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Há uma cobra boa no porão Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 143 [Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 26, n.17, p.143-155, 2004] Há uma cobra boa no porão There is a nice snake in the basement Maria de Fátima de Amorim Junqueira “A manutenção da capacidade de fazer reparações vincu- ladas à culpa pessoal é um dos passos mais importantes no desenvolvimento de um ser humano saudável.’ 1 Resumo: O trabalho apresenta o caso clínico de um menino de 5 anos, com queixa de distúrbios de comportamento. Lança a hipótese de uma tendência anti-social. Tece considerações sobre este conceito à luz da teoria de Winnicott e discorre sobre o tratamento com toda a adaptação do setting aí implícita. Palavras-chave: Winnicott; tendência anti-social; deprivação; esperança; con- tinuar existindo; concernimento; destrutividade; reparação; culpa. Abstract: This paper focus the clinical case of a 5 years old boy with a history of behavior disturbances linked to antisocial tendency. The author discusses the concept under Winnicott´s theory, presenting the need of an active adaptation of the setting implicit on the case. Key words: Winnicott; antisocial tendency; deprivation; hope; continuity of being; concern; destructiveness; reparation; guilt. 1. Winnicott D. W. A reparação relativa à defesa organizada da mãe contra a depressão. 1948. In: Da Pediatria à Psicanálise 2000 p.156.

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Há uma cobra boa no porão

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 143

[Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 26, n.17, p.143-155, 2004]

Há uma cobra boa no porãoThere is a nice snake in the basement

Maria de Fátima de Amorim Junqueira

“A manutenção da capacidade de fazer reparações vincu-ladas à culpa pessoal é um dos passos mais importantes nodesenvolvimento de um ser humano saudável.’1

Resumo: O trabalho apresenta o caso clínico de um menino de 5 anos, comqueixa de distúrbios de comportamento. Lança a hipótese de uma tendênciaanti-social. Tece considerações sobre este conceito à luz da teoria de Winnicotte discorre sobre o tratamento com toda a adaptação do setting aí implícita.Palavras-chave: Winnicott; tendência anti-social; deprivação; esperança; con-tinuar existindo; concernimento; destrutividade; reparação; culpa.

Abstract: This paper focus the clinical case of a 5 years old boy with a historyof behavior disturbances linked to antisocial tendency. The author discussesthe concept under Winnicott´s theory, presenting the need of an activeadaptation of the setting implicit on the case.Key words: Winnicott; antisocial tendency; deprivation; hope; continuity ofbeing; concern; destructiveness; reparation; guilt.

1. Winnicott D. W. A reparação relativa à defesa organizada da mãe contra a depressão. 1948. In: DaPediatria à Psicanálise 2000 p.156.

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Seção Livre

Cadernos de Psicanálise, CPRJ144

Tudo ia bem até que algo aconteceu. É o que poderíamos dizer ao ob-servar a criança ou o adolescente com tendência anti-social2. E por outro lado,esta criança poderia se exprimir da seguinte forma: “as coisas estavam bem edepois não ficaram bem...”. É este o pensamento que define o sentimento dealguém que sofreu uma deprivação. A criança tem consciência de que até umcerto momento do seu desenvolvimento tudo corria bem e, principalmente,ela se sentia bem. Ela vinha tendo a experiência de continuar existindo (goingon being), experiência esta primordial para a formação de um self com o sen-tido de ser real, de ser. Essa experiência de continuidade de ser é possibilitadapela mãe, que deixa que seu bebê vá seguindo seu desenvolvimento de acor-do com seu potencial.

De um momento para outro, porém, algo mudou. A sua reação vematravés de uma série de comportamentos que conhecemos tais como: per-turbar a ordem, mentir, agredir, destruir, roubar, enfim, chamar a atençãodo ambiente para si a fim de apontar que algo não está bem.

João é um menino que veio indicado através da Clínica do CPRJ. Junto àsua inscrição, feita por sua mãe, um telefonema da escola pede para que sejafeito um contato, antes mesmo da entrevista com a mãe. Pude sentir algode emergencial no ar.Ligo para o colégio e sinto um desespero. João está no jardim III (pré-alfabetização), com 5 anos, e devido ao seu comportamento o colégio já nãosabe o que fazer. João consegue monopolizar o colégio inteiro. Todos, in-clusive os pais de seus colegas, reclamam dele. O colégio informa que noano anterior já havia sido feita uma indicação para tratamento e que estefoi iniciado, mas logo abandonado. Desta vez o colégio coloca a terapiacomo condição sine qua non para a permanência de João no colégio. Ouço aotelefone várias reclamações, tanto de João como de sua mãe. Posso pressen-tir no ar uma história de deprivação.

Como ocorre uma deprivação e em que momento?Precisamos então descrever de forma um pouco sucinta o desenvolvi-

mento de um bebê, segundo Winnicott, para podermos localizar o momentode uma deprivação.

Uma das formas de Winnicott descrever o desenvolvimento inicial dobebê é em função da relação do bebê com o ambiente. Inicialmente o bebê seencontra num estágio de dependência absoluta, que vai passando para umadependência relativa, e finalmente segue rumo a uma independência relati-va.

2. Ao escolher o termo “tendência” Winnicott tira do anti-social a categorização de uma doença talcomo a neurose e a psicose.

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Há uma cobra boa no porão

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 145

Na fase da dependência absoluta, ou narcisismo primário, não há aindaa discriminação do eu/não-eu, não há ainda o objeto. Winnicott fala aqui deuma unidade ambiente-indivíduo, onde não há um sem o outro.

“Neste estágio tão inicial não é lógico pensarmos em termos de um indiví-duo, e não apenas devido ao grau de dependência ou apenas porque oindivíduo não está em condições de perceber o ambiente, mas também por-que ainda não existe ali um self individual capaz de discriminar entre o EUe o não-EU.”3

Portanto, no estágio da dependência absoluta não há a consciência des-ta dependência. Para que esse caminho do desenvolvimento seja percorridoé essencial, principalmente no estágio de dependência absoluta, um ambien-te suficientemente bom com uma mãe que se adapte e atenda às necessida-des do bebê. Pois, através destes cuidados se dá a construção do self aliadacom a capacidade de incorporar um meio ambiente interno cuidador, tor-nando cada vez mais possível a integração4. O bebê pode então separar osobjetos, fazendo a separação entre eu/não-eu passando a perceber o que éambiente e o que é self . Em decorrência, a dependência pode ir diminuindogradualmente.

Tomando consciência desta dependência, ele vai podendo se “afastar”,e assim, no momento que precisar, será capaz de fazer-se notar pelo ambien-te. Pode-se falar aqui em dependência relativa. Este caminho não se dá deuma forma linear, é um caminho dinâmico de idas e voltas.

O aparecimento da compreensão intelectual, junto com a construçãoda confiança no ambiente, propiciam à criança alcançar o estágio da inde-pendência relativa. Tal estágio leva este nome, pois, segundo Winnicott, nun-ca seremos completamente independentes do ambiente.

A deprivação significa uma falta de algo que a criança já tinha e que elaperde, em decorrência de uma falha do ambiente.

Mas a falha do ambiente (mãe) com o bebê faz parte do desenvolvimentoemocional. A falha do atendimento às necessidades do ego pode provocar tan-to o desenvolvimento como acesso natural, quanto uma interrupção na conti-nuidade de ser. O que vai diferenciar entre um e outro são fatores tais como ograu de desenvolvimento em que o bebê se encontra para poder ou não supor-tar a falha, a repetição da falha sem reparação, e sua intensidade.

3. Winnicott D.W., Um estado primário do ser: Os estágios pré-primitivos - 1967. In: Natureza Humana1990 p.153.

4. A tendência à integração faz parte juntamente com a personalização e a realização dos três proces-sos básicos do desenvolvimento primitivo do bebê. A integração é a busca gradual da unidade, eestá inerentemente ligada à função materna de sustentação (holding).

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Cadernos de Psicanálise, CPRJ146

Uma mãe suficientemente boa tende a cometer falhas, a se dar contadelas e a repará-las. Quando elas são excessivas e não reparadas se constitu-em em um trauma5 que deixará marcas no indivíduo.

As falhas graves no relacionamento da mãe com o bebê no estágio dedependência absoluta provocam as angústias impensáveis6. Isto ocorre semo bebê perceber que o ambiente falhou. São falhas que ameaçam a continui-dade do processo de amadurecimento. O ambiente falha por não ser confiávelo suficiente para sustentar este caminho de amadurecimento do indivíduo.Como conseqüência, temos a possibilidade de uma interrupção no processopessoal, que acarretará quadros como a psicose e o autismo. Diante destaalternativa, o indivíduo protege o seu self através de um congelamento dasituação de fracasso na esperança de um dia poder resgatá-lo.

Na fase de dependência relativa as falhas suportáveis da mãe propiciamao bebê lidar com a realidade, com a diferenciação eu/não–eu. E são de enor-me importância, pois, são constitutivas. A mãe exerce aí uma das funçõesmaternas mais importantes, que é a desadaptação7. Nesta fase já há a possibi-lidade do bebê usar sua mente, para tolerar o fracasso do atendimento àsnecessidades do ego. Se, por outro lado, uma mãe não se permite falhar, elasustenta um estado de fusão no qual o bebê se sente enredado. O estabeleci-mento de um falso self pode se dar quando as falhas se tornam padrão, e obebê passa a viver reagindo, perdendo então toda sua espontaneidade.

A tendência anti-social surge como uma denúncia de uma falha, no sen-tido de a criança perder algo que já teve. Ela sofreu uma deprivação numafase em que já tem consciência do que o ambiente lhe fornece.

Esta falta se estendeu por maior tempo do que o suportável pela crian-ça. Não necessariamente a falta é o mais importante, mas sim, a imaturidadeda criança com seu ego ainda frágil para suportar tal falta. No início, isto é, nafase de dependência absoluta, o ambiente supriu de forma razoável as neces-sidades, de outra forma, como vimos, se esta falta tivesse ocorrido, aindamais prematuramente teríamos a psicose.

No caso da deprivação, que ocorre nessa época do desenvolvimento (naépoca da dependência relativa), ela desencadeará a tendência anti-social comouma forma de reclamar pelo que foi perdido. É como se o anti-social estives-se sempre exigindo do ambiente a volta ao estado anterior a deprivação. Ele

5. Trauma aqui como algo que interrompeu a continuidade de ser.

6. São ansiedades primitivas presentes nos quadros psicóticos, autismo ou em borderlines. Tais comoa sensação de cair para sempre, perda do conluio psicossomático; desintegração; perda da capacida-de de se relacionar e sentimento de irrealidade.

7. O processo de desilusão.

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Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 147

teve algo, ele teve a possibilidade de lidar com um ambiente a princípioindestrutível, ele conheceu a segurança do ambiente.

A mãe de João me conta:

Morava fora do Brasil, já tinha um filho com 6 anos e queria outro. Omarido não queria, o casamento não andava bem. Ela resolveu engravidar,quem sabe o casamento melhora, e o irmão ganha uma companhia...Amamentou João durante três meses, mas precisava voltar a trabalhar.Chamou então sua mãe (com quem tinha uma relação conturbada) paratomar conta de João.–“Quem criou João foi minha mãe”– “Quem não deu limites para ele foi ela”– “Ela não tem disciplina”– “Ao mesmo tempo que mimava, que não deixava eu brigar com ele, elaera muito rígida com ele.”– “O meu filho mais velho fiquei com ele até 5 anos, ele é ótimo e comporta-do; João não escuta e não obedece”

Podemos ver na história de João que sua mãe de alguma forma susten-tou o lugar de mãe suficientemente boa na fase inicial de dependência abso-luta, e que houve uma transição deste lugar para a figura de sua avó. João,desta forma, teve a possibilidade de ser.

Ser uma mãe suficientemente boa significa ser aquela mãe (ou pessoasubstituta) que possibilite ao bebê seu desenvolvimento. Isto é, antes de qual-quer coisa, ela tem que deixar o seu bebê ser, e isto ela o faz principalmenteatravés de sua identificação com o bebê, estando lá para deixá-lo experienciartoda a sua onipotência – com o apoio de seu próprio ego.

Segundo a mãe de João, sua relação com o marido piora, e ela resolve voltarpara o Brasil quando ele estava com um ano. João vem então para o Brasilcom seu irmão e sua avó. Sua mãe só vem três meses depois. “Precisavacuidar das coisas”. Nada é explicado a João. Ele se vê sem seu pai, sem suacasa e sem sua mãe.Por um tempo ficam morando na mesma casa com a avó e os tios (irmãosda mãe). Há momentos bastante conturbados nas relações familiares. Porperíodos a avó vai e vem. Por fim sua avó é afastada e é contratada umaempregada. João fica sem sua avó, a pessoa que cuidava dele.A avó vai morar em outra cidade, João fica sem ver a avó por um bomtempo. “Como castigo para ela”, palavras da mãe de João.Ele entra para o colégio.“E eu voltei a trabalhar, trabalhava 20 horas.”

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Cadernos de Psicanálise, CPRJ148

Durante o processo de desenvolvimento do bebê acompanhamos tam-bém uma progressão da relação incompadecida (ruthlessness) com o objetopara o estágio de concernimento (concern).

Para Winnicott ódio e amor só se podem dar a partir da relação de umapessoa total com o objeto. Por isso no início não há ódio ao objeto (seio), oque há são impulsos instintivos com um aspecto destrutivo. Esta relação como objeto no impulso do amor primitivo é denominada de amorincompadecido. Do ponto de vista do bebê, não há a percepção da hostilida-de, pois isto ocorre na época da dependência absoluta onde o bebê não temainda consciência do objeto como algo separado dele.

Depois de adquirida a integração o bebê, através do concernimento,alcança a culpa8 e passa a se tornar responsável pelo objeto, e por todos ossentimentos e idéias inerentes ao estar vivo. Para que esta evolução se dê énecessário que o bebê tenha tido a possibilidade de experienciar suadestrutividade. Isto é possibilitado pela presença da mãe que está lá parareceber os ataques e após o ataque manter-se inteira, sem retaliar.

“O desenvolvimento da capacidade para o concern é portanto um assuntocomplexo, e depende da continuidade de relacionamento pessoal entre obebê e uma figura materna.”9

A mãe ocupa, no processo inicial do desenvolvimento, dois papéis si-multâneos, “mãe-objeto” e “mãe-ambiente”. Estes são vistos pelo bebê con-forme seu estado de excitação ou tranqüilidade. A mãe objeto recebe todo oimpulso incompadecido do bebê e, a mãe ambiente é aquela que cuida eprovém para o bebê um ambiente tranqüilo, recebendo todo o lado afetivo.O alcance do concernimento ocorre juntamente com a possibilidade do bebêde perceber a mãe como una.

“Ela é uma mãe-ambiente e ao mesmo tempo uma mãe-objeto, o objeto deintenso amor. Neste último papel ela é repetidamente destruída oudanificada. Gradativamente a criança vem a integrar estes dois aspectos damãe tornando-se capaz de amar e ser afetuosa ao mesmo tempo com a mãesobrevivente. Esta fase inclui um tipo especial de ansiedade que se chamade sentimento de culpa, culpa essa relacionada com a idéia de destruiçãoquando o amor também está atuando. É essa ansiedade que leva a criançaao comportamento construtivo ou ativamente amoroso, dentro dos limitesde seu mundo, ressuscitando o objeto, fazendo-o ainda melhor, reparandoo que foi danificado. Se a figura materna não é capaz de estar com a criança

8. Winnicott considera a capacidade para o sentimento de culpa como potencial.

9. Winnicott D.W., A Posição Depressiva. 1967. In: Natureza Humana 1990 p.92.

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por toda essa fase, a criança fracassa em descobrir ou perde (se já a possuía)a capacidade de sentir culpa, sentindo-se ao invés uma forma crua de ansi-edade que é simplesmente desperdiçada.” 10

A partir do momento em que já há a capacidade para o concernimento,o bebê pode sentir o quão implacáveis são seus impulsos, e tenta controlá-lospela culpa que sente. A experiência do concernimento, com a aceitação daresponsabilidade pessoal pelo aspecto destrutivo, é a base de tudo aquilo quefor construtivo.

“Um dos mais importantes sinais de saúde é o surgimento e a manutenção,na criança, do brincar construtivo.”11

Depois de alcançado o estágio de concernimento, o indivíduo só retornaao estágio incompadecido (cruel) por uma dissociação. Na infância é comumos estados de dissociação cruéis e também os encontramos na delinqüência.

Faz parte do desenvolvimento normal a criança provocar, atacar, des-truir, apropriar-se de coisas no intuito de avaliar a estabilidade do seu lar. Seos pais puderem suportar esses ataques, com amor e limites, a criança terá apercepção da estrutura e se sentirá plena para brincar e ser irresponsável.Porém, se não houver esta estrutura antes de a criança estabelecê-la comoprópria, ela deixa de sentir-se livre. Ela vai ser tomada por uma angústia etentará procurar esta estrutura provocando-a, e isto se estenderá para a soci-edade em geral, a começar pela escola. O comportamento anti-social aparececomo um pedido de restabelecimento da situação de segurança: a criançapede para ser controlada por pessoas fortes, carinhosas e sobretudo confiáveis.

A capacidade para o concernimento surge no período de 6 meses aos 2anos de idade. A ocorrência de uma privação ou perda neste período leva aconseqüências que podem destruir o processo de socialização que uma cri-ança vinha tendo.

Podemos constatar que as separações vividas por João de seu pai, de suacasa, temporariamente de sua mãe, e de sua avó ocorreram durante seuprocesso de alcance do estágio de concernimento. Outro fato que nos cha-ma atenção foi o modo como foram feitas estas separações, sem nenhumaconversa com João, com mentiras tais como: Sua avó já vem...Percebemos também na sua história a falta de continuidade de um ambien-te (mãe) para receber qualquer movimento de reparação, qualquer movi-mento a caminho de uma construção. Situações que fizeram com que Joãofalhasse na fusão de seus impulsos amorosos e destrutivos.

10.Winnicott D.W., Moral e Educação. 1963 In: O Ambiente e os Processos de Maturação 1990 p.96.

11.Id., Agressão e suas raízes. 1939. In: Privação e Delinquência 1995 p.100.

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Cadernos de Psicanálise, CPRJ150

O colégio faz queixas tais como: ele não escuta, é bastante agressivo, nãosegue as regras, destrói o trabalho dos amigos etc.A mãe relata que trabalha o dia todo e que sai quase todos os dias, poisprecisa se divertir também. João fica com a empregada, que cuida de tudoem casa e não tem muita paciência com ele. No seu relato, constatamos quea mãe também não tem paciência, como também seu irmão. A mãe de Joãodiz que não consegue brincar com ele. Nos parece que ninguém tem tempopara ele. O pai vê os filhos no mínimo duas vezes ao ano e acha que o filhonão tem nada. Segundo a mãe, parece que com ele João não faz nada, e queo pai é bastante atencioso com os filhos.Tanto a escola como a mãe reclamam que João não assume seus atos, sem-pre negando que os tenha feito.

Quando a criança sofre a deprivação, ela sente uma ansiedadeimpensável, e aos poucos vai se organizando numa espécie de estado neutro.Surge então, o comportamento anti-social que se caracteriza por atuações,que escondem em si um pedido de socorro. Atrás de todo ato anti-social háuma esperança, esperança de conseguir retornar ao estado anterior ao daperda, e de não sofrer mais a possibilidade da ansiedade impensável. Pois háuma consciência de que foi algo externo que falhou.

Como o anti-social não conseguiu internalizar um controle, ele exige doambiente que o cerca que exerça este controle. Pois a falha ocorreu quando oego já estava relativamente desenvolvido, do contrário teríamos a psicose ondeo indivíduo ainda não tinha internalizado o ambiente. No entanto, o ego ain-da está imaturo em relação a suportar a perda com uma reação madura: elenão consegue ainda elaborar o luto.

A deprivação ocorre geralmente entre os dez meses e os três anos deidade.

Winnicott distingue duas formas de deprivação, simbolicamente liga-das à privação da mãe (do objeto), em termos da perda do cuidado, e a priva-ção do pai (do limite, da moldura) ou da qualidade na mãe que mostra queela tem o apoio de um homem. A primeira, ligada à perda da adaptação àsnecessidades egóicas, ainda na fase de dependência relativa, e representadapelo roubo, que é a busca do objeto; e a segunda, em tempo posterior, ligadaàs necessidades instintivas (pulsionais) na perda de um ambiente indestrutívele representada pela destrutividade.

A primeira forma de manifestação relaciona-se com a perda da possibi-lidade de encontrar o objeto criativamente. Inicialmente a mãe propiciava àcriança ter a ilusão de ter criado o objeto, de uma ora para outra isto é rompi-do. Como tentativa de recuperar o objeto a criança rouba. E não sabe porque

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Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 151

o faz, na verdade, ela não quer aquele objeto em si, ela está tentando recupe-rar a capacidade de encontrar.

A segunda forma tem a ver com a perda daquele ambiente indestrutível(em certos aspectos), no qual a criança podia exercitar sua destrutividade,sem que ele desmoronasse. Pode ocorrer uma deprivação em termos, porexemplo, do rompimento de um lar, o que provocará na criança uma insegu-rança em relação a seus sentimentos e impulsos destrutivos. A criança se re-trai, perdendo sua impulsividade e espontaneidade. Os sintomas aqui apare-cem como uma tentativa de recuperação da segurança anterior.

Como vimos acima, para Winnicott, uma das características da saúde éa possibilidade de construir, de brincar, que no anti-social se perde dandolugar ao ato.

Se alguém exigir desta criança que explique os motivos de seus atos, acriança se sentirá pressionada, pois ela mesma não sabe a razão real que a fazagir desta forma. Diante desta cobrança a criança se sente dividida, entreuma parte severa consigo mesma e outra capaz de impulsos maléficos, e elapassa então a mentir para não sentir a culpa. Vemos então a mentira associa-da tanto ao comportamento do roubo como à tendência a destrutividade.

Primeiros encontros com João

João entra na minha sala enquanto ainda estou falando com sua mãe, nasala de espera.

Trouxe consigo três bonecos dinossauros, um maior com um mecanis-mo que abre e fecha a boca e dois outros menores. Brinca com dois deles ediz que um é do mal e outro do bem.

Está sentado à mesa e pergunta para que são aqueles papéis na mesa.Peço para ele desenhar uma casa. Faz a casa com um sol e um homem que,diz ele, que mora nela. A casa não tem janelas.

Peço para desenhar uma família, diz que não sabe desenhar uma famí-lia. Faz outra casa de noite com a lua, não aparece ninguém porque estãodormindo. Pergunta como se faz uma igreja. Desenha uma igreja e um car-ro-avião com um sol em cada canto da folha. Depois diz que o carro vai deum sol para outro. Digo a ele que me parece que ele está falando de suas duascasas, a do papai e a da mamãe, e que ele queria poder ir de uma a outravoando. Pega uma outra folha e faz o sol e a lua juntos.

Mostro como gostaria do papai e mamãe juntos. Conta-me que o paimora em outro país e que também já morou lá.

Durante toda a sessão João solta arrotos provocados, e finge ser odinossauro maior. Bate nele, chama a atenção dele, coloca a venda na sua

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Cadernos de Psicanálise, CPRJ152

boca, coloca-o no quarto para pensar, mas parece que nada resolve. Conver-samos sobre o dinossauro ser ele e sobre as atitudes de sua mãe.

Na segunda sessão traz o homem aranha, e fala muito de ele ser forte egrande. Proponho o jogo do rabisco. Participa bem, sendo bastante criativo, epor vezes acaba também fazendo os meus desenhos. Surgiu novamente a igre-ja, e João faz referência à igreja em que seus pais se casaram. Durante um bomperíodo do seu tratamento João sempre inicia as sessões com o jogo do rabisco.

Nesta sessão fala de sua avó, de sua casa e das saudades que sente dela.

O tratamento do anti-social se dá em termos de manejo, de perceber aesperança e estar lá para que o indivíduo possa resgatar a crença perdida doambiente.

Poderíamos dizer, que a esperança se concretiza através dos comporta-mentos anti-sociais. É a esperança de reencontrar a possibilidade de viver,anterior à deprivação. Por vezes, o anti-social precisa reviver, na presença deum outro, o momento da deprivação, e toda a angústia subjacente, para po-der chegar ao momento anterior. Momento no qual era possível encontrar oobjeto, momento em que havia a segurança na indestrutibilidade do ambi-ente. A criança pode adquirir ou readquirir assim, a fusão de seus elementosagressivos e amorosos.

Winnicott diz que este tratamento pode ser feito às vezes pela própriafamília, mas tanto neste caso como na psicoterapia, o manejo terá de ser adap-tado e a tolerância e compreensão serão fundamentais.

“Digamos que o que essas crianças precisam é de estabilidade ambiental,cuidados individuais e continuidade desses cuidados.”12

É importante que o ambiente intervenha antes que os atos anti-sociaistenham um ganho secundário, tornando-se aceitáveis para o self, pois aí pas-saríamos a ter a delinqüência, onde o trabalho de resgatar uma ausência desentimento de culpa será muito mais árduo, requerendo um ambiente alta-mente especializado.

O tratamento

João fica sendo atendido por mim em duas sessões semanais. Proponhoà mãe encontros paralelos para acompanhamento.

No primeiro mês João falta muito às sessões. O colégio me liga quaseque diariamente para fazer queixas. A mãe de João aparentemente recebeminhas sugestões, mas percebo que não há mudanças.

12.Id., Alojamentos para crianças na guerra e na paz. 1946. In: Privação e Delinqüência 1995 p.78.

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Faço visitas ao colégio numa tentativa de mostrar o quadro que temos esuas perspectivas, e que o fato de João estar em atendimento não muda mila-grosamente seu comportamento. Mostro ao colégio a necessidade de limitescom acolhimento. Constato que há uma ajudante para três turmas, apontoao colégio a necessidade de ter uma ajudante só para a turma de João, paraque ele tenha uma pessoa nas horas que necessita de uma intervenção parti-cular. Aos poucos o colégio vai entendendo a dinâmica, atendendo às solicita-ções e orientações e diminuindo as ligações para mim.

Depois de três meses em atendimento, João vai passar o mês de fériasfora viajando com seu pai, e depois na casa da avó paterna. Aproveito paraatender sua mãe semanalmente, e marco sessões também com a empregada.Como a empregada é a pessoa com quem João tem mais contato em casa,tento mostrar-lhe tanto a necessidade de modificar alguns esquemas diários,quanto às maneiras de proceder frente à fúria de João.

Com sua mãe vai havendo uma mudança no sentido da compreensão eaceitação do que lhe passo sobre as necessidades de seu filho. Vai havendogradativamente uma mudança de postura e um olhar mais atento para João.Há uma reaproximação de sua avó materna. Consigo também através destaaceitação um contato com o pai, por telefone, que nas férias grandes levaJoão para passar uma boa parte do tempo com ele.

No final do ano o colégio ameaça não aceitar a matrícula de João, masseus pais fazem questão que ele continue no mesmo colégio. Intervenho nova-mente junto ao colégio, que teme que João no CA não acompanhe a turma.

O ano começou e João vem acompanhando sua turma, mostrando-seinteressado em sua alfabetização. Concentra-se melhor e tem agredido me-nos seus amigos. É claro que algumas reclamações ainda vêm, mas podemosperceber que João vem restabelecendo sua continuidade de ser.

Em sua análise passou por uma etapa repetindo seus comportamentosda primeira sessão, negando suas responsabilidades e não trazendo para osetting nenhum indício de suas alterações. As queixas vinham na sala de es-pera por intermédio da empregada. Com o tempo ele passa a poder me agre-dir e trazer para o setting suas atuações.

Por um bom tempo, vem utilizando barbante em suas sessões. Inicial-mente foram várias sessões fazendo armadilhas com o barbante. Armadilhasque, inicialmente, eram para capturar o capitão mau. Amarrava a sala inteirade modo que ninguém pudesse entrar, nós mesmos tínhamos muita dificul-dade de circular pela sala. Desta brincadeira tivemos vários entendimentos,tais como: as armadilhas o continham; os nós eram suas dificuldades; a salaera só sua e ninguém mais poderia entrar. Ele saía e deixava a sala desta for-

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Seção Livre

Cadernos de Psicanálise, CPRJ154

ma. Aos poucos o barbante foi sendo cortado, foram sendo desmanchados osnós. Uma nova brincadeira se estabeleceu, tínhamos uma cobra grande emá, (um barbante grande manipulado por ele), que comia os pequeninos(barbantes cortados) e eu tinha que salvar os meninos. Por um tempo estabrincadeira se repetiu, e tínhamos às vezes de nos esconder da cobra má, e eume escondia no porão da casa, aonde tinha uma cobra boa, segredo que nin-guém podia saber. Aliás, sempre que acabavam as sessões, ele falava em se-gredos de nós dois.

Depois, passamos algumas sessões pintando os barbantes pequenos comvárias cores e mistura de cores feitas por ele. Em uma sessão fez referência àcobra no porão, que a mamãe não sabia da existência dela. Pudemos conver-sar sobre a vontade que ele está tendo de mostrar para sua mãe a existênciade um João bom também, tal qual ele vinha podendo me mostrar.

Em outra sessão, mais recente, pegou um jogo e ao arrumá-lo falou:Fátima, é muito bom arrumar.

Falamos então, da sua possibilidade de estar se sentindo mais “arruma-do”, da possibilidade de estar podendo mostrar a cobra boa e tirá-la do po-rão.

A modificação no setting nos parece um dos fatores primordiais a seremdesenvolvidos no tratamento da conduta do anti-social. Acreditamos que otrabalho conjunto com a escola e com a mãe propiciaram a João um ambien-te de sustentação, através das mudanças ambientais necessárias para a reto-mada de seu desenvolvimento.

João pode viver na transferência o abandono do lugar exclusivo demenino mau para o re(encontro) de suas qualidades esquecidas, o lado bom, antes não percebidas.

Identificamos em sua expressão “como é bom arrumar!”, uma das ex-periências de reparação que lhe permitiu o re(alcance) do concernimento.Este movimento construtivo pode ser alcançado através do acolhimento dapossibilidade de reparação e responsabilidade frente às idéias e impulsos agres-sivos e destrutivos. Passou também a poder contar com sua mãe mais pre-sente para receber e, aos poucos, compreender seus movimentos de repara-ção. Movimentos estes vinculados ao caminho que vem sendo percorrido dereconhecimento, tolerância e retenção da culpa.

E para tanto, se fez necessário prover um ambiente correspondente aodemandado por um lactente imaturo. Ambiente este, capaz de tolerar todosos movimentos carentes de concernimento e plenos de impulsividade.

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Há uma cobra boa no porão

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 155

Maria de Fátima de Amorim JunqueiraPsicanalista, Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.Rua do Catete 347 sl. 813 – Catete – Rio de Janeiro.CEP: 22230-001tel: 2556-8397

Referências

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WINNICOTT, C., SHEPHERD, R. & DAVIS, M. (ED). Explorações psicanalíticas. Porto Ale-

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Artigo recebido em 13 de agosto de 2004Aceito para publicação em 01 de setembro de 2004