ilana goldstein - autoria, autenticidade e apropriação

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Reflexões a partir da pintura aborígene australiana.

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  • RBCS Vol. 27 n 79 junho/2012

    Artigo recebido em 24/10/2010Aprovado em 25/07/2011

    AUTORIA, AUTENTICIDADE E APROPRIAOReflexes a partir da pintura aborgine australiana*

    Ilana Seltzer Goldstein

    Estive na Austrlia por um perodo curto, mas muito intenso, de janeiro a abril de 2010. Na oca-sio, conheci museus de arte e galerias comerciais em diversas cidades, conversei com colecionadores, curadores e artistas.2 As dimenses e a diversidade do chamado Australian Indigenous art system im-pressionam. Estima-se que existam, hoje, cerca de 7 mil artistas indgenas3 na Austrlia, muitos dos quais participam regularmente do circuito de mu-seus e bienais e tm seus trabalhos comercializados por casas de leiles e galerias comerciais.

    Produzem esculturas em madeira, gravura em papel, batiques e objetos de fibra tranada, mas a pintura bidimensional a mais abundante e aque-la com maior aceitao no circuito internacional de arte contempornea. Em linhas gerais, a pintu-ra abstrata ou melhor, que a nossos olhos parece abstrata , feita com tinta acrlica sobre tela, pre-domina no Deserto Central, ao passo que a pin-tura figurativa, realizada com pigmentos naturais

    Introduo

    Hello, my name is Wukun Wanambi and I am an artist. Foi dessa maneira e com certo or-gulho que uma liderana yolngu da comunidade de Yirrkala, em Arnhem Land, apresentou-se quan-do conversamos pela primeira vez.1 Com aquela frase, muito estava sendo dito. Os povos indgenas da Austrlia tm na produo artstica, hoje, sua principal fonte de renda, e utilizam-na como arma para conquistar visibilidade em uma nao cujo passado colonial dos mais terrveis.

    * Esse texto uma verso modificada da comunicao apresentada no 34 Encontro da Anpocs, em 2010. Agradeo aos coordenadores, debatedores e participantes do ST Imagens e suas leituras nas cincias sociais, bem como ao parecerista da Revista Brasileira de Cincias So-ciais e a Mariana Franoso, pelas sugestes e comentrios.

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    sobre entrecasca de rvore, frequente no norte tropical, sobretudo em Arnhem Land. Ambas se ramificam em dezenas de subestilos regionais, t-nicos e familiares.

    Os artistas indgenas da Austrlia esto orga-nizados em mais de setenta cooperativas, que eles prprios administram com o apoio de funcionrios brancos e, em parte, com o auxlio de subsdios con-cedidos pelo Estado. Surgidas na dcada de 1970 e denominadas Art Centres, tais cooperativas forne-cem materiais para os artistas, organi zam workshops e exposies e, acima de tudo, compram os traba-lhos da comunidade e revendem-nos na Austrlia ou para outros pases. O ltimo levantamento reali-zado sobre o volume de vendas da arte indgena da Austrlia, incluindo-se no clculo a comercializao de souvenirs tursticos e a revenda no mercado se-cundrio, chegou cifra aproximada de 300 mi-lhes de dlares por ano (Altman, 2005).

    Trata-se, portanto, de um fenmeno comple-xo e fascinante, que permite diversas abordagens.4 O recorte do presente artigo, no entanto, recai so-bre o problema da autoria, da autenticidade e da apropriao de uma produo artstica que j nasce hbrida e intercultural. Como definir a autoria de obras que, em seu contexto original, so muitas ve-zes pensadas como trabalhos coletivos? Como res-ponder necessidade de autenticidade do mercado, sem engessar uma identidade aborgine genrica? Qual a fronteira entre releitura artstica e apropria-o indevida? Para enfrentar tais questes, ser tra-ado, a seguir, um breve histrico do surgimento de alguns movimentos artsticos aborgines na Aus-trlia contempornea, e sero fornecidos exemplos concretos que ajudam a refletir sobre os impasses da atribuio de autoria e propriedade intelectual a partir desse contexto.

    Artistas pioneiros

    Albert Namatjira [1902-1959],5 da etnia Aranda, foi o primeiro pintor aborgine reconheci-do como artista na Austrlia e tambm o primeiro indgena a receber a cidadania australiana.6 Criado em uma misso luterana, ofereceu-se, em 1936, para ser guia do aquarelista branco Rex Batterbee,

    que viajara ao deserto em busca de inspirao. Na-matjira pediu que, em troca, o pintor lhe ensinas-se a tcnica da aquarela. Aprendeu rapidamente e comeou a retratar as cores e paisagens do deserto. Batterbee organizou uma exposio individual para Namatjira, em Melbourne, em 1938, e, a partir da, o aquarelista aborgine no parou mais de ven-der seus trabalhos. No incio, pintava ao ar livre, em meio natureza; numa segunda fase, passou a pintar de memria, omitindo elementos dos quais no queria se lembrar, como a estrada de ferro que cortou o territrio de seus ancestrais. Embora nos primeiros anos ele no assinasse suas pinturas, aps a insero no mercado e nos museus, compreen-deu a necessidade de assinar suas aquarelas e pas-sou a faz-lo sistematicamente (Kleinert e Neale, 2000, p. 199).

    Namatjira ensinou seus filhos e sobrinhos a pintar e a assinar como ele. Assim nasceu, nos anos de 1940, uma vigorosa escola de aquarela abo-rgine, estilisticamente bastante coesa e conhecida como Hermannsburg School nome da misso que se estabeleceu entre os grupos da etnia Aran-da (French, 2002). As caractersticas mais comuns das aquarelas de Hermannsburg aparecem na Fi-gura 1: a opo temtica pela paisagem do Deser-to Central, sem a presena de seres humanos; um eucalipto no primeiro plano; montanhas ao fundo; a linha do horizonte dividindo a pintura; cores que lembram as luzes e os pigmentos naturais da regio; e a assinatura no canto direito inferior.

    No ano de 2002, a National Gallery of Austra-lia, em Camberra, organizou uma exposio itine-rante em homenagem ao centenrio de Albert Na-matjira. Contudo, o reconhecimento de curadores e crticos em relao aos aquarelistas de Hermanns-burg relativamente recente.

    Instituies e crticos de arte recusaram-se a aceitar que aquele trabalho, feito em estilo emprestado por um aborgine, pudesse ter qualquer valor como arte, ou pudesse ocupar lugar significativo na cultura aborgine austra-liana. Desse modo, em 1950, nem a Galeria Nacional de Victoria, nem a Galeria de Arte de New South Wales possuam peas de Albert Namatjira. [...] Reavaliaes recentes, entre-

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    tanto, levaram dois trabalhos de Namatjira a serem afixados nas paredes do Novo Parlamen-to, em Camberra, em 1988 [...]. A primeira grande exposio retrospectiva, Albert Nama-tjira, ocorreu em 1984, no Centro Araluen, em Alice Springs, vinte e cinco anos depois da morte de Albert (Kleinert e Neale, 2000, p. 199, trad. minha).

    Com efeito, a recepo das aquarelas de Her-mannsburg tem sido um tanto controversa. Ape-sar do sucesso comercial, sempre houve crticas sugerindo que se tratava de uma arte no autn-tica, uma tcnica tpica de brancos. Contudo, alguns autores alegam que a opo pela aquarela figurativa foi uma estratgia para proteger a ico-nografia tradicional, muito poderosa e, at ento, secreta (French et al., 2008). Outros argumentam que a ntima conexo com a regio de Ntaria nome nativo do local em que a misso de Her-mannsburg se instalou posiciona os aquarelis-tas aborgines numa linha de continuidade em relao a seus ancestrais, cujas aventuras mticas ocorreram exatamente naquela paisagem e cujos ensinamentos fazem referncia s rvores, aos rios, s montanhas e aos animais do Deserto Central.

    Convm ressaltar que um ponto em comum a todas as etnias aborgines que vivem hoje na Austr-lia a relao triangular mitos-paisagem-expresses artsticas. Cada cl possui histrias exclusivas, que s podem ser contadas e representadas artistica-mente por seus membros. Traduzidas para o ingls

    como Dreamtimes ou Dreaming, podem dar a im-presso de que se trata de sonhos ocorridos durante o sono, quando, na verdade, trata-se de narrativas de criao e de modelos de explicao do mundo. O tempo dos sonhos, longe de ser abstrato e et-reo, est impregnado na paisagem e nos seres vivos. Isso faz com que a arte aborgine seja intimamente vinculada a determinadas paisagens e territrios em que os ancestrais agiram e ainda agem. Aborgines de todas as regies da Austrlia cantam e pintam feitos e trajetrias de seus antepassados, seres pode-rosos associados a certos animais, plantas e aciden-tes geogrficos. As canes e as pinturas costumam louvar cada regio como a mais bonita, a mais frtil e assim por diante, reforando os laos afetivos com o territrio (Caruana, 2003).

    Porm, mais do que o vnculo com o terri-trio e o uso particular de cores que marcam as aquarelas de Namatjira e de seus seguidores, o que o circuito euro-americano parece esperar de um artista indgena uma aboriginalidade aparente, garantidora da autenticidade da pea e do exo-tismo de seu autor. A pintura acrlica de pontos (dot painting), recorrente no Deserto Ocidental da Austrlia, corresponde muito melhor do que as aquarelas de Hermannsburg a tal esteretipo e, no por acaso, trata-se da modalidade mais cole-cionada e apreciada desde os anos de 1980.

    A pintura acrlica do deserto surgiu no povo-ado de Papunya, em 1971, quando o professor de artes plsticas Geoff Bardon incentivou seus alunos a transporem para novas superfcies os mesmos

    Figura 1. Albert Namatjira. Ghost gums, central Australia, s. d. Lpis e aquarela sobre papel, 32 cm x 53 cm.

    Fonte: Imagem de divulgao da galeria Bonhams & Goodman.

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    signos e desenhos que j aplicavam sobre a areia e sobre o corpo. Comearam pelas paredes da es-cola local, em seguida passaram a pintar jornais e embalagens, at que descobriram as telas de teci-do (Myers, 2002). medida que veio o sucesso comercial e de crtica, certos smbolos sagrados e cdigos secretos masculinos foram sendo progres-sivamente omitidos das pinturas pelos membros da cooperativa, ou ento cobertos por bolinhas (John-son, 2006). Mas muitos elementos da iconografia tradicional se mantm, tais como os crculos con-cntricos representando acampamentos e fontes de gua, visveis na Figura 2.

    A cooperativa Papunya Tula foi o grande polo de irradiao da pintura com tinta acrlica para ou-tras comunidades aborgines do deserto que, pro-gressivamente, fundaram centros de arte e desen-volveram estilos regionais prprios. Contabilizando hoje 49 scios, todos aborgines, a cooperativa vende trabalhos de 120 artistas filiados ao Desert Acrylic Painting Mouvement, numa das maiores galerias da cidade de Alice Springs.

    A iconografia tradicional utilizada na pintura acrlica do deserto funciona quase como uma forma de escrita, na qual um pequeno conjunto de smbo-

    los, como pegadas de canguru e arcos lembrando a letra U, pode assumir diversos significados, depen-dendo de sua posio e de sua quantidade na pin-tura e, sobretudo, de acordo com a narrativa mtica a que servem (Munn, 1973). Essa iconografia do deserto tornou-se uma espcie de emblema tpico de aboriginalidade, aparecendo nos materiais de di-vulgao turstica e cultural da Austrlia e dando margem a diversas formas de explorao comercial nem sempre autorizadas pelos artistas ou grupos detentores daquele patrimnio cultural, como se ver mais adiante.

    De qualquer forma, foi com o aquarelista Al-bert Namatjira, no incio da dcada de 1940, que brancos e indgenas da Austrlia usaram pela pri-meira vez o termo artista7 em relao a um indiv-duo aborgine. E foi com a difuso da pintura acr-lica do deserto, nos anos de 1980 e 1990, que a arte aborgine da Austrlia conquistou o circuito arts-tico nacional e internacional e que a estrutura das cooperativas se consolidou. Convm ressaltar que, embora no se possa apresent-los aqui, existem de-zenas de outros movimentos e estilos na Austrlia indgena de gravuras sobre papel a pinturas com pigmentos naturais sobre entrecasca de eucalipto (Goldstein, 2012).

    Atualmente, o uso da expresso indigenous ar-tist generalizado na Austrlia. Todos os museus australianos que visitei possuem salas especiais ou mostras temporrias de Aboriginal art. Os princi-pais deles tm tambm curadores aborgines, res-ponsveis pela aquisio de obras e pela organizao das exposies. Praticamente no h uma galeria comercial de arte contempornea em Sydney, Mel-bourne, Alice Springs, Cairns, Darwin, ou Cam-berra que no exiba pintura aborgine. Segundo dois galeristas, o melhor da arte contempornea australiana feito por aborgines; eles projetaram a Austrlia internacionalmente.8

    A figura do artista aborgine, portanto, surge na Austrlia junto com a consagrao da sua pin-tura, na segunda metade do sculo XX, como arte passvel de ser colecionada, exposta e comercializa-da. Trata-se de algo que brota do contato entre uni-versos e interesses distintos, que parecem ter encon-trado formas de acomodao e negociao. Como sintetiza John Altman:

    Figura 2. Ningura Napurrula. Womens cerimony, 2011. Acrlico sobre tela, 91 cm x 93 cm.

    Fonte: Foto de divulgao da galeria on-line .

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    O admirvel na arte aborgine que ela abran-ge duas vises de mundo concorrentes; trata--se de um perfeito projeto intercultural. uma forma sofisticada de arte [fine art] que os no aborgines e os aficionados por arte valorizam enormemente; mas tambm um produto cul-tural de valor e status inquestionveis dentro da prpria comunidade do artista. um meio para os artistas garantirem seu sustento e, si-multaneamente, permite-lhes afirmar, de uma forma poderosa, aquilo que realmente impor-ta: direitos territoriais, relaes de parentesco e identidade (Altman, 2005, p. 17, trad. minha).

    Em virtude dessa polissemia e complexidade, a arte aborgine da Austrlia repleta de tenses e pa-radoxos, alguns dos quais sero discutidos adiante.

    Autorias coletivas

    A ideia de autoria individual no faz muito sentido entre as sociedades indgenas da Austrlia, nas quais cada etnia ou cl detm algumas histrias (Dreamings) exclusivas que s podem ser contadas e representadas artisticamente por seus membros. As noes de famlia expandida e de cl so mui-to mais fortes do que a ideia de indivduo e, alm disso, a expresso artstica uma forma de trans-misso de conhecimento coletivo e intergeracional. Aborgines de todas as regies da Austrlia contam e cantam as trajetrias de seus antepassados, se-res poderosos que parecem humanos, mas que ao mesmo tempo so associados a animais ou plantas. Assim, quando um artista materializa com cores e linhas certas formas e padres, est apenas tornan-do visvel, parcial e temporariamente, algo que no pertence exclusivamente a ele e que muito maior e mais profundo (Morphy, 2008).

    Isso verdade, mesmo nos casos em que acre-ditamos estar diante de uma pintura abstrata abso-lutamente autoral. Vale mencionar, nesse sentido, Emily Kame Kngwarreye [1910-1996], grande fe-nmeno de crtica e de vendas dos ltimos quinze anos. Emily comeou a pintar com tinta acrlica sobre tela nos ltimos anos de sua vida, j octoge-nria. Pintou compulsivamente, 3 000 telas em sete

    anos, com pinceladas grossas e gestos fortes. Suas telas correspondem, por puro acaso, s preferncias de colecionadores, decoradores, curadores e admi-radores de arte moderna.

    Emily no assinava suas pinturas e, nas pou-cas entrevistas que concedeu, dava a entender que estava pintando partes de Dreamings que lhe per-tenciam e elementos da paisagem sagrada de Uto-pia, regio onde morava. O que, a princpio, pode nos parecer abstrato e pouco autntico, do ponto de vista de Emily era figurativo e vinculado a seus ancestrais. Outras pintoras aborgines adotaram o estilo gestual e minimalista de Emily, constituindo a Escola de Utopia, composta por mulheres que, inicialmente, produziam batiques, mas que, em se-guida, decidiram criar um estilo que se opusesse pintura masculina e cerimonial da cooperativa Pa-punya Tula. As seguidoras de Emily no so consi-deradas plagiadoras porque, culturalmente, tm di-reito de registrar as mesmas histrias ancestrais e as mesmas paisagens sagradas. Inclusive, comenta-se nas galerias que muitas das telas atribudas a Emily Kame provavelmente no tenham sido realizadas por suas prprias mos.

    Kathleen Petyarre [1940], sobrinha de Emily Kame, protagonizou um caso interessante de au-toria compartilhada. Com telas na coleo perma-nente do Muse du Quai Branly, em Paris, e co-nhecida pelo uso de camadas de tintas sobrepostas

    Figura 3. Emily Kame Kngwarreye. Sem ttulo, 1995. Acrlico sobre tela, 122 cm x 91,5 cm.

    Fonte: Imagem de divulgao da Aboriginal Gallery of Dreamings.

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    e pelo preenchimento da tela com pontos, Kath-leen costuma afirmar que suas pinturas so mapas mentais das regies por onde perambulou com seus pais na infncia seminmade. Suas trs irms tam-bm so pintoras, mas Kathleen a recordista em convites para exposies e em valores atingidos em leiles seu preo recorde foi obtido em um lei-lo da Deutscher-Menzies, em maro de 2009: U$ 80 000,00 pela tela Mountain devil lizard dreaming, de 2008.

    A controvrsia em torno da autoria comparti-lhada ocorreu quando Kathleen Petyarre ganhou o prmio National Aboriginal & Torres Strait Is-lander Art Award, em 1996. Logo em seguida, seu ex-marido, pintor e tambm marchand, Ray Bea-mish, alegou que havia participado do processo de confeco da tela e que ambos, portanto, mereciam o prmio. Especialistas foram convocados para uma anlise do quadro e concluram que o estilo era coerente com o conjunto da obra de Kathleen e que, acima de tudo, a histria contida na pintu-ra pertencia sua famlia: Kathleen Petyarre e seus irmos so os guardies do Dreaming do lagarto da montanha, narrativa mtica referenciada em todas as suas pinturas (Figura 4). Seu ancestral princi-pal, Arnkerrth, um lagarto que vive no deserto e muda de cor como um camaleo. Manteve-se, por-tanto, apenas o nome de Kathleen no prmio e na atribuio de autoria do trabalho premiado.

    Vale lembrar que durante minha estadia na Austrlia no foram raras as ocasies em que vi pinturas sendo feitas a quatro ou mesmo seis mos. Na ocasio em que entrevistei Wukun Wanambi, enquanto conversvamos, sua esposa pintava a base de dois quadros que ele me mostrou como sendo de sua autoria. E disse-me que j estava ensinando seus filhos pequenos a pintar, para que tambm pu-dessem ajud-lo.

    Quando passei uma semana no centro de artes do povoado de Yuendumu,9 presenciei outras duas situaes bastante emblemticas. Na primeira, a coordenadora do centro de artes discutia com um casal, alegando saber que a tela tinha sido pintada pela esposa e no pelo marido, o qual, por j ter certo renome, assinara a obra. Os dois negaram, mas, logo em seguida, a coordenadora me explicou que aquele senhor estava ficando cego e sua esposa

    vinha tentando, h meses, oferecer telas feitas por ela como se fossem dele. E isso era motivo de recla-mao por parte dos compradores.

    A segunda situao me envolveu mais direta-mente. Foi-me pedido que realizasse alguns traba-lhos voluntrios como contrapartida pela hospeda-gem gratuita e pelo acesso ao dia a dia do centro de artes. Minhas tarefas eram: misturar as tintas coloridas com diferentes propores de branco, a fim de obter diversas tonalidades de amarelo, laran-ja, rosa, azul e assim por diante; organizar peque-nos potes descartveis de tinta nas prateleiras, para consumo individual dos artistas; preparar almoo para os pintores ali presentes, os funcionrios e os voluntrios normalmente um sanduche de quei-jo, presunto e ovo; fotografar as pinturas entregues diariamente, inserindo as fotos em um sistema de registro informatizado; e, por fim... retocar as telas antes que elas fossem postas venda (!).

    No incio, fiquei perplexa com essa ltima ta-refa. A coordenadora da cooperativa, porm, me tranquilizou, dizendo que todos os pesquisadores e viajantes que se hospedavam ali desempenhavam essa funo. Os prprios artistas presentes pareciam achar a situao normal, e um deles explicou que as

    Figura 4. Kathleen Petyarre. Mountain devil lizard dreaming, 2009. Acrlico sobre tela, 12 cm x 123 cm.

    Fonte: Imagem de divulgao da galeria em .

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    marcas de moscas, pegadas de cachorro, ou borres de tinta fora do lugar desvalorizavam seus quadros aos olhos dos colecionadores e galeristas. O mais importante que o fato de eu ter retocado pinturas de artistas warlpiri da comunidade de Yuendumu no colocou a autoria das obras em xeque, uma vez que eu no compreendia as narrativas pintadas elas no me pertenciam e, portanto, eu no pode-ria alter-las substancialmente: minhas pinceladas eram praticamente incuas.

    A pesquisadora Christine Alder considera a questo da autoria difusa, cumulativa e compar-tilhada um grande dilema da insero da pintura aborgine no sistema de artes euro-americano.10 Em suas palavras:

    Deparamos, aqui, com um dilema fundamen-tal, que nasce quando a compreenso aborgine acerca de seu trabalho colocada no contexto das expectativas do mercado de arte dos bran-

    cos. Por exemplo, na perspectiva aborgine, se um artista aprova que um membro da famlia pinte um quadro seguindo sua forma e seu es-tilo, usando seus motivos e histrias mticas, o produto final ainda poder ser concebido como de sua responsabilidade. Uma outra situ-ao quando a assinatura de um nico artista aparece em uma pea na qual mais pessoas tra-balharam. Potencialmente, essa uma questo muito mais recorrente, que depende, em parte, da magnitude da produo da pea. No caso de uma grande pintura de pontos [dot pain-ting], ou de um trabalho envolvendo texturas detalhadas, outras pessoas podem participar da produo da obra. H ainda o caso de um ar-tista mais velho cuja viso est se deteriorando, que pode ser assistido por um parente prximo (Alder, 2010, s. p., trad. minha).

    O sistema de arte indgena, na Austrlia, en-contra maneiras de se acomodar a esta realidade. O marchand Andrew Newstead, dono da Coo-ee Gal-lery, em Sydney, explicou-me, em entrevista, que a questo da autoria diretamente relacionada com a atribuio de autenticidade. Com base em sua ex-perincia de muitos anos no mercado, percebe que apenas os artistas aborgines urbanos assinam seus trabalhos. E, pessoalmente, no v problemas em um artista do deserto se designar autor de um quadro produzido com ajuda de seus assistentes ou parentes, at porque fcil reconhecer o estilo regional e a identificao de imagens apropriadas para cada cul-tura, isso faz parte do processo de autentificao.11 Em suma, Adrien confia na autenticidade das pin-turas que vende, porque conhece sua provenincia, seus criadores e se sente apto para avaliar se a obra se encaixa de modo coerente em determinado contexto cultural ou determinada trajetria pessoal.

    Apropriaes indevidas, copyright e autenticidade

    A diferena na maneira de aborgines e brancos lidarem com a noo de autoria e propriedade in-telectual, aliada ma f de alguns empresrios, faz com que no sejam raros os casos de uso antitico

    Figura 5. Ilana Goldstein, no centro de artes Warlukur-langu, retocando telas feitas por artistas aborgines.

    Fonte: Foto de Ceclia Alfonso, 2010.

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    ou indevido de criaes aborgines. Em 1991, por exemplo, o artista Terry Yumbulul [1950], da etnia Warimiri, abriu um processo contra o Banco Cen-tral da Austrlia pela reproduo de uma de suas esculturas em papel-moeda. Harry Williamson, de-signer da nota, tinha visto a escultura Morning star pole no Australian Museum, em Camberra, e pediu que a agncia estatal de arte aborgine conseguis-se uma licena para utiliz-la na nova nota. Terry Yumbulul assinou um termo de licenciamento no qual autorizava o governo a reproduzir sua obra dentro e fora do pas, contanto que lhe pagasse royalties. No entanto, quando viu sua escultura es-tampada na nota comemorativa dos duzentos anos de ocupao europeia, sentiu-se ofendido e quis voltar atrs. A argumentao de Yumbulul susten-tava que aquela escultura era fruto de uma prtica tradicional de confeco de postes cerimoniais, que tinha aprendido com seu pai e este, com seu av. Os postes funerrios so troncos ocos, que abrigam os ossos de pessoas falecidas durante determinado tempo. Eles tm papel central nos ritos funerrios e ajudam os mortos a se reconectarem com seus ancestrais. So decorados com smbolos clnicos, plumas e barbante e inaugurados em festas que atraem pessoas de vrias etnias e comunidades, em clima de respeito e comunho. Colocar a ima-gem de tal objeto num suporte relacionado com o poder do colonizador pareceu uma profanao ofensiva ao escultor. Yumbulul perdeu o processo, mas o caso deu margem a muitos debates sobre a insuficin cia da lei australiana de direitos autorais (New South Whales Government, 2010).

    Uma segunda polmica ocorreu em 1991, quando uma empresa do Vietn decorou itens tx-teis com pinturas aborgines que integram o acer-vo da National Gallery of Australia, em Camberra. A empresa Beechrow Pty Ltd., sediada em Perth, vendia tapetes e tapearias por at U$ 4 000,00 cada pea. Os artistas copiados eram relativamente proeminentes. George Milpurrurru [1934-1988], por exemplo, foi o primeiro aborgine a ser expos-to na National Gallery. A fbrica vietnamita tirara as figuras de uma publicao educativa do mu-seu; o material foi encontrado na sede da empresa plagiadora durante as investigaes. Embora nas etiquetas dos tapetes e tapearias estivesse escri-

    to que os artistas receberiam royalties pela venda, eles sequer foram consultados. Os autores haviam cedido suas obras para a publicao educativa do museu, justamente para conscientizar os brancos sobre a importncia de sua arte. O processo levou trinta dias e parte dele foi conduzido em Darwin, onde testemunhas e os oito artistas plagiados fo-ram ouvidos. Eles pediram indenizao por da-nos culturais. A empresa foi falncia e no fez qualquer oferta aos artistas. Em um document-rio sobre o assunto chamado Copyrites (Eatock e Mordaunt, 1997), descobre-se que alguns artistas indgenas pararam de pintar, nessa poca, porque foram acusados por suas comunidades de terem exposto seus segredos sem proteo. Exemplo se-melhante o da Australian Icon Products, distri-buidora de brindes que faliu em 2003 aps perder um processo por ter vendido produtos industriali-zados e feitos por brancos com rtulos sugerindo se tratar de arte aborgine autntica.

    Para tentar evitar que esse tipo de situao con-tinue ocorrendo, as cooperativas de artistas e tam-bm vrias galerias comerciais passaram a entregar ao comprador, junto com a obra, um certificado de autenticidade. Os certificados variam, j que cada organizao desenvolve seu prprio modelo. Em geral, nele constam o nome do(a) artista, a data de nascimento, a lngua que fala, a regio em que nas-ceu, uma foto dele(a), uma foto da pintura, acom-panhada de breve explicao do Dreaming ali repre-sentado. Soma-se a isso um carimbo e o nmero do registro da pintura em seus arquivos internos.

    Figura 6. Nota de dez dlares comemorativa do bicentenrio da colonizao inglesa, em 1988, com reproduo de uma escultura de Terry Yulumbulul (mastro enfeitado com penas na horizontal).

    Fonte: Acervo do Museum of Australian Currency Notes.

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    A finalidade do certificado de autenticidade dificultar transaes obscuras, fraudulentas ou que desrespeitem a propriedade intelectual dos abor-gines. J se tentou, tambm, implementar um selo de autenticidade nico para toda a Austrlia. A ini-ciativa partiu da National Indigenous Arts Advo-cacy Association (NIAAA) e foi testada em 1999. Consistia na aplicao voluntria de um rtulo pa-dronizado que atestava a origem indgena de qual-quer produto cultural, cuja utilizao s podia ser autorizada por uma pessoa que se reconhecesse e fosse reconhecida como de origem aborgine. Con-tudo, poucos aderiram ideia. Houve at curado-res indgenas de renome, como Brenda Croft, que se opuseram ao selo de autenticidade pelo fato de que ele exigia dos artistas indgenas algo que no exigido dos artistas brancos provar sua identi-dade e, ainda, por reificar uma ideia de tradio pura e intocada, o que poderia colocar os artistas urbanos e contemporneos de ascendncia indge-na numa situao constrangedora.

    Dez anos depois da proposta do selo de au-tenticidade que caiu em desuso , foi lanado um Cdigo de Conduta Comercial de Arte In-dgena Australiana. Desenvolvido pelo Austra-lia Council, com funes equivalentes s de um ministrio da cultura, o Cdigo contou, em seu processo de concepo e redao, com a partici-pao de diversos atores ligados cadeia de pro-duo e distribuio de arte indgena: centros de arte, galerias comerciais, museus, casas de leiles, rgos pblicos e associaes indgenas. O Cdigo foi publicado em outubro de 2009 e, atualmen-te, est em fase de teste. Uma nova agncia esta-tal, Indigenous Art Code Limited, com diretoria composta por representantes do setor, foi criada para administrar e fiscalizar a aplicao das diretri-zes do Cdigo de Conduta. Embora a adeso seja voluntria, o oramento do governo federal prev verbas para a realizao de campanhas de cons-cientizao e aes de fiscalizao dos signatrios.

    Os principais objetivos do documento so o incentivo a transaes comerciais ticas e transpa-rentes e a implementao de um sistema justo de resoluo de conflitos. Esto protegidos objetos de diversas naturezas, vrios suportes e linguagens artsticas: pintura, desenho, gravura, livros de arte,

    escultura, entalhe, cermica, vidro, joias e bijute-rias, fotografia, instalao, vdeo e multimdia. O Cdigo define como indgena toda pessoa que tem ascendncia aborgine ou das Ilhas do Estreito de Torres, e que se identifica e identificado por sua comunidade como tal12 (Australia Council, 2009, p. 7).

    Eis alguns dos pontos principais propostos no Cdigo de Conduta Comercial de Arte Indgena Australiana: Recomenda-se que os intermedirios usem in-

    trpretes e expliquem os termos do contrato detalhadamente aos artistas indgenas, inclusi-ve prazos, valores, comisses, formas e prazos de pagamento.

    As obras tm que ser corretamente identifica-das, com crditos para o artista, etiquetas vis-veis e acompanhamento de textos explicativos.

    No se podem adulterar informaes sobre a provenincia da obra, as filiaes do artista ou eventuais patrocinadores de seu trabalho.

    Nomes e imagens de artistas j falecidos s po-dem ser divulgados se houver autorizao de familiares, j que, entre muitas etnias, no se evoca o nome de um morto.

    Informaes consideradas sagradas ou interdi-tas pelos artistas no podem ser tornadas p-blicas.

    Reprodues da obra em quaisquer meios ne-cessitam de autorizao prvia do artista ou de seu representante. A partir de agora, talvez as obras de artistas

    indgenas vendidas na Austrlia juntamente com o certificado de vinculao ao Cdigo de Condu-ta Comercial tragam s partes envolvidas alguma tranquilidade em relao autenticidade das peas. Afinal, essa sempre foi uma moeda franca no seg-mento da arte primitiva segmento este, vale lem-brar, consolidado a partir da valorizao que artistas modernos como Pablo Picasso, Andr Breton, Emil Nolde e Constantin Brancuse fizeram de mscaras e outros objetos provenientes da frica e da Oceania.14

    A ideia de que existe uma arte primitiva autn-tica surgiu no comeo do sculo XX e foi se trans-formando ao longo das dcadas. Em 1935, na pri-meira exposio que o Museum of Modern Art de Nova York organizou com peas africanas, African

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    Negro Art, o organizador do catlogo, James Swe-eney (1935), escreveu que os africanos autnticos viviam numa era gloriosa, em grandes povoados, com uma economia prspera, em harmonia com seu ambiente e suas tradies, e eram capazes, portan-to, de produzir uma arte autntica. Essa a razo pela qual as peas presentes naquela mostra pionei-ra datavam, todas, do perodo pr-colonial. Apenas objetos e prticas intocados pelo valor de mercado e pela civilizao euro-americana seriam autnticos. Os critrios de autenticidade de Sweeney, portanto, eram a ausncia de tempo e de dinheiro.

    Cinquenta anos depois, a exposio Primiti-vism in 20th Century Art, que colocava lado a lado no MoMA trabalhos de artistas modernos e peas de outras sociedades, em busca de afinidades for-mais, partia do seguinte pressuposto: um objeto au-tntico aquele criado pelo artista para seu prprio povo e usado para propsitos tradicionais. Objetos fabricados explicitamente para serem vendidos a antroplogos ou viajantes, por exemplo, ficam fora dessa definio. Mas nela cabem itens produzidos no que o curador da exposio, William Rubin, chamou de fase de transio. Uma mscara do Estreito de Torres comprada por Picasso na dca-da de 1920, por exemplo, seria um testemunho de uma poca em que a vida tradicional dos nativos, apesar da colonizao, permanecia relativamente intacta (Rubin, 1984, p. 68).

    No final do sculo XX, quando a penetrao do capitalismo e das instituies coloniais em todos os cantos do planeta parecia inquestionvel, curadores e colecionadores constataram que a arte primitiva autntica estava ficando escassa. No lhes era mais possvel buscar peas antigas na frica, principal fonte das dcadas anteriores, at mesmo por conta de novas restries legais. Comearam a recolocar em circulao peas que se encontravam paradas em colees. O valor delas subiu e novas galerias especia-lizadas apareceram para abrig-las (Errington, 1998). Ao mesmo tempo, povos antes considerados primi-tivos aproveitaram o aquecimento do mercado e passaram a oferecer objetos neotradicionais, muitas vezes associados ao turismo cultural.14

    O conceito de autenticidade foi se flexibili-zando ao longo do sculo XX e, hoje, o mercado parece considerar autntico o objeto que, mesmo

    tendo sido fabricado com inteno de venda ou exposio, seja fruto das mos de um autntico Navajo dos Estados Unidos, de um autntico Maori da Nova Zelndia e assim por diante, e que, alm disso, parea vinculado a uma cultura par-ticular, em virtude do uso de tcnicas, temticas ou formas consideradas tradicionais. Em parte, como se a autenticidade, agora, estivesse menos nos objetos do que nos indivduos: o pertencimen-to do artista a uma cultura supostamente pura funciona como a nova medida de autenticidade.

    No caso especfico da Austrlia, uma das con-sequncias disso que artistas indgenas analfa-betos, vivendo em regies remotas, no deserto ou na costa norte do pas, tm muito mais aceitao como autnticos do que os artistas urbanos, que falam bem ingls e frequentam museus. Judy Watson [1959], que tem curso superior em artes plsticas, especializao em gravura e atua como professora universitria, um bom exemplo nes-se sentido. De origem aborgine, ela foi criada na cidade de Brisbane, mas decidiu conhecer a regio de seus avs, no interior de Queensland, depois de adulta. Ficou muito tocada por esse contato e pas-sou no s a incluir temticas aborgines em sua obra, como a apoiar artistas de regies isoladas na busca de melhores condies para a realizao do trabalho artstico. Watson recebeu uma bolsa da Mot & Chandon, em 1995, que lhe permi-tiu viajar para a Frana; dois anos depois, foi con-vidada a participar da Bienal de Veneza. A classe mdia australiana, que consome arte aborgine, no decora sua casa com gravuras de Judy Watson, preferindo pinturas com crculos, pontos, lagartos e cangurus, tipicamente aborgines. Por outro lado, a consagrao da crtica em torno de Watson grande, embora seja corrente o comentrio de que se trata de uma artista contempornea e no uma artista aborgine.

    Lin Onus [1948-1996], filho de me escocesa e pai Yorta Yorta, um caso similar. Seus trabalhos tinham teor poltico e eram caracterizados pela fi-gurao histrica realista. A tela O fardo do homem branco (1982), por exemplo, trazia um nativo mon-tado em um soldado branco, de quatro. Em 1992, quando vrios artistas australianos foram convida-dos a criar trabalhos usando a bandeira nacional,

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    Lin Onus pintou dois anjos vestidos com a ban-deira da Austrlia, voando sobre terras aborgines e levando nas mos uma arma, arame farpado, uma bblia e uma embalagem de produto de limpeza. O arame farpado aludia aos campos cercados em que os aborgines foram confinados durante dcadas, ao passo que a ovelha era uma referncia introduo de atividades econmicas estrangeiras e nocivas ao ambiente, segundo depoimento do prprio artista (Leslie, 2010, p. 29). A arma de fogo era claramen-te associada violncia da colonizao, a bblia, religio que foi imposta aos nativos, e o higieniza-dor sanitrio era uma provvel aluso ao consumis-mo capitalista, tambm passvel de ser interpretado como o desejo dos colonizadores de realizarem uma assepsia tnica na Austrlia.

    Curiosamente, essa vertente mais crtica e poli-tizada da produo artstica aborgine recebe menos subsdios pblicos, na Austrlia, e tem menor su-cesso comercial no mercado internacional. Daniel Browning, de origem Bundjalung, jornalista que tem um programa de rdio especializado em arte e cultura aborgine, na emissora australiana ABC, afirmou que muitos dos que tm produzido arte negra poltica [political black art] vem sendo critica-dos por no serem suficientemente negros [not bla-ck enough], como se houvesse verdadeiros e falsos aborgines (Browning, 2010, p. 23, trad. minha). Browning reclama de que a Austrlia branca [white Australia] ainda quer identificar os aborgines por caractersticas fsicas e ideais de pureza, aps tan-tos anos de contato, e, pautando-se nesse critrio, apenas os residentes de regies mais distantes das metrpoles, com contato mais recente e menos miscigenao seriam autnticos aborgines.

    Com efeito, o apoio do governo federal vai majoritariamente para artistas do deserto e do ex-tremo norte do pas, que se fortalecem, ainda, por estarem associados a centros de artes com gesto profissional. Os artistas de origem indgena mo-rando nas cidades do sul, do sudeste e do nordeste da Austrlia devem, em princpio, se lanar indi-vidualmente. Foi por isso que em 2004, quando o governo do Estado de Queensland criou uma nova agncia de fomento chamada Queensland Indigenous Artists Marketing Export Agency, com foco no apoio produo e venda da arte de comunidades indgenas tradicionais vivendo em regies isoladas do estado, artistas aborgines urbanos residentes na capital, Brisbane, resolve-ram se unir e formalizar o coletivo ProppaNOW (Neale, 2010, p. 34).

    Figura 8. Lin Onus, And on the eight day, 1992. Acrlico sobre tela, 182 cm x 245 cm.

    Coleo Tiriki Omus.

    Figura 7. Judy Watson, Touching my mothers blood, 1988. Gravura impressa sobre papel de arroz.

    Fonte: Acervo da National Gallery of Australia.

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    O nome do grupo vem de uma corruptela da expresso proper way, utilizada no ingls aborgine, que significa o modo indgena de fazer as coisas, respeitando protocolos tradicionais e levando em conta os interesses coletivos. No estatuto do Pro-ppaNOW, consta a misso de produzir artistas e eventos que questionem as noes estabelecidas de arte aborgine e identidade aborgine (Idem, p. 36). Ou seja, os artistas aborgines urbanos co-locam em xeque a prpria ideia de autenticidade que pauta o senso comum e o mercado de arte, em especial quando se trata de povos indgenas.

    Releituras e apropriaes artsticas

    Na histria da arte australiana, h registros de alguns artistas brancos que se inspiraram no repertrio visual aborgine. O mais famoso o de Margaret Preston [1875-1963], uma das raras

    mulheres australianas pintoras, em sua poca. Ela ousou frequentar aulas de desenho com modelos nus e acabou se tornando um dos nomes mais co-nhecidos da pintura australiana. Comeou fazendo naturezas-mortas realistas, que aprendera na acade-mia. Ao longo de viagens para a Europa e a para a sia, chegou concluso de que a fora dos movi-mentos artsticos que vira no exterior vinha de sua ntima relao com a histria e com os costumes de cada pas. Dedicou-se, ento, misso de des-pertar a Austrlia para a necessidade de construir uma identidade cultural prpria e de valorizar suas particularidades.

    Para tanto, Preston lanou mo, ao mesmo tempo, de inovaes formais das vanguardas euro-peias e de tradies artsticas dos aborgines austra-lianos. Usava a expresso arte total para se referir ao programa que queria levar a cabo: pretendia que uma esttica sincrtica, verdadeiramente australia-na, extrapolasse as belas-artes para atingir o design

    Figura 9a. Margaret Preston, Still life: fruit (Arnhem Land motif ), 1941. leo sobre tela, 43 cm x 53,3 cm.

    Fonte: Acervo da National Gallery of Australia.

    Figura 9b. Mick Magani, Water lilies and the water lily spirit, c. 1950.

    37,5 cm x 16,5 cm.

    Fonte: Art Gallery of New South Wales.

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    industrial e o cotidiano. Com o passar do tempo, foi se aproximando mais e mais do repertrio abo-rgine. Na tela Still life: fruit (Arnhem Land motif ), de 1941, reproduzida a seguir, as cores so as mes-mas das pinturas com pigmentos naturais sobre casca de eucalipto do norte da Austrlia (Figura 9b); o cesto que carrega as frutas parece um arte-fato de fibra aborgine; o geometrismo e a textura remetem ao estilo de Arnhem Land,15 regio, alis, citada no subttulo.

    Aboriginal still life (Figura 10), por sua vez, inclui referncias explcitas a prticas culturais dos nativos da Austrlia: h dois brases decorados se-melhantes aos coletados por antroplogos na dca-da de 1920, na regio de Queensland, trs bume-rangues do lado esquerdo da tela e um bumerangue do lado direito curiosamente, os seis objetos ind-genas presentes na pintura so armas. O ttulo na-tureza morta, em se tratando de uma pintura que incorpora a visualidade de populaes dominadas e colonizadas, no deixa de soar irnica.

    Preston tornou visveis cores e formas abo-rgines da Austrlia numa poca em que poucas pessoas conheciam e apreciavam esse tipo de tra-balho, aps ter visitado o Northern Territory com seu marido duas vezes, no final da dcada de 1920 e no final da dcada de 1930. Ela jamais pediu

    autorizao aos aborgines, e nunca se interes-sou pelo significado ou pela histria (Dreaming) contidos naquilo que a inspirava (Edwards e Pell, 2005), o que compreensvel levando-se em conta o contexto em que viveu. Mesmo assim, no ca-tlogo que acompanhou a retrospectiva da pinto-ra, em 2005, dois curadores de origem aborgine deram depoimentos bastante crticos a Preston. Djon Mundine escreveu sobre a tela Aboriginal still life (Figura 9): O trabalho apresenta um verniz de aboriginalidade, a adoo de formas e motivos deslocados de seu contexto e de seus sig-nificados [...] de algum que ainda turista em seu prprio pas (apud Edwards e Peel, 2005, p. 208). J Hetti Perkins afirmou: As tentativas de Preston, embora bem-intencionadas, so fadadas ao fracasso porque no tm significado para os po-vos aborgines (Idem, p. 212).

    Outro caso que comeou de forma controver-sa, mas que terminou em parceria amigvel o de Imants Tillers [1950], artista e curador de Sydney que j esteve na Bienal de So Paulo, em 1975. Tillers incorporou uma pintura do warlpiri Mi-chael Jagamara Nelson [1950], chamada Five dre-amings (1982), dentro de uma composio sua in-titulada The nine shots (1985). Imediatamente, foi acusado de apropriao indevida e de desrespeito aos direitos autorais de Jagamara Nelson. Nota-se, nas duas imagens que se seguem, a semelhana na posio, no tamanho e na cor de cinco pequenos crculos concntricos, na parte superior de ambas as pinturas, a serpente na diagonal, no mesmo lu-gar nas duas, e ainda as similaridades nas cores e texturas do fundo.

    A ideia de Tillers era representar a fragmenta-o da ps-modernidade e a pulverizao do local no global (Morphy, 2010). Mas seu procedimento no levou em conta a necessidade de uma permis-so de Jagamara Nelson. Tanto que um outro ar-tista branco australiano, Gordon Bennett [1955], realizou um terceiro trabalho como resposta: The nine ricochets (1990) incorporava partes da tela de Tillers que, por sua vez, havia incorporado a pintu-ra de Jagamura Nelson. Howard Morphy interpreta esse jogo de releituras mtuas como um indcio de que a histria da arte australiana no podia mais, a partir desse momento, ignorar a presena indgena:

    Figura 10. Margaret Preston, Aboriginal still life, 1940. leo sobre tela, 43,6 cm x 48 cm.

    Fonte: Acervo da Queensland Art Gallery.

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    Para minha surpresa, encontrei no sul do Bra-sil uma artista que se inspira na visualidade dos aborgines da Austrlia. Corali Cardoso [1949], autodidata que assina suas telas como Cora, ga-cha de Porto Alegre. Em seu website, afirma que,

    Figura 11a. Michael Jagamara Nelson, Five Dreamings, 1984. Acrlico sobre tela, 122 cm x 182 cm.

    Fonte: Coleo particular, Melbourne.

    Figura 11b. Imants Tillers, The nine shots, 1985. Acrlico sobre tela, 330 cm x 266 cm.

    Fonte: Coleo do artista.

    Figura 12. Imants Tiller e Michael Nelson Jagamarra, Nature speaks: Y (posssum dreaming), 2001.Guache e acrlico sobre tela, 101,6 cm x 142,2 cm.

    Fonte: Coleo particular.

    Se existe uma simples mensagem [por trs des-sa sequncia de releituras] que tudo o que aconteceu na histria recente da Austrlia s foi possvel pela colonizao e pela morte dos aborgines. Uma mensagem que, nos anos de 1980 e 1990, estava alcanando amplos seto-res da sociedade australiana: havia algo errado que precisava ser enfrentado. [...] A perspectiva adotada por Tillers fez com que a arte indgena se tornasse parte da histria global da arte. [...] Mesmo assim, as obras de brancos e indgenas guardam suas diferenas, no so um mesmo tipo de coisa, embora tenham muito em co-mum (Idem, s. p., trad. minha).

    Alguns anos depois, Tillers desenvolveria um relacionamento pessoal com Michael Jagamara Nelson e eles trabalhariam juntos em Brisbane, pintando a quatro mos telas como Nature speaks: Y (possum dreaming), de 2001, baseada em grafismos dos Warlpiri (pegadas de animais) e usando pala-vras de ordem como necessidade, diferente e mudana (Figura 12).

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    em 2002, sentiu, repentinamente, um grande impulso para pintar, especialmente tocada pela arte aborgine australiana. Em 2002, esteve na Pi-nacoteca do Estado de So Paulo visitando a ex-posio The Native Born e tomou parte em uma oficina promovida pelo setor educativo do museu, com a participao do curador aborgine Djon Mundine. Essa foi a mola propulsora da nova car-reira em que se lanou.16

    A proposta anunciada por Corali a de tradu-zir a arte aborgine australiana, que ela explica da seguinte maneira em sua pgina na internet: Para os aborgines, a filosofia religiosa da terra e de seus ancestrais oferece as respostas s perguntas funda-mentais da criao da vida. [...] A arte o centro da vida aborgine, e conectada de forma inerente ao domnio religioso.17 Os ttulos de suas sries de pinturas so alusivos cosmologia e cultura mate-rial dos povos aborgines da Austrlia: Cobras e ser-

    pentes, Mangue, Lana, Digiridu, Yuparlis (banana selvagem, em warlpiri) e assim por diante.

    H pinturas de Corali que remetem explici-tamente a bark paintings de Arnhem Land, feitas com pigmento natural sobre casca de eucalipto, que ela afirma ter visto na exposio da Pinacote-ca. O prximo par de imagens traz, na coluna da esquerda, o original exposto em So Paulo e, na coluna da direita, a verso de Corali. Para ajudar a compreenso do visitante, o curador John Mun-dine escreveu, na poca, que gulun significa, em yolngu, gua doce e tero, duas ideias intimamente relacionadas; os lagos e pntanos repletos de plan-tas aquticas abrigam as almas dos mortos e dos no nascidos, que tm a forma de filhotes de bagre (Mundine apud Amaral, 2002).

    difcil julgar at que ponto a releitura da pintora gacha um tributo arte dos povos abo-rgines da Austrlia e at que ponto seus procedi-

    Figura 13a. David Daymirringu, Planta trepadeira e plantas aquticas, 1984.

    Fonte: Imagem do catlogo da exposio The Native Born.

    Figura 13b. Corali Cardoso, Lrios dgua. 130 cm x 90 cm. Data e tcnica no especificados.

    Fonte: Imagem retirada do site da artista.

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    mentos ultrapassam os limites da tica. A fronteira sutil. Corali no busca se passar por uma artista aborgene, nem alega conhecer os Dreamings pin-tados. A histria da arte euro-americana repleta de exemplos de releituras de obras anteriores, de retomada de temas e propostas plsticas, mais ou menos fiis aos originais.

    Porm, no sistema das artes indgenas da Austrlia, um pintor aborgine s representa a parte do repertrio visual que pertence a sua fa-mlia, seu cl ou sua etnia, aps muitos anos de aprendizagem sobre a cosmologia e a vida ritual. Por isso, provvel que Corali Cardoso fosse pu-blicamente repreendida na Austrlia. Mas no certo que perdesse um processo, caso os autores das pinturas da exposio The Native Born re-solvessem lev-la ao tribunal, pois a legislao de propriedade intelectual, na maioria dos pases, s probe cpias exatas dos originais. A questo no simples. Uma vez que a arte indgena se insere no sistema mundial de arte contempornea,18 fica

    sujeita a releituras imprevisveis. A pintura abor-gine contempornea no uma esfera autnoma, nem uma produo isolada. Questes histricas, jurdicas e morais atravessam-na.

    Richard Bell [1946-2007] foi um dos nicos exemplos que encontrei de releituras de artistas euro-americanos feitas por artistas aborgines. Bell, morador de Brisbane e um dos idealizado-res do coletivo ProppaNOW, realizou uma srie inspirada na pintura gestual (action painting) de Jackson Pollock [1912-1956], respingando tinta do tubo diretamente sobre a tela. A semelhana vm tona nas figuras seguintes.

    Numa srie posterior, Richard Bell incorporou a linguagem pop de Roy Lichtenstein [1923-1997], que lembra a histria em quadrinhos. Em algumas imagens, ele simplesmente apagou o que estava es-crito nos bales dos personagens de Lichtenstein e substituiu por mensagens polticas e irnicas, como se v na Figura 15, em que a moa loira pensa, ali-viada: Graas a Deus no sou aborgine!.

    Figura 14a. Richard Bell, I am IT, 2001. Tcnica mista sobre tela, 120 cm x 120 cm.

    Fonte: Coleo Millani Gallery.

    Figura 14b. Jackson Pollock, Eyes in the heat, 1946. leo sobre tela, 137 cm x 109 cm.

    Fonte: Coleo Peggy Guggenheim.

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    Richard Bell explica que tais procedimentos so uma espcie de vingana em relao apropriao do repertrio visual aborgine que vem sendo feita por brancos, h tanto tempo. Por outro lado, admi-te sentir admirao pelos artistas brancos que recria:

    Originalmente, comecei a fazer isso porque os brancos estavam se apropriando da arte abor-gine, ento, no comeo, foi por revanche. Mas a eu realmente passei a admirar os trabalhos de Lichtenstein. Achei-os brilhantes. [...] Pe-gar suas ideias e us-las da mesma maneira que ele usou, significa, de alguma maneira, prestar uma homenagem a ele. Se bem que no final eu me aproprio delas de qualquer modo, eu as baguno e as torno minhas (Bell apud McLean, 2010, p. 41, trad. minha).

    Do tnico ao nacional

    Alm das releituras e dilogos artsticos, ob-serva-se, na Austrlia, a diluio do repertrio vi-sual indgena na representao da nao. No Par-lamento, em Camberra, a maior parte do acervo composta por pinturas aborgines sobre madeira ou sobre tela. Por todo o pas, as lojas de souvenirs vendem canetas, canecas, sandlias, lenos e afins com motivos aborgines, alguns dos quais produ-zidos na China e no Vietn. Tambm as lixeiras de Alice Springs so cobertas pela iconografia dos povos do deserto.

    Da mesma maneira, as aeronaves da compa-nhia area Qantas so decoradas com elementos aborgines. A fuselagem externa dos avies Wu-nala Dreaming (1994), Nalanji Dreaming (1995) e Yananyi Dreaming (2002) foi enco-mendada empresa de design aborgine Balarin-ji, de Adelaide, que fundiu tradies visuais das regies norte e central da Austrlia.19 Os desenhos originais foram primeiro digitalizados, em seguida ampliados cem vezes e depois impressos sobre as aeronaves com a ajuda de mscaras de estncil. A estreia das aeronaves com esse padro foi festeja-da com uma cerimnia Inma, protagonizada por cantores e danarinos da comunidade da artista Rene Kulitja, uma das envolvidas.20

    Vale destacar tambm que dez mulheres as-sociadas ao Titjikala Arts Centre, no Deserto de Simpson, foram convidadas a decorar cones in-contestes do capitalismo: caixas eletrnicos do National Australia Bank. Receberam U$ 3 500,00 cada uma, para criar desenhos que combinam ico-nografia tradicional com inovaes formais. As mquinas decoradas foram espalhadas por Sydney, Melbourne, Brisbane, Adelaide, Alice Springs e Perth. A encomenda resultou de uma relao an-terior com a comunidade das artistas, onde foi fil-mado um comercial do banco (Robinson, 2008). interessante notar a diferena entre aquela situ-ao de 1991, na qual uma escultura feita por um artista aborgine foi incorporada pelo governo em uma nota de dez dlares, independentemente de sua vontade, e essa encomenda recente para os dis-tribuidores de notas do banco federal, pautada na livre escolha e na remunerao das pintoras.

    De acordo com Fred Myers (1991), o reco-nhecimento do valor artstico dos aborgines acar-retou a entrada tardia do elemento aborgine na construo da identidade nacional australiana. Antes disso, os aborgines costumavam ser as-sociados pobreza, a costumes bizarros e a uma

    Figura 15. Richard Bell, Now my black people kill!, 2007. Acrlico sobre tela.

    Fonte: Foto de divulgao da exposio Sunshine State Smart State, no Campbelltown Arts Centre, 2007.

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    aparncia perturbadora. O reconhecimento das culturas aborgines como dignas de proezas est-ticas e capazes de gerar dividendos econmicos fez com que sua iconografia passasse a compor o ima-ginrio da nao, os roteiros tursticos do pas e o discurso ante outros pases.

    Na poca das controversas solenidades dedica-das ao bicentenrio da colonizao da Austrlia,21 contudo, alguns fatos permitiram entrever com clareza as relaes de poder implicadas na incorpo-rao das culturas aborgines ao discurso nacional. Um dos cones visuais do bicentenrio foi o mo-saico concebido por Michael Jagamara Nelson, da etnia Warlpiri, que vive no Deserto Central. Ins-talado na frente do Novo Parlamento, na capital Camberra, o desenho enorme e colorido indicava, segundo o artista, ser aquele um local de reunies importantes. No entanto, em 1993, frustrado com certos retrocessos perpetrados pelo Partido Liberal, Nelson voltou ao local e retirou a parte central do mosaico, em que linhas curvas concntricas alu-diam ao dilogo e troca.

    Figura 16a. Chinelos com estampa da iconografia do deserto, vendidas em loja para turistas em Melbourne.

    Foto de Ilana Goldstein.

    Figura 16. Boeing 747-338 VH-EBU Nalanji Dreaming, da Qantas.

    Fonte: Foto de divulgao da companhia rea.

    Figura 16b. Lixeira com estampa aborgine em Alice Springs.

    Fonte: Foto de Ilana Goldstein.

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    No se pode tambm deixar de lembrar a ce-rimnia de abertura das Olimpadas de Sydney, quando espritos ancestrais dos aborgines deram as boas vindas aos visitantes. Coreografados por Ste-phen Page, 1 150 indgenas danaram e cantaram na festa. No centro deles, com o corpo coberto de barro branco, estava o cantor e pintor Djakapurra Munyarryan, que fez as vezes de mestre de cerim-nias. Os Koorie da regio de Sydney fizeram uma defumao para limpar a rea de energias ruins e, em seguida, entrou um boneco gigante de Wand-jina, o esprito da criao que aparece nas pintu-ras rupestres da regio de Kimberley (Figuras 19a e 19b). A mensagem era clara: a Austrlia apresen-tava-se como um pas multicultural em processo de reconciliao com a populao aborgine. Na imprensa, houve acusaes de que o espetculo foi fcil demais e brega. Os ativistas aborgines, no entanto, aprovaram (National Film and Sound Ar-chive, 2000).

    A arte aborgine, na Austrlia, permite preen-cher um vazio identitrio que incomodou a intelli-gentsia at a primeira metade do sculo XX. No toa que o governo investe intensamente no fomento s artes indgenas. O aborgine genrico,

    idealizado a partir dos anos de 1950, ofereceu uma espcie de redeno aos responsveis por uma colo-nizao extremamente violenta. Sua espiritualidade desenvolvida, seu pacifismo e sua sofisticao est-tica teriam ajudado a redimir um passado nacional nada glorioso (Lattas, 1991; McLean, 2010).

    Consideraes finais

    A arte indgena parece funcionar, na Austrlia, como uma interface privilegiada entre vrios uni-versos culturais, na qual ocorrem dilogos, conflitos e negociaes. De um lado, o repertrio visual abo-rgine serve como marcador identitrio em face de outros grupos indgenas e da sociedade envolvente; de outro, alimenta o interesse esttico e econmico de museus, marchands e colecionadores; representa, tambm, uma fonte de renda nada desprezvel para os prprios artistas aborgines; constitui, ainda, matria-prima frtil para a construo da identida-de nacional australiana que, aps a Segunda Guerra Mundial, entrou numa espcie de vcuo deixado pela desiluso com o Reino Unido e passou a bus-car uma maior independncia poltica em relao ex-metrpole.

    Todos os dilogos, releituras e apropriaes artsticas apresentados nas pginas anteriores ilus-tram, de forma eloquente, o argumento de Alfred Gell de que a arte funciona dentro de um campo de aes e reaes em srie, ligadas por nexos causais e agenciamentos. Nessa concepo, a ao do pri-meiro agente fundamental, mas no a nica. Se-gundo Gell, a arte no est nos objetos, mas reside naquilo que acontece com e por causa dos objetos. A obra de arte uma entidade fsica que faz a me-diao entre dois seres, criando uma relao social entre eles que, por sua vez, fornece um canal para outras relaes e influncias sociais (Gell, 1995, p. 52, trad. minha). Assim, a arte mais um processo do que um produto. E um processo aberto a inter-venes de diversas naturezas.

    Na Austrlia, observa-se claramente a srie de aes e reaes que leva ao produto final arte abo-rgine. A ideia para uma determinada tela pode surgir em um ritual ou em uma conversa em fa-mlia. A compreenso do Dreaming que ser pin-

    Figura 18. Mosaico de Michael Nelson, de 1988, na frente do Novo Parlamento, em Camberra.

    Fonte: Foto de Ilana Goldstein, 2010.

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    tado depende de ensinamentos dos mais velhos. A execuo poder ser feita a quatro mos, contando, no final, com retoques de colaboradores da coope-rativa. O registro da histria mtica pintada ser feito por terceiros, no computador, bem como sua posterior interpretao em catlogos de leiles e le-gendas de museus. Em cada elo da cadeia, somam--se intencionalidades e agenciamentos diversos, tor-nando fluidos os contornos da autoria.

    O historiador Robert Darnton, ainda que ana-lisando um contexto bem distinto a literatura do Ancien Regime, na Frana sintetizou de forma clara a dificuldade em precisar quem eram os ar-tistas, em sua pesquisa: afinal, quem o escritor? Algum que escreveu um livro? Algum que depen-de da escrita para viver? Algum que reivindica tal ttulo? Ou algum a quem o ttulo foi concedido pela posteridade? (Darnton, 1989, p. 173). E, na histria da pintura europeia, at o sculo XVII, no eram incomuns os atelis com produo coletiva. O cannico pintor Rembrandt van Rijn [1606-1669], por exemplo, contava com a ajuda de v-rios assistentes em seu ateli, na Holanda, exigindo que pintassem rigorosamente ao seu estilo (Alpers, 2010). Uma equipe de especialistas do Rembrandt Research Project vem se dedicando, h quase cinco

    dcadas, anlise minuciosa dos quadros do pintor, propondo a desatribuio de autoria em mais de cem casos. Trata-se, portanto, de uma questo anti-ga e no resolvida, que ultrapassa largamente a dis-cusso da arte indgena australiana contempornea.

    No mbito da sociologia da arte, um dos autores que problematizam a autoria individual Howard Becker, para quem o mundo da arte construdo pelos prprios participantes, em negociaes perma-nentes entre produtores, distribuidores e fruidores. Desse modo, fica difcil delimitar as atividades pro-priamente artsticas e as no artsticas: Uma anlise sociolgica de qualquer arte [...] investiga a diviso do trabalho (que nunca natural, mas resulta de uma definio consensual da situao): concepo da ideia, dos artefatos fsicos necessrios, criao de uma linguagem convencional de expresso, treina-mento do pessoal e plateias artsticas etc. (Becker, 1977, p. 206). Portanto, em muitos casos, a defini-o da autoria artstica resulta de mera conveno.

    Mesmo assim, o sistema de arte euro-america-no no abre mo das noes de artista e de autoria individual. A sociloga Nathalie Heinich (1998), comparando centenas de peas que so classificadas como arte, chegou a um ncleo duro de trs carac-tersticas extraestticas presentes em todas as situ-

    Figura 19a. Abertura das Olimpadas de 2000, em Sydney. Imagem capturada da transmisso televisionada do evento.

    Fonte: Acervo do Australian Film and Sound Archive.

    Figura 19b. Pintura rupestre com o ancestral Wandjina, da regio de Kimberley.

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    aes em que consenso se tratar de uma obra de arte contempornea: 1) a predominncia da funo esttica sobre as demais (como funcionalidade ou rentabilidade); 2) a originalidade (mesmo que se fa-am releituras da tradio, elas precisam ser nicas, inusitadas); 3) a assinatura de um artista reconheci-do pelas instncias de legitimao (crticos, galeris-tas, outros artistas etc.). A terceira e ltima caracte-rstica, diretamente relacionada com a atribuio de autoria individual, seria a mais importante.

    Ora, quando qualquer forma de arte indgena passa a circular no sistema internacional de arte, inevitavelmente ocorrem tenses e mal-entendi-dos. A World Intellectual Property Organisation (Wipo) reconhece que as convenes e os tratados internacionais de propriedade intelectual, bem como a legislao nacional, na maioria dos pases, no contemplam as especificidades das sociedades e das prticas culturais tradicionais (Unesco e Wipo, 2003). Em primeiro lugar, as leis que tratam de direitos autorais, via de regra, cobrem apenas cria-es originais de autores individuais o que nem sempre se aplica a contextos tradicionais, nos quais no apenas a personalidade do autor que se refle-te na criao, mas tambm elementos compartilha-dos por toda a comunidade. Em segundo lugar, a concepo de propriedade dos legisladores destoa das formas indgenas de atribuio de responsabi-lidade pelo conhecimento e de autorizao para o uso de saberes tradicionais. Ademais, obras deriva-tivas, que utilizam determinada tradio cultural, seja no estilo ou na tcnica, no so consideradas plgio dentro do sistema jurdico euro-americano, ainda que possam ser experienciadas pelas socieda-des detentoras daquele patrimnio cultural como ofensa ou desrespeito. Um quarto problema que os itens de domnio pblico como danas, m-sicas rituais, pintura corporal no so protegi-dos pela legislao. Em suma, disputas em torno da autoria de obras de arte indgena, na Austrlia, so apenas parte de um problema mais amplo e de difcil resoluo.

    Em relao ideia de autenticidade, as estra-tgias surgidas no contexto australiano incluem a criao de uma etiqueta para souvenirs tursticos e a emisso de certificados de autenticidade no mo-mento da compra de obras de arte. Mas elas no

    resolvem de todo o problema, pois, novamente, au-tenticidade muito mais um termo necessrio ao funcionamento do sistema de artes do que uma ca-tegoria que efetivamente corresponda a um conjun-to de obras ou artistas. O sistema de arte aborgine australiano um terreno frtil para se observarem maneiras de acionar e negociar a ideia de autenti-cidade, revelando que, ao mesmo tempo que no existe autenticidade cultural, dificilmente o merca-do abrir mo da iluso de autenticidade. Os pr-prios aborgines parecem saber disso na Austrlia. Nada como recuperar uma experincia ilustrativa que vivenciei nos arredores de Melbourne.

    A Mia Mia Gallery, administrada por dois pri-mos aborgines, um negro e um branco, oferece, aos sbados, um concerto de didgeridoo. s 15 horas, Gnarnayarrahe Waitairie o primo negro pega o instrumento de sopro e explica se tratar de um tronco oco comido por formigas, que no pode ser tocado por mulheres porque lhes faria mal sade. Esse instrumento de sopro era originalmente pro-duzido e usado apenas pelos Yolngu, que vivem em Arnhem Land. Porm, tornou-se um cone do abo-rgine genrico. Os aborgines que vendem CDs e pedem dinheiro nas ruas de Sydney tocam didge-ridoos; nas apresentaes para turistas, sempre se toca o didgeridoo. Seminu e com a pele pintada de barro, Waitairie tocou para uma dzia de pessoas presentes diversos sons de animais, mostrando o som do canguru, do crocodilo e de outros bichos. (Ouvi depois, de Wukun, que isso de ficar imitan-do animais com o ydaki que o verdadeiro nome desse objeto besteira, nunca fizemos isso.)

    interessante notar a maneira de o primo branco lidar com a questo da autenticidade. Em vez de problematizar a cristalizao de uma iden-tidade aborgine associada aparncia e vida em regies remotas, e discutir temticas polticas e his-tricas relacionadas com a situao de contato, a vida nas cidades ou os direitos humanos dos abo-rgines, opta por aprender nos livros sobre os mo-dos tradicionais de vida, a fim de encen-los, com a ajuda de um primo mais autntico que ele, para os visitantes/consumidores.

    Os souvenirs tnicos para turistas despertam uma reflexo anloga sobre a autenticidade: inver-te-se a equao posta por Walter Benjamin, dcadas

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    atrs. Se, para Benjamin, a obra autntica era aque-la que possua unicidade e aura uma figura sin-gular, composta de elementos espaciais e temporais: a apario nica de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja (Benjamin, 1996, pp. 170-171) , nas lojas de souvenirs, na mdia e na decora-o de espaos tursticos a repetio que convence de que algo realmente tpico. A redundncia das imagens e dos objetos faz com que paream con-vincentes e verdadeiros. Cada pea deve aderir ao modelo, criar a sensao de fidelidade: o padro de autenticidade da arte tnica produzida em srie a semelhana com o conjunto e no, a originalidade. Mostra-se algo com aparncia familiar, fcil de re-conhecer, pois o desvio do esteretipo poderia ser considerado inautntico (Steiner, 1999).

    O sistema de arte precisa sempre (re)construir a noo de autenticidade, por se tratar de um de seus principais mecanismos de agregao de valor. No que concerne s artes indgenas, ora essa au-tenticidade foi definida pela suposio de pureza e isolamento cultural; ora pela finalidade do objeto (o consumo do prprio grupo); ora pela autoria de um indivduo reconhecido como um legtimo indgena. Porm, como no existem grupos tni-cos vivendo de forma isolada, j que identidades

    culturais so resultado de um processo dinmico e no um dado essencial, e uma vez que as sociedades aprendem tcnicas e motivos umas com as outras, difcil separar o que autntico do que no , no complexo trnsito internacional de objetos.

    Assim, a autenticidade revela-se mais um termo nativo do sistema internacional de arte, do que uma categoria analtica. Da mesma forma, a partir dos diversos exemplos elencados ao longo do texto e da reviso bibliogrfica, conclui-se que a atribuio de autoria artstica nem sempre corresponde a uma realidade emprica precisa: resulta de consensos e ne-gociaes, estabelecidos em cada contexto.

    Notas

    1 A conversa com Wukun Wanambi ocorreu no dia 15 de maro de 2010, em Camberra. Ele tinha ido passar algumas semanas no campus da Australian National University, a fim de encontrar fotos, u-dios e vdeos para incrementar o acervo do Buku Larrnggay-Mulka, arquivo audiovisual yolngu que ele dirige, em Yirrkala.

    2 Viajei Austrlia graas a uma bolsa de doutorado--sanduche concedida pelo CNPq. Os oito museus em que estive foram The Ian Potter Centre for Contem-

    Figura 20. Gnarnayarrahe Waitairie tocando um idake na Galeria Mia Mia, nos arredores de Melbourne, fevereiro de 2010.

    Fonte: Foto de Ilana Goldstein.

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    porary Art e National Gallery of Victoria (Melbourne); Drill Hall Gallery, National Museum of Australia e National Gallery of Australia (Camberra); Art Gallery of New South Wales e Australian Museum (Sydney); Museum and Art Gallery of the Northern Territory (Darwin). As treze galerias comerciais visitadas foram: Australia Dreaming Art e Alcaston Gallery (Melbour-ne); Coo-ee Gallery, Hoggart Gallery, Utopia Art Gal-lery, Aboriginal Art Galleries e Aboriginal Art Specia-lists (Sydney); Aboriginal Art and Gifts (Leura); Kick Arts e Tanks Arts Centre (Cairns); Mbantua Fine Art Gallery and Cultural Museum, Galleria Gondwana e Boomerang Art (Alice Springs). Os seis centros de arte geridos por indgenas onde estive so: Mia Mia Gallery (Templestow); Koorie Heritage Center (Mel-bourne); Buku-Larrngay Mulka Centre (Yirrkala); Warlukurlangu Artists Aboriginal Corporation (Yuen-dumu); Tjapukai Aboriginal Cultural Park (Cairns); e Papunya Tula Gallery (Alice Springs).

    3 Convm, aqui, fazer uma distino entre os termos indgena e aborgine, no contexto australiano. Fala-se em Aboriginal people para se referir aos povos nativos demograficamente majoritrios, que vivem por todo o continente e que, apesar das diferenas lingusticas, compartilham um complexo cosmolgi-co comum, chamado de Dreaming, e costumam ter a pele negra. Utiliza-se o termo indigenous people como uma categoria mais ampla, compreendendo, alm dos povos aborgines, tambm os Torres Strait Islanders, pequenos grupos que vivem exclusivamente em ilhas no nordeste na Austrlia, apresentando proximidade cultural e semelhana fsica com povos da Melansia.

    4 Uma abordagem econmica do mercado de arte abo-rgine da Austrlia encontra-se em Altman (2005); a gnese da pintura acrlica no Deserto Central, nos anos de 1970, abordada por Bardon e Bardon (2004), Myers (2002) e Perkins e Fink (2000); j Morphy (2008) analisa de que maneira os Yolngu tm feito um uso poltico de sua arte; Caruana (2003), por sua vez, oferece um panorama dos estilos e subestilos artsticos, em uma publicao que serve quase como um guia para o comprador.

    5 As datas que aparecem entre colchetes aps o nome dos artistas referem-se ao ano em que nasceram e morre-ram. Quando se trata de um artista vivo, consta apenas uma data dentro dos colchetes. A data de nascimen-to, muitas vezes, apenas aproximada, uma vez que os mais velhos no possuem certido de nascimento.

    6 Namatjira recebeu a cidadania australiana em 1957. Ele havia ganho dinheiro com a venda de suas aqua-relas e se viu impossibilitado de comprar uma casa,

    por restrio legal. A opinio pblica comoveu-se e o governo decidiu conceder a cidadania ao pintor e a sua mulher, que passaram a poder votar, escolher seu local de domiclio e comprar bebidas alcolicas. Ao oferecer bebidas para amigos e parentes, Namatjira acabou sendo preso fornecer lcool a aborgines crime na Austrlia. Morreu logo aps ir para a priso.

    7 Chamo de artistas aborgines, aqui, aqueles indiv-duos que produzem peas destinadas contemplao em museus, galerias ou colees particulares, ou seja, aqueles que, direta ou indiretamente, j integram o sistema de artes australiano e/ou internacional e rea-lizam trabalhos em que as ideias de autoria, originali-dade e desinteresse aparente esto presentes (Heinich, 1998). Apoio-me, assim, na teoria institucional da arte, segundo a qual o que arte no apenas uma questo esttica: necessrio levar em conta como esta questo vai sendo respondida na interseo do que fa-zem os jornalistas e os crticos, os historiadores e os musegrafos, os marchands, os colecionadores e os especuladores (Canclini, 1997, p. 23). Certamente, tal utilizao restrita do termo artista poderia ser e vem sendo problematizada pela Antropologia (Gell, 2006; Morphy, 2008, entre outros). Porm, tal dis-cusso no caberia no mbito do presente artigo.

    8 Depoimentos retirados, respectivamente, de entrevis-tas realizadas com Beverly Knight, dona da Alcaston Gallery, em Melbourne, no dia 6 de fevereiro de 2010, e Adrian Newstead, proprietrio da Coo-ee Gallery, em Sydney, no dia 10 de fevereiro de 2010.

    9 Passei uma semana em Yuendumu, no Deserto Central, em abril de 2010, hospedada em um alojamento espe-cialmente construdo para voluntrios vindos do mundo todo. O centro de artes Warlukurlangu () coordenado por duas jovens latino-ame-ricanas, com formao em artes e administrao. Elas conseguiram, em poucos anos, ampliar as instalaes da entidade e aquecer muito seu faturamento. O centro de artes funciona como uma associao cultural e poltica, com diretoria composta por aborgines de vrias etnias, residentes num raio de 300 km do povoado. Observei que, alm de comprar e revender pinturas, o centro de artes de Yuendumu empresta dinheiro aos artistas e cons-tri benfeitorias para o povoado, como uma piscina e um centro de hemodilise. Do ponto de vista artstico, as coordenadoras do centro de artes Warlukurlangu, em Yuendumu, admitem no contar com artistas especial-mente talentosos, por isso optaram por produzir pintu-ras acessveis a amadores e turistas. A maioria das telas tem tamanho pequeno ou mdio e os preos comeam em U$ 70,00. O estilo regional marcado pela combi-

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    nao de cores fortes e contrastantes, obtidas por meio de incontveis misturas de tinta acrlica.

    10 A teoria do sistema da arte contempornea foi for-mulada por Raymonde Moulin (1992), com base na ideia de interdependncia entre o campo propriamen-te artstico povoado por museus, atelis individuais e associaes de artistas e o mercado de arte cons-titudo por galerias, leiles e colecionadores particula-res. Moulin aponta tambm a importncia da circula-o e da visibilidade de obras e artistas dentro de teias internacionais impulsionada, vale lembrar, pelas novas tecnologias de informao (Cauquelin, 2005). Ademais, o sistema de arte, cada vez mais, incorpora profissionais da comunicao e pesquisadores de uni-versidades que, por deterem a produo e a difuso da informao, se tornam fundamentais na validao da arte contempornea (Coli, 1995).

    11 Entrevista com Adrien Newstead, realizada em Sydney, em 10/2/2010.

    12 Em relao ao critrio de etnicidade vigente no Brasil, existe uma diferena: a necessidade, na Austrlia, de uma origem biolgica atestada ou presumida que vincule a pessoa a determinado grupo indgena tradicional.

    13 Entre os pintores fauvistas, havia colecionadores de arte no ocidental: Matisse, Vlaminck e Derrain adquiri-ram, na mesma poca que Picasso, peas da frica e da Oceania. Na pintura dos trs, a influncia das ms-caras rituais se reflete na escolha de olhos em formato de losango e rostos estilizados. Tambm no grupo dos surrealistas, houve forte interesse pelo primitivo. Ja-mes Clifford (1998) descreve, de maneira entrelaada, o surgimento do Institut dEthnologie, por iniciativa de Marcel Mauss, Lvy-Bruhl e Paul Rivet, e a emergncia do movimento surrealista, encabeado por Andr Bre-ton, Michel Leris e Raymond Queneau. Segundo Cli-fford, nesse incio do sculo XX, a frica e, em menor grau, tambm a Oceania e a Amrica representava um reservatrio de novas formas e valores, bem como a possibilidade de uma crtica cultural subversiva e da relativizao da sociedade moderna ocidental.

    14 Sherry Errington relata, por exemplo, um caso curio-so em torno dos tau tau da Indonsia, esculturas usa-das pelos Sulawesi em cerimnias morturias e depois colocadas no alto de falsias e colinas. Aps algumas dessas esttuas terem sido roubadas (foram vistas em uma galeria de Nova York), e sendo a regio um destino turstico, o governo indonsio e a populao local decidiram substitu-las por peas grandes e no-vas, confeccionadas apenas para este fim. Em 1980, um turista alemo, revoltado ao descobrir que havia

    viajado to longe para ver rplicas no autnticas, processou o Ministrio do Turismo da Indonsia (Er-rington, 1998, p. 133).

    15 No se sabe ao certo quando foram feitas as primei-ras pinturas sobre casca de rvore (bark paintings) em Arnhem Land, pois o material perecvel. Atribui-se seu surgimento encomenda do antroplogo Bal-dwin Spencer, que esteve vrias vezes no norte da Austrlia, entre 1911 e 1921, e pediu aos Kakadu que pintassem sobre cascas de rvores as mesmas imagens que se encontravam estampadas nas rochas da regio. Spencer levou consigo 962 exemplares dessas pintu-ras, que hoje pertencem ao Museu de Melbourne. A bark painting bastante praticada nos dias de hoje, sobretudo em Arnhem Land, no Territrio Norte. Os pincis utilizados so feitos de fios de cabelo humano e a superfcie sempre curva, lembrando o tronco dos eucaliptos.

    16 Corali Cardoso conta com algum reconhecimento, a ponto de ter sido convidada para decorar uma das va-cas que compuseram a Cow Parade de Porto Alegre, em 2010, um dos maiores eventos de arte pblica do mundo, onde cada artista decora uma rplica de vaca em tamanho natural. Em seu currculo, constam ex-posies coletivas no Masp, na Tailndia e na China.

    17 Trecho retirado de . Acessado em 22/4/2011.

    18 A teoria do sistema da arte contempornea foi formulada por Raymonde Moulin (1992), com base na ideia de in-terdependncia entre o campo propriamente artstico povoado por museus, atelis individuais e associaes de artistas e o mercado de arte constitudo por gale-rias, leiles e colecionadores particulares. Moulin aponta tambm a importncia da circulao e da visibilidade de obras e artistas dentro de teias internacionais impul-sionada, vale lembrar, pelas novas tecnologias de infor-mao (Cauquelin, 2005). Ademais, o sistema de arte, cada vez mais, incorpora profissionais da comunicao e pesquisadores de universidades que, por deterem a pro-duo e a difuso da informao, se tornam fundamen-tais na validao da arte contempornea (Coli, 1995).

    19 Tambm a estampa usada em camisas, vestidos, lenos e gravatas do uniforme dos funcionrios da Qantas utiliza o padro aborgine Wirriyarra, estilizado pelo designer branco Peter Morrissey, de Sidney. A estampa aparece em duas verses: cinza e ocre para os comiss-rios de bordo e verde para a equipe de solo. Embala-gens de alimentos seguem a mesma identidade visual.

    20 Informaes obtidas nos sites das empresas Boeing e Qanta. Disponvel em

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    news/releases/2002/photorelease/q1/pr_020214g.html> e . Acessado em 3/8/2009.

    21 A colonizao da Austrlia teve incio em 1788, me-nos de duas dcadas aps o capito Cook ter passado por ali. Inicialmente, estabeleceu-se no novo conti-nente uma colnia penal britnica. Foram muitos e violentos os massacres de povos nativos ao longo do processo de expanso da colnia e, numa tentativa de reconciliao, a comemorao dos duzentos anos da Austrlia abarcou uma srie de reflexes e pronun-ciamentos, no sentido de repensar a nacionalidade de forma mais inclusiva. Esse foi um momento po-liticamente tenso. No dia 26 de janeiro de 1988, por exemplo, ao mesmo tempo em que o prncipe Char-les participava de uma solenidade em Sydney, povos aborgines de toda a Austrlia realizavam uma marcha silenciosa como forma de se opor ao modelo vigente de Estado-nao (Smith, 2001, p. 635).

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  • RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMS 229

    PATERNIT, AUTHENTICIT ET APPROPRIATION: RFLEXIONS PARTIR DE LA PEINTURE ABORIGNE AUSTRALIENNE

    Ilana Seltzer Goldstein

    Mots-cls: Anthropologie de lart; Pein-ture aborigne; Authenticit; Droit de paternit.

    Les peuples aborignes ne correspondent qu 2,5% de la population totale dAus-tralie, mais la proportion dartistes est beaucoup plus grande parmi les abo-rignes que les blancs. Cet article pro-pose une rflexion sur des explications ce phnomne, et discute la rcente insertion de lart aborigne dAustralie dans les muses, les salles de ventes aux enchres et les galeries commerciales, ce qui suscite une srie de questions en ce qui concerne la dtermination de la paternit et de lauthenticit des uvres, deux catgories qui, bien que centrales pour le march et le circuit des expo-sitions, sont relativement arbitraires et ngociables. Par ailleurs, des dialogues commencent surgir entre des artistes blancs et les aborignes, ainsi que lap-propriation pas toujours autorise de liconographie traditionnelle par cer-taines entreprises et mme par le gouver-nement fdral, qui utilise le rpertoire visuel aborigne dans la construction de lidentit nationale australienne.

    AUTORIA, AUTENTICIDADE E APROPRIAO: REFLEXES A PARTIR DA PINTURA ABORGINE AUSTRALIANA

    Ilana Seltzer Goldstein

    Palavras-chave: Antropologia da arte; Pin-tura aborgine; Autenticidade; Autoria.

    Os povos indgenas correspondem a apenas 2,5% da populao da Austrlia, mas, surpreendentemente, a proporo de artistas