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Estruturas conceituais e estratégias cognitivas em ciência — V. A. Bezerra (UFABC) IV Seminário de História e Filosofia da Ciência — Ilhéus — Agosto de 2010 1 Estruturas conceituais e estratégias cognitivas em ciência: Modelos tipo I, modelos tipo II, analogias e correspondência Valter Alnis Bezerra Centro de Ciências Naturais e Humanas — Universidade Federal do ABC [email protected] http://sites.google.com/site/filosofiadacienciaufabc/ Introdução Neste texto, nosso interesse está principalmente em determinadas estratégias cognitivas racionais de investigação científica que têm em comum a característica de depender, para sua aplicação, e mesmo para a sua definição, de um contraponto entre duas ou mais estruturas. São focalizadas, em particular, três dessas estratégias cognitivas: os modelos, as analogias e o princípio de correspondência. (1) Inicialmente, são consideradas as duas grandes concepções de modelo — a concepção dita lógica ou metamatemática, por um lado (aqui denominada modelo tipo II), e a concepção de modelo como uma prototeoria, por outro (modelo tipo I), que envolve idealizações, aproximações e simplificações, bem como uma maior tolerância para com a presença de inconsistências. (O termo “prototeoria” já foi utilizado por I. L. Batista.) Ao mesmo tempo que são assinaladas as diferenças entre as duas noções de modelo, procura-se também compreender de que maneira elas estão relacionadas entre si, dentro do espírito de P. Suppes e S. French. Em particular, para se investigar a relação de modelagem tipo I é necessário invocar a relação de modelagem tipo II. Os modelos lógicos são indispensáveis até mesmo para se pensar o teste empírico de teorias, quando entram em cena os modelos de dados e a sentença de Ramsey. (2) As concepções de modelo tipo I e tipo II são então utilizadas para elucidar o funcionamento das analogias na solução de problemas em ciência. Esta análise é aplicada à interpretação de alguns casos de pensamento analógico encontrados na história da ciência moderna (incluindo o modelo padrão em física de partículas e a teoria do campo eletromagnético de Maxwell, esta última inserida dentro do período de declínio da imagem mecanicista de natureza). (3) Após o desenvolvimento da parte teórica dos itens (1) e (2), são trabalhados em maior detalhe exemplos tirados da história da mecânica quântica. Um caso que ilustra de forma expressiva várias características dos modelos nos é proporcionado pelo modelo atômico de Bohr-Sommerfeld. Em seguida, voltamos a atenção para um dispositivo que caracteriza parte significativa do desenvolvimento conceitual da física quântica: o chamado princípio de correspondência, que estabelece como critério para o desenvolvimento da teoria quântica a existência de certas relações com as teorias clássicas. Identificam-se duas formas principais do princípio de correspondência: uma versão numérica-assintótica e uma estrutural-formal. O teor e os modos de aplicação do princípio de correspondência são analisados à luz das considerações feitas sobre os modelos e analogias. O princípio de correspondência na forma numérica pode ser entendido como uma relação entre os modelos de dados associados à teorias, e, na sua forma estrutural, como uma relação que se estabelece entre os modelos dos sistemas teóricos envolvidos.

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Estruturas conceituais e estratégias cognitivas em ciência — V. A. Bezerra (UFABC)

IV Seminário de História e Filosofia da Ciência — Ilhéus — Agosto de 2010 1

Estruturas conceituais e estratégias cognitivas em ciência: Modelos tipo I, modelos tipo II, analogias e corres pondência

Valter Alnis Bezerra

Centro de Ciências Naturais e Humanas — Universidade Federal do ABC [email protected]

http://sites.google.com/site/filosofiadacienciaufabc/

Introdução

Neste texto, nosso interesse está principalmente em determinadas estratégias cognitivas racionais de investigação científica que têm em comum a característica de depender, para sua aplicação, e mesmo para a sua definição, de um contraponto entre duas ou mais estruturas. São focalizadas, em particular, três dessas estratégias cognitivas: os modelos, as analogias e o princípio de correspondência. (1) Inicialmente, são consideradas as duas grandes concepções de modelo — a concepção dita lógica ou metamatemática, por um lado (aqui denominada modelo tipo II), e a concepção de modelo como uma prototeoria, por outro (modelo tipo I), que envolve idealizações, aproximações e simplificações, bem como uma maior tolerância para com a presença de inconsistências. (O termo “prototeoria” já foi utilizado por I. L. Batista.) Ao mesmo tempo que são assinaladas as diferenças entre as duas noções de modelo, procura-se também compreender de que maneira elas estão relacionadas entre si, dentro do espírito de P. Suppes e S. French. Em particular, para se investigar a relação de modelagem tipo I é necessário invocar a relação de modelagem tipo II. Os modelos lógicos são indispensáveis até mesmo para se pensar o teste empírico de teorias, quando entram em cena os modelos de dados e a sentença de Ramsey. (2) As concepções de modelo tipo I e tipo II são então utilizadas para elucidar o funcionamento das analogias na solução de problemas em ciência. Esta análise é aplicada à interpretação de alguns casos de pensamento analógico encontrados na história da ciência moderna (incluindo o modelo padrão em física de partículas e a teoria do campo eletromagnético de Maxwell, esta última inserida dentro do período de declínio da imagem mecanicista de natureza). (3) Após o desenvolvimento da parte teórica dos itens (1) e (2), são trabalhados em maior detalhe exemplos tirados da história da mecânica quântica. Um caso que ilustra de forma expressiva várias características dos modelos nos é proporcionado pelo modelo atômico de Bohr-Sommerfeld. Em seguida, voltamos a atenção para um dispositivo que caracteriza parte significativa do desenvolvimento conceitual da física quântica: o chamado princípio de correspondência, que estabelece como critério para o desenvolvimento da teoria quântica a existência de certas relações com as teorias clássicas. Identificam-se duas formas principais do princípio de correspondência: uma versão numérica-assintótica e uma estrutural-formal. O teor e os modos de aplicação do princípio de correspondência são analisados à luz das considerações feitas sobre os modelos e analogias. O princípio de correspondência na forma numérica pode ser entendido como uma relação entre os modelos de dados associados à teorias, e, na sua forma estrutural, como uma relação que se estabelece entre os modelos dos sistemas teóricos envolvidos.

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I. Analogias na ciência As analogias constituem uma estratégia cognitiva sumamente importante dentro do conjunto de ferramentas usuais da investigação científica. Veremos que o funcionamento das analogias pode ser consideravelmente esclarecido utilizando-se a noção de modelo. Um exemplo elementar, porém que coloca em relevo os aspectos centrais da analogia na ciência, é proporcionado pela relação que se pode estabelecer entre duas instâncias do oscilador harmônico — um circuito oscilante LC e um sistema massa-mola:

Os dois sistemas, embora possuam constituições físicas totalmente diferentes, apresentam uma similaridade formal entre as equações que descrevem os seus comportamentos, como ilustrado na Figura 2, a seguir. Ambas as equações têm soluções que apresentam comportamento oscilatório.

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O processo da analogia é fundamentalmente o seguinte. A analogia científica se vale de um trânsito de ida e volta entre dois domínios de investigação diferentes, como ilustrado no diagrama a seguir:

Os termos analogia positiva e analogia negativa procuram expressar a idéia informal que há aspectos em que a analogia “funciona” ou “se aplica” e aspectos em que isso não ocorre. O sistema B nos ajuda a encontra uma solução para um problema colocado no sistema A, mas também existem aspectos do sistema B que não pretendemos ou não desejamos transportar de volta para A. Esta noção pode vir a ser formulada de maneira precisa usando o conceito de isomorfismo parcial (Bueno 1997, 1999; Bueno, French & Ladyman 2002; French & Ladyman 1997). O contexto em que entra a noção de isomorfismo entre estruturas ficará mais claro quando discutirmos as noções de modelo na Seção II. Vejamos o que disse Maxwell — um entusiasta da estratégia das “analogias físicas” em ciência — de forma sucinta em uma conferência de 1870:1

E de novo Maxwell, no primeiro de seus três grandes artigos sobre o eletromagnetismo, “On Faraday’s lines of force”, de 1856:2 1 Maxwell, “Address to the Mathematical and Physical Sections of the British Association”, British Association Reports, v. 40, 1870, apud Turner [1955]. 2 Maxwell [1856], p. 156.

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Na introdução do mesmo artigo, Maxwell exemplifica com a analogia entre a força de atração segundo o inverso do quadrado da distância e a condução de calor:3

Para investigar os fenômenos elétricos e magnéticos, Maxwell adota a noção física de “linhas de força” de Faraday, e propõe uma analogia hidrodinâmica:4

3 Maxwell [1856], p. 157. 4 Maxwell [1856], p. 159.

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Porém, é de se notar que Maxwell demonstra, ainda, grande escrúpulo em não atribuir à analogia um maior importe ontológico:5

E, mais adiante, Maxwell faz referência à sua expectativa de implementar uma noção de algo como uma “embodied mathematics”:6

Vemos que, para Maxwell, as analogias são encaradas principalmente como uma estratégia de invenção (evitamos aqui usar o termo “descoberta”). É justo supor que a analogia em Maxwell é uma etapa do caminho, não é o destino em si. O objetivo final de Maxwell, virtuose da física matemática que era, consistia em chegar, ao fim e ao cabo, em uma formulação matematizada das leis referentes àquele domínio de investigação.

5 Maxwell [1856], p. 160. 6 Maxwell [1856], p. 187.

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II. Modelos lógicos e modelos representacionais Para elucidar o funcionamento das analogias na ciência, bem como para esclarecer o que está em jogo quando os cientistas se dedicam à atividade usualmente referida como “modelagem”, e ainda para entender a operação do princípio de correspondência, iremos nos voltar agora para as noções de modelo, e faremos isso através de uma distinção e um confronto entre, de um lado, a noção de modelo mais corrente na ciência (representacional) e, de outro, o conceito de modelo em sua acepção metamatemática.7 Um modelo no sentido I (o tipo mais comumente aludido na ciência), é melhor entendido como uma teoria aproximada ou simplificada ou que se vale de idealizações — ou ainda uma estrutura preditiva / descritiva na qual a condição de consistência interna é relaxada, vale dizer, onde se atribui ao valor cognitivo da consistência um peso menor. Em outras palavras, podemos dizer que trata-se de uma prototeoria (cf. Batista 2004).8 Iremos nos referir aos modelos deste tipo como modelos representacionais . Com relação aos modelos representacionais, cumpre lembrar que certamente existem ainda sub-tipos deles, como os modelos físicos, modelos em escala, modelos icônicos, modelos estruturais, e modelos de cálculo numérico. Porém hoje iremos nos concentrar, aqui, nos modelos representacionais de tipo conceitual / matemático . Por outro lado, um modelo no sentido II (metamatemático ou lógico) é uma interpretação verdadeira de um conjunto de axiomas . Uma vez que a idéia presente na noção lógica de modelo é precisamente a de ser um exemplo, um caso ou uma instância de uma estrutura abstrata geral, esta noção de modelo pode também ser chamada de instancial . Essas duas acepções do termo “modelo” diferem entre si no seguinte sentido: Na primeira acepção, a mais comum, dizer que «X é um modelo de Y» significa que X é a representação (simbólica, teórica, abstrata) de uma classe de objetos Y (fenômenos, objetos ou processos físicos). Já na segunda acepção, dizer que «X é um modelo de Y» significa que os modelos X são objetos (formais) que têm em comum o fato de serem instâncias ou realizações de um mesmo sistema axiomático Y. A distinção entre modelos de tipo I (representacional) e modelos de tipo II (metamatemático), em outras palavras, afirma que os modelos no sentido I (representacional) falam sobre aquilo que acontece no mundo. Em outras palavras, no mundo cumpre-se (ou pelo menos deveria cumprir-se) aquilo que diz o modelo X (supondo que seja um modelo adequado). Por outro lado, os modelos X no sentido II (metamatemático) são as estruturas nas quais se cumpre o que diz a teoria Y. Outra maneira de destacar a diferença entre as duas acepções é pensar que, na acepção científica, o modelo ocupa o lugar do “uno”, aquilo que unifica os fenômenos, e estes estão no papel do “múltiplo”, do plural, ao passo que, na acepção metamatemática, o sistema de axiomas é que é o “uno”, que unifica os modelos, os quais assumem o papel de “múltiplo”. Estas relações estão ilustradas na Figura 4(10) a seguir:

7 A exploração e o desenvolvimento desta comparação entre os diferentes tipos de modelos tem uma história longa e honrosa, que remonta pelo menos ao famoso texto de Patrick Suppes, “Uma comparação dos significados e dos usos do termo ‘modelo’ na matemática e nas ciências empíricas” [Suppes 1960]. 8 Nos modelos, a função explicativa e o importe ontológico são substancialmente menores do que nas teorias científicas típicas.

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Figura 4(10): Unidade e multiplicidade nos modelos de tipo I e de tipo II.

Normalmente, uma série de perguntas de caráter metodológico coloca-se diante de qualquer construtor de modelos representacionais: (a) Quando optar por um modelo e quando optar por uma teoria? (b) Quais idealizações é lícito utilizar? (c) Que aproximações e simplificações se deve utilizar? (d) Sob que condições pode ocorrer (se é que pode) uma “migração” de um modelo para uma teoria? (e) Sob que condições se pode tolerar racionalmente (se é que se pode) a presença de inconsistências internas em um sistema teórico? (f) Sob que condições se pode tolerar racionalmente o uso concomitante de modelos diferentes? Pode-se conjecturar se o trabalhar com modelos requer atitudes cognitivas diferentes das atitudes proposicionais tradicionais que se pode tomar em relação às crenças (aceitar, crer, rejeitar, justificar, etc) e com relação a teorias (aceitar, endossar, adotar, refutar, etc). O registro cognitivo em que se dá o trabalho com modelos está mais próximo do “contexto prospectivo” (context of pursuit) proposto por Laudan [1977] do que do “contexto da aceitação” (context of acceptance). A desenvoltura com que os cientistas costumam transitar entre modelos diferentes, incompatíveis entre si e formulados com muito maior rapidez do que as teorias, é um dos fatores que impressionaram um autor como Ronald Giere, p. ex. nos textos reunidos no livro Science Without Laws [Giere 1999a], levando-o a propor uma visão evolucionária de ciência, que dispensa a noção de “leis da natureza” e coloca em destaque o papel das estruturas cognitivas humanas na construção do conhecimento científico. O resultado é uma imagem de ciência muito menos theory-centric e muito mais model-based. Tais distinções já nos colocam em condição de esboçar uma visão do papel que é desempenhado pelos modelos no encontro entre a teoria — ou prototeoria — e a realidade. O encontro não ocorre diretamente, como se poderia supor, entre as hipóteses ou leis, de um lado, e os fenômenos, de outro — situação que, de resto, nos colocaria diante de problemas epistemológicos praticamente intratáveis acerca da base empírica. Trata-se, isso sim, de um encontro entre estruturas — mais precisamente, entre modelos: um modelo da estrutura teórica e um modelo de dados (uma estruturação dos dados, dentre as muitas possíveis) [cf. Suppes 1962, Giere 1999b, French 2009]. O

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encadeamento se dá basicamente tal como esquematizado no diagrama da Figura 5(11) a seguir.

Figura 5(11): O encontro entre teoria e realidade em termos de modelos.

Na verdade, os modelos da teoria T que se confrontam com os modelos de dados são modelos sem “termos teóricos” (usamos este nome por enquanto entre aspas, até que demos uma formulação precisa para esta noção). A aplicação pretendida de T precisará ser uma subestrutura empírica de T (um submodelo empírico). Essa “filtragem” dos termos teóricos dos modelos é obtida por meio do chamado funtor de Ramsey , cuja utilização pressupõe, por sua vez, o critério de teoricidade de Sneed (sobre o qual falaremos em breve).9 9 Não entraremos em maiores detalhes, aqui, sobre os detalhes de funcionamento do funtor de Ramsey, que ocupa um lugar central na chamada metateoria estruturalista, na qual as teorias científicas são encaradas como redes de núcleos teóricos constituídos por determinadas classes de modelos (de tipo II), num certo sentido preciso. A metateoria estruturalista possibilita uma descrição muito mais poderosa e rica da estrutura

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Impõe-se a restrição de que a estrutura que integra os dados (o modelo de dados) não deve conter termos “teóricos” (num sentido que ainda deve ser tornado preciso). Será que tal restrição nos obriga a dizer que a subestrutura empírica (modelo de dados) só deve conter termos “observacionais”? Não. A noção de “observabilidade” é por demais problemática, do ponto de vista epistemológico, para ser útil aqui.10 Não precisamos nos envolver com os problemas da observabilidade. Basta lidar com termos não-teóricos para que possamos formular uma relação que seja aceitável como teste empírico de T. A grande vantagem é que podemos pensar que os termos “teóricos” e os “não-teóricos” o são em relação a T. A teoricida de é sempre relativa a uma dada teoria. Um termo pode ser teórico em relação a uma teoria T (T-teórico) e não ser teórico em relação a outra teoria T’ (isto é, ser T-não-teórico). A teoricidade é, assim, vista como uma propriedade metodológica e estrutural — não como uma propriedade epistemológica. A formulação precisa do critério de teoricidade é devida a Sneed, e pressupõe a noção de procedimento de determinação de um conceito, que vem a ser um modo de determinar se um conceito se aplica ou não a um dado objeto — e, caso se trate de um conceito quantitativo (uma grandeza), determinar o valor daquela grandeza. Informalmente, a idéia básica do critério de teoricidade é que um conceito é teórico em relação a T se todos os procedimentos de determinação conhecidos para esse conceito pressupõem a aplicabilidade e validade de T, e não-teórico em relação a T se existem procedimentos de determinação independentes de T, i.e. que não pressupõem a validade de T. Em outras palavras, um conceito é teórico em relação a T se é próprio do arsenal conceitual dessa teoria, se é introduzido por ela, em outras palavras, se é um conceito “novo”; e é não-teórico em relação a T se o conceito está disponível previamente a T, foi introduzido por outra teoria, ou, em outras palavras, se é um conceito “antigo”. Note-se que não há nenhuma conexão intrínseca entre ser “T-não-teórico ” e ser “observacional”. As dicotomias “T-t / não-T-t” e “O / não-O” devem ser vistas como duas dicotomias independentes .

Figura 6(13). Exemplo: termos T-teóricos e T-não-teóricos na mecânica.

e dinâmica da ciência do que as concepções tradicionais. O leitor interessado poderá consultar, por exemplo, Balzer, Moulines & Sneed [1987]; Sneed [1971]; Stegmüller [1976]; Balzer & Moulines (eds) [1996]; Díez & Lorenzano (eds) [2002]. 10 Vale lembrar as críticas à observabilidade à dicotomia teórico—observacional feitas por Putnam [1975], Hanson [1967] e outros, que não haveria tempo de revisar aqui.

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Elaborando um pouco mais sobre o diagrama apresentado anteriormente na Figura 5(11), podemos compreender melhor de que maneira os modelos tipo I (representacionais) requerem o concurso de modelos tipo II (lógicos). A relação de modelagem de tipo I pressupõe, define-se em termos da noção de modelo de tipo II. No diagrama da Figura 7(14) a seguir, M é uma teoria ou prototeoria:

Figura 7(14): A relação de modelagem tipo I em termos da relação de modelagem tipo II.

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Quando o encontro entre teoria e realidade é “bem sucedido”? Nas perspectivas de racionalidade científica, usuais entende-se que um modelo de tipo I (prototeoria) ou uma teoria precisa exibir em certa medida um valor cognitivo que é a adequação empírica (embora esse não deva ser o único valor que a teoria ou prototeoria precisa instanciar; muitos outros valores cognitivos podem estar em jogo simultaneamente). À luz das relações esquematizadas acima, podemos formular a relação fundamental na adequação empírica, que é:

AE: Uma subestrutura empírica de T é isomorfa a um modelo de dados relevante para T.

Podemos agora, por fim, mapear a relação de analogia em ciência em termos das noções de modelo tipo I e tipo II. A idéia de “similaridade formal” entre as equações de um domínio de investigação e as de outro é capturada com maior precisão pela noção de isomorfismo entre estruturas, e a solução de problemas em ambos os dois domínios pressupõe a existência de um certo grau de adequação empírica em ambos. A relação fundamental para a existência de uma analogia é, então:

AN: Existe um isomorfismo(1) entre modelos da teoria cujo domínio é A e modelos da teoria cujo domínio é B. (1) Ou isomorfismo parcial.

O encadeamento resultante pode ser ilustrado pela Figura 8(15), a seguir.

Figura 8(15). Estrutura da analogia em termos de modelos.

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IV. O Princípio de Correspondência O modelo de Bohr-Sommerfeld, peça principal do programa de pesquisa da Antiga Teoria Quântica, foi proposto inicialmente por Bohr na grande trilogia de artigos intitulada “Sobre a constituição dos átomos e moléculas” [Bohr 1913]. No modelo de Bohr, os sistemas atômicos são vistos como análogos a sistemas planetários. Um aspecto crucial a notar é que, no modelo de Bohr, existem inconsistências entre: (i) a mecânica clássica, (ii) a eletrodinâmica clássica, (iii) o postulado de quantização, e (iv) o postulado da estabilidade. Pois, de acordo com o modelo, o elétron, apesar de submetido a uma aceleração enquanto descreve sua órbita em redor do núcleo, não emite radiação nem perde energia, o que causaria o seu colapso em direção ao núcleo (conforme prevê a eletrodinâmica clássica), mas apenas irradia durante uma transição. De outro lado, ao passo que, os estados estáveis são supostos como regidos pelas leis da mecânica clássica, o modelo postula que apenas um subconjunto enumerável das órbitas são permitidas, diferentemente do que seria previsto pela mecânica clássica, onde todos os raios orbitais seriam permitidos. Além disso, não pressupõe no modelo que as transições entre estados sejam necessariamente regidas pela mecânica clássica. Ademais, o modelo não provê nenhuma explicação causal para a ocorrência das transições (algo que só começará a ser trabalhado por Einstein em [1917]). Não obstante, com base nos postulados do modelo, mais as hipóteses auxiliares e as condições iniciais, é possível derivar a fórmula geral para a freqüência da radiação emitida durante uma transição entre dois níveis quaisquer:

ν = (2π²m e4 / h3) (1/nf² – 1/ni²). fórmula esta que engloba todas as séries espectrais do Hidrogênio. Também é possível encontrar expressões para o raio da órbita e a energia do elétron em função de n, bem como o valor da energia no estado fundamental (E = –13,6 eV). Em meados da década de 10, Arnold Sommerfeld entra em cena como um dos principais (senão o principal) desenvolvedor do programa de Bohr. Em 1918 Sommerfeld publica a primeira edição de Atombau und Spektrallinen (Estrutura atômica e linhas espectrais).11 Sommerfeld irá introduz a Condição de Quantização geral — da qual o postulado (L4) de Bohr é um caso particular —, que será uma precursora dos comutadores na moderna teoria quântica. Sommerfeld também introduz as órbitas elípticas e introduz as correções relativísticas, o que permitiu a Sommerfeld modelar, pela primeira vez, a estrutura fina dos espectros. Apesar da inconsistência nos fundamentos, o programa da Antiga TQ logrou apresentar inúmeros e esplêndidos êxitos preditivos, como: (a) duas séries espectrais já conhecidas (Balmer, Paschen); (b) três séries espectrais que só seriam descobertas depois (Lyman, Brackett e Pfund); (c) a série de Pickering-Fowler, originada pelo Hélio;12 (d) extensão a outros íons monoeletrônicos como o He+ e o Li++; (e) configuração eletrônica dos átomos mais pesados, até Z=24 (Cromo); (f) as periodicidades 8 e 18 na tabela periódica; (g)

11 Tive acesso a duas edições posteriores: a segunda inglesa (baseada na terceira alemã) [Sommerfeld 1922/1928] e a terceira inglesa (baseada na quinta alemã) [Sommerfeld 1931/1934]. 12 Explicada por Bohr em uma nota publicada em 1913, utilizando a massa reduzida.

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descoberta do elemento Háfnio (Z=72) em 1922; (h) o resultado do experimento de Franck-Hertz em 1914; (i) a estrutura fina dos espectros. Foi com base no modelo de Bohr-Sommerfeld — e com base no princípio de correspondência, parte da heurística positiva do programa — que se lançou a teoria da radiação de Bohr-Kramers-Slater [1924]. A teoria BKS da radiação pode ser considerada o “elo perdido” entre a Antiga TQ e a nova mecânica quântica de Born, Heisenberg, Jordan, Dirac e Pauli.13 O desenvolvimento da teoria BKS e as aplicações do modelo de Bohr-Sommerfeld pressupuseram o princípio de correspondência (aqui, correspondência com a teoria clássica da radiação). É para esse princípio que nos voltamos agora. Pode-se distinguir duas grandes fases, de caráter marcadamente diferente, no uso do Princípio de Correspondência no contexto da teoria quântica. Na Fase I, correspondente à formulação empregada na Antiga Teoria Quântica, o PC é interpretado em termos do comportamento no limite de números quânticos grandes. Notemos que, em “Sobre a constituição dos átomos e moléculas”, durante a derivação original da fórmula para as séries espectrais, Bohr não utiliza a condição de quantização do momento angular L = mvr = nh/2π, como se faz nos livros-texto atuais. No curso daquela demonstração, ele se vale de uma forma do princípio de correspondência.14 Nos textos introdutórios usuais, o princípio de correspondência é apresentado como um mero limite assintótico clássico, de tipo formal, obtido quando a transição acontece entre níveis muito altos, n → ∞, ou mais precisamente:

O limite onde nf → ∞ e ∆n → 0 (ou seja, ∆n/n<<1) e também h → 0

Nesse limite, a freqüência ν da radiação emitida tende à freqüência clássica, que é a freqüência orbital do elétron. Certamente, fazer a constante de Planck “tender a zero” é um expediente puramente formal, sem interpretação física plausível.15 De todo modo, é importante apreciar que esta leitura não é fiel ao desenvolvimento histórico. O PC cedo passou a ser considerado um princípio heurístico importante (o que fica patente na segunda trilogia de Bohr, “On the quantum theory of line-spectra” [Bohr 1918]). Nas trilogias de Bohr de 1913 e 1918 e em outros artigos pertencentes à era da antiga teoria quântica, o princípio de correspondência não é encarado como um mero limite formal que seria imposto às equações depois que elas já estiverem formuladas, para aferir se elas são “bem comportadas”. Ele tem uma função muito mais construtiva do que isso. Nas palavras de James Cushing [1982, p. 13] e de Van der Waerden (ed) [1967, p. 8], é fundamentalmente o princípio de correspondência que permite produzir sistematicamente expressões quânticas (a expressão às vezes usada em inglês é guess, que poderíamos traduzir por “fazer um palpite” ou simplesmente “chutar”), através de um processo de generalizar as expressões clássicas para as intensidades das linhas espectrais, as freqüências e polarizações da radiação. Na terminologia da Seção II, podemos descrever a operação do princípio na primeira fase dizendo que a relação de correspondência se dá entre os modelos de dados da antiga

13 Sobre a teoria BKS, ver Bezerra [2003]. 14 A demonstração original de Bohr encontra-se refeita em Bezerra [2003]. 15 Tal como acontece também com outro limite, frequentemente apresentado em livros-texto, onde se faz a velocidade da luz c “tender a infinito”, para recuperar as transformações de Galileu a partir das transformações de Lorentz.

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teoria quântica e os modelos de dados da eletrodinâmica clássica . Não se trata ainda de uma relação entre os modelos teóricos: trata-se de uma relação entre as subestruturas empíricas. Poderíamos dizer, acompanhando Honner [1987, p. 61], que o Princípio de Correspondência, na Fase I, “relaciona os cálculos clássicos e os cálculos quânticos através de um casamento forçado entre teorias incompatíveis”. O que não impede, como vimos, que o princípio desempenhe uma função heurística. Na Fase II da história do Princípio de Correspondência, que corresponde à formulação adotada na Nova Mecânica Quântica, o princípio acabou por transformar-se em um princípio metodológico geral e de importância central, recebendo uma reformulação abstrata, em consonância com o enfoque abstrato que predomina na MQ moderna a partir de Dirac e Von Neumann. Nesta fase, o princípio visa agora possibilitar a tradução das equações clássicas em equações de tipo quântico, por meio de um “dicionário” de correspondências tais como:

q (variável canônica) ⇒ q (operador), p (variável) ⇒ p = −ih∇∇∇∇ (operador), Brackets de Poisson {x, y} ⇒ comutadores −ih[x, y ]

Nestas expressões, os símbolos em negrito denotam operadores. Novamente, o objetivo é gerar expressões quânticas a partir das expressões clássicas, porém o caminho adotado é agora inteiramente outro. A relação de correspondência se estabelece entre os modelos da mecânica quântica e os modelos da mecânica clássica. Trata-se de uma relação entre estruturas, não apenas entre valores numéricos, somada a uma reinterpretação dos construtos dentro de um novo sistema conceitual. Os pais da mecânica quântica tinham bastante presente essa proposta de uma relação profunda entre a teoria clássica e a teoria quântica. Bohr costumava se referir à teoria quântica como sendo uma “generalização racional” da teoria clássica (cf. Honner [1987], sec. 2.8; também Bokulich & Bokulich [2005], sendo esta última referência rica em citações e referências aos textos de Bohr). O próprio título do artigo fundador de Heisenberg deixa clara essa vinculação: “Reinterpretação quântica das relações cinemáticas e mecânicas” (“Über quantentheoretische Umdeutung kinematischer und mechanischer Beziehungen”) [Heisenberg 1925]. Finalmente, pode-se conjecturar acerca do seguinte aspecto: pode-se indagar em que medida o apego de Bohr ao princípio de correspondência — que estabelece, de uma forma ou de outra, uma conexão entre o quântico e o clássico — tem relação com a sua postura epistemológica, já sobejamente discutida na literatura. De acordo com a visão de Bohr, o domínio clássico ocupa um lugar inalienável e desempenha um papel indispensável até mesmo para uma compreensão quântica da realidade. A linguagem ordinária e os conceitos clássicos (para Bohr estes últimos seriam um “refinamento” dos primeiros) seriam inescapáveis na medida em que indispensáveis para comunicar as descrições dos fenômenos e para expressar os resultados dos experimentos. Na interpretação bohriana, toda cadeia de instrumentos de medição dos fenômenos atômicos e subatômicos possui, como último elo, um sistema clássico, de caráter causal. As descrições dos ponteiros, medidores, instrumentos, registros de eventos, etc seriam, em última análise, efetuadas no modo clássico de descrição, contexto no qual o papel do “quantum de ação” pode ser negligenciado, e onde faz sentido falar em posições, momentos e trajetórias bem definidas. Porém, não haveria espaço aqui para fazer mais do que meramente mencionar tal possibilidade (mas cf. por exemplo Honner [1987], seção 2.8; e Bokulich & Bokulich [2005]). Explorar os desdobramentos desta conjectura interpretativa é tarefa que deve ficar para outro momento.

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Conclusão Os modelos de tipo I (representacional) — que utilizam simplificações, idealizações e aproximações, e nos quais a condição de coerência é enfraquecida — e as analogias — que se valem da transposição entre domínios de aplicação — incluem-se entre as estratégias cognitivas racionais mais úteis da ciência. Vimos que, para compreender o seu funcionamento, é preciso recorrer os modelos de tipo II (metametamático). Modelos e analogias podem ser vistos, segundo J. T. Cushing [1982], como fazendo parte do “contexto da descoberta” — e poderíamos supor que também pertencem ao chamado “contexto prospectivo” de Laudan. O compromisso ontológico é mitigado no registro de “prospecção” do terreno — haja vista a desenvoltura com que os cientistas (semelhantes com “oportunistas inescurpulosos”, nas famosas palavras de Einstein) utilizam livremente modelos e analogias de proveniências diferentes, mesmo sem estar ainda em condições de explicitar ou aceitar a estrutura e a ontologia de uma teoria específica. Os princípios de correspondência, como o da antiga TQ e da moderna MQ — que também operam baseados nos modelos de tipo II: modelos de dados no primeiro caso e modelos teóricos no segundo — também fazem parte do arsenal de estratégias cognitivas à disposição dos cientistas. Os princípios de correspondência não precisam necessariamente implicar uma forma de realismo convergente em ciência, uma vez que o comprometimento ontológico pode ser mitigado — eles podem ser utilizados num plano heurístico e prospectivo. Pensando em lições de caráter geral, a principal que podemos tirar deste estudo panorâmico talvez seja a de que modelos, analogias e correspondência fazem parte da rica “biodiversidade” do sistema do conhecimento científico, que ultrapassa, em muito, a imagem de uma ciência estruturada apenas em leis e teorias.

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