IMAGEM 18: O me desculpa eu?. ..........................................................................50

    IMAGEM 19: Rodar faz parte. .................................................................................55

    IMAGEM 20 e 21: Smbolos de violncia e poder. ......................................................56

    IMAGEM 22: Simbologia de poder. .............................................................................57

    IMAGEM 23: Para os L.V. de rocha. ........................................................................58

    IMAGEM 24: Cad o Bicho?. .................................................................................61

    IMAGEM 25: 19/03/ ? O REI!!!!! TANGO ER. .....................................................65

    IMAGEM 26: Por do Sol: a firma forte. A lei do mais alto. ..................................67

    IMAGEM 27 : Pixaes em outdoor. ...........................................................................68

    IMAGEM 28: Homem Aranha. ...............................................................................69

    IMAGEM 29: Vem na trilha. ...................................................................................70

    IMAGEM 30: Vem na trilha. (Detalhe). .................................................................. 70

    IMAGEM 31: Pixao em pedra. .............................................................................72

    IMAGEM 32: Pra no perder a noite. .......................................................................73

    IMAGEM 33: TB PREVCON 20 ANDARES. VAI VENDO!. ...............................74

    IMAGEM 34: As gatas me ama. ...............................................................................75

    IMAGEM 35: Raposo F.G. (1990). ........................................................................77

  • 7

    SUMRIO

    1. INTRODUO .........................................................................................................08

    2. HISTRIA DA PIXAO EM FORTALEZA ........................................................15

    3. AS CONVENES DO XARPI ...............................................................................29

    3.1 A SOCIABILIDADE ENTRE OS PIXADORES ...................................................34

    3.2 O CONFLITO ENTRE OS PIXADORES ..............................................................45

    3.3 VIOLNCIA E ILEGALIDADE ...........................................................................49

    4. A CIDADE COMO LUGAR DE ESCRITA .............................................................62

    4.1 A IMAGEM COMO REPRESENTAO DO PIXADOR ....................................64

    5. CONCLUSO ...........................................................................................................79

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...........................................................................82

    GLOSSRIO .................................................................................................................84

    LISTA DE ENTREVISTAS ...........................................................................................85

  • 8

    1. INTRODUO

    A primeira lembrana que tenho sobre pixao3 vem do meu olhar curioso por

    sobre o muro da minha casa que dava para o quarto do meu vizinho, no incio da dcada

    de 90. Eu tinha uns 8 anos e esse vizinho mais contemporneo dos meus irmos devia

    ter uns 13 anos. Eu nunca soube o porqu do quarto dele ter todas as paredes de cima

    abaixo pixadas. Os anos se passaram e eu sem pedir explicao fiquei apenas com

    aquela imagem na memria, que me volta tona com a mesma curiosidade de antes.

    Alguns anos mais a frente, reformamos nossa casa e o muro que dava para a casa

    daquele vizinho ficou alto e no podamos mais sentar nele e trocar de casa pulando-o.

    Da mesma forma o muro da fachada de nossa casa perdeu a tradicional tinta caiada

    branca e combogs para as feias, frias e econmicas cermicas que compem vrios

    muros nos dias de hoje. Perdi, ento, a imagem mais curiosa que permeava minha

    infncia, e o assunto pixao surgia, vez por outra, nas rodas de conversa dos meninos,

    que confessavam ser o muro da nossa casa imprprio para pixar, alm disso, que muro

    de amigo de pixador no era riscado.

    Passou a dcada de 80, a dcada de 90, e ainda nos anos 2000 a pixao continua

    a ser um movimento em constante crescimento apesar da Lei de Crimes Ambientais

    (9.605 / 98); artigo 65 onde diz que pixar ou grafitar edificao ou monumento urbano

    tem como pena deteno de trs meses a um ano, e pagamento de multa. Essa ao

    delituosa urbana resiste mesmo com o surgimento do grafite4 e de aes de polticas

    pblicas que tentam ensinar a arte do grafite para os pixadores, numa perspectiva de

    mudana. As oficinas de grafite, assim, viabilizariam um crescimento pessoal do

    pixador e a oportunidade de desenvolver uma nova tcnica de apreo, pois somente o

    grafite tem atributos de uma apreciao nas ruas e ser considerado como Arte.

    No Brasil costume distinguir-se o grafite propriamente dito das pichaes, que

    consistem em certo tipo de grafemas mediante os quais os jovens, em especial os

    menores, provavelmente entre doze e quinze anos, escrevem seus nomes e os

    enfeitam com formas estilizadas. O ponto de risco desses grafemas no est tanto no

    --------------------------------------------

    3 : a palavra pichao bem como suas derivaes (pixar, pixo, pixador e etc) sero grafadas com x

    porque desta forma que a fala dos nativos informam que as utilizam.

    4

    : o grafite (grafia abrasileirada) faz parte da cultura Hip Hop, nascida nos Estados Unidos na dcada de

    70, que tem como conjunto a msica rap, o break dance e a expresso plstica do graffiti. (PAIS, 2000,

    p.175)

  • 9 que dizem, pois afinal no passam de letras de um nome ou de um sobrenome, mas

    no local em que so inscritos: a fachada do ltimo andar de um edifcio, o cimo de

    uma ponte. (SILVA, 2001, p.5)

    Pesquisar a pixao faz descobrir que para esses jovens pixar no apenas

    deixar um risco no muro numa atitude isolada, simples e despretensiosa os quais julgam

    os poderes pblicos. A sociedade, tambm, compartilha da opinio de tratar-se de

    vandalismo, pois para ela, de modo geral, esses riscos so destitudos de esttica e

    somente enfeiam a cidade. Porm, se equivoca quem a julga simplria como aparenta

    ser, na recente palestra que o professor doutor em antropologia da USP, Jos Guilherme

    Magnani, proferiu no departamento de Cincias Sociais da UFC. Esse especialista em

    antropologia urbana afirmou que os pixadores constroem seus trajetos pela cidade e

    inventam suas regras de convivncia, tornando essa prtica densa e organizada,

    alimentando a cidade e sendo por ela alimentada. O palestrante refletindo sobre a

    pesquisa realizada por seu orientando, Alexandre Pereira, informou que apesar do

    grafite e a pixao serem duas prticas sociais urbanas diferentes, em So Paulo, muitos

    grafiteiros so pixadores ou j foram um dia. A prefeitura de So Paulo promoveu, em

    certa data, um projeto social que gratuitamente fornecia material e ensinava a tcnica de

    grafite para os pixadores. Percebeu-se que estes freqentavam o curso e noite

    continuavam a rabiscar a cidade com os sprays ganhos.

    A pixao por ser uma atividade ilegal de grupos de jovens que ousam arriscar

    seus corpos nessa prtica urbana, adquire julgamentos pr-estabelecidos na sociedade.

    Alguns os enxergam como jovens marginais que esto ociosos nessa fase da juventude e

    que pertencem teia da criminalidade no que tange ao uso de armas e drogas. Pautado

    nesse discurso social do senso comum, comum diferenciar grafite de pixao como

    contrrios, como exemplos: o bom e o mau, o belo e o feio. Marcada essa diferenciao

    comum vermos estratgias de rgos pblicos em prticas de aes sociais objetivadas

    em transformar pixadores em grafiteiros, como atesta o depoimento abaixo:

    No decorrer do tempo essas expresses [pixao e grafite] foram se distanciando,

    tornando-se antagnicas. A mdia, pesquisadores e opinio pblica no fazem a

    mesma confuso de outrora no uso da mesma nomenclatura. Hoje, o grafite

    reinvidicado, considerado e cristalizado como arte, h tempos invadiu galerias e

    museus. visto muitas vezes, com o discurso do poder pblico e de ONGs, como

    sendo inclusive uma possvel alternativa no combate a pichao, numa tentativa de

    converter saberes, criatividade e agilidades dos pichadores para uma expresso na

    esfera da arte, possibilitando, assim, tirar os jovens da criminalidade e das

    gangues. (SANTIAGO, 2011, p.50)

  • 10

    No entanto veremos mais adiante que a caricatura social empregada na pixao

    faz com que ela adquira interpretaes dentro do campo das prticas de violncia. Nesse

    sentido h uma diferenciao sentida pelos antigos pixadores, gerao anos 80 e 90, em

    relao pixao em prtica nos dias de hoje, essa assunto ser melhor esclarecido no

    sub-captulo Violncia e ilegalidade.

    Em Fortaleza, pensa estrategicamente aquele morador que tem a atitude de

    demarcar no muro um espao reservado para pixadores, pedido quase nunca atendido

    ou satirizado quando as pixaes preenchem o muro, deixando livre apenas a rea

    reservada. A pixao segundo Santiago (2011, p.18) possui uma dinmica que constri

    saberes que tem o drible, a astcia, a velocidade, o destemor e a criatividade como

    elementos essenciais de sua constituio. pertinente saber que a ao da pixao

    nasce determinada a burlar regras, a ir contra a corrente da vida cotidiana. Essa ao

    justificada pela adrenalina e ousadia, assim, um muro que prope um espao delimitado

    para a pixao no ser atendido, ser ironizado tal qual o pixador faz nas andanas

    pelas ruas despistando os vigias, desafiando alturas e disputando atravs da velocidade o

    tempo marcado no relgio.

    Em Enigmas do medo juventude, afetos e violncia atenta-se que o processo

    de metropolizao das cidades brasileiras na dcada de 1970 fez com que

    geograficamente a cidade em que vivemos apresentasse uma estratificao de seus

    indivduos de acordo com o respectivo poder econmico. Tentativas de zoneamento

    pretendiam definir usos e ocupaes do espao e acabavam produzindo cidades partidas

    e desiguais, compondo o mesmo cenrio (DIGENES, 2011, p.211). Observa-se que

    na dinmica da vida social, as aes de opresso emitidas por classes sociais detentoras

    de poderes so sentidas pelas classes sociais mais pobres e produzem reaes. A classe

    pobre que parecia estar acomodada vida difcil, reage com fora de revolta, ansiando

    mudanas em busca da igualdade, no direito de ser reconhecida como cidad, o direito a

    trafegar pela cidade e em seu uso pblico, direito moradia e nas necessidades de

    primeira instncia como alimentao, sade e emprego.

    A era dos direitos, deflagrada com as greves do ABC paulista no final dos anos

    1970 e que eclode atravs da mobilizao de mltiplos sujeitos, movimenta, d

    visibilidade e esmaece as fronteiras da segregao urbana. Os outros se diversificam

    e assumem lugares e modos diversos de expresso. Rompem-se as barreiras e os

    denominados pobres proclamam em voz alta suas demandas, desfilam suas desvalias

    e exibem suas revoltas em praa pblica. (DIGENES, 2011, p.211)

  • 11

    Assim a dinmica dos territrios fixos e dos fluxos dos sujeitos, usando os

    conceitos de Lucrecia Ferraro, se desestabilizam, e os indivduos segregados

    geograficamente lutam contra essa opresso fsica tomando a cidade como suporte para

    suas diferentes manifestaes.

    A imagem da cidade de Fortaleza, em seu surgimento, destoante, assim como

    aconteceu em outras capitais brasileiras. Nos arredores do centro comercial surgem as

    ruas e praas urbanizadas com casas e sobrados, compondo o lar da burguesia. Nos

    lugares perifricos surgem sem planejamento os conglomerados habitacionais sem

    infra-estrutura bsica, e esse contrastante cenrio propicia insurreies, manifestaes

    diversas de problemas sociais.

    Como podemos observar nas marginais do Rio Pinheiros em So Paulo ou em outras

    grandes artrias que so teatro do deslocamento motorizado, exibem-se, de um lado,

    as torres construdas em concreto, ao e panos de vidro e, de outro, mal se esconde o

    contraste da precariedade habitacional e estrutural das favelas, dos loteamentos

    clandestinos e das reas invadidas. Esse contraste marca os fixos da metrpole e

    contamina seus fluxos, hibridizando-os. (FERRARO, p.130, 2009)

    Em face desse contraste urbano pulsa a vida cotidiana da periferia que

    transborda a rigidez dos espaos fixos. Os pixadores trafegando por entre as zonas

    proibidas (reas da cidade construda para as famlias das classes altas) vivem a seu

    modo, interferindo na paisagem desses lugares de forma ousada. O espao urbano

    moderno transcende os limites geogrficos e se funda essencialmente atravs da

    percepo de cada um de seus habitantes. As relaes vo alm do espao pblico

    cosmopolita, ou melhor, recria-se o domnio pblico, mas, agora, sem limites

    geogrficos ou sociais. Portanto, a dinmica dos fluxos dos lugares cosmopolitas ou da

    metrpole re-escreve-se em dinmica fluida e flexvel. (FERRARO, p.135, 2009)

    Devemos reconhecer que a histria da vida urbana no orquestrada numa

    ordem social objetiva em que o Estado rege as regras da vida social e por assim os

    sujeitos se disciplinam, por mais comum que isto possa parecer. Existe um microcosmo

    de vida nas zonas de periferia das cidades como nos aponta Michel de Certeau (2008),

    ao dar importncia sociolgica ao homem ordinrio que constri com astcia o seu

    modo de vida e sua mobilidade dentro da cidade. Alguns desses sujeitos ordinrios so

    os jovens de classe baixa, moradores da periferia que utilizam a cidade como lugar de

    expresso, de visibilidade para uma juventude annima. Signos da violncia, prticas

    do espao e estratgias de expresso e visibilidade pblica tornam-se argamassas

  • 12

    centrais e ambivalentes na construo e ampliao de prticas de insero social.

    (DIGENES, 2011, p.211)

    Uma manifestao da expresso juvenil presente de forma latente em vrias

    cidades brasileiras a pixao. Trata-se de um signo visual encontrado no corpo fsico

    da cidade e executado pela figura do pixador. Este ser social, urbano e jovem de

    periferia afetado pela cidade que o segrega, que na dinmica da vida social das classes

    e instituies produzem imposies morais que tentam definir os papis sociais na

    cidade. O jovem ultrapassa a condio de passividade para a atividade, afetando,

    tambm, esta mesma cidade por meio da tentativa de projetar as suas marcas

    incansveis. Eles so fiis s suas assinaturas ou xarpis5, tendo que para execut-las

    burlar as regras de convivncia e convenes morais.

    Partindo do pressuposto de que os jovens se projetam como termmetro e vitrine

    que parece tornar pblicas e visveis as tenses sociais, so eles os primeiros a tentar

    romper ou simplesmente se rebelar contra uma ordem que fala atravs deles e,

    concomitantemente, os exclui. (DIGENES, 2011, p.211)

    Os pixadores, motivados pelo desejo de ascender socialmente perante a rede de

    jovens e de serem lembrados mesmo quando pararem com essa atividade urbana,

    investem suas horas e momentos livres nessa ao marginal, fazendo da pixao, mais

    que um lazer, motivo principal que norteia o seu cotidiano. Essa pesquisa surge a partir

    da indagao: como e quando surgiu a pixao em Fortaleza? Quais os usos da cidade

    para o pixador, e em que sentido? Qual o imaginrio urbano construdo pelo pixador em

    suas prticas na cidade? Quais caractersticas norteiam a cultura da pixao?

    Partindo da observao das prticas sociais em torno da pixao desses jovens

    na cidade e de suas comunicaes sejam elas de natureza simblica, literal ou virtual

    procuraremos tentar compreender na medida do possvel o universo da pixao, suas

    primeiras aparies e histrias, suas simbologias, as pretenses dos que praticam a

    pixao, as imagens da cidade de Fortaleza produzidas pelas prticas dos pixadores e

    seus discursos de experincias na cidade.

    A metodologia dessa pesquisa acontecer por intermdio de entrevistas pessoais

    e virtuais (utilizao de programas na internet, ligaes telefnicas) juntamente com a

    insero do pesquisador nas redes sociais, assim pretende-se investigar e deixar emergir

    --------------------------------------------

    5 : o plural de xarpi, palavra criada atravs da inverso das slabas da palavra pixar. Xarpi ou

    foneticamente xarp significa a atividade da pixacho, tambm denomina a marca pessoal do pixador,

    exemplos de xarpis: Mutreta, Pango, Snow.

  • 13

    as narrativas dos pixadores e as imagens de suas pixaes para elaborar linhas

    interpretativas, buscando um esclarecimento para essa ao urbana.

    Essa pesquisa iniciou-se em 2010 com trabalhos de campo em disciplinas na

    faculdade, tendo uma maior produo no final de 2011 at maio de 2012. Ao longo

    desses meses em pesquisa foram feitas vrias entrevistas pessoalmente e aconteceram

    corriqueiras conversas na internet utilizando programas de bate-papo. Dessa troca de

    experincias, utilizei para este trabalho sete entrevistas principais, feitas pessoalmente

    em idas a campo e na minha participao em duas reunies de pixadores.

    Os principais interlocutores presentes nessa pesquisa foram Snow TB, jovem de

    21 anos que pratica a pixao desde os 16 anos; Sask DNG; Boy LDP 16 anos, pixa

    desde os 8 anos; Pango AS, pixador de 37 anos, muito considerado em Fortaleza,

    iniciou com 14 anos em 1989 sendo um dos poucos da gerao 80/90 que ainda pixa no

    presente ; Seco GDR, pai de famlia de 32 anos que pertence a gerao anos 90 da

    pixao em Fortaleza; Fuga RM, pai de famlia de 35 anos que tambm pertence a

    gerao anos 90 e que promove um trabalho de reconstituio da histria da pixao em

    Fortaleza atravs de entrevistas pessoais divulgadas no youtube e por reunies de

    integrao entre os pixadores da dcada de 80 e 90.

    Outros pixadores, tambm, contriburam com informaes e imagens para essa

    pesquisa, alguns destes de forma impessoal quando me utilizei dos seus relatos

    provenientes de vdeos no youtube. E tambm me utilizei de imagens de pixaes e

    comentrios divulgados publicamente nas redes sociais, Orkut e blogs.

    comum os pixadores utilizarem as redes sociais como orkut, youtube e blogs

    para postarem imagens das suas andanas e aes pela cidade de Fortaleza. A internet

    uma nova ferramenta para que eles divulguem seus pixos, marquem encontros e

    construam uma rede de informao para a promoo pessoal, da sigla6 e do movimento

    da pixao.

    Noticiar a produo de pixos atravs de imagens e comentrios nas redes sociais

    uma prtica extra atrelada atividade de pixar. O pixo no muro comunica

    simbolicamente a um grupo de pessoas que traduzem aqueles significados, alm da

    marca no muro o pixador registra aquela imagem e a divulga em sites na internet

    --------------------------------------------

    6 : a forma abreviada do nome do grupo ou da famlia a qual pertence o pixador, exemplo de sigla: TB

    Terroristas dos Bairros.

  • 14

    promovendo inmeras outras comunicaes e aparies de seu pixo. O uso da

    internet faz com que o pixador exista na cidade multiplicadas vezes atravs da sua

    marca, uma presena simblica demarcada em inmeros territrios ao mesmo tempo.

    A pixao aprendeu com a publicidade a se tornar massiva, a estar em maior

    nmero pela cidade como os cartazes de outdoor, banners, placas e outras tantas

    ferramentas de comunicao visual impregnadas no visual urbano. O lema comercial

    quem no visto no lembrado praticamente est no subconsciente dos pixadores,

    tanto mais inserido na teia comunicativa da pixao mais este pixador pertencer ao

    grupo de pixadores. Portanto, no basta para eles inscrever-se na cidade tambm

    prescindvel que ele participe da rede social gerada nos meios reais e virtuais da

    internet.

    Sair sozinho s ruas noite, riscar alguns muros no anonimato usando um

    pseudnimo, voltar para casa mantendo o sigilo dessa ao para qualquer pessoa, essa

    descrio de cena possui vrias caractersticas de uma atividade de pixao, mas no a

    pixao caracterizada a qual estamos discutindo nessa pesquisa. A prtica individual e

    isolada de riscar o muro e manter-se completamente annimo para os outros no possui

    sentido para os jovens os quais estamos tratando. A pixao existe porque plural e

    ramificada, porque faz parte de uma teia de comunicao e dialoga com muitos outros

    jovens sobre suas vivncias e experincias. E nessa troca constante de energia a

    pixao, o pixador e o pixo ganham cada vez mais argumentos para existirem,

    fortalecem a partir da construo de uma comunicao conjunta que se energiza e

    revitaliza culminando em uma produo constante cotidiana e em um assunto novo de

    uma temtica que j existe h quase trinta anos7.

    --------------------------------------------

    7 : segundo a pesquisa de Santiago (2011) a pixao na cidade de Fortaleza surgiu por volta do ano de

    1986.

  • 15

    2. HISTRIA DA PIXAO EM FORTALEZA

    Segundo Digenes (1998), a histria de formao das cidades quase sempre

    recortada pela ao de grupos que se colocam como outsiders8, agentes

    desestabilizadores do ideal de ordenao. O grafite e a pixao so meios pelos quais os

    jovens de periferia encontraram de visitar e invadir de forma simblica o centro da

    cidade, ou seja, uma maneira de contestao e inscrio no espao destinado apenas

    riqueza.

    Tanto o graffiti como a pichao usam o mesmo suporte a cidade e o mesmo

    material (tintas). Assim como o graffiti, a pichao interfere no espao, subverte

    valores, espontnea, gratuita e efmera. Uma das diferenas entre o graffiti e a

    pichao que o primeiro advm das artes plsticas e o segundo da escrita, ou seja,

    o graffiti privilegia a imagem; a pichao, a palavra e/ou a letra. (GITAHY, 1999,

    p.19)

    No programa Sem Fronteiras: Plural pela Paz da rdio Universitria FM 107,9

    da Universidade Federal do Cear participei9 juntamente com os artistas urbanos

    Narclio Grud10

    e Robzio Marques11

    da discusso sobre o tema Arte Urbana em

    Fortaleza. Diante de conversas e apresentao dos trabalhos realizados por cada um dos

    convidados, o apresentador e produtor Henrique Beltro pergunta sobre o que diferencia

    grafite de pixao. Narclio Grud que foi integrante mascote do grupo de pixadores F.G.

    Feras dos Grafiteiros discorre que ambas so prticas de interveno urbana que esto

    alocadas nas ruas, mas que ns brasileiros tivemos a sorte de possuir um outro termo,

    pixao, para diferenciar essas duas prticas.

    --------------------------------------------

    8 : categoria do socilogo Norbert Elias (2000) que no livro Os estabelecidos e os outsiders fala que os

    outsiders numa comunidade estudada era um grupo de pessoas recm-chegadas que no eram aceitos

    coletivamente pelos estabelecidos, grupos de morados mais antigos. Pois os estabelecidos sentiam seu

    poder de domnio sobre o bairro ameaado pelos novos integrantes.

    9 : o programa ao vivo foi transmitido dia 17 de maio de 2012, das 14 s 15hs. A autora desta pesquisa

    participa do grupo coletivo de interveno urbana Selo Coletivo, composto pelas artistas plsticas Bruna

    Beserra, Ceclia Shiki, Juliana Chagas e Tereza Cristina.

    10

    : artista urbano e inventor, cria novas tecnologias para suas pinturas e intervenes sonoras.

    http://www.flickr.com/photos/narceliogrud

    11

    : artista plstico integrante do grupo Acidum de intervenes urbanas. O grupo Acidum surgiu na

    cidade de Fortaleza em 2008. O Grupo Acidum um grupo que agrega em si vrias linguagens, com

    aes que vo de oficinas grafitagens coletivas, passando por exposies em museus e galerias, virais

    na internet e a publicao de um livro, que na verdade um histrico onrico-catico dos seus cinco anos

    de existncia. < http://grupoacidum.blogspot.com.br/>

    http://www.flickr.com/photos/narceliogrudhttp://grupoacidum.blogspot.com.br/
  • 16

    Para melhor esclarecermos o que significa a pixao, vamos diferenciar os

    termos graffiti e pixao.

    A nomenclatura graffiti12

    ,em sua origem, se refere s primeiras inscries

    surgidas, por exemplo, como as encontradas nas paredes de Pompia, cidade vitimada

    pela erupo do vulco Vesvio e por isso preservada (GITAHY, 1999), tambm como

    as inscries Taki 183 espalhadas pelas paredes da cidade de Nova Iorque (PAIS, 2000).

    Porm a cultura graffiti desenvolveu novas tcnicas de inscrio uma das quais, por

    exemplo, a utilizao de muitas cores e figuras (os personagens), essa a forma

    comum do graffiti no Brasil.

    O termo graffiti na Europa e Estados Unidos o mesmo termo ora para designar

    uma atividade subversiva dos writers13

    ora para um mural com imagens elaboradas que

    cativam o pblico. O uso da mesma nomenclatura no estrangeiro ainda, por vezes,

    dificulta a aceitao do graffiti segundo a pesquisa de Pais, 2000. O depoimento abaixo

    do fotgrafo-pesquisador da galeria Choque Cultural14

    confirma esse assunto em torno

    da ilegalidade das prticas do grafitti e pixao no panorama europeu e brasileiro.

    A pichao e o grafitti so vandalismo e arte tambm. Crime e Arte ao mesmo

    tempo. O grafitti tem essa aura de pintura autorizada, mas no . ilegal tambm.

    Mas tem apelo esttico maior. colorido, harmnico, tem personagens bonitinhos.

    A sociedade absorveu o grafitti a partir de 1995, e agora, desde o ano 2000 est

    bombando. O grafitti no resto do mundo tratado como crime. super combatido.

    Nos Estados Unidos e Europa tem uma unidade de polcia especfica, assim como

    Homicdios, que se chama Vandal Squad. L o grafiteiro pega cadeia e paga multa.

    Um cara recentemente pegou seis anos de priso em cadeia de segurana mxima,

    pegaram ele pra Cristo, para assustar mesmo, porque eles do prejuzo. O grafitti em

    Nova York morreu, no existe mais como antes.

    O cenrio aqui (Brasil) diferente, o grafitti virou um instrumento para combater a

    pichao. Os caras financiam grafiteiros famosos, contratam para fazer mural e

    combater a pichao. Mas os pichadores se ligaram disso e j esto atropelando

    esses trabalhos. (Fotgrafo da galeria Choque Cultural) Disponvel

    em:http://repique.blog.terra.com.br/2008/10/27/fotografo-conta-detalhes-da-

    pichacao-na-bienal/ Acesso em 05/05/12 s 18hs.

    --------------------------------------------

    12 : Efectivamente, o graffiti original do mundo hip hop subdividi-se numa srie de tipos de interveno

    distintos: a realizao avulsa de assinaturas estilizadas, a realizao de um nome com letras a cheio,

    carcterizado por interveno rpida e utilizao de poucas cores, ou a produo de um nome colocado

    sobre um fundo elaborado e envolvido numa srie de elementos esteticamente enriquecedores, onde

    habitualmente se emprega grande quantidade de cores. (PAIS, 2000, p.176)

    13

    : Quanto aos contedos que constituem as pinturas destes artistas de rua, eles so extremamente

    variados, mas, a representao de letras assume um lugar de destaque nesta actividade, o que leva, por

    vezes, os seus protagonistas a designar a sua arte como writing em vez de graffiti. Como conseqncia, os

    prprios praticantes auto-denominam-se graffiters ou writers. (PAIS, 2000, P.176)

    14

    : Situada em So Paulo, a galeria voltada principalmente para linguagens cotidianas, como street art.

    (www.choquecultural.com.br)

    http://repique.blog.terra.com.br/2008/10/27/fotografo-conta-detalhes-da-pichacao-na-bienal/http://repique.blog.terra.com.br/2008/10/27/fotografo-conta-detalhes-da-pichacao-na-bienal/
  • 17

    Afora esse panorama europeu, no Brasil o grafite (termo abrasileirado) surge de

    forma mais legitimada, pois ganhamos o termo pixao para diferenciar esses duas

    prticas urbanas. Na entrevista abaixo o pixador paulista Cripta Djan que foi convidado

    para intervir numa galeria em Paris em 2009, discorre sobre o termo pixao:

    Os reprteres de toda Europa que me entrevistaram, no sabiam o que era a pixao,

    eles perguntavam se era uma espcie de graffiti ou tag15

    , e expliquei a todos que a

    palavra pixao e pixador, no tinha traduo e que era um movimento nico do

    Brasil, que no teve influencia de nenhum outro pais. Agora sim o mundo vai

    comear a descobrir o que realmente a pixao. (Cripta Djan16

    )

    Cripta Djan enfatiza o termo pixao como movimento original da cultura

    brasileira. Surgida nas capitais paulista e carioca, na dcada de 80, a pixao se irradiou

    para outras cidades brasileiras.

    Neste trabalho discutiremos a pixao na cidade de Fortaleza que surgiu por

    volta do ano de 1986, de acordo com a pesquisa de Santiago (2011), e que continua em

    expresso no cenrio fortalezense. Caracterizada como uma inscrio urbana nos muros,

    marquises, prdios ou qualquer outro espao urbano, feita por jovens de classe baixa e

    classe mdia, a pixao fortalezense ganhou corriqueiras notcias em jornais impressos

    locais nos anos de 1990 1992. Porm sem entender esses rabiscos que surgiam na

    metrpole de Fortaleza as notcias por ora escreviam os termos pixao e grafite ou

    pixadores e grafiteiros para falar do mesmo grupo noticiado.

    Ao final da dcada de 1980 e incio de 1990 as expresses pichao e grafite

    comeavam a ter maior visualizao e divulgao em Fortaleza, perodo que se

    estruturam e comeam atuar as primeiras gangues de pichadores fortalezenses. A

    mdia, nesse perodo, fazia uma misturada e mesmo uso em relao s duas

    terminologias, comeavam um texto com o nome de pichao utilizando tambm

    grafiteiros para falar da ao de pichadores, que eram constantemente pautas de

    reportagens e denncias. (SANTIAGO, 2011, p.43)

    Mas esse movimento subversivo que surgia nas avenidas de Fortaleza tratava-se

    da pixao em sua forma mais tradicional de produo com o uso do spray, na

    --------------------------------------------

    15: Tag o mesmo que assinatura. Pode ser assinatura do autor do grafite, como tambm a assinatura solta

    pelos muros. (Apostila de Arte Urbana feita por Robzio Marques e utilizada pelo grupo Acidum)

    16

    : Cripta Djan um famoso pixador de So Paulo. Esse depoimento faz parte do vdeo Pichao busca

    reconhecimento e discutida por acadmico. Disponvel em :

    http://www.youtube.com/watch?v=UzuCPnDFa4w Acesso em 11/05/12 s 23hs.

    http://www.youtube.com/watch?v=UzuCPnDFa4w
  • 18

    monocromia do trao, em uma grafia estilizada que deixava exposto o pseudnimo e a

    famlia17

    de pertencimento do pixador.

    Pixar a cidade possibilitava a um grupo deixar vestgios, suas marcas. Os

    primeiros grupos de Fortaleza eram denominados de Rebeldes da Madrugada (R.M.),

    Feras dos Grafiteiros (F.G.) e Domnio das Ruas (D.R.) (DIGENES, 1998).

    Numa aluso a essa prtica subversiva e coletivamente praticada por jovens os

    termos rebeldes, madrugada, feras, domnio e ruas so palavras-chaves que em sua

    semntica caracterizam a atividade da pixao.

    IMAGEM 01: Reportagem para o Dirio do Nordeste. Av. Pontes Vieira. Anos 89/90, galera da F.G.

    Feras dos Grafiteiros. Segundo Narclio Grud da esquerda p/ direita: Tatoo e Guga, Sombra, Narclio

    Grud, Kite acima, garoto agachado no identificado e Pastor.

    FONTE: Arquivo virtual de Davi Viana disponvel em seu perfil social do Facebook.

    A pixao surgida na cidade de Fortaleza foi inspirada nos moldes da pixao

    carioca, a pichao carioca difere da de outras cidades, principalmente, pelos traos

    curvos (em So Paulo, predomina o reto) (COSTA, 2009). H uma ntida semelhana

    --------------------------------------------

    17: Famlia no uso nativo do termo significa o grupo de amigos pixadores, de jovens com semelhantes

    afinidades, congregados em uma mesma sigla, no h, necessariamente, o envolvimento por relaes de

    parentesco.

  • 19

    da pixao carioca e a fortalezense, o xarpi curvo ou embolado, com letras

    sobrepostas, a dinmica de execuo semelhante tambm, um trao contnuo do

    comeo da primeira letra do xarpi letra final. Em contraposio, a pixao paulista

    detentora de uma caligrafia nica, seu xarpi executado letra por letra, h um estilo de

    linhas e ngulos retos.

    IMAGEM 02: Estilo grfico de pixao no Rio de Janeiro.

    FONTE: Arquivo presente no blog do pixador Nuno, disponvel em

    www.nunodv.blogspot.com.br. Acesso em 06/05/12 s 20hs.

    IMAGEM 03: Estilo grfico de pixao de So Paulo.

    FONTE: Arquivo disponvel em http://www.descolex.com/2010/03/alfabeto-pixacao-simbolos/

    Acesso em 11/05/12 s 21:30hs.

    http://www.nunodv.blogspot.com.br/http://www.descolex.com/2010/03/alfabeto-pixacao-simbolos/
  • 20

    As entrevistas feitas com os primeiros pixadores de Fortaleza atestam a figura

    de Rape, jovem carioca, como difusor do xarpi carioca entre jovens fortalezenses, no

    ano de 1989. De acordo com relato do pixador Pango presente na pesquisa Santiago,

    2011, abaixo:

    O meu primeiro nome era Vavo da V.M. (Vndalos da Madrugada), era uma

    gangue a, e o lder era o Pavo. Vavo era meio que chupao de Pavo, parecia

    com o dele. Ento ns encontramos o Carlin e pedimos para ele bolar uma letra

    bem legal, pois ele sabia umas letras do Rio de Janeiro, isso por volta de 1989. ()

    Foi o Carlin que bolou o Pango pra mim, o Rape no dava muita bola pra gente

    no, com aquele jeito de quando ele metia nome, o cara era considerado, era

    como um Deus, todo mundo queria ver e conhecer. (2011, p.28)

    Afora essas pixaes, existiram tambm as pichaes polticas nos muros de

    universidades pblicas nos anos de ditadura em Fortaleza. Essa diferenciao

    ortogrfica utilizada nesta pesquisa refere-se ao fato de que a pichao com ch a

    pichao tradicional histrica, encontrada nas literaturas e dicionrios. Trata-se de um

    movimento de pichao pertencente aos anos de governos totalitrios em diferentes

    pases. Os sujeitos dessas pichaes eram outros atores sociais e possuam outros

    propsitos.

    Advindos, em sua maioria, da classe mdia, eram estudantes, professores

    universitrios e sindicalistas influenciados nos estopins dos movimentos sociais e

    polticos dos anos de ditadura gritando e transcrevendo em muros suas indignaes

    polticas. certo que, pelo menos antes do AI-5, as mobilizaes contra a ditadura

    foram sucessivas e tiveram como grande marco, os movimentos de 68: como a passeata

    dos 100 mil, por exemplo. (VASCONCELOS, 1993, p.88)

    Segundo Vasconcelos, o governo brasileiro dos anos 50 e final dos anos 60

    preconizava um regime totalitarista que anulava dos cidados seus direitos civis. A

    sociedade se mobilizava em manifestaes pblicas no intuito de reforar a conscincia

    poltica com denncias e aclamar a sociedade para a luta a favor da democracia. Porm

    os anos mais tenebrosos estavam por vir, tendo como marco inicial o ato institucional

    n5, no ano de 1968, a partir desse perodo os conflitos tornaram-se frgeis e dispersos,

    muitos indivduos passaram de manifestantes presos polticos.

    De acordo com a pesquisa de Vasconcelos (1993, p.101-102) os processos de

    acusaes do regime militar em sua maioria (70%) referiam-se militantes de

    organizaes partidrias clandestinas, seguido de participaes violentas (20%),

    identificao ideolgica com o governo deposto (7%), manifestao de idias por meios

  • 21

    legais (2,1%) e manifestao de idias por meio artstico (0,3%). A pichao poltica

    era instrumento de insurreio e publicizao das idias democrticas.

    Diferentemente, a pixao com x a forma como os jovens nativos

    (interlocutores deste trabalho) escrevem e descrevem suas prticas urbanas. A pixao

    a arte que nunca vai ser domesticada, ela a arte de rua, ela vem dos princpios de

    quebrar as regras, ela no veio pra agradar, ela no pra agradar a sociedade,

    entendeu? (Cripta Djan). O piXador18

    o sujeito que no possui limites, que sente a

    pixao como algo que se apodera do seu corpo e cabea, a pixao para ele a ao

    viciosa que palpita no seu sangue, algo necessrio, visceral.

    Alm dessa carga semntica de contra e de proibido, o X assume outros

    concentrados de sentido: escrevendo x-s, por exemplo, um pblico avisado

    compreende que se encontra diante de algo excessivo (ex-cess). E a publicidade de

    um perfume utilizou s essas consoantes ambguas atmosferas perfumadas. Em

    suma, o X, pouco a pouco, tornou-se uma espcie de ideograma que, em virtude da

    fontica inglesa (X = ecs), acabou por incorporar o timbre sonoro do irregular. A

    medida extra extra large como incapaz de conter, a msica hardcore como

    impossvel de ouvir, as imagens-grafite como insuportveis, o porn XXX como

    invisvel. Muitas formas da comunicao juvenil de oposio assumem o X como

    cdigo (lema) que explode os limites e fica contra os limites. E nisso se encontram

    e no pela primeira vez prximos, demasiado prximos, aos lxicos dos

    publicitrios, seriais, websites. E o jogo lingstico se torna duro. Alis, X-treme.

    (CANEVACCI, 2005, p.44)

    A pixao uma cultura eXtrema no conceito eXtremo que discute Canevacci,

    ela excessiva, surge mesmo para incomodar, como fala Cripta Djan.

    interminvel, no cessa, um crculo viciante, ao que ressoa, ecoa. Ela

    comunica atravs do xarpi, ela descomunica quando desordena placas de trnsito, ela

    se extrapola na paisagem urbana. Ela quer estar na cidade, se impregnar, explodir os

    limites, ficar contra os limites. A pixao intensidade, interminvel,

    ilegalidade, intromisso, incmodo. Ela o tiro de guerra do pixador, ela para

    impactar, para errar, para questionar, para afirmar, para desconfiar, para

    ficar no corpo da cidade, para eternizar19

    .

    Os movimentos de ps-ditadura possivelmente influenciaram essa gerao de

    jovens no final dos anos 80. Quando se denominam rebeldes , na perspectiva imaginria

    destes jovens, esto adquirindo um carter agressor contra a classe burguesa da poca.

    --------------------------------------------

    18: enfatizado aqui pela grafia do X maisculo, fazendo referncia aos estudos de (CANEVACCI,

    2005), as culturas eXtremas so aes interminveis que suscitam outros sujeitos, elas no so passveis

    de compreenso, no se movimentam na lgica, no se determinam por conceitos fechados.

    19

    : com a licensa do leitor de me utilizar da liberdade potica, de uma chuva de idias na tentativa de

    transpor para o papel de uma s vez os significados da piXao.

  • 22

    A cultura musical vigente em suas letras de rap ou rock tambm eram

    motivaes para que a juventude expressasse suas idias de rebeldia.

    O fato que esta pixao a qual estamos pesquisando por ora nos parece mais

    uma manifestao social de um grupo de jovens determinados a deixar marcas nesse

    territrio de impessoalidade que a cidade, do que explicitamente uma manifestao

    poltica contra uma ordem social vigente. Essa semelhana compartilhada com a

    pesquisa sobre graffiti nos anos 80 em Lisboa feita por Machado Pais, como o autor nos

    relata abaixo:

    Os dados recolhidos so contraditrios, no s entre diferentes writers, como

    tambm em diferentes momentos do discurso de um nico jovem. Por um lado,

    rejeitado qualquer uso do graffiti com fins polticos, evocando que, desde a sua

    origem, o elemento central de qualquer pintura, muito ou pouco elaborada, o nome

    artstico do autor, o seu tag. (PAIS, 2000, p.202)

    Em depoimentos colhidos entre pixadores que se denominam pertencentes a

    dcada de ouro do xarpi cearense, dcadas de 80 e 90, encontro com freqncia o uso

    do termo rebelde20

    denominando as participaes juvenis, e uso do termo burguesia21

    marcando uma diferenciao entre as classes.

    Porque os polticos s pensavam no burgus e esquecia da populao, das favelas.

    E a gente se revoltava, se reunia, trocava as idias. T certo que no justifica pixar

    a casa dos outros, muro, porto, prdio; mas era um modo de dizer que no era pra

    fazer as coisas que eles determinavam fazer, era uma rebeldia. Prioridade total

    eram os muros pblicos pra demonstrar pro governo que a gente no devia fazer

    aquilo que eles determinava. Eles tinham que mudar n? Tinham que olhar pro

    pobre e olhar pro rico. (Pango S.A. Sujando e Anarquizando, 37 anos, comeou

    na pichao em 1989).

    A justificativa expressa em palavras no a mesma que verificamos nos muros.

    Seus riscos simbolizam a inscrio pessoal de um codinome, diferente das pichaes de

    protesto nos anos de ditadura. No se trata aqui de discutir qual pichao ou pixao

    mais politizada ou tem maior relevncia para uma sociologia urbana. Apenas

    verificamos uma diferenciao marcante entre essas duas prticas em perodos

    diferenciados.

    --------------------------------------------

    20 : Rebelde, segundo os pixadores, no sentido de perceber no jogo da vida social que existem classes

    abastardas de dinheiro e poder que determinam ordens a serem seguidas na sociedade, fazendo com que

    assim exista uma desigualdade social pautada na dicotomia entre rico e pobre, forte e fraco, lder e

    subordinado, como exemplos.

    21 : parafraseando (FREITAS, 2003, p. 40) no imaginrio dos jovens desta pesquisa a burguesia a classe

    social que possui dinheiro, privilgios em instituies, moram em bairros chiques, que so donos da

    cidade e que no enfrentam as dificuldades que eles e suas famlias enfrentam.

  • 23

    Cabe frisar que a grafia da pixao com x utilizada por pixadores para

    tambm sublinhar que o pixador aquele que carrega a pixao como um vcio. Ela

    parece um estado de potncia pulsante em suas veias. Constitu-se em seus discursos de

    algo embrenhado no ser do sujeito pixador, fazendo com que ele no consiga se

    desvincular dessa prtica.

    Para estes, o pixador de verdade o que est nas ruas se expondo e se arriscando

    com ousadia na tentativa de preservar um status, como expressa o relato seguinte:

    Cada "pixador"! No pichador! Sabe do valor da parada! Caras que gastaram

    milhares com tinta e tempo e que esto h ANOS fazendo! S eles sabem do valor da

    parada! (Depoimento annimo presente no blog Repique22

    )

    A pixao em So Paulo (grafada aqui com x para diferenci-la, como fazem seus

    praticantes, da pichao poltica tambm presente na cidade) uma manifestao

    visual que traz, embutida nas prticas e imagens criadas sobre muros e edifcios,

    uma viso de mundo que no cabe nos acordos que regem e limitam a vida

    urbana. Texto proveniente do cartaz da 29 Bienal de Arte de So Paulo, 2010.

    Disponvel em http://www.flickr.com/photos/choquephotos/6286917861/in/set-

    72157625969699332/ Acesso em 05/05/12 s 18hs.

    Semelhantes no critrio de ousadia, porm diferentes nas marcas deixadas na

    cidade. O pixador com x est interessado em sair do anonimato, aparecer nos muros,

    publicizar marcas ocultadas nos espaos invisveis das periferias e com isso pertencer

    a galera, ser considerado.

    Da ousadia faz tambm parte uma espcie de gozo , que

    proporcionado pela sensao de perigo vivida por aqueles que, conscientemente,

    ultrapassam o que admitido pelas autoridades, habilitadas a sancionar o acto de

    pintar qualquer superfcie alheia. (PAIS, 2000, p.180)

    Estas prticas revelam um forte investimento na afirmao pblica de uma cultura

    em que, ao risco de prejuzo de uma eventual deteno, se opem os lucros da

    visibilidade de uma cultura, face ao impacto visual de quem a produz, e tambm

    face ao elevado nmero de indivduos exteriores a essa mesma cultura, que podem

    observar e avaliar cada pintura realizada. (PAIS, 2000, p.181)

    A busca pela considerao ou afirmao pblica como expressa Pais

    norteadora das aes do pixadores, mesmo que para isso tenha que enfrentar prejuzos

    com os inmeros inimigos reais: a polcia, o dono da residncia, o carro que passa e o

    persegue; e os inimigos abstratos, como o prprio medo, a altura e o tempo de ao.

    --------------------------------------------

    22: Disponvel em:http://repique.blog.terra.com.br/2008/10/27/fotografo-conta-detalhes-da-pichacao-na-

    bienal/ Acesso em 05/05/12 s 18hs.

    http://www.flickr.com/photos/choquephotos/6286917861/in/set-72157625969699332/http://www.flickr.com/photos/choquephotos/6286917861/in/set-72157625969699332/http://repique.blog.terra.com.br/2008/10/27/fotografo-conta-detalhes-da-pichacao-na-bienal/http://repique.blog.terra.com.br/2008/10/27/fotografo-conta-detalhes-da-pichacao-na-bienal/
  • 24

    IMAGEM 04: Pixao em altura no Rio de Janeiro.

    FONTE: Arquivo presente no blog do pixador Nuno, disponvel em

    www.nunodv.blogspot.com.br. Acesso em 06/05/12 s 20hs.

    Muitos pixadores declaram que o que os faz correr os riscos so as sensaes de

    adrenalina, muitos declaram que a prtica se tornou um vcio, tornando a pixao o item

    motivacional em seus cotidianos.

    E queria pichar23

    , como os pichadores considerados, no s no entorno do bairro

    onde morava, tinha que conhecer mais cdigos e regras, andar nos locais de

    encontro dos pichadores, me socializar, arriscar, enfrentar, me tornar realmente um

    pichador destacado, conhecido e conhecedor desse universo dos grupos

    organizados de pichadores fortalezenses. Se quisesse permanecer na gangue, tinha a

    tarefa de pichar muito e em diversas regies da cidade, teria que fazer uma

    revoluo em minha vida para poder sair nas madrugadas para pichar, dizia, muitas

    vezes para meus pais que iria dormir na casa de amigos da escola e na realidade

    freqentava baladas e bailes funk na cidade, muitas vezes dormia o comeo da noite

    em cima de marquises de paradas de nibus ou em prdios abandonados da cidade

    no intuito de nos horrios sair andando por ruas e avenidas pichando, ou melhor

    detonando meu charpi e o nome de minha gangue. (SANTIAGO, 2011, p.29)

    Os depoimentos coletados nesta pesquisa atestam para dois momentos da

    histria da pixao em Fortaleza. De um lado h o discurso dos mais velhos que

    viveram as dcadas de 80 e 90 do xarpi, noutro os jovens pertencentes s dcadas de

    2000 e 2010 (at o atual ano).

    --------------------------------------------

    23: Santiago (2011) utiliza os termos pichao, pichar, pichadores, charpi com grafia do CH.

    http://www.nunodv.blogspot.com.br/
  • 25

    A primeira diferenciao que podemos exprimir a ausncia dos atuais jovens

    em refletir sobre o ato de pixar. Eles no utilizam o termo rebelde, nem falam de

    burguesia ou outras classes sociais. O pouco discurso poltico que encontramos nos

    depoimentos dos primeiros a compor a cultura da pixao, no identificado nos

    discursos dos mais jovens e participantes das geraes 2000 e 2010 do xarpi. Estes no

    justificam suas atuaes como uma prtica contra uma ordem vigente, no est claro em

    seus discursos que o ato de pixar um poder marginal potencializado objetivado a

    fragilizar instituies e o poderio de um Estado.

    Na contramo de um discurso crtico, suas palavras traduzem a prtica da

    pixao como forma prioritria de adquirir prestgio e poder nas galeras do movimento

    da pixao. Parte da entrevista abaixo representa os motivos do pixador Scorpion S.R.

    (Suicidas de Rua):

    O que voc quer ganhar sendo pixador?

    Amigos e ser conhecido sabe, ter o respeito dos outro manos da outra galeras.

    Existe outro jeito de ganhar fama alm da pixao?

    Tem, mais eu s fao isso porque pixar muito irado, o corao batendo

    acelerado, adrenalina a mil.

    Em semelhante ponto de vista Snow T.B. (Terrorista dos Bairros) deixa claro

    seus propsitos com a pixao:

    Gastar dinheiro, talvez ser linchado pela polcia, se arriscar num prdio... tudo isso

    pode acontecer por causa da pixao. Pixar vale a pena? Porqu?

    Adrenalina, prazer e gostinho de ter seu nome l em cima onde ningum pegou , o

    gosto que voc tem quando voc vai l e supera um cara de uma galera rival

    inexplicavel , a adrenalina de subir em um galpo por um poste inexplicvel. S

    que pixa sabe como , tenho amigos que j pararam mais que quando perguntados

    porque pixavam, eles falam : porque gostvamos.

    Afora seus significados, o fato que a pixao uma cultura juvenil fortemente

    presente na paisagem urbana das cidades brasileiras, e seu crescimento constante. Em

    Fortaleza, a pixao que surgia na metade dos anos 80 rapidamente desencadeou para a

    dcada de 90 uma quantidade significativa de pixadores e de siglas, cuja preciso em

    nmeros no se pode afirmar.

    Em entrevista feita por Fuga R.M. ao ex-pixador24

    Canco R.P.M. este ao final

    l um texto de sua autoria que figuram numa tentativa de nomear todas as siglas

  • 26

    existentes na dcada de 80 e 90, mas desculpa-se antecipadamente por esta parecer

    ser uma tarefa difcil, haja visto as inmeras existentes.

    Cheguei a conhecer e ouvir falar de vrias pessoas que fizeram parte daquela

    histria, alguns j morreram, mas nunca sero esquecidos, a maioria vive. Aqui vai

    uma relao de pessoas que fizeram uma histria de muita amizade e adrenalina,

    em primeiro lugar eu mando lembranas aqueles que fizeram parte da RPM, FX ,

    DN, DE , GU, FG, GE, RM, TAN, RDP, PCM, GDR, AN, EDT, PM, PDM, FDP,

    RDM, ER. Canco R.P.M. Rebeldes Protestantes da Madrugada Disponvel em

    , visualizada

    em 30/04/12 s 18hs.

    Nas palavras de Canco podemos enumerar pelo menos dezenove siglas

    existentes na dcadas de ouro do xarpi cearense. Tomemos a proporo quantitativa

    da cultura da pixao: se cada sigla rene dezenas de pixadores, se a quantidade de

    siglas nas primeiras dcadas de seu surgimento possua, na contagem de um s relato,

    19 siglas, imaginamos, assim, as centenas de jovens em ao pela cidade. Qui esse

    clculo na atualidade dos anos 2012 porque nessa trajetria de quase trinta anos a

    pixao ganhou muitas siglas e adeptos pixao.

    A cultura da pixao est em constante rotatividade, os pixadores da dcada de

    80 e 90 vo parando a atividade de meter nome por uma justificativa biolgica de sair da

    fase de juventude e entrar na fase adulta, com mudana de responsabilidade, e de

    conscincia, as atribuies com famlia e com o emprego so questes que se

    tornaram mais importantes. O ciclo da pixao assim vai se renovando, pelo fato de que

    vo surgindo novos pixadores que assumem as galeras criadas naquela poca ou que

    criam sua prpria galera.

    Mas alm do aumento do efetivo de membros da pixao, essa cultura adquiriu

    novos smbolos, bem como novos conceitos, que sero exemplificados no captulo As

    convenes do xarpi.

    --------------------------------------------

    24: no foi identificado na pesquisa a utilizao do termo ex-pixador. Aqui a estamos utilizando de modo a

    deixar mais claro para o leitor que o depoimento trata de um pixador antigo, pertencente a dcada de 80

    ou 90 que no est mais na ativa.

    http://www.youtube.com/watch?v=pokRBK086DE&feature=relmfu
  • 27

    IMAGEM 05: Pixadores simbolizam as iniciais da sigla V.S. com as mos. (Vagabundo Safado).

    Fortaleza CE.

    FONTE: Orkut.

    Pixao para os antigos pixadores algo rememorvel a qual eles falam com

    nostalgia e orgulho nos encontros promovidos entre eles. Esses encontros (diferentes

    das reunies dos atuais pixadores) tm o carter particular, sua participao restrita

    aos membros daquelas dcadas e suas famlias. Nos moldes de um encontro familiar

    eles alugam um espao e se confraternizam com churrasco e bebida, havendo o

    momento memorvel de pixar mais uma vez (um espao pr-acordado para isso com

    direito a novos registros). Nesses encontros relatam suas memrias, por vezes, pelo

    intermdio de suas agendas ou fotografias. Relembram picos, rols, furos, rodadas,

    festas, namoros, e assuntos atuais como suas profisses e famlias.

    Minha profisso hoje cartazista em supermercado e eu adquiri a profisso por

    intermdio da pichao, o dom, o talento da letra. Fazer placa, fazer letreiro, tanto

    em placa como em parede. A sociedade muitas vezes recrimina porque ela no

    entende o significado da pichao. Mas a maioria que eu conheo da minha poca

    tem uma profisso por intermdio da pichao, tem outros que tem serigrafia, ateli

    de grafite, outros que tatuam. (Seco G.D.R. Garotos de Rua, 32 anos, gerao 90)

  • 28

    As siglas da poca dos anos 80s e 90s tinham como influncia de ttulo a

    cultura em voga naquele perodo. As bandas de rock nacional como RPM, Legio

    Urbana, Ultraje a Rigor traziam como vocabulrio para esses jovens palavras de

    contraveno utilizadas nos nomes das gangues dos pixadores. As palavras noite e a

    rebeldia e seus sinnimos eram comumente expressos nos ttulos das siglas, como

    exemplo temos: R.P.M. (Rebeldes Protestantes da Madrugada), G.U. (Gerao Urbana),

    E.D.T. (Esprito das Trevas), F.X. (Feras do Xarpi), G.D.R. (Garotos de Rua), E.R.

    (Esquadro Rebelde), F.G. (Feras do Grafite), D.R. (Domnio das Ruas), G.P. (Garotos

    Podres), R.M. (Rebeldes da Madrugada).

    Segundo Digenes (1998), a pixao tornou-se uma atividade perigosa

    aparecendo uma segunda gerao que j se nomeavam como psicopata algo mais,

    parasita do medo, tendncia suicida, dentre outros, e estes eram alvos de represses

    violentas da polcia.

    As siglas surgidas nos anos 2000 e 2010 apresentam palavras de um glossrio

    cujo contedo inclina-se para uma simbologia da violncia. Atestasse a presena de

    termos semnticos pertencentes a um teor de fria, podemos examinar essa idia nos

    seguintes exemplos: V.S. (Vagabundo Safado), L.D.P. (Loucos, Delinqentes,

    Psicopatas), A.C. (Arte Condenada), M.C. (Mente Criminal), T.D.B. (Terroristas dos

    Bairros), P.C.X. (Primeiro Comando do Xarpi), V.L. (Vida Bandida). Os pixadores ao

    criarem uma sigla, utilizam-se da estratgia de batiz-las com palavras que denotem

    fora, fria, transgresso e outros conceitos, dessa forma esto sendo identificados pelo

    poder semntico das palavras. Essa demonstrao de poder por vezes est duplamente

    explicitada no uso de imagens de dinheiro, armas e drogas formando as letras da sigla

    de um grupo (vide Imagens 20 e 21 na pgina 55). Esse assunto ser examinado com

    maior ateno no captulo A imagem como representao do pixador.

  • 29

    3. AS CONVENES DO XARPI

    O xarpi, na linguagem da pixao, significa o codinome ou apelido do pixador,

    a marca identitria que o jovem escolheu e que provavelmente atravs dela ele est

    construindo sua valorao entre seus semelhantes.

    A primeira prtica criativa adotada na pixao a escolha do apelido. Escolhido

    o codinome, o jovem vai buscar produzir a esttica que melhor lhe apraz na grafia da

    sua identidade no mundo da pixao. O depoimento abaixo revela a iniciao de jovem

    no movimento da pixao:

    Levado nos revelou algumas regras e cdigos, entre elas, a de que tnhamos que criar

    um codinome, um apelido, um charpi, teramos que criar um alfabeto com uma letra

    estilizada, exclusiva, nem o codinome nem as letras poderiam ser semelhantes com

    outras que j existiam. (...) Foi quando me ocorreu um codinome que segundo

    Levado no existia: Mutreta. Iria pichar com esse codinome, nascia ento o Mutreta.

    Nascia o outro que estava em mim e queria sair, ser nmade, errante, aventureiro,

    numa vida mltipla, vivida em um mesmo corpo. (SANTIAGO, 2011, p.26)

    importante adotar um estilo para ficar condizente com o seu apelido, essa a

    primeira preocupao do pixador ao adquirir sua marca, no entanto esta independente

    do nome ou do estilo que tenha s ser uma boa marca se for incansavelmente

    divulgada.

    A gente nunca muda o estilo que pra poder ser conhecido pelo seu estilo, porque

    quando voc fica mudando voc nunca vai ser conhecido. Se cada canto que voc

    meter o seu nome voc ficar mudando o estilo, as pessoas no vo conseguir

    identificar a sua pixao. Ela tem que ter um padro s, o que acontece que

    quanto mais voc pixa, mais voc vai aperfeioando a sua letra. (Seco G.D.R.

    Garotos de Rua)

    As pixaes na cidade de Fortaleza podem ser divididas em trs tipos estticos

    os quais o pixador deve adotar somente um como sua marca identitria, pois como

    afirmou Seco GDR, deve-se adotar um nico estilo de pixao para que a comunidade

    de pixadores reconhea o sujeito da ao. Os trs tipos mais comuns de pixao so:

    Xarpi: o codinome do pixador criado numa esttica prpria com letras

    estilizadas e sobrepostas, a esttica da marca depende da imaginao do pixador.

    Um sujeito fora do fenmeno da pixao no distingui as letras, muito menos

    executa a leitura do apelido;

    Boneco: ou Desenho. A assinatura no se traduz numa palavra, mas num

    desenho simples executado somente por linhas;

    Letreiro: ou Nome. legvel, conseguimos identificar as letras e possvel a

  • 30

    leitura do apelido.

    IMAGEM 06, 07, 08: Arquivo pessoal. Trs exemplos de pichao, respectivamente, xarpi

    (Seco GDR Garotos de Rua), boneco (Rato PCX + OH Primeiro Comando do Xarpi, Os

    Humildes) e letreiro (Muleka 3E + EF Envolvidos na Erva Efeituosa, Eternamente Feras).

    FONTE: Arquivo pessoal.

    O que importa (no xarpi) no o formato, se ele vai juntar as letras demais, ou se a

    letra vai ser fcil de ler, o que importa ele (pixador) divulgar o nome dele em todo

    canto, isso vai fazer ele ser conhecido e respeitado. (Seco G.D.R. Garotos de Rua)

    A palavra xarpi se sobressai diante das outras, pois uma derivao da palavra

    pixao, pixar; a inverso das slabas era utilizada como cdigo para despistar a polcia

    e a sociedade quando se falava dessa atividade ilegal. Assim como cialipo significava

    policial, jousu significava sujou, eram criadas palavras com slabas invertidas e grias

    que viabilizassem uma comunicao segura entre eles.

    A pixao em sua forma mais simples caracterizada pela presena do xarpi e

    da sigla. A sigla so letras abreviadas, que simbolizam a qual gangue, galera ou famlia

    o pixador pertence. Pertencer a uma sigla considerada proporciona aos seus integrantes

    um status coletivo, ou seja, o histrico daquela sigla na cultura da pixao a conveciona

    na moralidade coletiva presente no imaginrio desses jovens. Numa organicidade

    coletiva esses jovens pertencentes a uma mesma galera possuem a mesma funo de

  • 31

    divulgar sua sigla numa fora de estmulo coletivo.

    Porm essa aparente fidelidade sigla se desconstri quando eles permutam para

    uma outra sigla de maior visibilidade, demonstrando para ns que a atividade da

    pixao coletiva, no entanto h o predomnio de interesses individuais, pois a

    mudana de sigla uma estratgia na busca da considerao. Assim, damos conta da

    existncia de uma mobilidade de pixadores dentro das siglas, ora eles so convidados

    para tacar outra sigla, e trocam-na se a nova proposta lhes prover mais ibope, sendo

    a sigla de convite mais considerada que a atual.

    A pixao em moldes mais complexos pode apresentar alm do xarpi e da sigla,

    uma subsigla, um oferecimento, uma dedicatria, frases competitivas, xingamentos ou

    frases que expressem rixa com outro pixador e vrios smbolos com significados

    especficos que sero analisados afrente.

    A subsigla assemelhasse com a sigla, pois na maioria das vezes apresenta-se

    tambm de forma abreviada. Ela significa uma mensagem, servindo para dar nfase a

    um lema que desempenha de guia ou de motivao ao pixador. Por vezes so

    caracterizadas na repetio de uma letra, como uma rima na trade de palavras com a

    mesma consoante. Alguns exemplos como: 3C Caminhando com Cristo; 3S S o

    Senhor Salva; HG Humildes Grafiteiros; 3T Tinta Todo Tempo; 3F Envolvidos

    na Erva Efeituosa; OH Os Humildes; entre tantas outras subsiglas que surgem, por

    vezes, na espontaneidade do momento de pixar.

    O xarpi mxima representao do pixador, atravs desse smbolo grfico o

    pixador identificado. A inscrio representa e traduz o sujeito cujo smbolo atesta uma

    presena que permanece para alm da durao da tinta no muro, permanece nas

    memrias dos integrantes. Acontece que h uma fuso entre imaginrio e o real, como

    aponta Armando Silva: o imaginrio afeta os modos de simbolizar o que conhecemos

    como realidade, e essa atividade adere a todas as instncias da nossa vida social (2001,

    p.47).

    comum entre os companheiros de pixadores que j faleceram riscar o xarpi

    daquele pixador, reproduzindo a mesma esttica de outrora, transfigurando o desejo de

    reascender aquela memria, de ver novamente viva aquele spray como a aluso da

    energia daquele que se foi, a forma que os pixadores no seu imaginrio simblico

    imortalizam um companheiro. Essa dedicatria aparece no muro atravs de frases como

    o eterno, na memria e na simbologia da cruz invertida.

  • 32

    IMAGEM 09: Homenagem a um pixador. Fortaleza-CE

    FONTE: Arquivo pessoal do pixador Seco G.D.R. disponvel na rede social Orkut.

    No movimento da pixao o xarpi deve ter a potncia visual significativa para

    representar o pixador. Convencionou-se que o risco no muro produo de algum que

    transitou por ali, este deixou um rastro de sua passagem, e tantas vezes mais feito isso,

    mais a marca traduzia-se na figura de certo algum. A passagem da abstrao do risco

    no muro para a simbologia real do pixador, uma coerente analogia amalgamada no

    imaginrio urbano do jovem pertencente teia comunicativa da pixao.

    O xarpi uma espcie de mercadoria construda pelo seu pixador que possui

    um corpo cheio de smbolos e sinais, um fetiche. No algo esttico que

    permanece imvel diante do sujeito que observa, mas que se transformou, por sua vez,

    em sujeito. (CANEVACCI, 2001) O xarpi configura-se em mercadoria, pois na sua

    construo simblica ele adquire um valor cultural agregado a essa assinatura pela

    competio simblica figurada nos muros da cidade. Os xarpis so colecionados em

  • 33

    agendas ou pastas podendo ser negociados em trocas ou vendas.

    O fetiche de que nos fala Canevacci o status agregado culturalmente ao objeto

    pela comunicao em sua comercializao. A mercadoria deixa de ser coisa para tornar-

    se sujeito pela agregao de cdigos semiticos passa a ter corpo e alma(p.21).

    Analogicamente podemos falar que o xarpi desenvolve um processo cognitivo que o

    transforma de mero risco no muro, como abstrao, para uma mudana significativa que

    penetra sua prpria natureza simblica. Os pixadores ao resignificarem o xarpi,

    conferem um fetichismo dentro da cultura da pixao. A assinatura um signo de

    valorao simblica que norteia as prticas cotidianas desses jovens, de coletar

    assinaturas nas reunies, e na busca incansvel de fazer seu xarpi se destacar nos muros,

    nas redes sociais e na memria dos companheiros.

    Nas galeras de pixao o xarpi confere ao pixador uma nova identidade. Na sua

    teia comunicativa os assuntos giram em torno desse eu-xarpi na cultura da pixao. O

    pseudnimo assim confere uma outra biografia ao sujeito que se sobressai a identidade

    de batismo. Pode acontecer de os prprios companheiros de roles nas ruas no saibam

    informaes pessoais dos companheiros, pois a importncia se concentra aos assuntos

    dentro do xarpi.

    A construo simblica daquele corpo no sistema da pixao, faz com que as

    relaes de troca e comunho sejam embasadas pelas atividades na pixao e no nos

    momentos em que o pixador est caracterizado como sujeito comum. Eles comunicam

    suas andanas na cidade, seus ambientes preferidos para tacar suas marcas, suas

    rodadas25

    com os gambs26

    e tantas outras histrias que melhor do sentido a quem

    pertence ao xarpi.

    A imagem abaixo pertencente ao perfil virtual de um pixador interlocutor dessa

    pesquisa demonstra a relevncia do xarpi sobreposta imagem do pixador, no se

    contentando apenas em escrever os apelidos dos companheiros na legenda da foto, ele

    reproduziu o xarpi de todos e os sobreps na imagem original.

    --------------------------------------------

    25: significa ser descoberto pela polcia, ou por algum na sociedade no momento da pixao. Ter o corpo

    violentado como repreenso. 26

    : polcia.

  • 34

    IMAGEM 10: Os xarpis. Os rostos receberam uma tarja para preservar suas respectivas

    identidades.

    FONTE: Arquivo pessoal do pixador Snow T.B. (Terroristas dos Bairros).

    3.1 A sociabilidade entre os pixadores

    A pixao possui uma srie de regras internas e motivaes que alimentam essa

    disputa pelos muros e pelos espaos de divulgao. Ela poderia ser ilustrada como uma

    moeda de suas duas faces, de um lado as regras ordenam construo da sociabilidade

    entre esses jovens, porm, na outra face, essas mesmas regras so capazes de

    potencializar os conflitos.

    Na pixao as relaes sociais giram em torno do xarpi. Essa imagem simblica

    nos muros atesta a existncia de um ser social em comunicao com outros pixadores na

    cidade. O pixador produz uma marca no ambiente fsico da cidade que o revela naquele

    espao urbano, atestando sua existncia, e elevando a auto-estima do sujeito. A marca

    registro de uma presena que permite no tempo uma constante comunicao na cidade.

    Dessa forma, a pixao promove o incio de um processo de sociabilidade juvenil,

    corporificado em dedicatrias, reunies, pegar assinaturas, tirar fotografias e

    principalmente ocupar um lugar no hall da fama.

  • 35 Isso me impressiona, a fama que eu tenho e de ser conhecido na cidade todinha,

    nesse tempo no tinha internet, hoje mais fcil, mas naquele tempo pra pessoa se

    divulgar era osso, eu tive esse privilgio de ter sido divulgado antes da internet.

    Conheo muita gente, muita gente vem aqui me ver, para eu assinar agendas, gente

    de todo canto de Fortaleza, gente como o Falco que eu tenho maior carinho.

    (Pango, entrevista em 14 de maro de 2010) (SANTIAGO, 2011, p.30)

    Os pixadores esto ligados por uma rede intensa de energia, de significao, de

    resignificao, de valorao na busca em comum por afirmao em seu pedao,

    (MAGNANI, 2005). Eles movem-se na tentativa de sair do anonimato e pertencer

    tambm cidade que, historicamente, ergueu enclaves de segregao.

    Esse nomadismo juvenil na cidade, essa necessidade de alardear sua presena, de

    chocar, de atemorizar, pe em xeque os escudos dos corpos, deflagra as fragilidades

    dos limites do corpo individual. nesse sentido que os afetos possibilitam uma

    ocupao extensiva dos corpos das galeras no espao homogneo das cidades.

    (DIGENES, 2011, p.224)

    Nos discursos de quem viveu a pixao nas dcadas de 80 e 90 fica clara a idia

    dessa movimentao juvenil como uma unio entre semelhantes de mesma faixa etria,

    que esto correndo riscos, mas que os ultrapassam pelo ao ato de pixar e usufruir do

    convvio social entre amigos. A pixao tambm uma forma de se reunir para ir a

    festas, tomar caipirinha na pracinha da avenida Treze de Maio, namorar as meninas que

    se encantam pelos garotos do xarpi e outras experincias nicas vividas e nas

    oportunidades mltiplas em que se descortinam os momentos do ser jovem.

    (...) Abrao para a Galera da Fome G.F., final da dcada de 80, aquela rapaziada

    que arrebentava no Iguatemi, na avenida 13 de maio, enfim, quero deixar um

    abrao aqui para toda rapaziada dos anos 80/90 aquela gerao de ouro da

    pixao, foi onde tudo comeou, onde a gente fazia muita amizade, onde a gente

    agarrava as melhores gatinhas e tal. E onde a gente se divertia, era como o rapaz

    acabou de falar ai, no tinha muito negcio de confuso, drogas, a gente tomava

    nossa caipirinha e sabia brincar, sabia se divertir, ento essa mensagem que eu

    deixo pra galera que sempre, realmente, preservem as amizades, e que usem a

    pixao pra aprender as coisas boas, que o trabalho em equipe, o poder de

    superao e tudo mais. Que o sucesso que eu tenho hoje profissional e pessoal

    tambm eu aprendi na pixao. (Crazy GF)27

    Georg Simmel (1983) ao discorrer sobre o conceito de sociabilidade fala que os

    homens unidos por um instinto comum criam interaes que formam uma unidade, uma

    -------------------------------------------

    27: Depoimento que aparece no vdeo Fuga RM & AMIGOS.mpg Disponvel em:

    Visualizado em: 05/05/12 s 13hs.

    http://www.youtube.com/watch?v=0EO-TfUFlgs
  • 36

    sociedade. Esses instintos ou interesses so motivadores de nos relacionarmos uns

    com os outros. Em si mesmos, essas matrias com as quais a vida preenchida, as

    motivaes que a impulsionam, no so sociais. (SIMMEL, 1983, p.166). Simmel est

    interessado em discutir a forma como esses encontros acontecem diferentemente do

    contedo, pois o contedo isolado no social, mas na medida em que um sujeito

    associa-se a outro por meio de um contedo em comum, ento foi gerada uma relao

    social. Sociao a forma de se associar, de interagir com sujeitos em semelhante

    interesse.

    Aqui, sociedade propriamente dita o estar com o outro, para um outro, contra um

    outro que, atravs do veculo dos impulsos ou dos propsitos, forma e desenvolve os

    contedos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas quais resulta esse

    processo ganham vida prpria. So liberadas de todos os laos com os contedos;

    existem por si mesmas e pelo fascnio que difundem pela prpria liberao destes

    laos. isto precisamente o fenmeno a que chamamos sociabilidade. (SIMMEL,

    1983, p.168)

    As relaes de sociabilidade podem acontecer por meio da interao entre redes

    e grupos. Em algumas prevalece a sociabilidade dada por suas prticas, como um grupo

    de pessoas reunidas por um esporte, noutras o foco da sociao o contexto, pessoas

    com vnculos afetivos, como exemplo. Outras relaes de sociabilidade prevalecem os

    smbolos, como os praticantes de uma crena, congregados por smbolos religiosos que

    transparecem suas ideologias. Por ltimo h sociabilidades pautadas nos significados ou

    na objetivao de algo, a forma costumeira de nos relacionarmos com variadas

    pessoas pela necessidade de alcance de um fim.

    Na pixao ocorre duplamente uma sociabilidade, os jovens reunidos pela

    mesma prtica de demarcao na cidade se socializam. E os diversos smbolos na

    cultura da pixao tambm acarretam uma sociabilidade explicitada nos muros.

    O xarpi um smbolo que no apenas significa o codinome do pixador, mas que

    sugere a sua presena, isso porque h uma significativa aproximao entre xarpi e o

    pixador. O xarpi no muro torna imortal a presena de um pixador, segundo as

    convenes imaginrias dos jovens incutidos nesta cultura. De acordo com Santiago

    (2011) nos encontros dos pixadores da gerao 80 e 90, em um determinado momento

    eles riscam muros pr-permitidos numa ao de rememorar suas antigas prticas, vide

    imagem 11 abaixo. Bem como contam suas histrias e relembram companheiros que j

  • 37

    faleceram. Assim o expressa no muro ao pixar, como exemplo: Slayer, o eterno,

    um ato simblico de dedicatria a um dos mais famosos e antigos pixadores de

    Fortaleza.

    IMAGEM 11: A lenda vive. Pixador Seco GDR rememorando sua prtica em um dos

    encontros da gerao 80/90. Fortaleza CE.

    FONTE: Orkut

    No imaginrio coletivo dos pixadores a dedicatria uma simbologia que

    imortaliza companheiros na memria de cada um e na histria dessa cultura urbana em

    Fortaleza. O risco de spray nos murais da cidade um ato efmero que sofre a

    degradao de sua tinta ao longo dos anos ou de forma mais rpida com uma nova

    pintura. Porm o que os pixadores objetivam alcanar na dedicatria ps-morte que

    aquele companheiro continue simbolicamente vivo pela sua trajetria que teve na

    cultura do xarpi.

    Eles alimentam a histria dessa prtica de vrias maneiras seja por dedicatrias,

    por fotografias de xarpis, da participao virtual em blogs e redes sociais que tratam da

    pixao, dos encontros quase que quizenais em reunies, na prtica de colher e dar

  • 38

    assinaturas, e nas triviais sadas nas ruas e avenidas para tacar seus xarpis e marcar

    os territrios da cidade.

    Existe ainda a prtica de registrar dedicatrias do xarpi para outros pixadores e

    para as meninas que, geralmente, no fazem parte da pixao, mas so admiradoras dos

    pixadores, so paqueras, namoradas, rolos e etc.

    A dedicatria para outro pixador o oferecimento para: simbolizado em sua

    forma abreviada. s meninas a dedicatria do para: vem acompanhada do smbolo do

    corao.

    IMAGEM 12: Dedicatria de TEFINHA V.S. para CURU, de corao. Av. Francisco S. Fortaleza-

    CE. (2012)

    FONTE: Arquivo pessoal.

    A interao entre os pixadores ocorre por meio da competio simblica. Essa

    competio simblica em torno do xarpi gera um ranking entre eles. Os melhores

    ganham o ttulo de considerado, de fera, de sujeito que se garante. Em outras palavras

    estes se tornam os mais afamados perante os outros, ganham o poder de comando em

  • 39

    sua galera. Desse modo passam a ser identificados como um lder ou cabea, e

    passam a utilizar uma simbologia que evoca sua posio de poder.

    Os considerados so os pixadores com fama de serem os melhores perante um

    ranking classificatrio de pixaes. Ao se tornar considerado dentro da sua sigla, o

    pixador, por vezes, adota o nmero um (1) ou (2) sobrescrito ao seu xarpi.

    Sask D.N.G. assina colocando o nmero 2 junto ao seu xarpi. Segundo ele, em

    cada sigla h sempre o primeiro e o segundo, que so respectivamente os fundadores e

    os mais considerados. Essa simbologia hierrquica confirmada com outros pixadores,

    mas sofrem algumas modificaes, Snow T.B., por exemplo, narra que existem trs

    conceitos de lderes. Existem os lderes de cada sigla e sempre so divididos em trs

    casos: primeiro os que tm mais nome na cidade, segundo os fundadores da sigla e em

    terceiro os por considerao. (Snow T.B.)

    Conquistar prestgio entre os outros pixadores significa ter uma socializao em

    maior nmero, muitos vo lhe conhecer sem nunca ter estado presente com o famoso

    pixador, as notcias de fama circulam pelas conversas, pelas fotografias e vdeos

    circulantes nos meios da pixao. Ao ganhar o ttulo de nmero 1 o pixador obtm

    privilgios nos grupos os quais faz parte, Santiago (2011) cita diversos privilgios

    alcanados pela fama, as mais citadas so a facilidade de viabilizar namoros, amizades,

    convites para sair na aba28

    , festas, viagens, entre outras oportunidades de vivncias e

    experincias intensas pelos bairros fortalezenses. (p.30)

    O privilgio que eu sou da favela e nunca imaginei ficar com filha de

    papaizinho, de ir para um apartamento abandonado e me d de bem l, cheirosa, s

    usava perfume da Natura, essa uma vantagem na pichao, eu da favela, ganho

    spray das gatas pra botar uma dedicatria com o nome delas. Arrumei muita

    namorada! Hoje sou um cara casado, com responsabilidade, ela a que me pedi

    mais para parar, me d conselho. (Pango, entrevista em 20 de agosto de 2010)

    (SANTIAGO, 2011, p.31)

    Todos almejam chegar ao topo desse ranking, a competio que promove o

    estmulo para pixar, o que os excita, essa valorao de poder motiva esses jovens a ir

    ao extremo perigo da experincia, excitao de um corpo capaz de arriscar a prpria

    vida.

    Pra ser famoso em Fortaleza tem que ralar muito, tem que levar bala, pra levar

    -------------------------------------------

    28: gria que significa sair na companhia de pessoas que patrocinam seu ingresso, bebida e etc.

  • 40 pinote dos homi, vigia quebrando o cara (pixador) de pau, sendo preso. Pra

    pegar fama em Fortaleza tem que passar por isso mesmo, tem pra onde correr no.

    (Pango S.A. Sujando e Anarquizando) Entrevista pessoal feita em 04/03/12.

    A simbologia do pdio representa o lugar de destaque para os melhores. Essa

    plataforma geralmente de trs nveis territorializa o local dos vencedores. Pdio uma

    palavra que em sua semntica representa poder. Esse poder de conquista simbolizado

    em destaque ao nmero 1, ocorre tambm na cultura da pixao quando o pixador

    considerado representa seu desempenho nas ruas com a simbologia do nmero 1.

    IMAGEM 13: Xarpi com a simbologia do n 1. Av. Francisco S.

    FONTE: Arquivo Pessoal.

    Os xarpis conquistam reconhecimento de fama quando se classificam numa

    dessas trs categorias de sucesso: maior nmero de xarpi espalhados na cidade, ou,

    xarpis feitos em alturas, como em prdios, ou, xarpi em muros permanentes, como

    muros de pedra ou chalpiscado.

    Por exemplo, o Bafo da G.D.R. (Garotos de Rua) o dos mais considerados, ele s

    pega nas alturas, a maior sigla da cidade; o Doido V.S. (Vagabundo Safado), o

    dono da av. Francisco S, o Baro W.S. (Wild Street) o rei dos muros

    permanentes. (SASK D.N.G. Detonando no Grafite)

  • 41

    Cada pixador tem seu modo de atuar na cidade, sua preferncia por muros ou

    prdios. A estratgia vai depender de cada um. O jogo aqui de quem tem mais pixos,

    estes reunidos numa s categoria se tornam muitos, a pixao tem disso, o pixador

    centraliza uma avenida especfica pra se tornar conhecido (Seco G.D.R.), essa uma

    das muitas estratgias utilizadas.

    Na rede social, Orkut, existem diversas comunidades sobre pixao, nessas os

    pixadores criam tpicos de discusso, enquetes, e apresentam fotografias. Na

    comunidade Pixadores de Fortaleza Oficial existe um tpico criado em 26/03/11 que

    perguntava: Qual melhor visual pra colocar um xarpi? Foram 122 votos at ento,

    27/03/12, que exibia o seguinte grfico:

    IMAGEM 14: Reproduo do Grfico enqute Qual melhor visual pra colocar um xarpi?.

    (Consultado dia 27/03/12 s 16hs).

    FONTE: Orkut, Comunidade Pixadores de Fortaleza Oficial.

    A preferncia da maioria dos pixadores (42%) sinalizada nesse grfico por

    pixaes em prdios. O desafio da altura o fator que mais motiva o pixador, os picos

    so os lugares dos feras na pixao, provocam adrenalina, sugerem maiores

    dificuldades. Esse desafio cobra dos pixadores caractersticas como esperteza e ousadia,

    necessrio se utilizar de artimanhas para conseguir alcanar aquela altura de destaque.

    O xarpi expresso no alto na cidade, numa escala de vrios metros acima do nvel

    do cho, determina que os sujeitos devero erguer suas cabeas para enxergar a pixao,

    na idia de que o olhar de quem trafega pela cidade um olhar inferior na medida em

  • 42

    que o xarpi l no alto olha para esse mesmo sujeito, numa posio simblica de

    superioridade.

    Outro sujeito na pixao que tambm apresenta valoroso destaque o lder ou

    cabea da sigla. Este, geralmente, um pixador veterano que criou a sigla, ou que a

    herdou, dando continuidade em sua divulgao.

    A estes pixadores conferido o poder de determinar quem entra ou sai da sigla,

    promoo de reunies, at mesmo de opinar em assuntos de rixa entre membros da

    pixao.

    Essas sociabilidades estimulam os pixadores a tacar ou atacar (com permisso

    do trocadilho) a cidade em maior quantidade possvel. Quanto mais se risca a cidade,

    mais se gera comunicao nas galeras de pixao, tornando maior a possibilidade de

    convites pa