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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE MINAS GERAIS PROCURADORIA REGIONAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO Av. Brasil, nº. 1877, bairro Funcionários, CEP 30.140-002 – Belo Horizonte – MG Tel: (31) 2123-9053/9128 – e-mail: [email protected] EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 18ª VARA DE BELO HORIZONTE – SEÇÃO JUDICIÁRIA DE MINAS GERAIS Autos nº 53209-76.2011.4.01.3800 O Ministério Público Federal, por meio do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão que esta subscreve, no exercício de suas atribuições institucionais, vem, perante Vossa Excelência, manifestar-se nos termos que seguem. 1. INTRODUÇÃO Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal aos 04/10/2011, de lavra do Procurador da República Tarcisio Henriques Filho, em razão da internação da criança indígena Ednardo Maxakali no Hospital João Paulo II, em Belo Horizonte, com graves lesões neurológicas. Foi noticiada, pela médica pediatra Soraya Cássia Ferreira Dias, a possibilidade de que as lesões da criança, fruto de gestação gemelar, fossem consequência de espancamento por parte de seus pais, motivado por suposta prática cultural infanticida indígena. 1

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE MINAS GERAIS

PROCURADORIA REGIONAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO

Av. Brasil, nº. 1877, bairro Funcionários, CEP 30.140-002 – Belo Horizonte – MG Tel: (31) 2123-9053/9128 – e-mail: [email protected]

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 18ª VARA DE BELO

HORIZONTE – SEÇÃO JUDICIÁRIA DE MINAS GERAIS

Autos nº 53209-76.2011.4.01.3800

O Ministério Público Federal, por meio do Procurador Regional dos

Direitos do Cidadão que esta subscreve, no exercício de suas atribuições

institucionais, vem, perante Vossa Excelência, manifestar-se nos termos que

seguem.

1. INTRODUÇÃO

Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal aos

04/10/2011, de lavra do Procurador da República Tarcisio Henriques Filho, em

razão da internação da criança indígena Ednardo Maxakali no Hospital João

Paulo II, em Belo Horizonte, com graves lesões neurológicas. Foi noticiada, pela

médica pediatra Soraya Cássia Ferreira Dias, a possibilidade de que as lesões da

criança, fruto de gestação gemelar, fossem consequência de espancamento por

parte de seus pais, motivado por suposta prática cultural infanticida indígena.

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O Ministério Público Federal ajuizou a presente ação no intuito de

resguardar a vida de Ednardo; de alcançar instrução probatória exauriente acerca

das causas das lesões neurológicas apresentadas pela criança; de garantir, caso

comprovado que as lesões de Ednardo tenham ocorrido por causas culturais, a

proteção das crianças maxakali nascidas em situação gemelar; e de garantir, caso

comprovada a inexistência das lesões a Ednardo por causas culturais, a

implantação de política regular de acompanhamento das crianças da etnia

Maxakali, de modo a evitar que, pelas mais variadas causas, sejam eles vitimados

pela situação precária em que se encontram esses grupos indígenas. Foram

deduzidos os seguintes pedidos: (i) a confirmação de medida cautelar protetiva

prevista no art. 101, VII, da Lei n° 8.069/90, em favor de Ednardo Maxacali até

que seja apurada a causa das lesões sofridas pela criança indígena; (ii)

decretação da suspensão do poder familiar dos genitores de Ednardo caso fosse

apurado no curso do processo que as lesões sofridas pela criança foram

provocadas por agressões dos pais; (iii) condenação da FUNAI e da FUNASA, e,

subsidiariamente da União, a promover levantamento junto aos grupos Maxakali

no estado de Minas Gerais, a fim de identificar os casos de gestação gemelar e a

promover o integral acompanhamento das gestantes, de modo a assegurar que as

crianças Maxakali, nascidas em situação gemelar, tenham garantido o direito à

vida, inclusive impondo a essas entidades que adotem as medidas protetivas

cabíveis em favor das crianças; (iv) a condenação da FUNAI e da FUNASA, e,

em caráter subsidiário, da União, a implementar programa de visitas e

acompanhamento periódico às gestantes e aos recém-nascidos Maxakali, até a

idade de 12 (doze) anos, garantindo a estes adequado desenvolvimento e

proteção.

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Lamentavelmente, a criança Ednardo Maxacali faleceu aos 05/05/2013,

conforme certidão de óbito acostada por cópia à fl. 1.869 e informações prestadas

pelo Núcleo Assistencial Caminhos para Jesus, acostada à fl. 1.868, com o que

sobreveio a perda parcial de objeto do feito, no tocante aos pedidos i e ii.

Remanescem, porém, os pedidos iii e iv. Adiante, segue relatório sobre os atos

processuais relevantes para a apreciação de referidos pedidos.

2. RELATÓRIO

Às fls. 71/83, contestação de Teci Maxacali e Fernando Maxacali,

genitores de Ednardo Maxacali, apresentada através da FUNAI, trazendo aos

autos uma série de dados antropológicos que atestam, efetivamente, a

inexistência da prática de infanticídio de crianças nascidas em situação gemelar

na cultura Maxakali.

Às fls. 269/270, contestação da FUNASA, informando que, a partir do

Decreto n° 7.336, de 19/10/2010, foi determinada a transferência do Subsistema

de Atenção à Saúde Indígena da FUNASA para a União, através do Ministério da

Saúde.

Às fls. 271/275, contestação da FUNAI, afirmando que a literatura

antropológica refuta a acusação de que as crianças nascidas gêmeas são, por

costume, vítimas de agressões que visam à sua eliminação.

Às fls. 292/301, contestação da União, alegando que o infanticídio de

gêmeos não é traço cultural Maxakali e que a União e seus órgãos vinculados já

possuem e colocam em prática políticas públicas específicas para o que pretende

o MPF.

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Às fls. 614/619, manifestação do MPF sobre as contestações apresentadas,

ressaltando que, caso seja comprovada a agressão a Ednardo, independentemente

do motivo, restará evidenciada a negligência estatal, destacando-se que, em todo

caso, a presença eficiente do Estado deve proteger as crianças indígenas em

geral.

Às fls. 620, decisão que extinguiu o processo sem resolução do mérito em

relação à FUNASA e determinou a especificação de provas pelas partes.

Às fls. 622/624, manifestação do MPF, pugnando pela produção de prova

pericial médica e antropológica.

Às fls. 630/634, manifestação de Teci Maxakali e Fernando Maxakali,

pugnando pela produção de prova pericial e de prova oral – depoimento pessoal

dos réus e oitiva de testemunhas.

Às fls. 663/660, relatório multidisciplinar da equipe que atendeu Ednardo

Maxakali no Núcleo Assistencial Caminhos para Jesus.

Às fls. 719/720, termo da audiência realizada no dia 30/10/2012, na qual

foram ouvidas as testemunhas Soraya Cassia Ferreira Dias, médica que atendeu

Ednardo no Hospital Infantil João Paulo II; Shinayd Gomes da Silva, funcionário

da FUNASA que acompanhou Ednardo no momento de sua internação no

Hospital João Paulo II e Celina Jorge Afonso Luis Silva, assistente social da

SESAI, arroladas pelo MPF, bem como de Adilson de Andrade Santos, arrolado

pela FUNAI. Às fls. 721/727, termo dos depoimentos colhidos.

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Às fls. 729, determinação, de ofício, de nova oitiva das testemunhas

Soraya Cassia Ferreira Dias e Shinayd Gomes da Silva.

Às fls. 740/1754, cópia integral do prontuário médico da criança indígena

Ednardo Maxakali encaminhado pelo Hospital Infantil João Paulo II.

Às fls. 1.802, termo de audiência realizada no dia 28/11/2012, na qual foi

feita a acareação entre as testemunhas Soraya Cassia Ferreira Dias e Shinayd

Gomes da Silva, bem como a oitiva de Teci Maxacali e de Fernando Maxacali.

Termos de depoimento às fls. 1803/1805.

Às fls. 1.858/1.864, Laudo Médico Pericial de Ednardo Maxakali, de lavra

da médica neuropediatra Susana Satuf Rezende Leli, no qual informa que lhe foi

noticiado que o irmão gêmeo de Ednardo, Bernardo Maxakali, faleceu em

decorrência de quadro neurológico após trauma.

À fl. 1.869, certidão de óbito de Ednardo Maxacali.

Às fls. 1.871/1.877, decisão judicial, apontando a necessidade de

aprofundamento da instrução para se verificar a real situação das crianças

Maxakali, bem como do acompanhamento que tem sido feito pela CASAI e pela

FUNAI na região de Governador Valadares, de forma a garantir o controle

jurisdicional dos entes estatais que têm a missão primeira de proteger as

populações indígenas do país.

Às fls. 1.883/1.891, o MPF apresentou quesitos para a perícia

antropológica.

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Às fls. 1.896/2.644, a Chefe da CASAI em Governador Valadares

encaminhou documentos relacionados ao irmão de Ednardo, Bernardo Maxakali;

justificativa da presença prolongada de Ednardo Maxakali na CASAI, distante

dos seus pais e de sua aldeia, logo após seu nascimento; e descrição de programa

de desnutrição infantil executado na Aldeia Maxakali de Água Boa.

Às fls. 2.646/2.672, a FUNAI prestou esclarecimentos acerca de sua

atuação na proteção social das crianças indígenas.

Às fls. 2.673/2.679, o MPF requereu a juntada aos autos de documentos

encaminhados pelo Hospital Municipal de Governador Valadares acerca de

Bernardo Maxakali e de Isnalda Maxakali.

Às fls. 2.801/2.802, decisão judicial determinado à FUNAI e à CASAI de

Governador Valadares maiores informações sobre o caso de Isnalda Maxakali.

Resposta da CASAI às fls. 2.815/2.901 e resposta do Hospital às fls. 2.905.

Às fls. 3016/3051, juntada aos autos do relatório da perícia antropológica

realizada nas Terras Indígenas Maxakali.

3. ANÁLISE

Diante da insusbstência dos pedidos formulados pelo MPF em relação à

Ednardo Maxakali (pedidos i e ii), resta analisar os documentos e argumentos

trazidos aos autos em relação aos seguintes pedidos:

iii) condenação da FUNAI, da FUNASA e, subsidiariamente, da

União, a promover levantamento junto aos grupos Maxakali no

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estado de Minas Gerais, a fim de identificar os casos de gestação

gemelar e a promover o integral acompanhamento das gestantes,

de modo a assegurar que as crianças Maxakali, nascidas em

situação gemelar, tenham garantido o seu direito à vida, inclusive

impondo a essas entidades que promovam a adoção das medidas

protetivas cabíveis em favor das crianças;

iv) a condenação da FUNAI, da FUNASA e, subsidiariamente,

da União, a implementar programa de visitas e acompanhamento

periódico às gestantes e aos recém-nascidos Maxakali, até a

idade de 12 (doze) anos, garantindo a estes adequado

desenvolvimento e proteção.

Em relação ao pedido iii, forçoso constatar que não há nos autos

elementos que permitam sustentar a afirmação sobre a existência de cultura

infanticida entre os Maxakali. Ao contrário, há afirmações de diversos

antropólogos atestando a ausência de referida prática na etnia.

Nesse sentido, a Nota Técnica n° 224/2011/CAC/PFE-FUNAI/PGF/AGU,

de lavra dos antropólogos Renata Otto Diniz e Gustavo Hamilton de Sousa

Menezes, respectivamente Diretora de Proteção Territorial da FUNAI e Chefe do

Núcleo de Antropologia da Procuradoria Federal Especializada – FUNAI:

Afirmamos categoricamente que a presunção do Ministério

Público de que os Maxakali têm restrições culturais às crianças

gêmeas é completamente incorreta. O que a etnografia já

produzida sobre a etnia Maxakali atesta é justamente o contrário:

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as crianças, inclusive as advindas de gestações de gêmeos e as

albinas são muito tratadas por seus pais. (fl. 91)

Rachel de Las Casas, antropóloga e mestre em saúde coletiva, que atuou

por mais de 10 (dez) anos com os Maxakali também afirmou:

Tenho, inclusive, fotos de uma família que possui grande orgulho

de seus filhos gêmeos, imagens que expressam o tipo de relação

travada pelos parentes com seus filhos frutos deste tipo de

gestação neste grupo social.

[…]

Não há registro sobre infanticídio entre os hábitos e correntes de

tradições que estruturam o modo de pensar e de agir dos

integrantes dessa coletividade indígena. As crianças frutos de

gestação de gêmeos são tão bem tratadas quanto as advindas de

gestações consideradas normais. Assim como as crianças albinas,

caso recorrente entre os Maxakali em decorrência da endogamia,

são tratadas de igual para igual, sem discriminação por serem

diferentes na cor da pele. (fl. 111; destaque ausente do original)

O também antropólogo Eduardo Pires Rossen, que realiza pesquisa de

campo com os Maxakali desde 2004 e teve a oportunidade de permanecer em

aldeias Maxakali por um período total de 14 (quatorze) meses, sendo que,

segundo ele, na maior parte desse tempo, ficou hospedado em casas de famílias

indígenas, podendo testemunhar com certa intimidade a vida cotidiana dos

Maxakali, relatou diversos exemplos que comprovam que a diversidade é bem

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acolhida entre os Maxakali, tendo constatado a inclusão social de gêmeos, de

pessoas com deficiência física e mental e de albinos:

Para dar o exemplo apenas de uma aldeia e um momento

preciso, me concentrarei a Vila Nova, Terra Indígena do

Pradinho, anos de 2008 e 2009. Observamos ali um contingente

de pessoas portando traços biológicos ou neurológicos

excepcionais que vivem, no entanto, ativamente absorvidos na

vida coletiva, sendo tratados, apesar de suas diferenças, de

maneira simétrica e saudável.

Um par de gêmeas, filhas de Vitorino Maxakali, vivem como

quaisquer outras crianças. Este exemplo vem se juntar à

evidência etnográfica e histórica da ausência de infanticídio,

inclusive em se tratando de crianças gêmeas.

Marconi Maxakali é um jovem adulto albino que vive

completamente integrado à vida na aldeia. Não pude notar

relações de discriminação ou preconceito em relação a ele que,

ademais, é muito ativo na vida ritual ligada à casa dos

cantos/kuxex.

Mirinha é também uma jovem adulta surda-muda. Ela leva um

vida completamente integrada, apesar da sua deficiência. Ela

desenvolveu uma linguagem de sinais intuitiva e razoavelmente

compreendida por todos e participa das atividades correntes da

aldeia – festas, pescarias, trabalho doméstico, etc. (fls. 284; g.n.)

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Zé Coleho Maxakali tem um filho de 7 anos que apresenta um

atraso no desenvolvimento da linguagem e do aprendizado em

geral. Esta criança brinca normalmente com as outras da

vizinhança e vi muitas cenas carinhosas do pai que cata piolho

do filho, que o acaricia, que lhe dá comida dentro da casa dos

cantos/ kuxex. (Destaque ausente do original)

No mesmo sentido, aponta o antropólogo Rodrigo Barbosa Ribeiro, que

escreveu sua tese de doutorado sobre os Maxakali:

De nossa parte, etnógrafos com experiência e presença entre os

Maxakali há vários anos, nós nunca vimos tal prática acontecer e

nunca soubemos de nenhum relato semelhante ao presente na

literatura etnológica ou nos textos de viajantes e

administradores. (fl. 287)

Reiterando os dados trazidos pelos 5 (cinco) pesquisadores, o

antropólogo perito do processo, Sr. Douglas Ferreira Gadelha Campelo,

afirmou que, nos três meses e meio que permaneceu vivendo entre os

Maxakali, não foi possível observar nenhum elemento cultural que induza à

prática de infanticídio, tendo observado relações bastante afetuosas entre

pais e filhos (fl. 3.047).

O perito notou, ainda, que:

As pessoas com quem pude conversar na aldeia de Iara reagiram

com horror quando perguntadas sobre a prática de infanticídio

gemelar. Pude conversar com parentes dos residentes da aldeia

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de Iara e todos demonstraram horror a essa prática. Aldeias que

possuem relações de parentesco mais distantes da aldeia de Iara ,

demonstraram também horror a essa prática e sequer tinham

ouvido falar da prática de infanticídio gemelar. A maioria sequer

sabia da existência dessa prática entre outros povos indígenas.

Ademais, foi possível notar, através das genealogias realizadas

em todas as aldeias da localidade Água Boa, que na Aldeia de

Gilmar Maxakali e na aldeia de José Ferreira Maxakali, há

crianças fruto de gestação gemelar. (fl. 3.047)

Percebe-se, dos documentos colacionados aos autos, que a hipótese de

tentativa de infanticídio de Ednardo em razão de aspectos da cultura Maxakali foi

primeiro aventada pela médica Soraya Cássia Ferreira Dias, que o atendeu no

Hospital Infantil João Paulo II, em Belo Horizonte.

Analisando-se o depoimento prestado pela médica perante este MM. Juízo

(fl. 721/722), percebe-se que a causa do suposto espancamento sugerida por ela,

foi estabelecida sem critérios científicos, meramente porque a profissional “tinha

conhecimento prévio de determinado costume indígena de maus-tratos de

crianças gemelares”, não passando, portanto, de uma suposição, de alguém que

não possui conhecimentos específicos sobre ou experiência de trabalho junto aos

Maxakali:

Depoimento de Soraya Cassia Ferreira Dias, 30/10/2012

Prossegue a depoente afirmando que tinha conhecimento prévio

de determinado costume indígena de maus-tratos de crianças

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gemelares, filho de mãe solteira; que Shinayd, em determinado

momento, falou que já sabia de outros casos de violência contra a

criança na tribo, mas não falou que isso estava relacionado à

gestação gemelar; que a causa do espancamento da criança

Ednardo não chegou a ser falada; que para a depoente era porque

a criança era gemelar e tinha pé torto congênito, sendo o mais

fraco dos gêmeos. (fl. 721)

Forçoso concluir, portanto, pela improcedência do pedido iii, tendo em

vista não ser possível demonstrar que os Maxakali nutram tradições infanticidas

em relação a crianças gemelares, não sendo, portanto, necessária a criação de

políticas públicas voltadas ao acompanhamento específico aos infantes

maxakali nascidos em referida condição.

As informações trazidas pelo perito antropólogo, no entanto, em conjunto

com outros elementos presentes nos autos, permitem reafirmar a relevância do

pedido iv, que se refere à necessidade de se verificar a regularidade e efetividade

do acompanhamento que tem sido feito pela FUNAI e pela União às crianças

Maxakali, garantindo-lhes adequado desenvolvimento e proteção.

Importante, antes de tudo, pontuar, para mais apurada compreensão do

tema, nos termos da perícia antropológica, o profundo impacto do contato com os

não-índios sobre a saúde dos Maxakali. Índios de comportamento nômade,

tradicionalmente caçadores e coletores, os Maxakali foram confinados em

território reduzido, ambientalmente degradado pelos fazendeiros que ocuparam a

região, o que lhes impede de ter acesso à caça, à pesca, e à coleta, seus

tradicionais meios de sobrevivência. Segundo o perito do juízo, “o atual

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território não garante a qualidade necessária para a reprodução física e

cultural segundo os costumes e tradições Maxakali, como está previsto no

parágrafo 1º do art. 231 da Constituição.” (fl. 3.035)

Não se ignora, portanto, o papel fundamental da questão territorial na

saúde das crianças Maxakali. É no, entanto, possível e necessário que,

paralelamente à demanda pela revisão dos limites territoriais dos Maxakali,

sejam adotadas medidas de caráter urgente, pela FUNAI e pela União, para

garantir a proteção às gestantes e às crianças indígenas.

O laudo antropológico deixa claro que os maiores problemas que atingem

as crianças maxakali não advêm da cultura indígena e da violência física, mas de

questões estruturais, derivadas do contato com a cultura não indígena.

Nesse sentido, merecem transcrição os seguintes trechos do laudo

antropológico:

Algumas crianças apresentaram coloração amarelada da pele,

fruto de uma alimentação rica em carboidratos e carente em

vitaminas (fls. 3.039). […] A carência de vitaminas mencionada

acima em parte pode ser explicada pela condição ambiental do

território Maxakali. Atualmente, os Maxakali vivem em um

território bastante devastado que já não fornece caça, pesca,

coleta e água de boa qualidade. Embora a alimentação atual seja

considerada carente de vitaminas, não se deve a um fator cultural

Maxakali. Ao contrário, tive a oportunidade de acompanhar um

grupo de adulto e de crianças em uma expedição a uma pequena

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área de floresta em busca de banana, mel e coco. Os índios já não

encontram em seu território os alimentos que tanto apreciam.

Portanto, a carência de vitaminas é mesmo um fator cultural e

mais um fator ambiental.(fl. 3.048)

É comum ver crianças com a barriga protuberante, devido à

presença de verminoses em seus corpos. (fls. 3.039)

Não foi observado nenhum sinal físico ou psicológico de maus

tratos, no entanto, gostaria de mencionar o fato de que dois filhos

de Teci e Fernando apresentavam queda acentuada de cabelo

para crianças com a faixa etária deles. […] Ao consultar a

enfermeiras que atendiam a aldeia no momento do trabalho de

campo sobre o que havia ocorrido com as crianças , disseram-me

que não sabiam explicar o que causou a queda de cabelo das

crianças, que havia mais de um ano que elas apresentavam esse

sintoma e que André foi encaminhado a um dermatologista em

Governador Valadares. Fomos consultar o prontuário de ambas

as crianças e encontramos apenas o encaminhamento de André a

um dermatologista. Todavia, não foi encontrada nenhuma

informação sobre o que pode ter causado a queda de cabelo das

crianças, nenhuma consulta, nenhuma medicação. […] O médico

responsável pediu para solicitar aos pais que levassem as

crianças até o posto de saúde das aldeias de Água Boa. Disse-me

que sozinho não consegue atender a todas as pessoas quando ele

vai até as aldeias e que de fato muitas vezes as crianças não estão

na aldeia quando ele passa por lá.

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Quando retornei na aldeia de Iara em novembro percebi que o

cabelo das crianças não apresentava o mesmo quadro. Segundo

Teci e Fernando os enfermeiros pediram para elas usarem um

shampoo para fortalecer o cabelo e o médico passou a

acompanhar as crianças de perto. (fls. 3.045/3.046)

Extrai-se, portanto, do laudo pericial, que há, de fato, uma situação de

desproteção social das crianças Maxakali caracterizado por: quadro de

desnutrição das crianças; grande número de crianças com verminoses; e

acompanhamento médico insuficiente das crianças Maxakali.

Ao longo da instrução processual, conforme ressaltado por este MM. Juízo

na decisão de fls.1.871/1.87, foi possível constatar outras sérias falhas no

atendimento prestado pelo Estado às crianças Maxakali. A perita médica Dra.

Susana Satuf Rezende Lelis, apontou falhas no prontuário médico de

acompanhamento de Ednardo:

Nestes quase dois anos de internação na Casai consta nos autos o

prontuário médico de acompanhamento de Ednardo. Neste

prontuário, não há qualquer tratamento referente ao pé torto

congênito, não sabemos como foi a evolução da má formação,

quais foram os tratamentos realizados e qual foi a resposta clínica

de Ednardo. Durante a internação da CASAI, podemos perceber

que Ednardo possuía quadro pulmonar de asma com sucessivos

tratamentos, além de um baixo peso, este também não temos a

causa ou o tratamento estabelecido. (fl. 1859)

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A perita judicial questionou, ainda, a postura da CASAI em internar um

recém-nascido, lactente por quase dois anos, com fundamento em uma má

formação congênita que não justifica a internação prolongada de qualquer

criança, retirando-a do convívio com os pais e com a aldeia. (fl. 1861).

Parecer nutricional da CASAI, à fl. 2.307, indica a existência de quadro

generalizado de desnutrição crônica entre as crianças maxakali (fl. 2.307), a qual

tem influência direta no alto índice de mortalidade infantil.

Por meio da informação técnica n° 003 SEMAT/CR/GVR, a

Coordenadoria Regional da FUNAI em Governador Valadares, informou, em

01/03/2012, que, apesar de estar estabelecido, no âmbito do DSEI-MG/ES,

Conselho Local de Saúde, destinado a garantir a participação popular na gestão

da saúde indígena, referido Conselho não se reunia desde junho de 2010 (fls.

2.662/2.663).

A tais dados, acrescenta o Ministério Público Federal que, aos 16/07/2014,

este Procurador reuniu-se com Caroline Willrich, Coordenadora Regional Substituta

da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em Minas Gerais e Espírito e com Irislene

Rocha dos Santos, Chefe da Coordenação Técnica Local (CTL) da FUNAI em

Teófilo Otoni, para discutir questões relacionadas à garantia dos direitos do povos

indígenas no Estado de Minas Gerais. Também esse encontro revelou uma série de

questões que indicam a precariedade da prestação estatal no que se refere à proteção

das crianças Maxacali (Memória de Reunião anexa – Anexo I).

Em referida reunião foi trazida à atenção do MPF, a gravidade de epidemia

que atingiu as crianças Maxakali em 2014, provocando mais de uma dezena de

óbitos:

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As senhoras Caroline e Irislene afirmaram, ainda, que foram ofici-

almente registrados 10 (dez) óbitos de crianças indígenas ocor-

ridos em Bertópolis e Santa Helena de Minas, estimando-se,

contudo que possam ter ocorrido até 14 (quatorze) mortes. As

servidoras da FUNAI ressaltaram temer a ocorrência de novo

surto epidêmico e expressaram preocupação diante da persis-

tência de alto índice de mortalidade infantil entre o Maxacalis.

As más condições de saúde de referido grupo étnico foram discuti-

das em audiência pública realizada em Águas Formosas, bem como

em reuniões do Grupo de Trabalho sobre a Saúde Indígena.

Surto semelhante já havia atingido as crianças Maxakali em 2010, quando

dezenas de crianças foram internadas e três faleceram, conforme revela nota da

Funasa, divulgada em 27/01/2010 (Anexo II), o que demonstra a incapacidade

estatal em evitar a recorrência de problemas que atingem gravemente a saúde das

crianças Maxakali.

Em referida reunião entre o MPF e as servidoras da FUNAI foi, ainda,

pontuada:

[…] a falta de capacitação dos servidores do DSEI para lidar com

as especificidades culturais do atendimento à saúde indígena, va-

lorizando, inclusive, a experiência de pajés e raizeiros, bem como

as crenças espirituais dos povos indígenas. Ressaltaram a ausên-

cia de Antropólogo e Pediatra na equipe do DSEI de Governa-

dor Valadares, os quais seriam essenciais para garantia de

atendimento adequado aos indígenas.

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Nota-se, portanto, que, apesar dos enormes desafios postos pelos elevados

índices de mortalidade infantil entre os Maxakali, o DSEI-MG/ES não conta com

médico pediatra em sua equipe ou com antropólogo que possa auxiliar na difícil e

importante tarefa do diálogo intercultural.

Ressalta-se que, enquanto na sociedade não-indígena, o índice de mortalidade

infantil, em 2011, era de 11,7 mortes para mil crianças nascidas vivas, o índice entre

os povos indígenas, foi, em 2013, de acordo com dados da SESAI, de 50,01 mortes.

Divulgado no começo de 2014, um levantamento da Secretaria Especial de Saúde

Indígena (Sesai), do governo federal, revelou que o número de crianças indígenas

que haviam morrido de desnutrição entre 2008 e 2014 representava 55% de todas

as mortes infantis relativas a essa causa registradas no país durante o período —

embora os índios sejam apenas 0,4% da população.1

A grave situação da saúde das crianças Maxacali motivou a realização de au-

diência pública, em 10/07/2014, promovida pelo Ministério Público do Estado de

Minas Gerais, com a participação da Procuradora da República em Teófilo Otoni.

Em referida audiência (ata anexa – Anexo III), os Maxakali expuseram diversas fa-

lhas no atendimento à saúde indígena, as quais comprometem, inclusive a proteção

das crianças, quais sejam: falta recorrente de medicamentos; posto de saúde em con-

dições precárias; falta de qualidade da água que abastece as aldeias; falta de sanea-

mento básico nas aldeias; descumprimento do horário de trabalho nas áreas indíge-

nas pelas equipes de saúde; falta de definição clara das responsabilidades entres os

atores responsáveis pela saúde indígena, gerando “jogo de empurra-empurra”; a con-

taminação de toda a água que chega ao território Maxakali por não-indígenas; a falta

1 PANSARDI, Bárbara. Kitoko e Txahuã: as crianças Maxakali e Pataxó. Disponível em: http://oficinadeimagens.org.br/kitoko-e-txahua-as-criancas-maxakali-e-pataxo/. Acesso em: fev. 2015.

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de saneamento básico nas aldeias; a falta de infraestrutura nas aldeias para realiza-

ção do projeto de nutrição desenvolvido pelo DSEI.

Merecem destaque a fala do Sr. Célio César Ferreira, coordenador substituto

do DSEI-MG/ES e do Sr. Paulo César de Santana, representante do Hospital São Vi-

cente de Paulo, localizado em Águas Formosas:

Célio César Ferreira, coordenador substituto do DSEI-MG/ES

[…] que do ponto de vista da atividade-fim, grande parte dos pro-

blemas são de logística, sobretudo relativa à alta rotatividade dos

funcionários; que no DSEI são poucos os funcionários de carreira e

estes estão sobrecarregados; […] que foi pensada a possibilidade de

que o posto de saúde fosse construído levando em consideração a

diversidade étnica, mas por sobrecarregar financeiramente o proje-

to, o mesmo fica inviável; […] que é preciso ter na equipe de saúde

um antropólogo para ajudar o DSEI a entender a especificidade da

cultura Maxakali.

Paulo César de Santana, representante do Hospital São Vicente

de Paulo

[…] que no referido Hospital São Vicente de Paulo existe uma lista

de 06 crianças maxakalis que foram a óbito, alguns são natimortos,

ou seja, com 42 semanas de gestação; que tal realidade poderia ter

sido evitada através do pré-natal; que a questão mais delicada na re-

gião é a relação construída com a etnia indígena Maxakali; que pro-

pôs um centro pediátrico para cuidar da criança maxakali; que o

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município de Machacalis foi a referência de pediatria para a etnia

Maxakali, mas não existe mais; que o ideal seria ter alocado uma

pediatra para o cuidado da saúde dessa população tradicional; que o

pré-natal de indígenas é complicado, mas é necessária a melhoria

no atendimento aos indígenas no posto de saúde e também a melho-

ria na qualidade de vida nas aldeias; que em mais de nove anos de

trabalho na região já presenciou diversos ciclos de doenças que

acometeram esse povo indígena; que, no verão, o maior problema é

a ocorrência de diarréia e vômitos, ao passo que, no inverso, seriam

os problemas respiratórios; que é preciso identificar e delegar

médicos/profissionais específicos para o cuidado e assistência da

saúde dessa população.

Diante do exposto, o Ministério Público Federal, requer o julgamento da

lide, nos termos do art. 330, inciso I, in fine, do CPC, para que:

a) seja determinado à União que realize o acompanhamento efetivo das gestantes e

crianças Maxakali, com até 12 anos de idade, garantindo que:

i) a equipe do Distrito Sanitário Especial Indígena de Minas Gerais

e Espírito Santo (DSEI MG/ES) que acompanha as crianças e ges-

tantes Maxakali conte, no mínimo, com 1 (um) antropólogo e 1

(um) pediatra no seu quadro de servidores;

ii) a equipe do DSEI que acompanha as gestantes e crianças Ma-

xakali passe por capacitações anuais ministradas por profissionais

especializados na temática indígena;

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iii) seja desenvolvido pelo DSEI, mediante participação dos Ma-

xakali e com o apoio da FUNAI, plano para a erradicação da desnu-

trição das crianças e gestantes indígenas, a ser efetivamente execu-

tado, no prazo máximo de 3 (três) meses, em local considerado ade-

quado pelos indígenas para referida atividade;

b) seja determinado à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que participe da formu-

lação do plano para a erradicação da desnutrição das crianças e gestantes Maxakali,

garantindo o direito à efetiva participação dos indígenas no processo de elaboração e

execução de referido plano.

Belo Horizonte, 23 de fevereiro de 2015.

Edmundo Antônio Dias Netto Junior

Procurador da República

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