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Charlles Nunes HERÓIS ANÔNIMOS Tem sempre um perto de você 1ª Edição Rio de Janeiro Edição do autor 2010

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Charlles Nunes

HERÓIS ANÔNIMOS

Tem sempre um perto de você

1ª Edição

Rio de Janeiro

Edição do autor

2010

Heróis Anônimos

www.HeroisAnonimos.com Tem sempre um perto de você.

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Copyright ©2010 by Charlles Nunes Arte da capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Charlles Nunes Imagem da capa: John Kounadeas (istockphoto.com) Gravação em áudio: Charlles Nunes Este livro pode ser encontrado no seguinte endereço: www.clubedeautores.com Dicas e recursos gratuitos sobre aprendizagem de idiomas: www.aprenda-ingles-agora.com www.learn-portuguese-now.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP):

Ao adquirir seu exemplar, preencha o formulário de contato no site www.heroisanonimos.com e receba por e-mail os arquivos

em MP3.

Nunes, Charlles Heróis Anônimos / Charlles Nunes. - Rio de Janeiro:

edição do autor, 2010.

Inclui índice remissivo.

Charlles Nunes

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CIDADÃO

Lúcio Barbosa

Tá vendo aquele edifício moço? Ajudei a levantar Foi um tempo de aflição Eram quatro condução Duas prá ir, duas prá voltar Hoje depois dele pronto Olho prá cima e fico tonto Mas me vem um cidadão E me diz desconfiado "Tu tá aí admirado? Ou tá querendo roubar?" Meu domingo tá perdido Vou prá casa entristecido Dá vontade de beber E prá aumentar meu tédio Eu nem posso olhar pro prédio Que eu ajudei a fazer...

Tá vendo aquele colégio moço? Eu também trabalhei lá Lá eu quase me arrebento Fiz a massa, pus cimento Ajudei a rebocar Minha filha inocente Vem prá mim toda contente "Pai vou me matricular" Mas me diz um cidadão: "Criança de pé no chão Aqui não pode estudar"

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Essa dor doeu mais forte Por que é que eu deixei o norte Eu me pus a me dizer Lá a seca castigava Mas o pouco que eu plantava Tinha direito a comer...

Tá vendo aquela igreja moço? Onde o padre diz amém Pus o sino e o badalo Enchi minha mão de calo Lá eu trabalhei também Lá foi que valeu a pena Tem quermesse, tem novena E o padre me deixa entrar Foi lá que Cristo me disse: "Rapaz deixe de tolice Não se deixe amedrontar Fui eu quem criou a terra Enchi o rio, fiz a serra Não deixei nada faltar Hoje o homem criou asa E na maioria das casas Eu também não posso entrar Fui eu quem criou a terra Enchi o rio, fiz a serra Não deixei nada faltar Hoje o homem criou asas E na maioria das casas Eu também não posso entrar"

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ÍNDICE

CIDADÃO .................................................................................3

PREFÁCIO ...............................................................................6

APRESENTAÇÃO ....................................................................8

BARBEIRO – Fazendo a Cabeça do Povo .............................10

CAMELÔ – De Temporário a Permanente..............................14

CHURRASQUEIRO – Maratonista por Profissão....................18

COBRADOR – O Regente do Coletivo ......Erro! Indicador não definido.

COVEIRO – O Agente Invisível . Erro! Indicador não definido.

DOMÉSTICA – Suor a Qualquer Preço .....Erro! Indicador não definido.

DONA-DE-CASA – Um Anjo Sem Paraíso Erro! Indicador não definido.

LIXEIRO – O Menestrel da Avenida...........Erro! Indicador não definido.

MERENDEIRA – Uma Lição de Humanidade ... Erro! Indicador não definido.

MOTOBOY – Uma Vida em Suas Mãos ....Erro! Indicador não definido.

MOTORISTA – Quando Nem Tudo é Passageiro.............. Erro! Indicador não definido.

PADEIRO – Excelência por Tradição.........Erro! Indicador não definido.

PARTEIRA – A Guardiã da Vida Erro! Indicador não definido.

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PEDREIRO – O Escultor de Sonhos..........Erro! Indicador não definido.

PINTOR – Um Poliglota no País das CoresErro! Indicador não definido.

O SEGREDO............................. Erro! Indicador não definido.

CONHEÇA O AUTOR ............................................................25

PREFÁCIO

"Heróis Anônimos" é uma divertida homenagem aos anônimos que tornam nossa vida possível, e também um excelente texto para novos leitores que começam a trilhar nossa língua portuguesa.

Quando comecei a ler, fiquei intrigado, pois todos os personagens me eram extremamente familiares. Não demorou e, ao invés de ler apenas as linhas originais, comecei a inserir nelas minhas próprias lembranças de homens e mulheres notáveis, mas nem sempre notados.

O nome deles? Não sei. Geralmente nós os chamamos simplesmente de "Barbeiro", "Padeiro" ou "Camelô". Mas não se iluda pensando que pessoas com nomes genéricos assim não sejam importantes. Elas são, e muito. A diferença entre elas e as celebridades é que estas morrem, aquelas não.

Você também já viu esses "Heróis Anônimos" por aí, pois não dá para imaginar a vida sem eles. Talvez você os tenha visto pelas costas, como acontece com o "Coveiro"

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de camisa suada, ou só guarde uma vaga lembrança da mão da "Merendeira", que lhe estendia a merenda na cantina da escola.

Pode ser que sua memória olfativa ainda consiga resgatar o cheiro do "Pintor", ou seus olhos tenham gravado o semblante da "Parteira", emoldurado entre seus dois joelhos. Alguns desses heróis você só encontra de vez em quando; outros, você vê todos os dias. Como o "Lixeiro", que deve passar daqui a pouco em sua janela.

"Heróis Anônimos" é um livro para ser lido de uma tirada só ou aos pouquinhos, saboreando cada pedacinho. Também serve para ser largado aqui ou ali, ao alcance da mão. Afinal, quando o assunto é "Heróis Anônimos", tem sempre um perto de você.

Mario Persona

Escritor, palestrante e consultor de comunicação e marketing

Web site: www.mariopersona.com.br

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APRESENTAÇÃO

Caras leitoras e caros leitores,

É com grande satisfação que apresento Heróis Anônimos – um livro dedicado a essa brava gente brasileira que toca o país adiante...

A idéia de escrevê-lo surgiu no dia 10 de julho de 2009, quando ouvi pela Voz do Brasil o anúncio do III Concurso Literatura para Todos. O Ministério da Educação e Cultura propunha a criação de um acervo literário para os jovens, adultos e idosos recém alfabetizados, os assim chamados ‘neoleitores’.

Como não conhecia o termo, decidi pesquisar mais. Percebi que, antes de me aventurar a escrever para eles, precisava aprender sobre eles e com eles...

Logo pela manhã, já tinha o livro todo esboçado na cabeça.

Nos dias que se seguiram, conheci verdadeiros heróis. A alguns deles, homenageio neste pequeno trabalho. A

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outros, que tanto se empenharam em desvendar o tema da ‘invisibilidade pública’ em nossa sociedade, meus sinceros agradecimentos.

O processo de escrita levou dez dias – justamente o prazo para a entrega dos originais. A cada texto acabado, eu ligava para o meu amigo Valdoir – lá de Volta Redonda, RJ – que ouvia em primeira mão tudo o que você está prestes a ler.

Ele me ouviu debaixo de chuva, de madrugada, e até durante um funeral! Como bem diz o ditado: ‘amigo é pra essas coisas’...

Agora que o livro está saindo do forno, o negócio é diferente. Merecidamente, ele vai receber o primeiro exemplar, e finalmente poderá escolher a hora pra ler!

Espero que essa leitura nos aproxime – caro leitor. Se nossa amizade se firmar de verdade, no próximo livro já posso dar uma folga ao meu amigo Valdoir...

A propósito, qual é mesmo o número do seu telefone? :-)

O autor.

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BARBEIRO – Fazendo a Cabeça do Povo

“Se vier o tempo em que não pudermos rir de nós mesmos, será uma época muito triste.” ~ G. B. Hinckley

e existe um profissional que tem um negócio chamado de ‘público cativo’, é o nosso amigo barbeiro. Atencioso, bom de papo, com um pitaco

pronto para a política ou futebol, vai conquistando sua clientela...

Já vi gente trocar de advogado, médico, obstetra, pedreiro. Mas deixar de freqüentar um bom barbeiro, é prova de insanidade. Ao menos que ele viaje, se aposente, ou fique doente.

Tem barbeiro que curte tanto a profissão, que vão se passando os anos e ele se esquece até de falecer! Eu conheci um assim... Aliás, foram dois, e um era pai do outro. Conto já...

SS

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Quando pequenos, meu pai nos levava – meu irmão e eu – ao seu Cleosbaldo. Nunca entendi porque uma mãe resolve chamar um filho de ‘Cleosbaldo’ – deve ter tido uma gravidez complicada ou um parto difícil pra burro!

Era só a gente sentar na cadeira, que ele vinha com a mesma pergunta: vai cortar como... Príncipe Danilo1? Meu pai explicava mais uma vez que era pra aparar aqui, abaixar ali, etc. Acabei ficando curioso, e perguntei sobre o tal príncipe...

Ele explicou que o corte era feito colocando uma cuia de coco na cabeça, e passando a máquina ao redor. O que sobrasse era o tal penteado. Pensei: coitado desse cara – deve ter morrido solteiro!

Mas o seu Cleosbaldo tinha uma arma secreta. Era sua terrível Máquina Zero. Naquela época, não era movida a eletricidade, mas funcionava mecanicamente. Ele começava a fazer o tlec-tlec na cabeça da gente e – de repente – dava aquela beliscada... Ai!

Aí ele vinha sempre com a mesma desculpa: “Tenho que mandar amolar essa máquina, tá beliscando um pouquinho...” Mas o ‘pouquinho’ dele, não havia cristão que agüentasse, e ele acabava voltando com o tlec-tlec da tesoura mesmo!

1 Danilo: príncipe pão-duro que lançou moda cortando o cabelo com uma cuia de coco enfiada na cabeça. ☺

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No final do corte, voltava ele com suas frases batidas: “Agora vai arrumar namorada, hein?!” Os adultos presentes riam, a gente torcia o bico e pulava da cadeira.

Se fosse por mim, só cortava cabelo em duas ocasiões: quando tivesse que tirar retrato ou estivesse ‘pingando’ de piolho!

Quando eu já estava mais crescido, seu Cleosbaldo teve que viajar. Indicaram-me a barbearia do pai dele. Se o filho já tinha mais de setenta anos, imagina o pai! E lá fui eu, atrás do verdadeiro Tesourassaurus Rex!

O homem foi bastante educado. Me atendeu em casa, e não citou o príncipe, as namoradas, nem me assustou com a terrível máquina zero. Paguei, saí, e nunca mais voltei por lá. (Seu Cleosbaldo também não tirou mais férias!) E se o Mr. Rex continuou cortando, também não sei. Afinal, ele já havia cruzado o Cabo da Boa Esperança fazia tempo...

Tem também a única vez que cortei com um barbeiro que tinha mau hálito. Acho que se ele fornecesse uma máscara ao cliente, e desse uma boa baforada na cabeça, tingia os cabelos de uma cacetada só!

Poderia até ficar famoso com sua técnica natural. Se o cliente não pudesse escolher a cor, ao menos escolheria o sabor. Imagine o bafo-de-onça perguntando: E aí, vamos tingir de cebolinha, mortadela ou salaminho?

Mas nem só de aterrorizar meninos vivem as barbearias.

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Mas nem só de aterrorizar meninos vivem as barbearias...

Teve uma vez – lá no nordeste – que passei a cortar com um rapaz que era o rei do improviso. Como o preço cabia no meu bolso – ambos eram bastante reduzidos – virei freguês.

Pra molhar o cabelo, ele usava um recipiente de desodorante, cheio de água de torneira. A cadeira, ele buscava na cozinha mesmo. O espelho ficava na sala. E o corte era feito na varanda. Uma técnica de marketing2 perfeita: o cliente na varanda chamava a atenção dos clientes que passavam na rua e... Batata!

Certa ocasião, já vinha caindo a noitinha quando começamos a aventura. Era mais emocionante do que pular de pára-quedas, pois o final era sempre imprevisível.

De repente, acabou a energia. Com o corte já pela metade, colocamos a cadeira na calçada, pra aproveitar a luz da lua. Como o tempo estava nublado, a minha única alternativa foi segurar duas velas acesas – uma em cada mão – sob o olhar admirado de quem passava!

Hoje, quando conto, quase ninguém acredita. Nem sei se eu mesmo acreditaria, caso não houvesse vivido na

2 Marketing: propaganda; técnica capaz de fazer você comprar sem precisar e nem ao menos saber como vai pagar. ☺

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pele... Concordo. Às vezes, é bem mais fácil acreditar em príncipe.

CAMELÔ – De Temporário a Permanente

“A pedra no sapato de minha professora primária era meu amigo Louie. Ele sentava-se na sala de aula e mastigava a gravata até ficar molhada e desfiada. Ela vivia chamando a atenção dele...

Mais tarde, ele se tornou um homem de posses e eu aprendi a nunca subestimar o potencial de um menino para ter êxito na vida... Mesmo quando ele mastiga a gravata!” ~ Gordon B. Hinckley

ada geração tem suas manias. A minha, contava os centavos pra gastar no fliperama3. Como quase ninguém tinha videogame em casa, era lá que nos

3 Fliperama: principal ancestral do videogame. ☺

CC

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encontrávamos após a escola.

Minto. Eu estudava à noite. Mas dava uma passada rápida por ali após o trabalho. Ganhava a vida como camelô.

Fiquei contente quando o Leônidas me arrumou aquele emprego na barraca do Tuca. As vendas eram pra lá de incertas, mas a diversão era garantida!

Nossa barraca era de mochilas e meias, embaixo do viaduto. Ali, exercitávamos nossas malvadezas. Tinha um homem que vendia uns biscoitinhos amarelos, uma imitação barata de Cheetos. Aliás, bem barata, pois aquele sacão por um real cabia no mais modesto dos orçamentos.

Os biscoitos ficavam esperando o saco abrir pra começar a dar cria. Quanto mais se comia, mais biscoito aparecia! Ninguém dava conta de comer um saco inteiro daquele plastiquinho salgado. (Nem mesmo o Soró, que tinha a fama de esfomeado.)

Num dia de menor movimento, alguém deu a idéia de tocarmos fogo nele. (No biscoito, não no Soró.) E não é que o infeliz pegava fogo mesmo? Aquele isopor tingido de amarelo devia nos arrebentar por dentro!

Como vingança, passamos a tacar fogo nos biscoitos, um a um, e os jogávamos em frente à barraca do vendedor. As vendas dele chegaram quase à zero, e

Num dia em que eu estava

abonado, acabei me empolgando.

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ele acabou mudando de ponto. Embora fosse engraçado na época, às vezes bate aquela pontinha de remorso por ter sido um aprendiz de incendiário.

Almoçávamos numa Kombi branca. Um marmitex pra cada um, um guaraná pra cada dois. Naquele mini-refeitório improvisado, batíamos nosso papo de camelô. A quentinha era devorada sem trégua, sob um calor infernal. O suor escorria do queixo, indo salgar mais a marmita.

Algumas semanas de trabalho foram suficientes para que eu descobrisse o fliperama das redondezas. Passei a perambular por ali sempre que tinha uns trocados. Enquanto fazia o quilo, virava detetive e atirava pra todo lado no Elevator4. No próximo minuto, já era um piloto de Fórmula Um. Com direito a ar condicionado, pelo módico valor de vinte e cinco centavos a ficha!

Num dia em que estava abonado5, acabei me empolgando. Pulei fora da Kombi e fui me refrescar no... Você já sabe. De ficha em ficha, minhas moedas foram se esgotando. Os ponteiros do relógio me fitavam impacientes. Comecei à uma da tarde. Quando o dinheiro acabou, faltavam quinze para as quatro.

4 Elevator: ‘elevador’ em inglês; jogo de fliperama, bisavô materno do Play Station. ☺

5 Abonado: cheio da grana, com dinheiro pra dar e vender.

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O Tuca já me esperava do lado de fora da barraca. Braços cruzados, as bochechas vermelhas, o olhar soltando labaredas. Sem mais delongas, cuspiu logo os marimbondos:

“-- Sabe que horas são? Eu preciso ir ao banco – tô com uma boleta atrasada! Agora, vou ter que pagar juros! Se for fazer isso de novo, nem precisa aparecer amanhã!”

Pensei por um instante: se eu tiver dinheiro, é isso mesmo o que eu vou fazer. Como a demissão era a saída mais provável pra descolar uma graninha, lasquei de volta:

“-- Tá combinado. Pode acertar comigo hoje mesmo.”

No outro dia, já um ex-camelô, venci mais algumas corridas, acertei mais alguns espiões... E lá se foi mais um provável concorrente do Sílvio Santos6!

6 Empresário brasileiro e apresentador de Programa de TV que trabalhava como camelô.

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CHURRASQUEIRO – Maratonista por Profissão

“Se há algo que traz paz e alegria ao coração humano e à família é viver dentro de nossas possibilidades. E se há algo que traz tristeza, desânimo e desespero é ter dívidas e obrigações que não podemos saldar.” ~ G. H. Durham

profissão de churrasqueiro sempre me tocou bem de perto. Foi com ela que meu pai ganhava a vida. (Se você também aprontou quando criança

imagine quantas coças de palito eu levei! A poupança ardendo nos servia de lembrete para não repetirmos a façanha...)

A exemplo dos Alcoólicos Anônimos, que organizam grupos de ajuda para os que convivem com o dependente, deveria haver assistência permanente para a família dos ambulantes...

Não estou sugerindo que meu pai tenha sido rude. Muito pelo contrário: era um camarada bastante divertido. Mas quem via aquele paraibano animado, falante, nas feiras-livres ou no centro, não imaginava a maratona que ele enfrentava por detrás dos bastidores.

AA

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Desde a compra do material até o retorno para casa com as férias no bolso, o churrasqueiro tem de matar um leão por dia. Comprar a carne, os palitos e o carvão. Preparar o molho e a farofa. Socar o alho e temperar tudo na medida certa. Empurrar o carrinho e cuidar da manutenção.

Ao transitar apressados pela casa, era bastante comum nos depararmos com uma montanha de carne picada na cozinha. Em cima da mesa, a

pilha de carne variava de cor: boi, frango, porco, camarão... Com sua paciência de Jó, o pai ia intercalando pedaços de batata, bacon ou coração, tecendo um colar de bijuterias em cada palito. Os fregueses achavam aquilo ‘jóia’! Nós também.

Sua especialidade era o galeto. Um frango inteirinho aberto – espetado em dois palitos – e mergulhado ainda crocante na farofa. Na feira de domingo, era o almoço garantido dos feirantes. Até hoje, sinto água na boca só em pensar...

Foi nesse universo que percebi ainda criança, como os ossos do ofício podem ser mais duros pra muita gente. O homem que nos fornecia os palitos já era idoso – bem idoso – além de deficiente visual. Dava um baita exemplo ganhando o sustento com as próprias mãos.

Sua filha era quem nos trazia as encomendas. Limpinhos, bem afiados, amarrados em feixes de cem. E voltava alegre com o dinheiro também limpo daquele trabalho tão

Sua especialidade era o galeto. Um

frango inteirinho...

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honesto. Aquela família nos ensinou que o verdadeiro cego é quem prefere não enxergar as possibilidades que a vida tem a oferecer.

Até hoje fico admirado ao pensar em como aquele homem cortava o bambu, e fazia os palitos, de forma artesanal. Imagino-o a conferir as pontas dos palitos, um a um, imerso em seu mundo de escuridão.

Ou seria a filha quem realizava essa etapa? Não sei, e acho que nunca saberei. Mas quem elogiava o tempero lá na feira não podia sequer imaginar que tinha em mãos uma obra de arte.

Naquela época, além dos amigos ‘televizinhos’7 – sempre lembrados pelo Daniel Azulay8 – havia também os ‘gelovizinhos’. Era a turma que vivia pedindo gelo na casa dos outros!

7 Televizinhos: crianças que não tinham TV em casa, e viviam

assistindo na casa dos outros. Geralmente, eram despachados na hora do jantar! ☺

8 Daniel Azulay: excelente desenhista e apresentador da ‘Turma do Lambe-Lambe’ na década de 70. Ajudou muito

vendedor ambulante com seu chavão: “Algodão doce pra vocês!”

Qualquer corte na mão ou farpa no dedo caía logo no esquecimento.

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Meu pai, sempre inovador, aproveitou pra criar sua versão particular. Encontrava carne na promoção, estocava tudo que podia na casa do seu Epaminondas, cujo coração era maior do que o próprio congelador.

Qualquer corte na mão ou farpa no dedo caía logo no esquecimento quando meu pai ganhava as ruas e gritava aos quatro ventos que ‘provar seu churrasco era a opção mais inteligente do momento’.

Além do manjado ‘moça bonita não paga, mas também não leva’, seu grito de guerra era:

“-- Vamu cumê, gente! Vamu cumê, que o mundo vai acabá hoje!”

Ao ouvir os elogios dos fregueses, eu notava que um brilho especial aparecia em seu olhar. Era o orgulho pelo reconhecimento de um trabalho bem feito.

Para nós, meninos, acompanhá-lo era um grande barato. No caminho, ao lado do viaduto, havia uma árvore centenária, repleta de cipós. A inclinação do terreno criava um pequeno precipício.

Ali parávamos a cada vez. Primeiro ele se balançava, imitando o Tarzan que assistíamos em preto e branco. Depois, levantava cada um de nós, e nos empurrava rumo ao desconhecido. Aquilo era melhor que a Disney!

À beira da churrasqueira, aprendi lições que levo por toda a vida. A primeira delas, com meu irmão mais velho. Eu havia acabado de entrar na escola, e como ele estava um

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ano adiantado, já dominava valiosas técnicas de negociação.

No começo da jornada, ganhávamos dois churrascos de brinde. Eu comia logo o meu, mas ele tinha uma estratégia melhor... Aguardava o próximo freguês, e vendia o próprio brinde.

No minuto seguinte, lá estava o mano em frente à vitrine da padaria, escolhendo entre o pudim, refrigerante, salgado ou quindim. Antes do fim da noite o pai liberava a churrasqueira. Aí sim, podíamos comer à vontade, e ele sempre se dava bem. Garoto esperto o meu irmão!

A segunda aconteceu numa noite de verão. Meu pai havia ido buscar troco – ou ao banheiro – não me lembro, mas acabei ficando sozinho na carrocinha. Afinal, eu já tinha quase doze anos!

Chegou um maltrapilho e perguntou o preço do churrasco. Informei que eram três cruzeiros. Ele saiu quieto pra trás do carrinho – era uma grande área, embaixo do viaduto. Começou a se abaixar e levantar, num gesto pra lá de estranho...

Em princípio não entendi a cena. (Afinal... Eu tinha menos de doze.) Mas qual não foi minha surpresa ao perceber que ele estava pegando palitos com pedaços de carne e os enfiando apressadamente boca adentro.

Nunca tinha visto alguém passando fome...

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Fiquei paralisado. Nunca tinha visto alguém passando fome. Eu tinha poucos segundos pra decidir. Meu coração gritava para que eu desse uma dúzia de churrascos ao pobre homem, mas minha mente fingia não ouvir, pensando no que meu pai diria a respeito...

Quando chegou, contei-lhe o ocorrido. Ele ouviu atentamente, e no final comentou: “você devia ter dado alguns pra ele.”

Além do galeto, o velho tinha também uma arma secreta para atrair a clientela. Era um churrasco ‘desse tamanho’, feito de pura gordura! Quando ele sacudia aquele boi em cima do braseiro, fisgava fregueses no final do quarteirão. Tinha lojista que largava até o balcão para conferir aquele cheirinho...

No fim da noite, ele mergulhava a isca na farofa, e lambuzava a cara de farinha, acompanhado de perto por seus meninos e um litro de Fanta laranja.

Mas o tiro acabou saindo pela culatra9. De tanto comer gordura, sua pressão foi subindo, subindo, a ponto de matá-lo de derrame. No auge dos seus quarenta e sete anos, deixou minha mãe viúva. E sem bens, como frisava seu atestado de óbito!

9 Culatra: parte de trás do revólver, por onde a pólvora sai ao explodir na cara do vilão dos desenhos animados. ☺

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Quase sem acreditar, li as palavras mais frias que um pedaço de papel poderia suportar: ‘Não deixou bens. Deixou três filhos.’ E a conclusão era ainda mais cortante: ‘O referido é verdade e dou fé.’

Fui o primeiro a receber a notícia, naquele tom de punhalada. Que desperdício: escrever um documento inteiro para acusar um cristão de ter deixado filhos! Se esse foi seu único erro digno de nota, meu pai já deve estar num bom lugar...

O que o atestado não mencionou, foi que ele deixou aquele carrinho amarelo e uma Bíblia. Após ponderar se daríamos continuidade à profissão, minha mãe decidiu retornar à costura. Vendemos o carrinho. Ficamos com a Bíblia.

Foi-se o velho, ficaram as lembranças e os ensinamentos. Nunca mais vi a bonita filha do cego, nem levei coça de palito. Nunca mais assisti Tarzan, nem pendurei no cipó ao lado do viaduto. E até hoje evito gordura.

Ficou o respeito por todo e qualquer trabalho honesto, executado com alegria, a despeito da dureza do dia a dia. Ficou o gosto pelos prazeres simples da vida, e a lembrança de que é gratificante fazer o melhor quando a vez é toda sua.

Creio não haver maior tesouro que um menino possa desejar...

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CONHEÇA O AUTOR

Charlles Nunes trabalha com ensino de idiomas desde 1993.

Natural de Volta Redonda10, é um dos membros fundadores da Academia Volta-redondense de Letras.

Divulga nossa língua e cultura para milhares de estrangeiros pelo site

www.learn-portuguese-now.com.

Lançou em 2010 o site www.aprenda-ingles-agora.com, no qual disponibiliza recursos para a aprendizagem da língua inglesa.

Atualmente, mora em Angra dos Reis com a esposa e seus quatros filhos.

Obras publicadas:

• O Pulo do Gato – Uma Experiência Autodidata em Línguas Estrangeiras

• Aprenda Inglês em Casa – Guia de Conversação

• Frases Básicas em Inglês

10 Volta Redonda: conhecida como a ‘Cidade do Aço’, é

também o berço do Salão Anual do Humor. Essa é verdade, pessoal. ☺

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• As 365 Palavras Mais Comuns da Língua Inglesa

• Perguntas Básicas em Inglês

• Vocabulário Básico da Língua Inglesa

• As Sete Leis da Aprendizagem de Idiomas

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