fichamento de crescer uma trajetoria heroica

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Fichamento de Crescer: uma trajetória heróica Rita de Cássia Oliveira O herói, indivíduo que tem coragem para vencer as adversidades, superando os medos, ousando embrenhar-se no desconhecido para crescer, evoluir, nos fascina porque personifica o desejo e a figura ideal do ser humano (MÜLLER, 1987). Todos queremos ser melhores, chegar mais próximo do ideal humano que tanto almejamos, e assim nos lançamos em uma trajetória heróica: a vida, pois segundo o autor, todos nascemos para ser heróis. (p.1) Para Campbell (2007, p. 28) o herói é: o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas, pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. [...] O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno – aperfeiçoado, não específico e universal –, renasceu. (p.1) Pearson (1992), partindo do reconhecimento de que os homens e as mulheres passam pelos mesmos estágios fundamentais com pequenas variações na afirmação de seu heroísmo, propôs uma seqüência de seis arquétipos que, segundo ele, governam o processo que todos nós passamos para nos descobrirmos únicos, para nos desenvolvermos como pessoas. Assim, basicamente, nossa trajetória é guiada pelos arquétipos do Inocente, do Órfão, do Nômade, do Guerreiro, do Mártir e do Mago. Cada um deles apresenta uma visão do mundo, no entanto, cada pessoa traça a sua rota única através desses estágios. (p.1 e 2) Considerando o herói definido por Campbell, Müller e Pearson extremamente complexo para o entendimento da criança, Bettelheim (1979, p.50) explica que “os heróis míticos oferecem excelentes imagens para o superego, mas as exigências que eles incorporam são tão rigorosas que desencorajam a criança nos

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Fichamento de um livro

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Fichamento de Crescer: uma trajetria hericaRita de Cssia OliveiraO heri, indivduo que tem coragem para vencer as adversidades, superando os medos, ousando embrenhar-se no desconhecido para crescer, evoluir, nos fascina porque personifica o desejo e a figura ideal do ser humano (MLLER, 1987). Todos queremos ser melhores, chegar mais prximo do ideal humano que tanto almejamos, e assim nos lanamos em uma trajetria herica: a vida, pois segundo o autor, todos nascemos para ser heris. (p.1)

Para Campbell (2007, p. 28) o heri :o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitaes histricas,pessoais e locais e alcanou formas normalmente vlidas, humanas. [...] Oheri morreu como homem moderno; mas, como homem eterno aperfeioado, no especfico e universal , renasceu. (p.1)Pearson (1992), partindo do reconhecimento de que os homens e as mulherespassam pelos mesmos estgios fundamentais com pequenas variaes na afirmao de seu herosmo, props uma seqncia de seis arqutipos que, segundo ele, governam o processo que todos ns passamos para nos descobrirmos nicos, para nos desenvolvermos como pessoas. Assim, basicamente, nossa trajetria guiada pelos arqutipos do Inocente, do rfo, do Nmade, do Guerreiro, do Mrtir e do Mago.Cada um deles apresenta uma viso do mundo, no entanto, cada pessoa traa a sua rota nica atravs desses estgios. (p.1 e 2)

Considerando o heri definido por Campbell, Mller e Pearson extremamentecomplexo para o entendimento da criana, Bettelheim (1979, p.50) explica que os heris mticos oferecem excelentes imagens para o superego, mas as exigncias que eles incorporam so to rigorosas que desencorajam a criana nos seus esforos inexperientes para adquirir uma integrao da personalidade. Da a importncia do heri do conto de fadas, j queindependente das experincias que vivencie, nenhuma delas o torna sobre-humano e isto sugere que essas vivncias so apenas imagens exageradas e fantasiosas dos medos e anseios com as quais a criana se depara no mundo real. As dimenses sobre-humanas do heri mtico no permitem que o jovem leitor se identifique com ele, o que no ocorre com os heris presentes nos contos de fadas, que so humanos e com os quais as crianas estabelecem uma relao de identificao. (p. 2)

Da mesma forma como o heri, que aps matar o drago - seu problema real - com o auxlio da fantasia, volta ao plano real aperfeioado, tambm o conto leva a criana para o universo ficcional e no final, devolve-a realidade instrumentalizada para elaborar os seus prprios conflitos. (p. 2 e 3)

A estrutura simples e a resoluo das situaes problemticas com auxlio da fantasia so absolutamente compreensveis pela criana, que ainda no desenvolveu habilidades para lidar com a realidade de modo racional. Como aponta Bettelheim (1979, p.59) uma criana confia no que o conto de fada diz porque a viso de mundo a apresentada est de acordo com a sua, e ela conta com a fantasia para preencher as lacunas daquilo que ainda no consegue compreender pela pouca idade e falta de experincia. Em Beijos Mgicos, a autora parte de uma situao em que os pais so separados, situao real, mas um tanto problemtica, e embora no observemos a utilizao de gatilhos como Era uma vez, Num certo pas, que sugerem que o que se segue no pertence ao aqui e agora (BETTELHEIM,1979, p.78), Ana Maria Machado vale-se do pretritoimperfeito para narrar a histria, levando o leitor a um tempo incerto, diferente agora, do real. Alm disso, a ausncia de nomeao dos pais e a presena de apelidos para nomear a menina e a madrasta, revelam a inteno da autora de no remeter a pessoas especficas, e sim, genricas, possibilitando projees e identificaes. A trajetria herica da Nanda se inicia numa sociedade em que a hegemonia da famlia nuclear ameaada. Nanda tinha duas casas. Numa, ela passava quase todos os fins de semana com a me. Na outra, ela morava com o pai e a av. (MACHADO, 1996, p.3). Esse modelo familiar em que um dos pais mora com o av ou av da criana, integrando numa mesma casa trs geraes, definido por Collange (1994) como fragmentado. A separao dos pais obriga a menina a dividir o seu tempo entre a me e o pai e a av.Esta situao inicial, ps-separao, nos revela uma Nanda com caractersticas do arqutipo do mago, tendo em vista a sua compreenso acerca do drago da separao dos pais. Ela sabia que o pai e a me resolveram que para serem felizes para sempre era melhor no ficarem juntos. E tinha muita pena. (MACHADO, 1996, p.3 grifo nosso). Para Campbell (2007) o final feliz do conto de fadas no pode ser levado a srio, pois pertence Terra do Nunca da Infncia, uma terra que se encontra protegida das realidades, no entanto, no deve ser considerado uma contradio, e sim, uma transcendncia, j que, graas a uma mudana de nfase no interior do sujeito, o mundo objetivo, que continua o mesmo, passa a ser encarado de forma diferente. Assim, Nanda no parece lutar contra esta situao, aparentemente bem resolvida para ela, e procura ver o lado positivo desta realidade, sentindo-se amada pelos pais, cada qual a seu tempo: ... (p.3)

Assim, Nanda continua seu ciclo partindo do arqutipo do inocente, segundo o qual o mundo e as outras pessoas existem para servi-lo, sendo assim, para Nanda o seu bem-estar o que importa, numa viso egosta, porm natural da infncia. Embora o texto no revele a idade de Nanda, possvel acreditar, com base nas informaes presentes na obra, que ela tenha entre trs e seis anos, idade em que o egocentrismo ainda impera na personalidade da criana.Outro trao marcante desta faixa etria o fascnio exercido pelos contos de fadas, caracterstica evidente em Nanda, j que o pai lhe contava histrias para dormir, histrias que muitas vezes acabavam com ... e viveram felizes para sempre.Bettelheim (1979) afirma que os contos de fada permitem que a criana organize a realidade atravs da fantasia, compreendendo o mundo pela tica do imaginrio. Alm disso, a criana tambm se identifica com as personagens, vendo neles a personificao de seus conflitos e a possibilidade de resoluo deles. assim, por meio da fantasia, que Nanda define seu papel na realidade vivida com o pai:Muitas vezes, parecia at que ela era uma daquelas princesas das histrias que o paicontava. Branca de Neve, ajudando a cuidar da casa dos anes. Rapunzel, penteandoos cabelos para esperar o prncipe. Cinderela, danando a noite toda com o prncipe,mas tendo que ir deitar no melhor da festa. A Bela Adormecida, acordando combeijo de prncipe. E o prncipe sempre era muito bonito e carinhoso, assim meioparecido com o pai dela. Com quem ela vivia feliz para sempre. (MACHADO,1996, p.6). (p.4) Essa relao com o pai, em que ela a princesa e ele o prncipe, revela essa identificao com as princesas das histrias que ouviu, mas pode levar ao sentimento de posse quando ela perceber que o prncipe no s dela. o que ocorre quando, de repente, o pai passa a contar as histrias com pressa, pulando partes. O conflito se inicia, j que Nanda percebe que a ateno do pai no exclusivamente dela. A menina passa ento do arqutipo do inocente ao do rfo, definido por Pearson (1992, p.56) como um idealista desiludido.Ainda segundo a autora, este estgio to doloroso que comum a utilizao de vlvulas de escape. No caso da nossa herona, pelo vis do imaginrio que ela tenta se defender do novo drago: Bebel.A disparidade entre o que o pai descreve e o que visto pela menina evidencia a no aceitao dessa nova figura feminina inserida na sua relao com o prncipe: O pai tinha dito que Bebel era linda, alegre, um amor... Mas no foi nada disso que Nanda viu. Viu uma mulher magra, de nariz grande, cabelo liso e comprido, vestida de preto, toda hora dando gargalhada (MACHADO, 1996, p. 10).A viso que a menina tem de Bebel ativada pelos subsdios fornecidos pelas histrias que o pai contava: bruxas usam roupas pretas, geralmente elas tm nariz grande e cabelos compridos; elas so ms; fazem poes em seus caldeires; tm gatos; voam em suas vassouras; enfeitiam os prncipes.Assim, segundo Vigoskii (1982), essas informaes so associadas figura de Bebel extrada da realidade, resultando numa combinao entre o real e a fantasia. Nanda ento, atribui namorada do pai o papel da bruxa, perguntando-a, s para confirmar, se ela tem um gato. A partir da inferncia de que Bebel uma bruxa, figura ameaadora das histrias que povoam sua mente, na qual ela projeta suas inseguranas e seus medos, a menina passa a ver evidncias da verdadeira identidade de Bebel em tudo que se relaciona a ela:Saram juntos muitas vezes. Foram at jantar em casa de Bebel um dia. Uma comida que Bebel fez, mexendo numa panela que era bem disfarada, mas era um caldeiro. Numa cozinha cheia de vidrinhos, potes de plantas, ramos secos de ervaspendurados. Nanda no comeu, mas o pai at repetiu. Vai ver que era por isso que estava encantado, devia ter tomado poo mgica. Ou, ento, devia ser o beijo enfeitiado da Bebel, porque os dois ficavam toda hora se dando beijinho. E quanto mais beijinho, mais o pai achava Bebel maravilhosa. (MACHADO, 1996, p. 12-14 grifo nosso).O fato de o pai gostar de Bebel e no perceber o que ela de verdade intriga a menina. A nica explicao que ela encontra a mgica: o pai s pode estar enfeitiado. Ela, ento, numa demonstrao caracterstica do arqutipo do rfo, decide falar com sua me sobre o assunto, esperando que ela a salve do drago. No entanto, Nanda surpreende-se com a reao da me, que ri da preocupao da menina, evidenciando a diferena entre a viso do adulto e da criana sobre o mesmo fato. Nanda acredita que a reao se deve aos beijos enfeitiados que Bebel deve ter dado nela tambm. Assim, a menina passa a evitar os beijos de Bebel.Mas no adiantou muito. Bebel enfeitiou o pai de Nanda, de tanto beijo. E acabou mesmo casando com ele e virando madrasta de verdade. Como, na mesma poca, a me de Nanda tambm casou e mudou, chamou a filha para morar com ela e omarido. Nanda foi. (ibidem, p.18).A deciso da menina de ir morar com a me, abandonando o espao habitado pelo drago, denota uma caracterstica do arqutipo do nmade: a fuga. Enquanto Bebel era apenas a namorada do pai, Nanda levava a situao como podia, no entanto, quando ela se torna a madrasta de verdade, a menina passa a morar com a me. Esta separao, de acordo com Campbell (2007) parte da trajetria do heri, para que ele possa retornar iluminado e modificado ao seu local de origem, local este, que devido a sua modificao interior, estar tambm modificado.No entanto, quando retorna, Nanda ainda no est totalmente modificada, quando vinha passar fim de semana com o pai e a av, no esquecia de ficar de olho em Bebel. E no gato da Bebel, que agora tambm morava com eles (MACHADO, 1996, p.18). Podemos pensar que esse retorno no tenha sido uma deciso de Nanda, o que explicaria o fato de ela ainda no estar preparada para ele, no vendo grande modificao.A nica mudana que ela notou foi o barrigo de Bebel, mas por sua falta de experincia, no pensou que a madrasta estivesse grvida e nem deu bola para ele, continuando resistente madrasta:Assim que as duas ficaram sozinhas, Bebel comeou a fazer o que sempre fazia: tentar agradar Nanda. Oferecia chocolate batido, biscoito, iogurte, colo, histria, cantiga. E beijinho, sempre beijinho. Mas Nanda ficava firme, e no aceitava. Mas, dessa vez, Bebel depois deitou no sof e perguntou se Nanda no queria fazer uma coisa que ela adorava e nunca deixavam: andar de velocpede na sala. Nanda aceitou. Andou sem parar, de um lado para o outro, a toda velocidade, batendo nos mveis, derrubando coisas, e Bebel nem ligou. At que Nanda levou um tombo, ralou o joelho e botou a boca no mundo: U!!!! (ibidem, p.20).O oferecimento de algo proibido para a menina: andar de velocpede dentro de casa, refora a inteno de Bebel de se aproximar da menina, que aceita a oferta, mas acaba se machucando, proporcionando de fato uma aproximao...Bebel veio acudir, foi l dentro pegar um dos vidrinhos dela, e passou um remdio que nem ardeu. Depois, botou Nanda no colo, fez carinho no cabelo dela, e encheu de beijinho. Um monto! Nanda gostou do dengo. Mas no queria gostar e chorou mais ainda. Ento Bebel abraou a menina e ficou s alisando de leve e falandoumas coisas carinhosas, dizendo que ia dar um irmozinho para ela, e todos iam ser muito felizes. (ibidem, p.22).O carinho da madrasta faz Nanda repensar sua postura perante ela, mas ao mesmo tempo, a menina quer manter-se firme e admite gostar sem querer daquela situao, e acaba dormindo. O sono simboliza o amadurecimento e nele que o processo de aceitao da madrasta evolui. Ao acordar, resta pouco da imagem de bruxa, tanto que ela nem teve tempo de saber se tinha ficado encantada com os beijos de Bebel (ibidem, p. 24). o nascimento do irmozinho, pequeno e indefeso, que encerra o processo deaceitao, fazendo-a repensar a madrasta sem ver nela o drago. Com a ajuda do elemento mgico: os beijos mgicos, numa analogia aos beijos dos prncipes das histrias que ouvia, ela planeja a soluo...Nanda foi fazer carinho nele, e o nenm apertou o dedo dela, to gostoso. Ento o pai disse: Senta aqui no meu colo, que eu ponho o nenm no seu colo. Porque agora voc a princesa de ns dois. Ela achou graa e foi. Mas ficou pensando assim: Pois sim, vocs que so meus prncipes. E se eu sou princesa, vou lhe dar umbeijo mgico e voc vai acordar do encanto que essa bruxa lhe fez. (ibidem, p. 26 grifo nosso). o arqutipo do mago que leva Nanda a decidir por no mais rejeitar a madrasta, acalmando seus sentimentos conflitantes, transformando o ambiente a sua volta pela sua prpria transformao. Nanda precisou de muito equilbrio para reelaborar o drago do cime que vivia nela e aceitar Bebel. Nhm! Nhm!Uma boca bem aberta, com um choro to forte! Todo mundo ficou sem saber o quefazer. Mas a Bebel disse: D um beijinho na testa dele, Nanda. E depois vocs me trazem ele para mamar...E a foi mgico. Ele ficou quietinho e parou de chorar, s mamando feliz. Nandaolhou bem para ele, para o pai, para Bebel. E fez com os dois o mesmo que j tinhafeito com o nenm: deu beijos.Beijos mgicos, como s ela podia dar. Beijos capazes de quebrar encantos de um prncipe, de acalmar choro de nenm e de fazer nascer sorriso em gente grande. E,principalmente, beijos capazes de fazer bruxa virar gente de verdade, com quem atse pode ser feliz para sempre. (ibidem, p. 28-30 grifo nosso)A partir de um problema real, Nanda busca na fantasia a resoluo para a dificuldade de aceitar a nova realidade imposta. O papel da fantasia nesse percurso foi fundamental, porque foi por meio da recriao (VIGOSKII, 1982) que ela foi capaz de encontrar no elemento mgico o auxlio de que necessitava para encarar aquilo que ela considerava um drago, como uma mudana necessria e parte de seu rito de crescimento. Em sua trajetria herica interior, Nanda amadurece, passando de maga inocente e dessa rf, de rf nmade e de nmade maga novamente.Estamos continuamente afiando e aprimorando habilidades em cada categoria,porquanto na verdade essa jornada uma questo de desenvolvimento de habilidades em alto nvel. Em ltima anlise, adquirimos um repertrio de possveis respostas vida; porquanto temos cada vez mais possibilidades de respostas em determinada situao. (PEARSON, 1992, p. 42)Nossa trajetria um aprendizado contnuo, estamos sempre galgando degraus com o objetivo de chegar mais prximo do ideal humano: o heri. (p.5 8)