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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011 Estudos sobre Bertolt Brecht Studies of Bertolt Brecht Rita Alves Miranda 1 - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo: O tema e ponto central deste trabalho é a teoria teatral que perpassa a obra de Bertolt Brecht como ponto de relevância para a atualidade do teatro hoje. Com fim de investigar alguns elementos da estética de Brecht, pensou-se em primeiro esclarecer alguns fundamentos dessas questões aos leitores, tendo em vista primeiro o processo histórico e o momento vivido pelo o autor, para dar prosseguimento ao entendimento de sua proposta prática e a viabilidade desta, ou não, nos dias de hoje, no contexto da sociedade atual. Brecht nos convoca a pensar em questões presentes no cotidiano as quais normalmente não oferecemos importância. O trabalho termina com uma reflexão acerca dessa importância. Palavras-chave: Arte, Dialética, Política, Social, Teatro Épico. Abstract: The main theme and focus of this project is the theater theory present in the work of Bertolt Brecht, which is of great relevance for the current theater. Aiming at investigating some elements of Brecht's aesthetic, we thought of beginning with clarifying to the reader some grounds of these questions, bearing in mind both the historical process and the moment lived by the author, followed by the understanding of his practical proposal and its viability - or not - currently, in the context of the current society. Brecht invites us to think about questions present in the everyday-life, which we often disregard. This paper ends up with a reflection concerning this importance. Keywords: Art, Dialect, Epic Theater, Politics, Social. Em vosso mundo: por que o mal É premiado e o bem não ganha nada. Quando por sorte não é castigado? Bertolt Brecht ertolt Brecht foi dramaturgo, poeta, diretor, crítico, teórico... Quando pensamos em sua obra, logo nos vem à mente a forte percepção que teve diante dos temores e terrores de sua época; percepção esta que foi sem dúvida, política, ética e estética. Segundo seu amigo e filósofo Walter Benjamin, o que encanta em Brecht é a sua ligação com a simplicidade. Uma simplicidade, para muitos, tida como insuficiência intelectual, mas que 1 Mestranda em filosofia pela PUC-SP. B

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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da

Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011

Estudos sobre Bertolt Brecht

Studies of Bertolt Brecht

Rita Alves Miranda1 - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: O tema e ponto central deste trabalho é a teoria teatral que perpassa a obra de Bertolt Brecht como ponto de relevância para a atualidade do teatro hoje. Com fim de investigar alguns elementos da estética de Brecht, pensou-se em primeiro esclarecer alguns fundamentos dessas questões aos leitores, tendo em vista primeiro o processo histórico e o momento vivido pelo o autor, para dar prosseguimento ao entendimento de sua proposta prática e a viabilidade desta, ou não, nos dias de hoje, no contexto da sociedade atual. Brecht nos convoca a pensar em questões presentes no cotidiano as quais normalmente não oferecemos importância. O trabalho termina com uma reflexão acerca dessa importância. Palavras-chave: Arte, Dialética, Política, Social, Teatro Épico. Abstract: The main theme and focus of this project is the theater theory present in the work of Bertolt Brecht, which is of great relevance for the current theater. Aiming at investigating some elements of Brecht's aesthetic, we thought of beginning with clarifying to the reader some grounds of these questions, bearing in mind both the historical process and the moment lived by the author, followed by the understanding of his practical proposal and its viability - or not - currently, in the context of the current society. Brecht invites us to think about questions present in the everyday-life, which we often disregard. This paper ends up with a reflection concerning this importance. Keywords: Art, Dialect, Epic Theater, Politics, Social.

Em vosso mundo: por que o mal É premiado e o bem não ganha nada.

Quando por sorte não é castigado? Bertolt Brecht

ertolt Brecht foi dramaturgo, poeta, diretor, crítico, teórico... Quando

pensamos em sua obra, logo nos vem à mente a forte percepção que teve diante dos temores e

terrores de sua época; percepção esta que foi sem dúvida, política, ética e estética. Segundo

seu amigo e filósofo Walter Benjamin, o que encanta em Brecht é a sua ligação com a

simplicidade. Uma simplicidade, para muitos, tida como insuficiência intelectual, mas que

1 Mestranda em filosofia pela PUC-SP.

B

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despertou em nós grande identificação desde o momento em que entramos em contato com

sua obra e onde começou nosso trabalho com o autor. Um trabalho que vem sendo

apaixonante, e assim como toda paixão, uma junção de momentos intempestivos e prazerosos.

A verdade é que acreditamos que havia em Brecht uma ânsia por mostrar com clareza

as suas idéias e contribuir com elas para o mundo. Foi movido por um impulso quase infantil

de ajudar. Alguém que obteve certa consciência, que compreendeu determinadas coisas e que

gostaria – como um dever, uma meta de vida – de compartilhar com os outros aquilo que

apreendeu. Um desprendimento de intelectualismos que guardam para si conhecimentos, com

medo de que eles deixem de ser seus, só porque foram ditos, revelados (e a partir deste ponto,

talvez se entenda a despretensão de começar um trabalho de forma mais erudita e rebuscada

do que esta). Este medo, de não ser mais importante por ser entendido pela massa, por não

mais ser narciso, é o mesmo que faz da filosofia menos audível, assim como muitos teatros e

ideias. Não porque há demasiadas pessoas débeis no mundo, mas porque o medo faz com que

se queira conservar heróis, sábios, senhores e suas verdades. A forma prevalece em meio a

uma desigualdade que é imensa.

Sendo assim, partimos de uma análise a partir, principalmente, de suas produções

estético-teóricas que permitiram a escrita deste texto, que tem como objetivo, olhar para a

obra de Brecht com certa admiração. Uma admiração que emerge num tempo em que é tão

difícil pensar o mundo e sentir esse mundo pensado através da arte, onde a verdadeira

experiência artística é quase um presente dos deuses, por se encontrar num meio onde há tanta

informação e produção em massa. Querer estar perto disso, dessa iniciativa brechtiana, é

querer estar perto do novo, do que acontece no agora e, se não por inteiro, pelo menos, de

forma parcial, na inquietação que move essa busca, mesmo que interna, que pessoal. Brecht é

um autor que, embora muitos o considerem passado, limitado, pode ensinar e nos originar

reflexões extremamente construtivas, se encaradas como transformadoras, ainda mais no

mundo atual em que pouca coisa já é muito. A conquista se dará como ele previa, com certo

exercício e este, por sua vez, só é possível se houver trabalho. No entanto, que não se perca

por esse novo caminho a leveza, seja tendo como tema o belo ou o grotesco. O importante é

sempre divertir e divertir-se. A questão ocupa um lugar mais fundamental porque, talvez, o

que esteja errado, equivocado, seja exatamente, o que hoje se atribuiu ao conceito de diversão.

Esta por si só já é um tema para uma grande reflexão. Resta prosseguir com ela.

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1 Elementos da Teoria de Bertolt Brecht

O maior desafio, talvez, da estética de Bertolt Brecht, não está em compreendê-la

como teoria, e sim em concebê-la como uma prática. E, ao mesmo tempo, ter claro que essa

teoria só existe mediante essa prática - ela pode até ser simplista quando vista apenas como

teoria, porém apresenta-se como um enorme quebra-cabeça quando vivenciada. A parte

escrita do trabalho de Brecht é resultado de uma série de reflexões a partir de nada mais do

que, as experiências vivenciadas em suas práticas teatrais. Nela (na teoria), existem sim

elementos contraditórios, mas isso não chega a ser um problema, pelo contrário. E é

importante frisar este ponto para o entendimento posterior, pois são esses elementos que

promovem a grandiosidade de seu teatro com a sua dialética. Isto, porém, também será

discutido mais adiante.

Muito embora, como mencionado anteriormente, Brecht tenha-se esforçado para ser

claro e expor suas idéias para que todos conseguissem ao menos ter acesso a elas, parece que

muitos que o leem não se conformam com a simplicidade de sua escrita e a clareza com que

ele explora suas propostas, e teimam em tentar procurar obscurantismos, falhas. A crítica é

importante para o crescimento, ela coloca em debate algo que está posto e é feliz aquele que

consegue enfrentar esse desafio. Brecht soube fazê-lo a seu modo. Contudo, há também

críticas que pouco têm a dizer de fato e muito apontam. Esquece-se de que o que está sendo

proposto, é algo importante que está sendo inaugurado. Algo que quer mudar para que haja

mudança, só é bem vindo quem estiver disposto. A história que o diga. O que é relevante é o

que acrescenta à arte. Ou, o que se cria de novo, a partir de que conceitos. Porque usar a

ciência a favor da arte tem que significar transformar a arte em não arte? O que parece é um

medo da renovação proposta por ele para o teatro. Renovação que deve ser constante, porque

deve tentar acompanhar as constantes mudanças do mundo. Brecht tentou, através das práticas

teatrais desenvolvidas em sua vida, mudar essa perspectiva com o intuito de construir relações

mais saudáveis entre o artista, o espectador, o mundo, a arte e as mudanças.

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1.1 As origens

Bertolt Brecht e sua obra, como tudo assim o é, não surgiram do nada. A história do

teatro mostra que o dramaturgo alemão “bebeu” de várias fontes, até criar a sua. A influência

toda nasce de um ponto em comum com o mundo: uma crise. Algo que não podia mais ser

silenciado. O mestre de Brecht nesses “tempos sombrios” foi Piscator, com quem ele tem

divergências, mas que desempenhou um papel importante, até mesmo para a concepção do

que viria a ser mais tarde o Teatro Épico.

O teatro de Piscator, de vanguarda, político, surgiu para romper com o tradicionalismo

que estava mais do que nunca em voga, decorrência da influência da cultura burguesa. O

naturalismo que vigorava nos palcos fazia pensar (porque assim era representada) numa

realidade sem conflitos, muito diferente da realidade vivida. Porém, em meio às atrocidades

cometidas por mãos humanas, era necessário acordar o povo para a luta contra os que o

haviam adormecido e assim explorado, transformando-os (a esse povo) em seres inanimados,

sem voz. Eram frutos de uma sociedade que cultivou o prazer pela alienação. Era o momento

da transformação. A época e as suas consequências não podiam mais ser ignoradas.

Influenciavam diretamente a constituição do sujeito, que se via sem rumo, sem saídas

possíveis para a “salvação”. Havia classes querendo falar, serem ouvidas, e não lhes davam

cenas.

O novo teatro surge e, com ele, os atores e todos os personagens que compunham o

espetáculo, os quais também emergiam de uma classe diferente daquela que costumava ser

protagonista, o proletariado. A verdade precisava mais do que nunca, com urgência, vir à tona

e o público tinha que ser o mesmo que vivia a realidade a ser escancarada. Segundo Piscator,

era objetivo da arte derivar absolutamente da verdade. Uma verdade que tem história e que

continuará tendo porque continuará evoluindo. Era preciso barrar a evolução sem consciência.

Este tinha alvo certo e há interpretações de que ele nem tinha pretensões de produzir, arte e

sim, uma proposta pedagógica2 de fazer peças políticas que informassem as classes

desinformadas, com o intuito de superar os pressupostos naturalistas através da razão.

Não é preciso ir muito longe para perceber que a luta de Piscator estava muito mais

perto da política e de uma luta de classes, herança de um marxismo que vivia o seu auge na

época, do que propriamente da arte como meio de expressão de um tempo, de momento, ou

2 O que mais tarde influenciaria Brecht a desenvolver o teatro didático.

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debate. E assim, como a própria luta de classes, ele também não obteve felicidade em sua

tentativa, passando a ficar, de certa forma, estagnado na história mais tarde. Quando se fala

em arte, Piscator pouco é citado, a não ser como ponto de referência para uma arte, mais tarde

concebida por Brecht. Mesmo porque, para ele, a arte não ia além do compromisso de mudar

a concepção política dos homens, num mundo dividido por classes. Toda ela tornava-se

escrava - e o tinha que ser - de uma tarefa de que a sociedade como um todo não conseguia

dar conta. Uma responsabilidade injusta. Dando um grande salto - mas ainda assim, uma

reflexão possível - essa responsabilidade era o que nos dias de hoje acabou por ser transferido

para a competência da educação. A escola é responsável pela formação do indivíduo,

independente da sociedade da qual ele faz parte, ela é responsável pelas mudanças. Um futuro

promissor é fruto de uma boa educação? Para Piscator a arte tinha o papel de mudar os rumos

da realidade, através de discursos politicamente engajados, que levassem a uma discussão

nesse campo. Essa era a sua essencialidade pedagógica.

Com isso, apesar da admiração e da forte influência (inclusive a marxista), Brecht

distancia-se de Piscator para fazer o seu teatro. Não tem o imediato como absoluto e para ele,

o épico - como se mostrará ao longo do trabalho - vai muito além do elemento político, não

podendo ser reduzido a este. Brecht está mais próximo da arte. Há nele mais sentimentos que

em seu mestre, no qual a busca se distanciava cada vez mais da arte -como puramente forma-

para procurar a vida, sem que essa vida dependa apenas da representação do universo

subjetivo. A arte contemporânea aguardava uma nova interpretação dos fatos. Com Brecht,

essa transformação fica mais próxima de acontecer, embora encontre pelo caminho desafios

técnicos e conceituais maiores, justamente por não se pretender como propaganda política e

sim como arte, diversão.

1.2. Um novo conceito para o teatro

A discussão do que é o Teatro Épico (fundado por Brecht), como dito anteriormente,

até hoje causa polêmicas e o seu entendimento tornou-se decisivo para a compreensão de todo

o restante da proposta do autor. Permite que todas as outras técnicas e idéias constituam

somente uma e essas relações é que acabam constituindo a própria estética de Bertolt Brecht.

O teatro agora tem um objetivo e ele é apenas um: apresentar um mundo que pode mudar e

cuja mudança dever partir do indivíduo e sua consciência. Não entender o que é Teatro Épico,

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é não entender Brecht, distanciamento, atitude crítica construída pelo e para o espectador

através da arte.

Uma nova forma emergiu da já existente. A insatisfação de Brecht está dirigida ao

rumo que a forma dramática e a épica concebidas por Aristóteles, acabaram com o tempo,

seguindo. Uma apropriação que se deu de forma a desvencilhar totalmente a arte do

compromisso com sua época, com o homem do momento presente. Homem que muda e

tempo que muda. Para ele, o que havia sido conquistado ao longo dos tempos eram textos

cheios de entonações especiais, modos difíceis de falar e enredos sem novidades, longe de

criarem qualquer coisa digna de admiração, ou pensamentos “válidos”, a fim de promover

discussão e dela surgir mais tarde, algo como uma transformação, por mínima que fosse.

Resumindo, havia se consumido muito, a arte tornara-se produto e o produto mais desejado.

Era ela o que acabou derivando para o que é hoje também chamado de entretenimento. Uma

diversão alienada.

Entretanto, voltando a Aristóteles, a oposição de Brecht tem a ver com o valor

soberano que foi dado às emoções no teatro. Por mais que, desde sempre, a forma épica e a

dramática tenham sempre sido distinguidas uma da outra (na estrutura) e tenham ocupado

lugares distintos na estética, em Aristóteles ambas as formas tomavam emprestados elementos

uma da outra, combinando-se entre si. Esse movimento (de empréstimo), segundo Brecht, foi

tornando-se cada vez maior e a forma épica nessa doação foi perdendo sua essência para dar

lugar à dramaticidade exacerbada até atingir seu auge: o romance burguês foi transformado

pelo teatro e por seu mundo em “drama burguês”. A crítica de Brecht dirige-se a esse

movimento, já presente e fundamentado em Aristóteles.

Foi um processo histórico da arte, mas o resultado dessa fusão representou a perda da

epopeia. O que Aristóteles “teria” feito - porque há dúvidas quanto a ele ter feito de fato-, ao

diferenciar as duas formas, deformou-se3. Transformou-se em apenas uma forma. A forma

dramática de teatro. A causa disso está na própria origem do movimento de doação de

elementos de uma forma para a outra. Ao contrário do que muitos pensam a dramaturgia não-

aristotélica (de Brecht) não compreende as emoções como algo que deve ser banido da cena.

Acredita, sim, que só é possível emocionar-se tendo por base uma mente preparada, a partir

de uma hegemonia do espírito crítico. O que Brecht percebe é que havia uma manipulação das

emoções e conseqüentemente da realidade. A arte passa a retirar o indivíduo do mundo que 3 Este artigo não poderá dar conta desta discussão em relação à crítica de Brecht a Aristóteles. Trata-se de uma questão que será discutida com mais rigor e atento em outro momento de nossa pesquisa sobre o universo de Bertolt Brecht.

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ele não quer ver. A única saída é “aniquilar” a idéia de que a emoção tem que estar vinculada

a um estado de empatia, a uma irracionalidade. É nesse ponto que se dá o embate entre

Brecht, Aristóteles e seus críticos. Sabendo-se que a experiência teatral, por mais racional que

seja, tem muito de emocional, como fazer que essa mesma experiência seja ao mesmo tempo

crítica? O desafio está em não transformar o teatro em panfletário, como em Piscator, ou,

como em boa parte da dramaturgia, deixar que as emoções coincidam com ignorância. É

preciso domar as emoções - o que os gregos, com suas tragédias carregadas delas, nos

famosos momentos “catárticos” 4 não conseguiram.

É importante, no entanto, ressalvar que Brecht nunca foi contrário aos clássicos.

Segundo ele, o problema estava na intimidação que se apossou dessas obras, na ameaça de

desaparecer o que havia de particular e de arte nelas. Criou-se uma tradição que reproduz as

obras clássicas como repete tarefas de sua rotina, acomodando os encenadores, os atores e o

público. Há mudanças que são próprias de cada tempo e elas têm que existir. O que aconteceu

com o teatro é que o mundo seguiu, e ele parece que parou e estagnou, bastando-se de

mudanças formais, quando, na verdade, elas deveriam dar-se nas entranhas desse novo

homem que surge dia após dia e que deveria ser observador de si mesmo, sem descansos, sem

sossego.

Acidentes acontecem e o teatro para Brecht passa a ser uma descrição de alguns deles.

Tenta olhar para o sentimento também como algo vivo e que por o ser, está sujeito a

mudanças. Tem como função representar situações, mas não apenas a reprodução de cenas

conhecidas. Sair dessa “zona confortável” para transpor uma realidade, mostrando os

acontecimentos por detrás dos acontecimentos. A realidade é estranha e, buscar o seu

conhecimento, aproxima o homem curioso. Esse movimento é vivido pela ciência. Ele estaria

assim, ocupando o lugar que lhe é devido: o de estar ao lado da ciência. E diferentemente de

Aristóteles, essa relação com a ciência não mais está ligada às causas dos fenômenos e sim, às

relações entre esses fenômenos. Para isso, é necessário que se descubram antes essas situações

da vida cotidiana.

A estagnação da cena fica muito mais evidente nos clássicos retratados pela burguesia,

em que o “temperamento dramático” substitui qualquer poder (que alguma vez já se pôde

atribuir a essas obras) de intervir naquela sociedade. As mudanças se deram só em nível

formal e mascaram o que está por trás, um descaso com o novo, muito pior do que se fossem 4 O momento de catarse foi concebido por Aristóteles e desenvolvido por este em sua obra. Através de interpretações deste conceito, entende-se como catarse, o resultado, o estado mais intenso dado pelas emoções. Uma espécie de emoção que se configura numa experiência entre o reconhecimento e a admiração.

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simplesmente encenadas tradicionalmente. Tornaram-se clássicas as obras, assim como se

tornou clássica a fachada da sociedade, das relações entre os homens que serve apenas para

enaltecer a superficialidade hipócrita.

O homem comete anacronismos o tempo todo. Numa época em que nada havia de

belo, não havia porque representá-lo como se ele de fato estivesse presente nos

acontecimentos da vida real. O belo, naquele momento, fazia parte do comércio burguês. Para

Brecht, era preciso encontrar a diversão própria daquele tempo e dos próximos. As novas

formas de convívio entre os homens herdam coisas do passado, mas não são eternas. A

história é eterna enquanto história. O antigo como “fachada”, receita do belo, deve ser

deixado de lado.

Assim, para auxiliar o entendimento dos conceitos do novo teatro que surge, o autor

escreveu um texto intitulado: “Pequeno órganon para o teatro” 5. Ele achava que se fazia

necessário analisar a estética desse teatro que emergia da era científica. Esse era o momento

vivido por aquela época: a ciência no centro. Como já dito anteriormente, não havia como

voltar e ignorar o fato, seria ignorar pateticamente que o mundo estava sofrendo uma

mudança, “divisora de águas” para sempre. Os ditos representantes da estética, por menos

preparados que estivessem para conceber essa nova forma de se fazer teatro, teriam que

encarar a questão ao invés de se contentarem em olhar com desdém para o que para eles era

uma arte impossibilitada, porque surgia de “uma classe depravada que se tornara parasitária”.

Sobre a proposta deste órganon, Brecht diz em seu prólogo:

Chegou a altura de rebatermos, por muito que pese ao comum das pessoas, o nosso propósito de emigrar do reino do aprazível e de manifestarmos, por muito que ainda o maior número de pessoas, o nosso propósito de nos estabelecermos, daqui para frente, neste reino. Tratemos o teatro como um recinto de diversão, único tratamento possível desde que o enquadremos numa estética, e analisemos, pois, qual a forma de diversão que mais nos agrada (2005, p. 127).

Pois então, o princípio básico do teatro é a diversão. É esta que é responsável por uma

“dignidade especial” que lhe foi atribuída. “O teatro precisa poder continuar a ser algo

absolutamente supérfluo, o que significa, evidentemente, que vivemos para o supérfluo. E a

causa dos divertimentos é, dentre todas a que menos necessita de ser advogada” (BRECHT,

2005, p.128).

5 Este texto foi escrito por Brecht em 1948 e está no seu livro, Estudos sobre teatro, publicado em 2005 pela Ed. Nova Fronteira.

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Querer que ele assumisse objetivos maiores que o de divertir é menosprezar o seu

principal objetivo: o prazer. Neste ponto, Brecht distingue dois tipos de prazer: os fracos, que

estariam representados por aqueles dramas que não se desenvolvem mais que na superfície; e

os intensos, que seriam provocados pela riqueza do drama, que intervém, que contradiz e que

tem consequências bem mais decisivas.

É a sensação de desacerto, que nos vem perante as reproduções dos acontecimentos ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto é o fato de a nossa posição em relação ao objeto reproduzido ser diversa daquela dos que nos antecederam (BRECHT, 2005, p.132).

É preciso encontrar esse novo teatro de que tanto se fala. Tendo a forma épica

assumido o que antes era característico do teatro dramático, isto é, a identificação com o herói

e a representação da concepção de mundo a partir da perspectiva deste, é preciso agora ver o

mundo que existe antes do sujeito. Realçar o ambiente em que vivem os homens, que sempre

foi colocado nos dramas do ponto de vista do herói, manipulado. Ele determinava o meio. O

teatro épico quer o meio manifestando-se independentemente dos seres que o habitam e de

suas opiniões. O homem, com sua sede de saber e domínio, conseguiu intervir em algo tão

mais forte que ele próprio, ou seja, a natureza. Ele a explorou e a subjugou, mas não aprendeu

com ela caminhos melhores para conseguir finalmente a sua evolução: coexistir de forma

plena e sadia em sociedade. Pelo contrário, buscou artifícios através da ciência para se tornar

cada vez menos natural, para mudar o curso da vida, fazer dela sua subordinada.

O que poderia ser o progresso de todos torna-se a vantagem de algumas partes apenas, e uma parte crescente da produção é votada à criação de meios destruidores destinados a guerras poderosas, a guerras em que as mães de todas as nações, com os filhos apertados contra si, esquadrinham estupefatos o céu, no rastro dos inventos mortíferos da ciência (BRECHT, 2005, p.134).

A ciência é produto da classe burguesa e serve a essa classe. A vida de outras pessoas

é tirada em prol de uma vida duradoura, calma e confortável para uma minoria. Dessa forma,

nasceu e cresce o dito “progresso” trazido pela modernidade.

Faz parte da concepção teatral de Brecht entender os mecanismos e em que ponto se

encontra a humanidade da qual ele próprio é participante. Esse é o ponto de partida para o

trabalho. Todos deveriam se questionar sobre o mundo em que vivem. Há nesse “dever” uma

proposta estética de fazer do momento vivido, dos acontecimentos da atualidade fontes de

pesquisa e produção para o palco. É questão corrente em sua obra, parecendo ser

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inconcebível, pensar que o homem passa pela vida, sem se questionar sobre ela, sem querer

mudar. Nisso aparecem questões como: Que impotência é essa do homem mudar a si próprio?

O que lhe permite tantos feitos, como por exemplo, causar catástrofes, mas que o impede de

poder revertê-las em bondade e gestos de respeito para com o próximo? Há impotência, ou faz

parte de uma escolha? Mais uma vez, o que lhe interessa são as situações em que isso é

questionado. Que decisões devem ser tomadas e cada uma terá sua implicação e essas

implicações devem ser mostradas e destrinchadas.

A arte precisa se apoiar naqueles que querem de fato mudar para melhor. É esse desejo

que fará do teatro um teatro próprio de sua época. Não colocando a arte à mercê da época,

mas ao mesmo tempo não esquecer esta e suas características. Negar isso é um erro grave.

Posteriormente, é deixar de lado aqueles que também têm direito à diversão, que também

podem criar diversão, sem se esquecer de pensar sobre a complexidade de seus problemas. A

arte pode servir de saída para, por que não também, proporcionar a resolução desses

problemas.

Tudo isto vem facilitar ao teatro uma aproximação, tanto quanto possível estreita, com os estabelecimentos de ensino e de difusão. Pois, embora o teatro não deva ser importunado com toda a sorte de temas de ordem cultural que não lhe confiram um caráter recreativo, tem plena liberdade de se recrear com o ensino ou com a investigação. Faz com que as reproduções da sociedade sejam válidas e capazes de a influenciar, como autêntica diversão (BRECHT, 2005, p.136-137).

1.3 A proposta teórica da prática

Chega-se ao ponto da proposta. O que deve ser feito para que o mundo seja mostrado

assim como é? Como mundo que muda e que pode ser mudado pelo homem que se senta para

assistir à peça? Há muito tempo que algo está sendo escondido: a mudança. Porém, todos

sabem que algo mudou. O quê? Resta ao teatro “escancarar” as cortinas de seus palcos!

O que estava sendo mostrado, segundo Brecht, era uma estrutura extremamente

elaborada com o intuito de não mostrar saídas, de não poder ser modificada pela sociedade.

Ou seja, por ninguém que estivesse na plateia. Brecht ressalta esse ponto, o tempo todo e de

forma radical, com razão, porque se sabe (e nesse ponto a influência da filosofia é

fundamental) que os produtos da alienação, podem ser os mais desastrosos possíveis. Quando

a importância do saber sobre si e sobre o seu mundo não é frisada o tempo todo, há uma

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grande tendência dos homens a se fecharem cada um em seus problemas pessoais, íntimos.

Têm a esperança de que “Deus” 6 os resolva sem despertarem para a possibilidade de que tais

problemas podem ser resolvidos por eles mesmos.

A reflexão e o pensar podem limitar a ação, mas a ação efetiva e cordial só existirá por

meio desses mecanismos apenas possíveis aos homens. O homem deve ser retratado como um

acontecimento que ainda não terminou, assim como todas as suas ações e todos os momentos

de sua vida. A vida dele está longe de acabar. O homem moderno tem de superar a “morte de

Deus”, que nada mais é senão a morte de seus valores. Um sentimento de angústia e de que

tudo que se estabelece com o advento desse homem moderno é vão e deve ser superado.

Superado a partir da construção de um olhar que não deveria buscar algo acima da vida, mas

nela mesma. O olhar que faz com que valha a pena viver novamente. Para isso, fazendo a

ponte (lembramos Nietzsche), o homem precisa se desprender dos ressentimentos carregados

por sua tradição metafísica para buscar algo de valioso no mundo terreno, não mais no mundo

da transcendência. Só assim, encarando a sua condição de ser que sofre, poderá confrontar o

conformismo e ir além de si mesmo, não mais vendo a vida de forma depreciativa porque ela

terminará na morte, mas buscando na própria vida saídas, possibilidades, salvação. Dessa

forma, poder-se-ia dizer que há, como em Nietzsche, uma proposta de superação do niilismo:

em Brecht, através do teatro.

Se o teatro se ocupará de mostrar a realidade, terá que ser capaz também de abrir

campos para a transformação dessa realidade, contemplando-a de diversas formas. Para que

não haja possível frustração - como muitas vezes há perante algumas teorias, que rondam a

mudança, mas que deixam sempre a pergunta: Como mudar? Como fazer teatro dentro desses

moldes, sem esquecer o principal objetivo do teatro que deve ser o de divertir? –

mencionemos as cartas de Brecht, que constituem a parte prática de sua estética. A

explicitação de algumas técnicas ainda está longe de ser prática (por se tratar a prática do

objetivo dessa teorização, neste caso), porém, durante toda a sua vida, Brecht, como já dito,

antes de teorizar as aplicou, as experimentou em seu teatro e hoje elas continuam sendo

adotadas, por vezes sendo reinventadas, por vezes não.

Em primeiro lugar, Brecht propõe um novo olhar diante da perspectiva histórica. Ela

existe de certa forma, no entanto passa a ideia de que aquilo que aconteceu naquela época

também poderia acontecer agora e sendo vivenciado de um outro modo por outros homens

6 O uso da palavra “Deus” é no sentido de crença, de qualquer coisa que influencie diretamente, as ações e pensamentos do indivíduo, que o prenda e o objetive em determinada empreitada.

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que não aqueles. Como se fosse trabalhada uma espécie de contradição que, ao mesmo tempo,

mostra certo momento na história e esfumaça sua imagem, fazendo-o se parecer também

como um possível momento de agora. Essa situação gera um confronto e por si só tem como

objetivo causar certo estranhamento. Há uma liberdade que permite uma viagem por várias

épocas, situações, acontecimentos. Há um reconhecimento que não se efetiva de cara, que não

se finda na ação, que se completa com a abstração e reflexão dirigida a ele.

Este elemento pode-se dizer que está ligado a algo mais fecundo em Brecht, que é a

concepção dialética, dirigida a um compromisso que ele acreditava ser fundamental da

ciência: o de educar combatendo a irracionalidade. Fazer do espectador um cientista, um

cientista que lida com a contradição. Que cresce nela, para transformar. Na dialética, a

diferença em forma de dicotomia se dá por meio da dinâmica, apresentando acontecimentos,

ou situações que ainda não findaram e nos quais as coisas “tomam rumos” diferentes do que

aconteceria com, por exemplo, uma apreensão superficial do real, para dar lugar ao verdadeiro

real, uma contradição. As coisas só se transformam se estiverem em conflito com elas

mesmas. É nesses conflitos que se dá a mudança. Brecht quer o espectador vivenciando esse

conflito e os possíveis desenlaces que dele podem provir. Afinal, segundo ele próprio:

Mesmo nos ‘panoramas’ das barracas de feira e nas baladas populares, a gente simples - que é, afinal, tão pouco simples - gosta de histórias que tenham por tema prosperidade e a queda dos grandes, a eterna mudança, a astúcia dos oprimidos, as possibilidades do homem. E buscam a verdade: isto é, ‘o que fica por trás dela (BRECHT, 2005, p.188).

Ainda com respeito à dialética, havia também em Brecht, uma forte reivindicação: a

de unir forma e conteúdo, como se ambos constituíssem uma unidade (embora havendo

diferenças estruturais entre eles). Há, no entanto, nisso um embate. Pode-se dizer que o

dramaturgo buscou o verdadeiro realismo, representando em suas peças a realidade, tentando

fugir das leis formais impostas por tratados realistas. Porém, encontrou dificuldades para

combater os pressupostos que já existiam embora soubesse que como artista a sua

preocupação também teria de ser a forma. Assume-se, ele mesmo, como um formalista,

simplesmente por querer, desejar, “formalizar” as imagens de suas descobertas pessoais.

Defende então que o formalismo não é culpado por tornar obras em não realistas, porque ele

não faz parte do campo da estética. Voltando ao ponto de conflito, é necessário que haja

conteúdo no que está sendo dito. Muitas obras foram transformadas em superficialidade para

que se obedecesse a uma beleza estética.

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Segundo Brecht, o problema se resolve quando o formalismo “descer à vida

cotidiana”. Isso serviria até mesmo para desmascarar obras que são puramente formais e que,

portanto, não correspondem à realidade. Pretendem-se transformadoras, mas a maioria das

pessoas não as entende. Como transformar com “montagens” de situações sociais, que não

passam de forma e mais forma? O fracasso de muitas “correntes libertadoras” está no fato

delas não experimentarem o fracasso, o erro, de não experimentarem ao máximo a obra de

arte. Deve ser abandonado aquele velho pressuposto de “algo dar certo”. Só assim o mundo

poderá caminhar ao invés de permanecer estático, como acontece com a metafísica. A única

forma visível para Brecht de isso se concretizar é na união de forma e conteúdo, uma relação

dialética. Nisto, houve a influência do expressionismo, apesar de ter traçado o próprio

caminho. O conflito para ele deve acontecer no palco.

Com o intuito de provocar um “baque” na arte de representar, destituindo a concepção

de que teatro é alheamento, é hipnose, é que vem à tona a técnica central do novo teatro

Épico, o distanciamento. Ele nasce da necessidade de possibilitar àqueles que assistem à

relação e à reflexão, a partir das cenas, com o mundo em que vivem. O mundo representado

não mais será uma ilusão improvável. O conformismo diante dos acontecimentos dados, o

pré-estabelecido, devem ser abandonados para darem lugar a um novo comportamento que

será iniciado pelos atores e pela encenação e culminará na formação de um espectador

consciente e que tenta acompanhar de fato a evolução de seu meio. Nesse mundo, quem quer

diferente é exceção e uma exceção ousada! Há, porém, uma esperança no homem: a de que

ele possa mudar. Para isso, segundo Brecht, o homem terá que encarar o que deveria ser e não

só o que é. Um novo destino tem que lhe ser mostrado.

O distanciamento descarta o previsível. Ecos, esboços configuram a cena que

desencadeia tantas outras cenas na cabeça daquele que assiste. O objeto reconhecido, que para

Brecht é feito por meio de referências históricas, ou com um dos ícones da atualidade,

provoca dúvida e sensações diversas das de um reconhecimento comum, como do teatro

burguês. O efeito novo ansiava outros desígnios, que não os da antiga técnica, que existia em

outras culturas e se aproximava mais do plano de um devaneio e de um desprendimento

espiritual do mundo do que da veracidade deste. Não servia para a sociedade do novo tempo,

nem do próximo. A finalidade era outra: a de despertar no espectador a atividade crítica ao

tornar o cotidiano especial, justamente para que se pensasse sobre ele (por isso mesmo, é

importante o uso, em cena, de elementos desse cotidiano). Chega a ser espirituoso pensar que,

a vida representada pelo teatro burguês estava tão distante da realidade que retratá-la (a

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realidade) na sua simplicidade e sem artifícios, seria causar um estranhamento. Esta já é por si

só uma grande contradição.

A dialética encontra-se nesse processo também. Pode ser (e esta é uma reflexão

arriscada, ao mesmo tempo em que pertinente, à medida que se lê sobre a estética de Brecht)

que sua concepção de dialética, assim como também a de distanciamento, tenha surgido cada

vez de forma mais intensa em sua obra, para contestar a própria concepção de opostos como

se eles existissem apenas no plano teórico. Eles se confundem, unem-se na contradição, assim

como o amor e o ódio, que constantemente (como a maioria dos sentimentos, classificados

como opostos) tomam a mesma forma, são faces da mesma moeda e apossam-se ao mesmo

tempo de uma mesma pessoa e, no entanto, são tidos conceitualmente como opostos. Isso se

aproxima da vida real. No distanciamento isso é experimentado pelo ator e, consequentemente

pelo espectador. Mais que isso: só culminará em vivência do público, se primeiro for

experimentado pelos atores.

Antes, o que era encenado tinha que dar a impressão de não ser ensaiado, de ser o mais

natural possível. Agora, o ator deve mostrar com gestos, o que está fazendo. Num primeiro

momento, pensa-se em distanciamento - e nisso reside o grande problema das interpretações

brechtianas - como algo reto, frio e extremamente entediante. Realmente isso pode acontecer,

mas há um ponto chave para que ele se concretize de fato e é o que muitos não entendem. O

ator não deve começar distanciado totalmente de seu personagem. Mesmo porque para haver

um distanciamento é necessário que antes se aproxime algo. O que não deve acontecer é o

ator “metamorfosear-se” na personagem. Ele não deve, no decurso do processo, deixar-se

levar pela personagem e os sentimentos desta, mas num primeiro momento (muito pequeno) é

imprescindível certa empatia, para que, no momento em que ele e o espectador estejam

“quase acreditando”, se dê uma quebra, uma interrupção, que é feita pelo próprio ator e que se

configurará na forma de gestos, plenos e meticulosamente escolhidos a partir de um trabalho

que Brecht defende que se faça através da constante observação atenta -“arte da observação”-,

tanto dos atores, quanto dos novos espectadores que irão nascer.

A quarta parede (que antes configurava justamente a distância entre espectador e ator)

se desfaz e o ator se dirige diretamente ao público e em nenhum momento, ambos deixam de

ser o que são: ator e espectador. Nesse sentido, nasce também uma nova forma de se ensinar e

de se aprender. Há uma proposta educativa e filosófica nisso, porque tanto para o público

como para aquele que encena pretende-se que desenvolvam uma atitude de questionar e

refletir sobre o que fazem e o que veem. Tanto um quanto o outro sabem exatamente o que

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estão fazendo. A ideia de um “espectador-filósofo” que se desenvolve juntamente com a idéia

de observação é explorada já desde os ensaios intensos dos atores que estudam aquele

personagem, distantes como um historiador, a partir de mesas de estudos e com o maior

número de ensaios possível, para que o trabalho não se dê no nível da precipitação e das

escolhas sem fundamento. A escolha meticulosa dos gestos se insere neste trabalho de

distanciar, uma vez que será através destes que se desenrolará a cena cotidiana, com todas as

contradições que carrega.

Faz-se a peça, inicia-se a discussão que se espera que reverbere durante muito tempo

naquele indivíduo que assistiu e no ator que representou. Não há mais o espetáculo que retira

o homem de sua realidade para lhe oferecer um mundo que não lhe pertence. Não se trata de

pessimismo nem de conformismo. Há esperança, mas ela está justamente em apontar o

conflito e procurar saídas, e não puramente em assistir à desgraça e sentir-se inútil porque

assim o é. Isso tudo, aliado ao bom humor, à precisão técnica e à devoção daquele que

acredita na arte como um plano, também para a mudança, configura os fundamentos da

estética teatral de Bertolt Brecht.

Considerações Finais

No mais, um clássico para o teatro só deveria ser assim considerado quando se

esgotassem todas as suas possibilidades de atuação. Portanto, parece que Brecht, enquanto

desenvolvimento de uma atitude crítica na discussão da realidade e enquanto impulso para a

investigação de aperfeiçoamento técnico (como ele fez), se bem apropriado, estará sempre

vivo. Mais uma vez, não as suas peças, porque qualquer texto por maior que seja a sua

atualidade, se esgota, ou deixa de fazer sentido, para determinados momentos vividos pela

sociedade. O que é mais interessante em Brecht é a sua atitude não só como artista mas como

homem pertencente a este mundo e que não consegue aquietar-se diante de tanto sofrimento.

Para isso, é muito importante lembrar que nos últimos anos de sua vida, ele pensava muito

num teatro sempre inovador, e que ele era antes de tudo alguém que acreditava na mudança.

É preciso provocar constantemente o debate, fazer o homem pensar sobre si e sobre o

que o rodeia. A alienação, a desesperança, a crença de que as coisas não vão mudar e que não

há por onde começar já levaram e continuam levando homens e povos a se conformarem com

a ruína e a cometerem atos desesperados. Essa busca por mostrar o que é oculto, é uma busca

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pela clareza, uma busca por não se aceitar, com radicalidade, que nenhuma ação privilegie

mais um ser humano que o outro. Na história, aconteceram fatos que jamais deveriam ter

acontecido se houvesse certo discernimento. Exemplo disso foi o terrível Nazismo e todo o

seu grande programa de alienação. Não é necessário nem lembrar que a propaganda nasceu

nesse tempo sombrio. Brecht viveu nesse tempo.

Porém, é claro que quando se trata de seres humanos que adquiriram um novo

conceito do que é sobreviver, o campo fica mais complicado. Mas como clichês sempre são

válidos, em horas de aperto aquele que diz que “a esperança é última que morre” diz algo que

cabe com perfeição nesta conclusão, porque é dessa esperança que de certa forma Bertolt

Brecht falou, é ela que deve guiar o artista em sua arte, que por sua vez guiou esse trabalho; é

ela que promove a fé dos indivíduos e, provavelmente, é ela que guia a vida dos homens.

Como conclusão, um trecho de um poema do mestre, “A esperança do Mundo”:

Quanto mais numerosos os que sofrem, mais naturais parecem seus sofrimentos, portanto. Quem deseja impedir que se molhem os peixes do mar? E os sofredores mesmos partilham dessa dureza contra si e deixam que lhes falte bondade entre si. É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias. Todos os que meditaram sobre o mau estado das coisas recusam-se a apelar à compaixão de uns por outros. Mas a compaixão dos oprimidos pelos oprimidos é indispensável. Ela é a esperança do mundo (BRECHT, 2000, p.223).

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Submetido em: 31/08/2011 Aceito em: 29/11/2011