goldberg nepomuceno trio

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Alberto Nepomuceno: vínculos modernistas no Trio em Fá sustenido menor (1916) Luiz Guilherme Duro Goldberg 1 (Universidade Federal de Pelotas) Resumo: Alberto Nepomuceno tem sido descrito, pela tradição historiográfica brasileira, invariavelmente, pelos seus vínculos com o nacionalismo musical. No entanto, como interpretar as considerações a respeito de seu modernismo musical? Uma das obras pilares para esse entendimento é o seu Trio em fá sustenido menor, para violino, violoncelo e piano, composto em 1916. Tendo as críticas de sua estreia e da Audición de Obras de Compositores Brasileños, ocorrido em Buenos Aires, em 1919, como substrato, procedeu-se a análise dessa obra para, a partir daí, compreender os pareceres nelas veiculados, bem como diagnosticar os seus vínculos com o modernismo musical. Palavras-chave: Alberto Nepomuceno; modernismo musical; Trio; análise musical. 1 Atualmente é professor adjunto no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Música Brasileira na Primeira República e Análise Grafotécnica atuando principalmente nos seguintes temas: modernismo musical na Primeira República, música de Alberto Nepomuceno e edição de partituras.

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  • Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no Trio em F sustenido menor (1916)

    Luiz Guilherme Duro Goldberg1 (Universidade Federal de Pelotas)

    Resumo:

    Alberto Nepomuceno tem sido descrito, pela tradio historiogrfica brasileira, invariavelmente, pelos seus vnculos com o nacionalismo musical. No entanto, como interpretar as consideraes a respeito de seu modernismo musical? Uma das obras pilares para esse entendimento o seu Trio em f sustenido menor, para violino, violoncelo e piano, composto em 1916. Tendo as crticas de sua estreia e da Audicin de Obras de Compositores Brasileos, ocorrido em Buenos Aires, em 1919, como substrato, procedeu-se a anlise dessa obra para, a partir da, compreender os pareceres nelas veiculados, bem como diagnosticar os seus vnculos com o modernismo musical.

    Palavras-chave: Alberto Nepomuceno; modernismo musical; Trio; anlise musical.

    1 Atualmente professor adjunto no Conservatrio de Msica da Universidade Federal de Pelotas. Tem experincia na rea de Artes, com nfase em Msica Brasileira na Primeira Repblica e Anlise Grafotcnica atuando principalmente nos seguintes temas: modernismo musical na Primeira Repblica, msica de Alberto Nepomuceno e edio de partituras.

  • msica em perspect iva v.3 n.1, maro 201 p. 54-87 ________________________________________________________________________________

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    No transcorrer da vida musical de Alberto Nepomuceno, o caminho

    iniciado em sua Variations sur un Theme Original op. 29, de 1902, mostrou-se

    como um portal para novas expresses, cabendo ao crtico Luiz de Castro um dos

    primeiros diagnsticos sobre essas transformaes, cujas ousadias harmnicas do

    compositor, observadas em seu Trio para piano, violino e violoncelo (1916), o

    tinham convertido definitivamente em um compositor completamente moderno.

    Referindo-se ao seu concerto de estreia, em 31 de agosto de 1916, assim

    Luiz de Castro prossegue:

    A quem tem acompanhado de perto a carreira artistica de Nepomuceno, a primeira impresso que logo se sente ao ouvir o Trio da completa transformao operada no systema harmonico adoptado pelo autor da Symphonia em sol menor. Acompanhando, como todo artista digno desse nome, a evoluo musical, elle se tornou um compositor completamente moderno, que no recua deante das mais ousadas combinaes harmonicas, sem que, entretanto, haja nellas cousa alguma que offenda os ouvidos; e assim que, no seu Trio, ha effeitos novos, bizarros, curiosos, interessantes. Essa transformao, a que me refiro, comeou a se manifestar na sua obra para piano, Thema e Variaes,2 []. Depois, ella se accentuou na comedia musical O Garatuja, [], e escripta em estylo completamente differente do Abul. A segunda impresso deixada pelo Trio da sua completa unidade. Toda a obra se basea no thema da introduco, do qual se originam os themas dos quatro tempos do Trio. No seu desenvolvimento, nas suas combinaes harmonicas, ha uma riqueza extraordinaria, a par de uma suavidade pouco vulgar. Ao primeiro allegro, em que se notam contrastes impressionantes, effeitos novos, preciso, succede um andante de profundo sentimento, pagina de rara elevao, que commove e traz a fielmente todo o sentimentalismo da alma cearense. Mas essa alma feita de contrastes violentos. To depressa se absorve em doce melancolia, quanto se entrega logo em seguida s travessuras infantis. So estas travessuras que surgem no Scherzo, que como seu nome indica, um gracejo. Dir-se-io creanas a brincar extravagantemente, desordenadamente; mas eis que a brincadeira um instante interrompida; o motivo central traduz como que repentina contrariedade, que ennuvia o semblante das creanas. um instante, e as travessuras recomeam, e quando ellas acabam, o publico pede bis. O Final

    2 Embora o nome Thema e Variaes seja o ttulo de seu op. 28, creio que a obra a qual Luiz de Castro se refere a Variations sur un Thme original op. 29. Tal avaliao se deve ao fato de a obra op. 28 ser tributria a Brahms, enquanto a sua op. 29 mostra-se mais experimental e inovadora. Refora tal concluso a confuso apresentada no catlogo da Exposio Comemorativa do Centenrio do Nascimento de Alberto Nepomuceno, onde na vitrine n X, item 130, apresenta a partitura do Tema e Variaes op. 28 com a observao manuscrito original para piano com o ttulo de Variaes sobre um tema original.

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    inicia-se com o thema do comeo, a que se segue logo um allegro de uma alegria communicativa. a vontade de viver, a manifestao radiosa da alma por tudo quanto ha de bom na vida, pelos prazeres inegualaveis que a arte sadia e forte proporciona. E a obra termina assim em um raio de luz fulgurante, que provoca o enthusiasmo do auditorio.O Trio em f sustenido menor de Alberto Nepomuceno uma obra prima. (A Noite, 1/9/1916)

    Ainda de acordo com Luiz de Castro, na mesma coluna, entre as figuras

    ilustres que presenciaram a sua estreia, encontravam-se os compositores e

    maestros franceses Xavier Leroux e Andre Messager,3 cujo entusiasmo o fez dirigir-

    se a Nepomuceno exclamando Voc estreou por um golpe de mestre!,4 alm

    de manifestar que faria executar o Trio em Paris pela Socit Nationale de

    Musique de Chambre.

    Entretanto, a manifestao de Messager no se restringiria a esta

    declarao. Em 16 de setembro de 1916, faz publicar no Jornal do Commercio

    Na sala de concertos do Jornal do Commercio nos convocamos ontem de manh, Xavier Leroux e eu, para escutar dois trios de dois mestres brasileiros. Alguns raros privilgios deslizam discretamente, [] admiradores dos dois compositores, e l passamos duas horas deliciosas consagradas arte mais sincera e mais pura. primeiro o Trio de Alberto Nepomuceno; e, desde os primeiros compassos do tema que serve de base aos quatro movimentos da obra, sentimo-nos tomados, movidos por este pensamento srio, nobre e profundo. Esta , parece, a primeira obra de msica de cmara composta por Nepomuceno, mas se pode, sem hesitar, aplicar-lhe os versos de Corneille: Seus semelhantes duplamente no se fazem conhecer E para suas tentativas querem os lances de mestre! Pattico no primeiro movimento, comovente no andante, cheio de verve e originalidade rtmica no Scherzo, potente e voluntrio no final que resume e comenta a obra inteira, tal este Trio que coloca desde a primeira ao seu compositor no rol dos melhores da msica moderna. (Jornal do Commercio, 16/9/1916, traduo nossa)

    3 Andr Messager (1853-1929) foi membro do comit de direo da Socit Nationale de Musique, ao lado de Alfred Bruneau, Claude Debussy, Paul Dukas, Henri Duparc e Vincent dIndy, durante a presidncia de Gabriel Faur, em 1914 (Duchesneau, 1997, p. 47). Dirigiu a orquestra da Opra-Comique (1898-1903), do Covent Garden, em Londres, (1901-1907) e da Opra de Paris (1907-1913). Regeu a estreia de Pellas et Mlisande de Debussy, sendo a ele dedicada. (Angls, H., Pena, J. Diccionario de la Msica Labor, 1954, v. 2, p. 1522). 4 Vous avez dbut par un coup de matre! (A Noite, 1/9/1916, traduo nossa).

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    No ano seguinte, Darius Milhaud compartilhava da mesma opinio e ansiava

    pela sua publicao para lev-lo a Europa, conforme atesta sua carta datada de 23 de

    maio de 1917 e publicada no Jornal de Commercio no dia 28 de maio.

    Tenho a dizer-vos toda a alegria que provei ontem ouvindo vosso bonito trio. Mr. Henrique Oswald tinha-me avisado do ensaio de seu trio e do vosso no Instituto e fiquei muito feliz de ouvir as duas obras nas quais se desenham claramente os diferentes temperamentos dos dois maiores compositores do Brasil. Eu reencontrei, na audio de ontem, todas as qualidades de vigor, de grandeza, de profundidade de sentimento que havia sentido em vosso trio quando amavelmente o havia mostrado ao piano. Espero que voc o publique logo para que eu possa lev-lo Europa e o submeter a meus amigos em Paris, logo que eu retorne. (Jornal do Commercio, 28/5/1917, traduo nossa)

    Entretanto, no se conclua da a unanimidade nas consideraes a

    respeito deste Trio. Tal se depreende da Audicin de Obras de Compositores

    Brasileos ocorrida em Buenos Aires, em 10/12/1919, promovido pela Asociacin

    Wagneriana de Buenos Aires.5

    Segundo o articulista da Revista de la Asociacin Wagneriana de

    Buenos Aires,

    O Trio para piano, violino e violoncelo, de Alberto Nepomuceno, com o qual iniciou a audio, uma obra de perfeita claridade, com ideias meldicas belamente desenvolvidas e ponderada cincia musical, que deixa sempre livre o vo da inspirao. Acusa, talvez, menos que as demais do programa a influncia francesa, sem que isto signifique que se aparte dela em absoluto. (Revista de la Asociacin Wagneriana de Buenos Aires, 1919, p. 11-12, traduo nossa).

    No mesmo vis, ressaltando aspectos positivos, encontram-se

    consideraes sobre a sua forma e concepo clssicas (La Argentina,

    5 Neste concerto, alm do Trio em F sustenido menor de Nepomuceno, figuraram no programa: Il Neige, para piano, Elegie, para violoncelo e piano e Romance, para violino e piano, de Henrique Oswald; Les Cloches e Les brebis qui rentrent, para piano de Alfredo Oswald; Quarteto op. 56, para dois violinos, viola e violoncelo, de Villa-Lobos. A obra de Villa-Lobos pode ser identificada como sendo o Quarteto de Cordas n2 (1915), em virtude de seus movimentos.

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    11/12/1919), cujo tema inicial de carter severo e arcaico (La Prensa,

    11/12/1919), um recitativo gregoriano de extraordinria nobreza (La Nacin,

    12/12/1919), alm do seu notvel sentido de proporo e perfeito equilbrio entre

    as sonoridades dos instrumentos (La poca, 11/12/1919).

    Em contraponto, alguns jornais ressaltam certa falta de unidade (Tribuna

    Espaola, 11/12/1919), seu escasso interesse devido seu carter confuso e trivial

    nos ltimos movimentos (La Vanguardia, 12/12/1919), ou mesmo uma

    montona vulgaridade, que nem sequer tem a atenuante de um tema folclrico;

    simples msica italiana, de cinqenta anos, e com marcadas tendncias lricas.6

    (La Unin, 11/12/1919)

    Embora este conjunto de crticas possa ser interpretado segundo vrios

    vieses, importa neste momento decifr-lo de acordo com os aspectos tcnicos que

    o norteou. Desta maneira, talvez se conclua as razes geradoras das avaliaes

    negativas acima referidas. No entanto, interessante observar que enquanto as

    crticas de Luiz de Castro ou Messager se referiam ao modernismo deste Trio, os

    escritos argentinos detectaram alguma influncia francesa.

    Como denominador comum, encontra-se o fato de seu tema inicial ser

    percebido como bsico para toda a obra, o que remete as avaliaes a sua

    estrutura de sonata cclica. Possivelmente isto tenha contribudo para que o Trio

    fosse considerado de concepes clssicas, explicitado em seu sentido de

    proporo, e mais afastado da influncia francesa, embora seja um exagero

    consider-lo msica italiana ou trivial.

    Deve-se lembrar que Alberto Nepomuceno estudara na Schola Cantorum,

    pilar educacional da Socit Nationale de Musique, que privilegiava as grandes

    formas tradicionais (Duchesneau, 1997, p. 155), entre elas a sonata cclica. Segundo

    Vincent dIndy, diretor da Schola e sucessor de Csar Franck na presidncia da Socit

    Nationale, incluindo uma franca propaganda nacionalista em seu Cours de

    6 La sesin daba comienzo con un tro en fa sostenido menor de Alberto Nepomuceno, que consta de cuatro tiempos. En ninguno se nos dice nada nuevo: transcurren en una montona vulgaridad, que ni siquiera tiene la atenuante de un tema folklrico; es simples msica italiana, de hace cincuenta aos, y con marcadas tendencias lricas. (La Unin, 11/12/1919)

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    Composition Musicale (1909), coube Frana levar essa forma cclica perfeio pelo

    trabalho de Franck, a quem considerava herdeiro direto de Beethoven.7

    Entretanto, se a princpio a Socit Nationale era considerada por seu vis

    moderno, em finais da primeira dcada do sculo XX isto no mais ocorria. Da a

    ciso responsvel pelo estabelecimento da Socit Musicale Indpendante que

    pregava a liberdade estrutural, em oposio s formas preconizadas pela Schola.

    Assim, sintomtico que enquanto a Socit Musicale Indpendante j

    havia realizado um Festival Arnold Schoenberg em 15 de dezembro de 1927

    (Duchesneau, 1997, p. 322), este compositor s tenha sido includo nos

    programas de concertos da Socit Nationale a partir de 1938 (Duchesneau, p.

    48), apesar de isto tambm refletir um ordenamento estatutrio sobre as questes

    nacionalistas, responsveis pela prpria criao desta Socit.

    Por outro lado, levando-se em considerao somente compositores

    franceses, observa-se que enquanto alguns tinham livre trnsito entre ambas as

    sociedades, como Claude Debussy,8 membro do Comit Executivo da Nationale

    em 1893, ou Gabriel Faur (1845-1924), que foi presidente tanto da

    Indpendante, em 1910, quanto da Nationale, em 1917, outros eram exclusivos,

    como Andr Messager, vinculado Nationale e membro da sua diretoria durante

    a presidncia de Faur, ou Maurice Ravel (1875-1937), fundador da

    Indpendante em 1910, ou Darius Milhaud, acolhido de braos abertos por esta

    sociedade (Duchesneau, 1997, p. 66).

    Desta maneira, e retornando-se ao Trio de Nepomuceno, pode-se concluir

    que as consideraes efetuadas por Messager9 e Milhaud representem os

    posicionamentos estticos da Socit Nationale de Musique e da Socit

    Musicale Indpendante, respectivamente. Da o fato de este Trio, de notvel

    7 Segundo Vincent dIndy, em seu Cours de Composition Musicale, C'est la France qu'il devait appartenir de poursuivre et de raliser la transformation de la Sonate, clairement indique par Beethoven (dIndy, 1909, p. 421), cujos elementos cclicos foram organiss consciemment et dans toute leur plnitude par Csar Franck. (dIndy, p. 375). 8 Sobre a relao entre Debussy, dIndy e a Socit Nationale ver Davidian, Teresa (1991). 9 Importante observar que a inteno de Messager, de executar a obra em concertos da Socit Nationale no se concretizou, j que at 1917 no havia sido publicada (como se l na declarao de Milhaud) e a partir de outubro desse ano tal Socit fechara-se novamente para msicos estrangeiros, conforme alterao estatutria (Duchesneau, 1997, p. 47-48). Quanto a alguma programao em concertos da Socit Musicale Indpendante, nenhum registro foi encontrado.

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    sentido de proporo em sua estruturao cclica, ser considerado como obra

    moderna por Messager enquanto que Milhaud restringe-se ao seu vigor e

    profundidade de sentimento.

    No entanto, embora a forma cclica possa credenciar esta obra a algum

    vnculo com o modernismo musical, certamente este no foi o fator determinante.

    Mais fundamental se torna a observao de duas caractersticas do tema cclico,

    apresentado no incio do Trio (Exemplo 1).

    Exemplo 1 Trio em F# menor: Frase inicial, geradora dos motivos cclicos.

    A primeira delas, diz respeito ao seu carter severo e arcaico, como um

    recitativo gregoriano, reflexo do modalismo empregado que condiciona as suas

    estruturas e progresses harmnicas, particularidade esta que reverbera um dos

    vieses do modernismo musical.

    Outra caracterstica brota da especulao de uma provvel referncia a

    obras de Debussy. Se por um lado, parece haver uma citao da ideia inicial de

    Les Chansons de Bilitis (1900-1901), Exemplo 2, por outro, conforme Corra do

    Lago, em seu incio, este Trio assemelha-se, pela alternncia entre as texturas

    mondica em oitavas e cordal modal em registros semelhantes, Hommage a

    Rameau, n. 2 da primeira srie das Images (1905).

    Exemplo 2 Paralelo entre fragmento meldico do Tema do Trio de Nepomuceno com o incio de Pour invoquer Pan, Dieu du vent dt de Six Epigraphes Antigues de C. Debussy.

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    Embora em seu ttulo esteja indicado que se trata de uma obra tonal,

    tendo as relaes de mediantes cromticas e de quintas relevncia estrutural, a

    manuteno do contorno modal com a utilizao de acordes de stima sem

    trtonos, evitando assim possveis implicaes de acordes de stima da dominante

    que poderiam induzir a escalas maiores, gera certo distanciamento das implicaes

    tonais acarretando alguma ambiguidade harmnica e consequentes percepes

    politonais ou polimodais.

    Diferente das Variations sur un Thma Original, em que Nepomuceno

    explicitava a bitonalidade, neste Trio ele se vale de uma politonalidade

    ocasional, termo utilizado por Huguette Calmel para designar regies baseadas

    em agregaes harmnicas onde a sensao politonal no caracteriza tonalidades

    realmente independentes.

    Segundo Calmel, em estudo sobre as obras de Arthur Honegger, este

    tipo de politonalidade aquela onde sem que a diligncia das diferentes

    tonalidades seja realmente independente, encontra-se o emprego de acordes

    formados por superposies tonais cuja anlise diferente seria artificial

    (Calmel, 1978, p. 57).

    Assim, o emprego de agregados modais de stima sem trtonos opera uma

    transformao no sistema tonal,10 embora mantenha a direcionalidade das funes

    diatnicas com a possvel pluralidade de um espectro de centros tonais

    (Noronha, 1998, p. 28).

    Continuando nas consideraes estruturais, observa-se que embora haja

    uma eventual ambiguidade harmnica acarretada pelo emprego da politonalidade

    ocasional, deve-se manuteno das amarras ao suporte tonal a possibilidade da

    realizao de uma obra imensa, de 1096 compassos e com 50 minutos de

    durao, aproximadamente. Em outros termos, Nepomuceno torna este suporte

    mais flexvel ao empregar, ao lado do modalismo, cromatismo, progresses

    10 Segundo D. Milhaud, a anlise de um acorde uma questo convencional e arbitrria e no h nenhuma razo, por exemplo, para considerar [o] acorde de [d com] 9 maior como a superposio de um acorde de sol menor e d maior []. [] l'analyse d'un accord est une question conventionnelle et arbitraire et il n'y a aucune raison par exemple pour ne pas considrer [cet] accord de 9e majeure comme la superposition d'un accord de sol mineur et d'ut majeur []. (Milhaud, 1923, p. 32).

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    diminutas e escala de tons inteiros, sem quebrar uma tradio formal j

    sedimentada, produzindo assim uma grande estrutura.

    Destarte, pode-se verificar que esta obra de grande dimenso

    apresenta a ordenao de seus movimentos de acordo com a crena de Vincent

    dIndy, apregoado em seu Cours de Composition Musicale, isto , Sonata,

    Lento, Moderado e Rpido, sendo esta uma prtica formal ainda corrente,

    conforme testemunham o Trio op. 45 (1916) de Henrique Oswald, executado

    no mesmo recital de 31 de agosto de 1916, ou no Trio n1 (1911) de Heitor

    Villa-Lobos.

    Contudo, no eram mais novidade as modificaes nas formas musicais

    resultantes do contedo empregado, devidas ao questionamento das tcnicas de

    composio musical, como as exploraes tmbricas ou harmnicas.

    Mantendo-se o foco na forma cclica, tais transformaes podem ser

    diagnosticadas tanto no Quarteto de Cordas (1893) ou na Sonata para violoncelo

    e piano (1915), de Claude Debussy, quanto no Quarteto de Cordas n2, op.10,

    em F sustenido menor (1907-08), de Arnold Schoenberg.

    Enquanto em seu Quarteto Debussy se vale, alm de um tema cclico, de

    uma identidade tmbrica como elemento recorrente e unificador de seus

    movimentos, em sua Sonata para violoncelo e piano, pelo emprego de um

    material subsidirio do primeiro movimento em seu movimento final, Debussy

    subverte um dos princpios da organizao cclica: o reconhecimento do tema.11

    J Schoenberg apresentou uma alternativa inusitada como soluo ao

    dilema enfrentado em seu Quarteto de Cordas n2, obra de transio que,

    embora ainda tonal, j tomava ares atonais. Segundo seu compositor, tratava-se

    de seu retorno a uma obra cclica, baseada em dois grupos de temas principais e

    alguns subsidirios. No entanto, o seu contedo harmnico, que abandonava a

    proteo do sistema tonal, exigia uma soluo formal para viabilizar a realizao

    de um quarteto. Logo, o emprego de um poema, do simbolista Stefan George, em

    seu terceiro e quarto movimentos, mostrou-se como uma alternativa possvel para

    a sua concretizao. Alm disto, tendo o primeiro movimento um

    11 Sobre a utilizao por Debussy da forma cclica, ver Wheeldon (2005).

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    desenvolvimento restrito e o segundo a sua omisso, coube ao seu terceiro

    movimento, estruturado como Tema e Variaes e cujos motivos geradores so

    oriundos dos dois tempos anteriores, atuar como seo de desenvolvimento do

    Quarteto, segundo Anton Webern (1883-1945).12 Desta maneira, alm da

    introduo de texto em um Quarteto de Cordas, uma viso panormica conduz a

    idealizar uma obra de um nico movimento com quatro subdivises (sees A e B,

    desenvolvimento, final).

    Outro vis questionador da manuteno das grandes formas musicais,

    principalmente daquelas oriundas da tradio wagneriana e empregadas por

    Richard Strauss e Gustav Mahler, manifestou-se no cultivo das miniaturas.

    Diferentemente do esgotamento formal oriundo do emprego da tcnica atonal,

    naturalmente geradora de miniaturas, a mesma tendncia se manifestou em

    algumas obras onde o tonalismo ainda era fundamental. Tal o caso das Sinfonias

    de Cmara (1917-1923) de Darius Milhaud, cuja primeira, Le Printemps, foi

    estreada no Brasil, em 22 de agosto de 1918, sob a batuta de Alberto

    Nepomuceno (Corra do Lago, 2005, p. 56).

    Logo, a maneira que Nepomuceno emprega a modalidade, o cromatismo,

    as progresses de acordes diminutos ou as formaes de tons inteiros no gerou a

    necessidades de afastamento da forma tradicional da msica de cmara. Assim, a

    sua contribuio para o modernismo musical possivelmente se encontre mais em

    seu trabalho harmnico que formal ou instrumental.

    Novamente, considerando os exemplos citados e tendo as crticas

    portenhas como pano de fundo, possivelmente este vnculo formal com a tradio

    seja um dos fatores responsveis pelas ponderaes sobre a falta de atualidade

    desta obra.

    12 Sobre o Quarteto de Cordas n2, op.10, de A. Schoenberg, ver: Samson (2002, p. 104-113). Tambm como referncia, a anlise realizada pelo prprio compositor que consta no lbum Neue Wiener Schule Schoenberg, Berg, Webern, Streichquartette. Hamburg: Deutsche Grammophon, n. 419.994-2, 1971, p. 42-57.

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    Consideraes analticas

    A anlise do Trio mostra uma obra de extrema complexidade,

    apresentando o seu primeiro movimento na forma sonata cclica com Introduo e

    Coda (Tabela 1).

    Tabela 1 Resumo estrutural do primeiro movimento

    Por sua vez, cada seo subdivide-se em vrias partes onde ao motivo

    cclico associa-se um carter dinmico especfico, singularizando um tema-

    personagem que, conforme dIndy, o elemento que permite a unificao

    cclica dos diversos trechos da obra (dIndy, 1909, p. 377). Assim, tem-se que o

    componente e suas variantes esto associados ao Molto lento, enquanto o

    elemento ao Doppio movimento. J o componente A, vincula-se ao Allegro

    energico e marcato, enquanto B1 est relacionado com o Meno mosso ou Meno

    mosso e calmo, respectivamente na exposio e na reexposio, da mesma

    forma que B2 ao Un poco pi mosso e ao Agitato. Na seo de

    desenvolvimento, esta associao se confirma pela organizao das regies

    temticas de acordo com suas afinidades de carter. Em outras palavras, estando

    o desenvolvimento subdividido em 3 sees, Nepomuceno aproxima as

    figuraes A (Allegro enrgico marcato) e B2 (Un poco pi mosso), seguindo-se

    de B1 (Meno mosso). Resulta da um primeiro bloco Enrgico come prima (A-

    B2) seguido de outro Meno mosso e calmo (B1). Desta maneira, devido

    inverso dos motivos cclicos da segunda regio temtica, o carter geral da

    exposio est mantido.

    Em sua introduo Molto lento-Doppio movimento-Molto lento come

    prima, de forma ternria, (-)--, encontram-se os motivos meldicos cclicos

    que posteriormente sero transformados e desenvolvidos (Exemplo3).

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    Exemplo 3 Desenvolvimento motvico

    Em seu primeiro perodo (), duas texturas distintas so apresentadas.

    A primeira, onde o tema principal encontra-se explcito, uma monodia em

    oitavas graves que progride do quinto ao primeiro graus de F sustenido

    menor elio, seguida por outra cordal arpejada que acompanha

    movimentaes meldicas no violino e no violoncelo e conclui em uma

    cadncia no quinto grau.

    O perodo seguinte () parece afirmar a tonalidade com a repetio da

    textura mondica na tonalidade principal. Entretanto, por um movimento

    cromtico, a textura cordal progride em D menor elio antes de concluir em R

    maior, sexto grau do tom principal.

    A prxima seo da introduo, , apresenta o tema que ser utilizado na

    primeira regio da exposio (A), alm de ser harmonicamente expandida no

    desenvolvimento. Subdividindo-se em 3 regies, exibe progresses harmnicas

    mais complexas. Assim, 1 progride de Sol menor elio para L maior, (bemol ii7-

    III), sendo que suas progresses se caracterizam pelo emprego de acordes de

    stima sem trtonos. Em 2, que repete a mesma textura, progride de Mi menor

    elio D9/7 sustenido maior, (vii7-V9/7), em uma progresso de dominantes

    individuais sem resoluo. J 3 torna-se uma regio enigmtica e atonal, que

    progride cromaticamente enquanto as vozes das cordas so tratadas

    polifonicamente (Exemplo 4).

  • L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no Trio em F# menor (1916) ________________________________________________________________________________

    66

    Exemplo 4 Figurao de 3, cromatismo atonal

    A introduo termina com a recapitulao da primeira seo, (), agora

    com o predomnio de uma textura polifnica que contrapem a monodia inicial

    de , no piano, com uma nova variao motvica no violino e no violoncelo. Sua

    concluso se d por um movimento cadencial dissimulado devido a ausncia da

    sensvel, o que refora o seu carter modal. Colabora ainda com este sentido

    cadencial a movimentao dos baixos, em uma relao v-i, em conjunto com uma

    rarefao de suas densidades e dinmicas. Por fim, um extenso pedal de F

    sustenido, apoia uma harmonia oscilante no quinto grau, concluindo em F

    sustenido menor com a sexta agregada (Exemplo 5).

    Exemplo 5 Cadncia final da Introduo

    No compasso 51 tem incio a exposio, com sua primeira regio

    temtica Allegro enrgico e marcato (A). Como j mencionado, a figurao

    temtica da melodia j havia sido apresentada pelo violoncelo na seo da

    introduo, estando agora tratada por aumentao na tonalidade de F

    sustenido menor (Exemplo 6).

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    67

    Exemplo 6 Incio da primeira regio temtica

    A resposta do violino, em L menor, inicia no compasso 62,

    mantendo, estruturalmente, uma relao de mediante cromtica com a

    exposio anteriormente apresentada pelo violoncelo, concluindo em uma

    cadncia suspensiva.

    Estes dois teros iniciais desta primeira regio temtica caracterizam-se

    pelo emprego constante de acordes de stima, preferencialmente sem trtonos, e

    pela falta de resoluo em seus encadeamentos, invariavelmente apresentados

    sem a sensvel.

    O tero final desta seo, diferencia-se pela utilizao de encadeamentos

    de acordes aumentados, sugerindo o emprego de tons inteiros (Exemplo 7).

    Conclui em uma cadncia suspensiva diminuta, [(ii) sustenido], encaminhando-se

    para a transio segunda regio temtica.

    Exemplo 7 Sugesto de tons inteiros

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    68

    A transio segunda regio temtica Animato () segue a figurao

    meldica do tero final da regio A, extrada da melodia inicial do Trio, sendo esta

    figurao um dos elementos cclicos mais importantes. Observa-se ainda uma

    maior proximidade com , da introduo, devido a semelhana entre as texturas

    empregadas, apesar da fragmentao meldica. Harmonicamente, progride pelas

    tonalidades de D sustenido menor - Mi menor - Sol menor, sendo esta ltima

    prolongada sobre baixos cromticos.

    Nos compassos 105-144 principia a segunda regio temtica Meno mosso

    (B), que se divide em 3 subsees. A primeira, B1, que se desenvolve entre os

    compassos 105-112, inicia-se por uma aparente configurao polimodal e

    politonal, sugerida pela sobreposio de um pedal de R maior nas cordas a uma

    figurao temtica em Si menor elio no piano. Entretanto, a conduo da voz

    interna do piano orienta a fixao de R maior como tonalidade bsica, embora

    no haja cadncias harmnicas que a defina.

    Tambm aqui pode ser observado o tratamento de mais dois elementos

    cclicos: o emprego de acordes arpejados e os trmolos. O elemento arpejado j

    pode ser encontrado na introduo do Trio, remetendo a sonoridade da harpa

    pela ambientao criada, bem como na intensificao da densidade do

    acompanhamento empregado na primeira regio temtica.

    Esta seo, B1, caracteriza-se por uma expresso mais delicada e etrea, em

    contraste com a ebulio da primeira regio temtica (A). Tal expresso obtida pela

    combinao de um conjunto de elementos, tais como o distanciamento entre os

    registros empregados, o andamento menos movido, a dinmica pianssimo e a linha

    ascendente de trmolos intercalados por pausas (Exemplo 8).

    Na subseo seguinte, B2, Un poo pi mosso, compassos 113-128, os

    desenvolvimentos motvicos so relevantes e asseguram a unidade dos elementos

    meldicos. A melodia apresentada, primeiramente pelo violino, oculta um

    elemento linear ascendente, marcado com crculos na figura abaixo (Exemplo 9), e

    outro composto de um salto de oitava seguido da sua stima, ou segunda se

    realizado o tratamento da inverso intervalar, marcado por um retngulo. Estes

    elementos esto presentes na figurao de parte considervel do

    acompanhamento do piano.

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    69

    Exemplo 8 Transio e incio da Segunda Regio Temtica

    Exemplo 9 Desenvolvimento motvico

    possvel ainda observar a unidade cclica ao efetuar-se um paralelo entre

    as figuraes meldicas de B2 e de A, conforme a figura abaixo (Exemplo 10).

    Exemplo 10 Desenvolvimento motvico entre A e B2

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    70

    Desta maneira, observa-se que tanto o elemento motvico linear quanto os

    desvios de figurao entre os diversos elementos meldicos tambm se relacionam

    com um fragmento da frase inicial do Trio, importante componente para a forma

    cclica da obra (Exemplo 11).

    Exemplo 11 Motivos temticos

    Harmonicamente uma regio menos complexa, onde as progresses

    cromticas no baixo so o fio condutor. Desta maneira, avana de Si menor elio

    para Si bemol maior e da para F sustenido menor elio. Conclui de forma plagal

    novamente em Si menor elio.

    Encerra-se a segunda regio temtica retornando ao Meno mosso, B1,

    sendo agora uma reexposio resumida de B1 em uma disposio distinta. Desta

    vez o pedal de R maior encontra-se no piano, enquanto a figurao meldica,

    em stretto, ambienta-se nas cordas, que concluem com um grande pedal de R

    maior que se prolonga por seis compassos. Interessante observar a sobreposio

    de dois pedais ao final: enquanto as cordas apresentam um ambguo F sustenido

    em posio de quinta, o piano, por sua vez, mantm o pedal de R, tambm em

    posio de quinta.

    Novamente os elementos cclicos trmolo e arpejo de duas oitavas so

    empregados no acompanhamento do piano com certa complexidade rtmica

    devido a utilizao da proporo 8x6.

    O desenvolvimento, compassos 145-202, mantm a estrutura ternria j

    empregada na introduo e segunda regio temtica, na forma A-B2-B1.

    Entretanto, a semelhana com a seo A da exposio restringe-se a sua figurao

    meldica. Desta vez, a textura est mais densa, j que polifnica imitativa entre as

    cordas, enquanto o seu ritmo harmnico mais dinmico, baseando-se na

    progresso harmnica da parte 1 da introduo.

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    Desta forma, a poro A do desenvolvimento segue uma inusitada

    progresso entre Sol menor e D menor ao efetuar um desvio por dominantes

    individuais, conforme ilustrado a seguir.

    Sol menor: i7-VI-i-III7-VI7-vii

    D menor: iv-v-iv7-vii7-iv7-v-iv7-III- II-(V) III-(V)II-(V)V-III-V-i

    Segue uma nova exposio meldica de A, agora progredindo de D

    menor F sustenido menor.

    A seo B2, Exemplo 12, mantm a textura linear de A, embora mais

    densa em virtude dos amplos arpejos do piano. Sua densidade cromtica, no

    entanto, cria uma regio de complexa compreenso harmnica, j que realizada

    em progresses harmnicas remotamente relacionadas. Contudo, sua concluso

    ocorre em uma cadncia IV-I, em Mi maior, retomando B1(Exemplo 12).

    Encerrando a seo de desenvolvimento, retorna-se ao politonalismo

    ocasional e regularidade formal de B1. No entanto, o vnculo com a parte anterior,

    B2, continua pela manuteno, no violoncelo, da sua figurao rtmica em ostinato.

    Novamente o elemento de transio apresentado, transposto uma

    tera menor acima, reconduzindo reexposio onde A repetida literalmente.

    Uma terceira exibio de , extremamente condensada e disposta em relao de

    mediantes, conduz segunda regio temtica, B.

    Por sua vez, a reexposio de B segue a tradio da resoluo dos conflitos

    harmnicos gerados no transcurso deste movimento. Destarte, mantendo a mesma

    estrutura regular, B1 encontra-se em F sustenido maior; B2 reapresentada uma

    tera maior acima da sua realizao na exposio; termina com a reexposio de

    B1. Conclui com um longo pedal de F sustenido maior.

    Este primeiro movimento finaliza com uma Coda que resgata o

    temperamento grave do incio da obra. O ciclo se fecha com a reapresentao do

    material da introduo, encerrando-se por uma cadncia plagal.

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    72

    Exemplo 12 Desenvolvimento, seo B2

    O segundo movimento, ao lado do primeiro, recebeu os mais positivos

    comentrios de seus crticos. Fazendo-se uma composio entre eles, talvez melhor

    se perceba a ndole deste Lentamente: Particularmente expressivo (La Argentina,

    11/12/1919) e atraente (La Razn, 11/12/1919), o comovente (Messager,

    16/9/1916) movimento lento transmite um profundo sentimento (Luiz de

    Castro, 1/9/1916) de indiscutveis belezas (Tribuna Espaola, 11/12/1919).

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    73

    Pelo fato de no oferecer surpresas formais (Tabela 2), j que segue a

    forma da Sonate lente avec dveloppement, conforme terminologia empregada

    por Vincent dIndy (dIndy, 1909, p. 301), deve-se ao seu contedo expressivo

    suscitar tais sentimentos.

    Tabela 2 Resumo estrutural do segundo movimento

    Possivelmente a sua maior proximidade com a tradio, j que

    estruturada em tonalidades diatonicamente relacionadas, o tenha tornado mais

    palatvel. No entanto, mantm-se a predominncia da densidade das progresses

    de harmonias de stima sem trtono, o que lhe d uma cor caracterstica.

    Assim, harmonicamente este movimento progride em sua macroestrutura

    nas tonalidades vizinhas de seu tom principal. Em outras palavras, enquanto a

    seo A de sua exposio apresenta um novo material meldico em Si maior, aps

    uma curta transio, B exibe uma variao do motivo cclico (Exemplo 13) em

    Sol sustenido menor elio (deve-se lembrar que o elemento modal), seu

    relativo menor. J em sua reexposio, as tonalidades/modalidades envolvidas so

    as homnimas Si maior e Si menor elio.

    Exemplo 13 Variao do motivo cclico

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    74

    Alm das relaes harmnicas citadas, isto , de uma organizao tonal

    contrastando com outra modal, outros elementos definidores das regies A e B

    so, respectivamente, a textura cordal frente linear, alm da aggica lentamente

    contraposta ao molto espressivo, con ansia.

    Em seu curto desenvolvimento, construdo sobre fragmento de A, observa-

    se o emprego de um cnone invertido entre as vozes das cordas, sob o qual o

    piano realiza um acompanhamento cordal em escala ascendente. Sua progresso

    harmnica, no entanto, encontra-se em relao de mediante cromtica com a

    tonalidade bsica de Si maior, substituindo-a como referncia na seo. Desta

    maneira, encontra-se nesta seo uma progresso entre R menor e F Maior,

    ambas em relao diatnica de proximidade.

    Duas particularidades ainda devem ser abordadas neste

    desenvolvimento. Aps atingir a tonalidade de F maior, e antes de convert-

    lo em uma harmonia de stima da dominante, ocorre um desvio harmnico

    para L bemol maior, uma pequena dissimulao que retorna repentinamente

    para a progresso Mi7 menor, Sol7 menor, D menor e, por fim, F7 maior,

    fechando em uma cadncia suspensiva. A seguir, observa-se o abrupto retorno

    a Si maior, incio da reexposio.

    Conclui em uma coda que recapitula a seo A. Interessante observar

    neste final a inteno expressiva por Nepomuceno ao empregar surdinas nas

    cordas em conjunto com a indicao Con racoglimento. Neste contexto, enquanto

    o violino apresenta uma variao rtmica da melodia e o violoncelo mantm um

    baixo de dominante, o piano realiza uma escala ascendente de pouco mais de

    duas oitavas, em dinmica pianssimo e com articulao ligada. Possivelmente

    aqui se possa inferir a antecipao da simbologia utilizada em Le Miracle de la

    Semence, que ser abordada na prxima seo, na busca pelo infinito.

    O terceiro movimento, na forma Scherzo-Trio, embora tambm no

    apresente novidades formais (Tabela 3), combina um elemento potencialmente

    desestabilizador, a escala hexatnica, com uma estrutura definitivamente

    dependente das relaes diatnicas. Assim, deve-se aos modelos rtmicos

    empregados a estabilizao da estrutura como um todo.

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    Tabela 3 Resumo estrutural do terceiro movimento

    Sua originalidade rtmica, que j havia sido diagnosticada tanto por Andr

    Messager em seu concerto de estreia, em 1916, quanto na Audicin de Obras de

    Compositores Brasileos, trs anos aps (La Prensa, 11/12/1919), origina-se da

    variao rtmica de um dos motivos cclicos extrados da regio da introduo

    do Trio (Exemplo 14), fundamental na seo A do Scherzo.

    Exemplo 14 Tema cclico e sua variao rtmica

    No entanto, seus encadeamentos harmnicos tambm guardam

    sonoridades e movimentos inslitos, como se observa na sua tonalidade inicial, Si

    menor, camuflada por figurao de tons inteiros, ou nas relaes no diatnicas

    apresentadas na seo B do Scherzo.

    Estruturalmente, a exposio da primeira seo fixa a tonalidade (a

    Exemplo 15), enquanto sua repetio (a) a conduz dominante, preparando a

    entrada de B.

    Em sua seo B, uma nova figurao meldica torna sua movimentao

    mais fluida, enquanto o piano mantm um ostinato rtmico extrado do modelo

    de seu primeiro compasso. Harmonicamente realiza o arco Si maior - Mi bemol

    maior Si maior. Segue-se a reexposio de a, onde se manifesta uma

    ambiguidade harmnica: embora esta seo esteja em Si maior, seu final, aps um

    compasso de silncio, pontua a movimentao V-I em R maior.

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    76

    Exemplo 15 Incio do Scherzo exposio a

    O Trio, um Quasi andante em L maior, mais gracioso e expressivo que

    o Scherzo. Nele as relaes harmnicas so preferencialmente diatnicas e em sua

    figurao meldica encontra-se uma lembrana da primeira regio temtica da

    exposio do segundo movimento (Exemplo 16).

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    Exemplo 16 Elemento cclico do 2 movimento encontrado no Trio

    Estruturalmente, pode-se definir uma forma ternria contnua, no

    seccional, definida por suas texturas, tendo, perto de seu final, um enxerto a

    tempo giocoso, em tons inteiros. Em sua transio de retorno ao Scherzo,

    apoiado novamente em um ritmo ostinato, encontra-se uma raridade na tcnica

    composicional de Nepomuceno: uma passagem polimtrica de 3/4 contra 5/8

    (Exemplo 17).

    Exemplo 17 Trecho polimtrico na transio do Trio reapresentao do

    Scherzo

    Segue-se a reexposio quase literal do Scherzo, diferenciando-se somente

    na seo B que, ao progredir no arco F sustenido maior -Si bemol maior - F

    sustenido maior, prioriza a regio de dominante da tonalidade principal, Si

    menor, embora, novamente, conclua em R maior.

    Por fim, seu quarto movimento volta densidade e complexidade

    encontrada no movimento inicial da obra. Tal como nas partes anteriores,

    vale-se de um modelo da tradio, a forma sonata, para que seu contedo seja

    comunicado. Pode-se considerar que, em virtude de suas progresses entre

    harmonias remotas e de seu denso cromatismo, a utilizao desta estrutura

    musical atue como ncora para a realizao de algo inteligvel. Isto pode ser

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    78

    inferido pelo fato de que, apesar dessas progresses, suas principais sees

    procuram se manter prximas das concepes de tenso e resoluo que

    estruturam essas formas. Seu resumo estrutural pode auxiliar na compreenso

    das relaes das vrias sees deste movimento (Tabela 4).

    Tabela 4 Resumo estrutural do quarto movimento

    Como se viu, Messager, em sua considerao sobre este Trio, constatou

    que este ltimo tempo resumia e comentava a obra inteira. No entanto, sua

    inteno no se restringe a, j que tambm se mostra como um componente

    complementar ao restante da composio.

    Tais diagnsticos podem ser confirmados na introduo encontrada nas

    sees de Exposio e Reexposio, bem como em sua Coda, tanto quanto nos

    motivos geradores das 1 e 2 regies meldicas.

    Assim, no incio deste ltimo movimento encontra-se o resumo da

    introduo do primeiro tempo do Trio, isto , aps fragmento do motivo inicial

    aumentado, excerto de , cuja fermata a seguir contm a expresso de seu

    complemento, segue-se um recitativo contrapontstico a duas vozes nas cordas que

    nada mais do que uma lembrana da mesma figurao meldica executada na

    reexposio daquela seo introdutria, (Exemplo 18).

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    Exemplo 18 Incio do 4 movimento: Condensao de e da introduo

    do 1 movimento

    Em sua continuao, novamente o excerto de encontrado, agora em

    tratamento sequencial uma segunda maior abaixo, apresentando como

    consequente o restante da melodia de .

    Importante observar o desenvolvimento motvico realizado por

    Nepomuceno no elemento meldico realizado pelas cordas. Como se mostra no

    Exemplo 19, a figurao de (1) pode ser considerada a matriz de (2), da

    figurao 3, seu complemento nesta introduo, bem como do elemento meldico

    da seo B (4) deste movimento.

    Exemplo 19 Desenvolvimento motvico: primeiro grupo

    Ainda deve-se levar em considerao a importncia cclica assumida pelo

    componente ao transformar-se no mote das sees que molduram a seo B, em

    R maior e, posteriormente, em F sustenido maior.

    J em sua Coda, o resumo de sua introduo d lugar a expresso integral

    da frase geradora da obra, que reaparece em um Largo maestoso tratada por

    aumentao, onde a modalidade inicial cede tonalidade maior.

    Seu aspecto complementar aos demais movimentos deve-se ao motivo

    gerador do elemento meldico da seo A, utilizado pela primeira vez na obra.

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    80

    Interessante observar as fragmentaes da frase geradora do primeiro movimento

    e de suas parties como motivos cclicos para o restante da obra (Exemplo 20).

    Exemplo 20 Partio motvica entre os movimentos do Trio

    Assim, o trecho inicial da segunda metade desta frase fragmentado e

    variado cromaticamente em retrogradao, gerando a o motivo meldico da

    primeira seo temtica (Exemplo 21).

    Exemplo 21 Desenvolvimento motvico para a seo A

    Retornando recepo pblica do Trio, tambm uma srie de

    diagnsticos negativos lhe foi atribudo. Em sua execuo portenha, este

    movimento foi considerado confuso (La Vanguardia, 12/12/1919), responsvel

    pela falta de unidade (Tribuna Espaola, 11/12/1919) e consequente

    enfraquecimento da obra.

    Parcialmente se encontra a justificativa para isto por ser a parte mais

    hermtica do Trio, em virtude de seu denso cromatismo, gerador de um constante

    senso de falta de centro tonal, alm de efetivamente empregar encadeamentos

    harmnicos de remotssima relao diatnica.

    Assim, aps a sua introduo e tendo como motivo a variao retrgrada,

    a seo A inicia com um longo trecho cromtico que beira ao atonalismo

    (Exemplo 22), resultante da sobreposio polifnica entre o piano e as cordas,

    antes de chegar ao porto seguro de F sustenido menor, progredindo da para Mi

    bemol menor, D menor e L bemol menor. Segue-se uma sequncia cromtica

    de quintas aumentadas e de acordes de stima da dominante. Logo, tem-se

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    81

    que o cromatismo o elo condutor desta seo que conduz a uma breve

    transio para a seo B.

    Exemplo 22 Incio cromtico da seo A

    A segunda regio, B, em forma ternria, remete-se a mesma estrutura

    condensada do incio do movimento, embora muito mais ampliada. O curto

    fragmento mondico, em R maior, encontra-se expandido por repetio e

    tratamento sequencial, emoldurando a seo intermediria. Tambm aqui pode

    ser constatado o emprego da figurao em oitavas, configurando outro elemento

    cclico j que frequente em todos os movimentos do Trio (Exemplo 23).

    Exemplo 23 Incio da seo A, baseada em fragmento do motivo mondico

    Por sua vez, a seo intermediria tem a sua melodia construda a partir

    da resposta das cordas ao fragmento mondico do incio do movimento,

    conforme tratado anteriormente e ilustrado no Exemplo 19. Tambm subdividida

    em trs partes, definidas harmonicamente pela progresso Si maior - D maior -

    D menor (Exemplo 24), verifica-se que enquanto as duas primeiras, sequenciais,

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    82

    concluem em cadncia suspensiva, a ltima, uma variao de seu fragmento

    descendente, conduz ao retorno da seo moldura, em R maior. Ao final, o

    rebaixamento para R bemol maior encaminha a volta do cromatismo na seo

    de Desenvolvimento.

    Exemplo 24 Parte intermediria da seo B

    Em sua seo de Desenvolvimento, o gesto romntico se manifesta no

    lirismo empregado, resultante tambm do predomnio de acompanhamento

    arpejado no piano. Novamente Nepomuceno se vale da tripartio, entretanto

    supervalorizando a regio B.

    Na primeira parte, que tem como fundamento motvico a figurao do

    trecho A da Exposio, h o retorno do cromatismo cena, o que reflete as

    progresses harmnicas empregadas. Desta forma, e devido textura polifnica,

    notas no diatnicas so agregadas aos acordes ao mesmo tempo em que h a

    predominncia de harmonias de stima, diminutas ou sequncias de acordes por

    trtonos. A grande densidade do trecho deve-se tambm a evaso das suas

    resolues tonais, o que torna mais turva as suas identificaes (Exemplo 25), que

    aqui progridem entre D menor, Mi bemol menor e F maior.

    Particular interesse se encontra em dois encadeamentos que mantm a

    tenso do movimento. O primeiro revela uma resoluo inusitada, na passagem

    entre os compassos 4 e 5 do Exemplo 25, onde um acorde diminuto do segundo

    grau, sobre pedal de dominante, evita a resoluo tradicional no quinto grau ao

    ser conduzido a este rebaixado, agrupado como stima da dominante (ii7/5-

    bemol V7). O seguinte, entre os compassos 6-8, pode ser observado na

    movimentao que a formao harmnica por trtonos realiza, onde encontra

    a sua resoluo em um acorde de stima da dominante (Mi bemol 7 maior)

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    83

    que, entretanto, evita a resoluo ao encadear-se em uma harmonia de nona

    (D9/7 maior).

    Os dois teros restantes deste Desenvolvimento se detm em elementos

    oriundos da regio B da exposio. Contudo, o inesperado no se restringe s suas

    progresses harmnicas, que se mantm no mesmo vis at agora empregado dos

    encadeamentos no diatnicos. Neste incio, Nepomuceno eleva um tema

    subsidirio, que atuava como contraponto de B em sua Exposio, melodia

    principal (Exemplo 26).

    Exemplo 25 Incio do trecho A do desenvolvimento

    Exemplo 26 Incio do trecho B do desenvolvimento

    No obstante, embora ainda seja possvel pelas figuraes meldicas das

    cordas definir as tonalidades das suas regies, Si bemol maior e R maior, a

    harmonizao realizada no as torna evidentes, j que parecem orientar para

    terrenos indefinidos, isto , a expectativa meldica parece divergir da harmnica.

    A soluo desta aparente incompatibilidade realiza-se pelo elemento cromtico

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    que surge como condutor da movimentao expressiva. Logo, aps uma sequncia

    cromtica de acordes aumentados, entra-se no ltimo tero do Desenvolvimento.

    Em seu ltimo tero, a melodia principal de B reapresentada. Todavia,

    desta vez o piano a realiza solo, transposta uma segunda maior acima e nas

    tonalidades menores de D sustenido e R. Intermediando estas exibies,

    encontra-se um recitativo de fragmento da melodia subsidiria anteriormente

    utilizada. Encerra com uma cadncia suspensiva no segundo grau da tonalidade de

    F sustenido menor, (ii7)i.

    A conduo Reexposio se d pelo mesmo elemento meldico das

    demais transies deste quarto movimento, aparentado ao fragmento mondico

    do incio, j na tonalidade principal da obra. Harmonicamente, trata-se de uma

    cadncia suspensiva sobre um acorde de stima diminuta.

    Na seo de Reexposio, Nepomuceno repete literalmente o material

    empregado na introduo e na 1 regio temtica da exposio. A alterao, de

    acordo com a expectativa da forma sonata, se d pelo resgate da 2 regio

    temtica das tonalidades remotas em que se aventurava na Exposio para a

    tonalidade principal do Trio, F sustenido. Assim, o material empregado na regio

    B encontra-se agora transposto uma tera maior acima e em seu modo maior,

    onde estabelece a progresso harmnica F sustenido maior/Mi bemol maior-Mi

    maior-Mi menor/F sustenido maior.

    Como Coda, a frase inicial do Trio, em variao rtmica faz o fechamento

    Largo maestoso em F sustenido maior. Desta vez, o carter grandioso obtido

    pelo unssono do tutti em fortssimo.

    Assim, aps esta anlise, observam-se como elementos bsicos na

    construo deste Trio o emprego de relaes de mediantes cromticas costuradas

    por cromatismos que assumem funes estruturais j que substituem os padres

    cadenciais convencionais.

    No entanto, considerando-se que esta tcnica no era uma exceo, pois

    j encontrada em alguns Lieder de Hugo Wolf, deve ser observado que se tratava

    de uma importante conquista da tcnica musical do final do sculo XIX, embora

    tivesse como ponto de partida as ltimas obras de Beethoven.

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    Conforme demonstrado por Deborah Stein em Hugo Wolfs Lieder and

    the Extensions of Tonality (Stein, 1985) o emprego de relaes de mediantes

    cromticas carrega intrinsicamente ambiguidades funcionais que podem ocasionar

    uma organizao tonal muito mais complexa ou mesmo levar ao rompimento das

    relaes de tonalidade fixadas pela tradio.

    Neste Trio, contudo, Alberto Nepomuceno no se restringe utilizao de

    uma cadeia de mediantes estruturalmente dispostas, agregando um outro

    elemento que no s ser responsvel pelo colorido da obra, mas que tambm

    reforar as ambiguidades tonais. Trata-se do modalismo que, invariavelmente

    harmonizado por acordes de stima sem trtonos, acarreta a percepo de uma

    politonalidade ocasional. Importante observar que esta qualidade de acorde, por

    no possuir a nota atrativa que o transfiguraria em uma dominante, refora o seu

    carter modal.

    Ainda deve ser mencionada a utilizao da escala hexatnica, sinnimo de

    Debussy, como elemento estruturante e colorstico que, em conjunto com

    progresses aumentadas e diminutas sem resoluo concorrem para o turvamento

    de sua compreenso harmnica.

    A soluo para a combinao destes elementos de expanso tonal, que

    causam distanciamento da tradio romntica e abrem caminhos para uma nova

    expresso, manifesta-se em uma forma de compensao atravs do emprego de

    padres motvicos rtmicos e meldicos e por algum tipo de simetria formal.

    (Stein, 1985, p. 221). Assim, Nepomuceno apresenta uma forma cclica

    extremamente simtrica em cada um de seus movimentos.

    Destarte, Nepomuceno apresenta uma obra ecltica, cujo cromatismo e

    densidade aproximam-se da expresso da msica germnica enquanto parte de

    seu colorido modal e hexatnico o colocam na direo da msica francesa.

    Contudo, pela maior nfase naquela, possvel entender o porqu para o crtico

    da Revista de la Asociacin Wagneriana de Buenos Aires este Trio seria a obra de

    menos influncia francesa daquele programa de msica brasileira.

    Logo, mesmo que este Trio em F sustenido menor no seja de fato a

    primeira obra de cmara de Nepomuceno, como pressupunha Messager, pois j

    havia composto os Quartetos de Cordas em finais do sculo XIX, fica patente a sua

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    importncia no conjunto da sua produo artstica e para a moderna msica de

    cmara brasileira, tal como expressou Henrique Oswald na crtica de Luiz de

    Castro para A Noite, em setembro de 1916.

    No hesito em afirm-lo, porque essa opinio de outros mais competentes do que eu, como Henrique Oswald, que no hesitou em dizer, com a mais absoluta sinceridade, que no conhece na moderna literatura de trio nenhuma obra que lhe seja superior. (A Noite, 1/9/1916)

    Tal diagnstico compartilhado por musiclogos que consideram ser esta

    obra uma das mais importantes de Alberto Nepomuceno. Almeida (1942, p. 433)

    refere-se ao Trio como uma das suas melhores peas de msica de cmara;

    Azevedo (1956) o considera uma das composies mais importantes nos ltimos

    anos do compositor; Neves (1977, p. 22) o julga de grande importncia.

    Entretanto, e aps a anlise realizada, torna-se intrigante o fato de ela somente ser

    citada de passagem nas biografias do compositor.

    Referncias

    ALMEIDA, Renato. Histria da Msica Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Briguiet, 1942. ANGLS, H., Pena, J (org.). Diccionario de la Msica Labor. Barcelona: Editorial Labor, 1954.

    AZEVEDO, Luiz Heitor Corra de. 150 anos de msica no Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1956.

    CALMEL, Huguette. Quelques aspects de la polytonalit dans luvre dArthur Honegger. LEducation Musicale. v. 35, nov., p. 57-61, 1978. CORRA do LAGO, Manoel Aranha. O Crculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil: Modernismo musical no Rio de Janeiro antes da Semana. Tese (Doutorado em Msica). Programa de Ps-Graduao em Msica do Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2005.

    DAVIDIAN, Teresa. Debussy, dIndy and the Socit Nationale. Journal of Musicological Research. v. 11, p. 285-301, 1991. DINDY, Vincent. Cours de Composition Musicale, tomo 2, parte 1. Paris: Durand, 1909. DUCHESNEAU, Michel. LAvant-garde musicale et ses socits Paris de 1871 1939. Lige: Mardaga, 1997.

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    MILHAUD, Claude. Polytonalit et Atonalit. Revue Musicale. v. IV, n. 4, fev. 1923, p. 29-44

    NEVES, Jos Maria. Msica Contempornea Brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1977.

    NORONHA, Lina Maria Ribeiro de. Politonalidade: discurso de reao e trans-formao. So Paulo: Annablume, 1998.

    SCHOENBERG, Arnold. Neue Wiener Schule Schoenberg, Berg, Webern, Streichquartette. Hamburg: Deutsche Grammophon, n419.994-2, 1971. p. 42-57. SAMSON, Jim. Samson, Jim. Music in Transition: a study of tonal expansion and atonality, 1900-1920. London: Oxford University Press, 2002. STEIN, Deborah. Hugo Wolfs Lieder and the Extensions of Tonality. Ann Arbor: UMI Research Press, 1985.

    WHEELDON, Marianne. Debussy and La Sonate cyclique. The Journal of Musicology. v. 22, Issue 4, p. 644-679, 2005.

    Peridicos

    A Noite, Rio de Janeiro, 1/set./1916.

    Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16/set./1916, 28/mai./1917.

    La Argentina, Buenos Aires, 11/dez./1919.

    La Epoca, Buenos Aires, 11/dez./1919.

    La Nacin, Buenos Aires, 12/dez./1919.

    La Prensa, Buenos Aires, 11/dez./1919.

    La Razn, Buenos Aires, 11/12/1919.

    La Unin, Buenos Aires, 11/dez./1919.

    La Vanguardia, Buenos Aires, 12/dez./1919.

    Revista de la Asociacin Wagneriana de Buenos Aires, dez./1919.

    Tribuna Espaola, Buenos Aires, 11/dez./1919.

    ________________________

    E-mail: [email protected] Artigo recebido e aprovado em 18 de outubro de 2010