esporte da escola, esporte na escola

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O “esporte na escola”, o “esporte da escola”: da negação radical para uma relação de tensão permanente — Um diálogo com Valter Bracht Tarcísio Mauro Vago (*) Apresentação Como a prática cultural de esporte deve ser tratada pela Educação Física, na escola? Tentando refletir acerca das possíveis respostas a esta pergunta, refiz a leitura do livro do Profº Valter BRACHT (1992) 1 , “Educação Física e Aprendizagem Social”. Mesmo sabendo que três dos quatro capítulos do livro tenham sido publicado como artigos de periódicos de Educação Física, para os efeitos deste ensaio obedeci à ordem de exposição do (*) Professor da Escola de Educação Física da Universidade Federal de Minas Gerais; doutor em Educação pela Faculdade de Educação da USP. 1 O livro de Valter BRACHT “Educação Física e Aprendizagem Social” (Porto Alegre: Magister, 1992) constitui-se de uma coletânea de quatro artigos anteriormente publicados pelo autor, em momentos diferentes. O Capítulo 1, por exemplo, intitulado “Educação Física: a busca da autonomia pedagógica” foi primeiramente publicado pela Revista da Educação Física (Vol. 1, nº 0, p. 28-34), da Universidade Estadual de Maringá (PR), com o mesmo título. O Capítulo 2 não havia sido publicado. O Capítulo 3 é um artigo publicado inicialmente em 1986, na Revista do Colégio Brasileiro de Ciência do Esporte - RBCE (Vol. 7, nº2) e depois também no Livro “Fundamentos Pedagógicos - Educação Física”, de 1987, organizado por Vitor Marinho de OLIVEIRA. O Capítulo 4 foi publicado em maio de 1988, na RBCE (Vol. 9, nº 3), mas é uma condensação de sua dissertação de Mestrado, defendida em 1983, na UFSM, sendo escrito originalmente, portanto, ainda antes do Capítulo 3. Neste ensaio as referências serão sempre ao livro.

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Page 1: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

O “esporte na escola”, o “esporte da escola”: da negação radical para uma relação de tensão permanente — Um diálogo com Valter Bracht

Tarcísio Mauro Vago(*)

Apresentação

Como a prática cultural de esporte deve ser tratada pela Educação Física, na escola?

Tentando refletir acerca das possíveis respostas a esta pergunta, refiz a leitura do

livro do Profº Valter BRACHT (1992)1, “Educação Física e Aprendizagem Social”.

Mesmo sabendo que três dos quatro capítulos do livro tenham sido publicado como artigos

de periódicos de Educação Física, para os efeitos deste ensaio obedeci à ordem de

exposição do livro, para procurar entender e respeitar o sentido que o autor procurou lhe

dar, quando a organizou.

Assim, inicialmente retomo a discussão apresentada nos Capítulos 1 e 2, qual seja a

da necessidade de a Educação Física buscar tanto a sua “autonomia pedagógica” quanto a

sua “legitimidade pedagógica”, na escola .Uma das contribuições de Bracht, nestes

capítulos, foi a de problematizar as relações estabelecidas historicamente pela Educação

Física com o que ele chamou de “instituição militar” (predominantemente nas quatro

primeiras décadas do século XX) e de “instituição esportiva” (a partir da II Guerra

Mundial). Bracht afirma que a Educação Física assumiu e incorporou os códigos dessas

instituições, ficando, então, subordinadas a elas. A autonomia e a legitimidade da Educação

Física na escola podem ter como ponto de partida a problematização daquelas relações,

necessária para a constituição de seus códigos próprios, articulados à própria instituição

educacional.

(*) Professor da Escola de Educação Física da Universidade Federal de Minas Gerais; doutor em Educação pela Faculdade de Educação da USP.1O livro de Valter BRACHT “Educação Física e Aprendizagem Social” (Porto Alegre: Magister, 1992) constitui-se de uma coletânea de quatro artigos anteriormente publicados pelo autor, em momentos diferentes. O Capítulo 1, por exemplo, intitulado “Educação Física: a busca da autonomia pedagógica” foi primeiramente publicado pela Revista da Educação Física (Vol. 1, nº 0, p. 28-34), da Universidade Estadual de Maringá (PR), com o mesmo título. O Capítulo 2 não havia sido publicado. O Capítulo 3 é um artigo publicado inicialmente em 1986, na Revista do Colégio Brasileiro de Ciência do Esporte - RBCE (Vol. 7, nº2) e depois também no Livro “Fundamentos Pedagógicos - Educação Física”, de 1987, organizado por Vitor Marinho de OLIVEIRA. O Capítulo 4 foi publicado em maio de 1988, na RBCE (Vol. 9, nº 3), mas é uma condensação de sua dissertação de Mestrado, defendida em 1983, na UFSM, sendo escrito originalmente, portanto, ainda antes do Capítulo 3. Neste ensaio as referências serão sempre ao livro.

Page 2: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

O que aqui, neste diálogo2 com Bracht 3, 4 se pretende discutir é apenas um dos

muitos pontos trazidos à reflexão pelo autor: aquele que trata do ensino do esporte na

escola, por intermédio da Educação Física.

Para tanto, procuro retomar as idéias expostas por Bracht sobre as relações entre o

esporte e a escola (e, em seu interior a Educação Física). Neste ponto, discuto os diferentes

‘olhares’ que são lançados à escola, historicicamente, tentando elucidar os entendimentos

que se pode ter a seu respeito — por exemplo, entendendo-a como lugar de inculcação

ideológica ou como lugar de transmissão do saber socialmente acumulado ou, ainda, como

lugar de produção de cultura (de uma cultura escolar), procurando trazer para esta

discussão as contribuições de alguns estudiosos da história das disciplinas escolares

(António Nóvoa, J-.C. Fourquin e André Chervel).

Esta discussão será importante para o ponto central deste diálogo: a meu ver, Bracht

parece aceitar (especialmente nos dois primeiros capítulos, mas também no terceiro) a

existência de uma negação radical entre o esporte que vem sendo praticado culturalmente

na sociedade, com seus códigos próprios, e a possibilidade de se produzir um esporte com

os códigos da escola. Esta negação se concretizaria no fato de o esporte praticado na

sociedade sufocar e impedir a produção e a prática de um “esporte da escola”. Para ele, o

que se tem na escola não passa de uma mera reprodução do esporte de rendimento

hegemônico na sociedade (é o que ele chama de “esporte na escola”).

De outra forma, pondero sobre a possibilidade da existência de uma relação de

tensão permantente entre o esporte da sociedade e o esporte da escola. E entendo que a

partir desta relação de tensão, a escola e a Educação Física podem assumir uma autonomia

2Segundo o Novo Dicionário Aurélio, Diálogo quer dizer: “1. Fala entre duas ou mais pessoas; conversação, colóquio; 2. Obra lietrária ou científica em forma dialogada. 3. Troca ou discussão de idéias, de opiniões e de conceitos, com vista à solução de problemas, ao entendimento ou à harmonia; comunicação; 4. (...).” 3Registro que os trabalhos do Professor Valter Bracht são de grande influência em todo o meu pensamento sobre a Educação Física e também em minha prática escolar no ensino fundamental. Tive o prazer de tê-lo como arguidor de minha dissertação de mestrado em Educação (na Faculdade de Educação da UFMG, 1993) e tenho-o como um dileto amigo. De forma que este ensaio tem como objetivo a construção de um diálogo com um respeitado profissional da área de Educação Física, no sentido de tentar prosseguir com (e ampliar a) discussão por ele iniciada4 A propósito, os textos de Valtr Bracht são dos mais lidos entre os profisionais de Educação Física, como demonstrou a pesquisa de Vitor Marinho de OLIVEIRA (Consenso e Conflito da Educação Física Brasileira. Campinas, SP: Papirus, 1994). Neste livro, das 11 obras analisadas no livro, todas indicadas por pesquisa realizada entre professores de diferentes cursos de graduação de Educação Física, no Brasil, três são de sua autoria (e todas as três compõem a coletânea publicada em seu livro, já referido). Umas dessas três obras é justamente o artigo publicado em 1989 e reproduzido como o Capítulo 1 do livro.

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Page 3: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

pedagógica para construir um saber próprio sobre o esporte (uma cultura escolar de

esporte), ensinando-o a partir de seus códigos, construídos na própria escola5.

Paradoxalmente, encontro na quarto e último capítulo do livro um exemplo do que

pode ser esta relação permanente de tensão entre o esporte da escola e o esporte

predominantemente praticado na sociedade. Nele, Bracht apresenta os resultados de uma

prática escolar de Educação Física com o tema Esporte e, a meu ver, eles evidenciam a

possibilidade concreta de a escola produzir uma cultura escolar de esporte (o esporte da

escola).

Em síntese, o que procuro discutir é que, com esta cultura escolar de esporte (e

também de outras práticas corporais), a escola e a sua Educação Física têm uma

possibilidade concreta de intervir na história cultural da sociedade, mesmo consciente dos

limites políticos e culturais colocados para esta intervenção.

1. Em torno da autonomia e da legitimidade pedagógica da escola e do ensino da

Educação Física

1.1 - um olhar para a escola como lugar de “transmissão do saber acumulado”

Depois de conceituar, no Capítulo 1, o termo Educação Física, em sentido restrito,

como aquele que “abrange as atividades pedagógicas, tendo como tema o movimento

corporal e que toma lugar na instituição educacional” (p.15), Bracht considera que

“a Educação Física, em se realizando na instituição educacional, presume-se, assume o estatuto de atividade pedagógica e, como tal, incorpora-se aos códigos e funções da própria escola.” (p. 17)

Há duas idéias importantes contidas nesta consideração. A primeira idéia é a de que

Bracht, aqui, considera que a escola têm seus próprios “códigos e funções”. Ele admite

então uma certa autonomia da escola como instituição. A segunda idéia decorre 5Ainda que o tema deste diálogo com Bracht seja as relações entre o esporte e a escola, considero que as reflexões aqui expostas possam ser estendidas aos outros temas do ensino de Educação Física, como os jogos populares, as danças, as diferentes formas de ginástica, as lutas, enfim, as práticas corporais da cultura.

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Page 4: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

imediatamente desta: a Educação Física (e os temas que ela vai ensinar, entre os quais o

esporte), sendo constituinte da escola, assume e incorpora estes códigos e funções da

própria escola, em seu ensino. Mas, essas são duas idéias que o autor vai abandonar ao

longo do texto, como será discutido.

Bracht prossegue debatendo o fato de a Educação Física ter recebido, em sua

história no Brasil, a influência de duas instituições: a instituição militar e a instituição

esporte. O que o autor discute, então, é o grau de autonomia pedagógica (ou a “identidade

da Educação Física”, segundo ele) alcançada pela Educação Física nas suas relações com

estas instituições.

Para essa discussão, Bracht se utiliza do referencial da teoria da diferenciação dos

sistemas sociais, desenvolvida pela teoria dos sistemas, na sociologia. Segundo esta teoria,

“os sistemas sociais, em função de sua especialização funcional, desenvolvem uma lógica própria que se objetiva na forma de valores, normas, códigos e semânticas. (...) Isto não significa que um sistema social que se diferenciou de um meio-ambiente, que desenvolveu uma lógica própria, não mantenha mais relações com este meio-ambiente” ( p. 18).

É aí que o autor situa o lugar da autonomia e, para defini-la, Bracht cita o sociólogo

alemão Niklas LUHMANN que, segundo ele, é um dos mais importantes defensores desta

teoria:

“A autonomia pressupõe uma determinada interdependência, e expressa o grau de liberdade com o qual as relações entre o sistema e o meio-ambiente podem, através dos critérios seletivos do sistema, ser por ele próprio reguladas” (Luhmann, citado por BRACHT, 1992. p. 18).

Assim, na teoria dos sistemas, “parte-se do princípio da unidade da diferença entre

o sistema e o meio-ambiente” (Cachay, citado por BRACHT, 1992. p. 18). Com base na

definição de autonomia de que ele se utiliza, percebe-se que Bracht, ainda aqui, reforça

aquela primeira idéia de que a escola, sendo um “sistema”, teria sim um “grau de

liberdade” para estabelecer relações com o meio ambiente por meio de seus “critérios

seletivos” regulados por ela própria. Logo, se o esporte está no meio ambiente, a escola

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Page 5: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

poderá se relacionar com ele por meio dos seus próprios critérios e, ainda, regular esta

relação.

Bracht não sustenta seus argumentos apenas na teoria dos sistemas. Ele procura

complementá-la com categorias do materialismo histórico para dizer que

“os sistemas sociais não podem ser simplesmente colocados lado a lado, e sim, para superar o caráter meramente descritivo da análise, precisamos, através da análise histórica, identificar a gênese dos sistemas, as suas determinações, ou seja, através da categoria antropológica do trabalho, introduzir a questão do poder nas relações inter-sistemas. Isto significa perguntar, por exemplo, em que medida um sistema não tem sua identidade ou o sentido norteador das ações, determinados por outros sistemas (que constituem o seu meio-ambiente) mais ‘poderosos’? É preciso analisar o desenvolvimento em função de sua posição na hierarquia global.”

Bracht entende que “um dos critérios que identificam a diferenciação de um

sistema diz respeito à diferenciação dos papéis. Isto é, em que medida os diferentes papéis

precisam ser cumpridos no interior de um sistema, não se confundem com outros de outros

sistemas”. Ou seja, um “sistema” — como a escola — poderia estar cumprindo papéis

determinados por outros sistemas “mais poderosos”. É aqui que Bracht abandona aquela

primeira idéia, registrada anteriormente, de uma possível autonomia da Escola para

estabelecer seus próprios “códigos e funções”, seus “critérios seletivos” para se relacionar

com o meio ambiente e regular esta relação.

Ao abandoná-la, Bracht expressa um outro entendimento que, àquela ocasião,

possuía sobre a escola:

“A instituição educacional é produto de um processo de complexificação da sociedade — produzido fundamentalmente pelo desenvolvimento das forças produtivas — que determinou uma diferenciação de sistemas, os quais cumprem, no conjunto das relações sociais, determinadas funções: a transmissão do saber social acumulado exigiu o surgimento de uma instituição para cumprir tal tarefa — o sistema educacional” (p. 19).

Percebe-se então que Bracht se refere à escola agora como um lugar unicamente da

“transmissão do saber social acumulado”, sendo esta a tarefa que o sistema educacional

5

Page 6: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

deve cumprir. Ou seja, a escola é entendida como um lugar de mera transmissão de um

conhecimento (o saber social acumulado) produzido sempre fora dela, por um outro

sistema “mais poderoso”, para usar a sua expressão. Por aí, Bracht apresenta agora uma

escola como uma “sistema” sem poder, posicionada na hierarquia social como reprodutora

de ações determinadas por outros sistemas e, portanto, submissa a eles. Seus “códigos e

funções” ou seus “critérios seletivos” perdem força. Ora, esse é somente um dos muitos

olhares que se pode lançar sobre a escola e um dos pontos centrais deste diálogo com o

texto de Bracht.

1.2 - Um outro olhar para a escola: um lugar de produção de cultura

Torna-se fundametal, aqui, trazer a crítica de Antonio NÓVOA àquele olhar sobre a

escola como lugar de transmissão de conhecimento’:

“Historicamente a escola foi vista como um ‘lugar de cultura’: primeiro numa acepção idealizada de aquisição de conhecimentos e das normas ‘universais’, mais tarde numa perspectiva crítica de inculcação ideológica e de reprodução social. Num e noutro caso, ignorou-se o trabalho interno de produção de uma cultura escolar, em relação com o conjunto das culturas em conflito numa dada sociedade, mas com especificidades próprias que não podem ser olhadas apenas pelo prisma das sobredeterminações do mundo exterior.” (NÓVOA: 1994. p. 15)

E também a crítica de André CHERVEL (1990):

“A concepção de escola como puro e simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela está na origem da idéia, muito amplamente partilhada no mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina” (p. 182).

Especialmente no capítulo 1 (mas também nos outros três), Bracht parece próximo

das duas visões históricas sobre a escola criticadas por Nóvoa. Bracht parece ainda não

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Page 7: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

reconhecer o “trabalho interno de produção de uma cultura escolar”. E isso terá

repercussões em sua discussão sobre o esporte na escola, como se verá adiante.

O entendimento de Bracht não é improcedente: a escola pode, sim, de um lado,

estar cumprindo também aquela tarefa por ele exposta. Mas, de outro lado, a escola pode

não se reduzir a ela, como se fosse uma ‘correia de transmissão’ de um saber produzido

por outros ‘sistemas’, sem intervir nele. Um outro olhar então se pode lançar à escola,

reconhecendo-a como uma instituição que possui a capacidade de produção de um saber

escolar, ou de uma cultura escolar. Isto é, uma escola que possua certa autonomia para

produzir a sua cultura, com seus próprios códigos e critérios — como o próprio Bracht

havia presumido existir. Este outro olhar para a escola é fundamental para a discussão que

segue e, por isso, estará sempre presente.

1.3 - O esporte na escola e a negação radical do esporte da escola

É aqui, então, que vou privilegiar um dos pontos do livro, como registrado,

referente às relações da escola com o esporte6.

6Valter BRACHT discute, no Capítulo 1 de seu livro, outros tantos pontos de grande interesse para a Educação Física, como o nascimento da Educação Física “praticamente” junto com a escola e com os sistemas nacionais de ensino defendidos pela sociedade burguesa emergente dos séculos XVIII e XIX; a marcante influência da instituição militar na história da Educação Física brasileira, quando, nas quatro primeiras décadas do século XX, foram os métodos ginásticos levados à escola, assim como os próprios instrutores faziam as vezes de professores de Educação Física. Nesse caso, segundo Bracht, “a instituição escola é mais ou menos palco de uma ação ‘pedagógica’ que se legitimava a partir de sua presumível contribuição para a saúde, ou seja, com função hiegiênica (...) e [de] formação do caráter, e o seu conteúdo baseado fundamentalmente na exercitação corporal através de exercícios analíticos, corridas, saltos, etc.” (p.20). E complementa, usando a mesma lógica de submissão do sistema educacional a um outro sistema: para ele, a Educação Física, na escola, “assume, através do conteúdo e da forma como ele é apresentado, através das características dos papéis desempenhados pelos instrutores e alunos, os códigos/símbolos/linguagens/sentido da instituição militar”(p.20). Bracht pergunta se neste quadro não teria havido uma “ação teórico-prática que propiciasse a recepção crítica da influência militar, do papel atribuído à escola [Bracht se refere aqui ao momento histórico do Estado Novo] e à Educação Física pelos interesses dominantes” (p. 21), isto é, se não teria havido uma resistência a tal influência. Ele responde, um tanto resignado, que “tudo indica que não, ou seja, a Educação Física não desenvolveu a este tempo, um corpo de conhecimentos que a diferenciasse fundamentalmente da instrução física militar. A Educação Física não é ela mesma; em maior ou menor grau ela é a instrução física militar. A sua identidade e o seu desenvolvimento são totalmente determinados a partir de fora.” (p. 21). Em outras palavras, para Bracht, a escola e a educação física não possuíam a menor margem de autonomia para realizarem sua prática escolar e construíerem uma cultura escolar. Mas, é de se perguntar, também: teria sido mesmo assim tão devastadora e determinista a influência da instituição militar na prática escolar cotidiana de Educação Física? E na própria escola? Talvez seria interessante, por meio de estudos específicos sobre o tema, dar voz aos professores e às professoras de então, como sugere Antonio Nóvoa, para discutir, a partir do concreto de suas práticas escolares, como (e se) tal influência penetrava assim mesmo a escola, e se a Educação Física teve mesmo a sua identidade e o seu desenvolvimento “totalmente determinados de fora”,

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Page 8: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

Sempre aproveitando o próprio texto de Bracht, nele encontra-se uma breve síntese

do desenvolvimento do esporte no mundo e que aqui será citada para contextualizar a

discussão:

“O esporte sofre no período do pós-guerra um grande desenvolvimento quantitativo. Afirma-se paulatinamente em todos os países sob a influência da cultura européia, como o elemento hegemônico da cultura de movimento. No Brasil as condições para o desenvolvimento do esporte, quais sejam, o desenvolvimento industrial, com a conseqüente urbanização da população e dos meios de comunicação de massa, estavam agora, mais do que antes, presentes. Outro aspecto importante é a progressiva esportivização de outros elementos da cultura de movimento, sejam elas vindas do exterior, como o judô e o karate, ou genuinamente brasileiras, como a capoeira” (p. 22).

É exatamente a partir do grande desenvolvimento do esporte pelo mundo que, para

Bracht, se dará o fato mais marcante na história da Educação Física, na escola, a partir da II

Guerra Mundial — a sua subordinação ao esporte de rendimento:

“É importante citar que o desenvolvimento da instituição esportiva não se dá independentemente do da Educação Física: condicionam-se mutuamente. A esta é colocada a tarefa de fornecer ‘a base’ para o esporte de rendimento. A escola é a base da pirâmide esportiva. É o local onde o talento vai ser descoberto. Esta relação, portanto, não é simétrica” (p. 22).

Parece haver uma certa ambigüidade nesta afirmação. Bracht inicialmente escreve

que esporte e a Educação Física “condicionam-se mutuamente”. Isso dá a entender que o

esporte estaria influenciando (ou condicionando, ou determinando) o ensino da Educação

Física, na escola, na exata medida do seu contrário, isto é, que a Educação Física também

estaria influenciando o esporte. Contudo, ao final, depois de dizer que a Educação Física é

a “base da pirâmide esportiva”, Bracht afirma que a relação entre ambos “não é simétrica”.

Ou seja, se há um pólo subordinado nesta relação, este é o da Educação Física, na escola.

Neste quadro, Bracht apresenta uma idéia que se tornou muito conhecida e aceita

quando de sua publicação (e aqui me incluo):

como escreveu Bracht. Talvez apareçam, na voz dos/das professores/as, outras formas de realização do ensino de Educação Física. Talvez surja a “recepção crítica” reclamada por Bracht. Talvez...

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Page 9: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

“... a Educação Física assume os códigos de uma outra instituição[a instituição esporte], e de tal forma que temos então não o esporte da escola e sim o esporte na escola, o que indica a sua subordinação aos códigos/sentidos da instituição esportiva. O esporte na escola é um prolongamento da própria instituição esportiva. Os códigos da instituição esportiva podem ser resumidos em: princípio do rendimento atlético-desportivo, competição, comparação de rendimentos e recordes, regulamentação rígida, sucesso esportivo e sinônimo de vitória, racionalização de meios e técnicas. O que pode ser observado é a transplantação reflexa destes códigos do esporte para a Educação Física. Utilizando uma linguagem sistêmica, poder-se-ia dizer que a influência do meio-ambiente (esporte) não foi/é selecionada (filtrada) por um código próprio da Educação Física, o que demonstra sua falta de autonomia na determinação do sentido das ações em seu interior”. (BRACHT, 1992: 22; grifo meu)

Note-se que é aqui que Bracht vai abandonar aquela segunda idéia — a de que a

Educação Física, realizando-se no interior do sistema educacional, poderia assumir o

estatuto de atividade pedagógica, incorporando-se aos códigos e funções da própria escola.

Agora, o autor afirma taxativamente que a Educação Física “assume os códigos de uma

outra instituição”, mais poderosa: a instituição esportiva. E disso resulta sua falta de

autonomia pedagógica — tem-se então o esporte na escola, mas não o esporte da escola.

Como escreve Nóvoa, Bracht parece olhar a escola apenas pelo “prisma das

sobredeterminações do mundo exterior”.

1.4 - Um paradoxo: a perda da autonomia e a conquista da legitimidade pedagógica pela

Educação Física no ensino do esporte

Se no Capítulo 1 Bracht afirma a inexistência de “autonomia pedagógica” por parte

da Educação Física e da escola, já no Capítulo 2 o autor traz à reflexão a discussão sobre a

legitimidade pedagógica do ensino da Educação Física. A partir de citação de J. Habermas

(1983), para quem “legitimidade significa que há bons motivos para que um ordenamento

político seja reconhecido como justo e eqüânime” (p.37), Bracht pondera que “legitimar a

Educação Física significa, então, apresentar argumentos plausíveis para a sua permanência

ou inclusão no currículo escolar” (p.37). Mais adiante, Bracht sugere a hipótese, entre

9

Page 10: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

outras, de que o fenômeno esportivo é uma das versões recentes para legitimar o ensino da

Educação Física na Escola:

“[A legitimidade da Educação Física na Escola] tem a ver com a dimensão que assumiu o fenômeno esportivo em nossa sociedade. A dimensão quantitativa do esporte parece ser razão suficiente para que a escola assuma a tarefa de transmitir este elemento da cultura. Define-se nesta perspectiva a tarefa da Educação Física como a de desenvolver a capacidade de ação no desporto” (p. 46).

O esporte é legitimado pela sociedade e é exatamente isso que garantiria

legitimidade para o ensino de Educação Física na Escola: ensinar esporte. Mas,

paradoxalmente, parece que a Educação Física somente seria legitimada na escola na

medida em que transmitisse (ensinasse) este elemento da cultura tal como ele se realiza nas

sociedades modernas, com os códigos citados. Nestas sociedades, o esporte alcança,

segundo Bracht, uma “unanimidade” assim resumida por ele:

“Ser esportivo, aparentar boa forma física, já quase não é uma opção, mas sim uma imposição social. Ligada a este ‘boom’ do corpo ou das práticas corporais, temos o ‘boom da indústria do lazer e dos materiais esportivos.” (p. 46)

E completa:

“Embora os pedagogos resistam em utilizar esta nova dimensão do cotidiano de boa parte da população como elemento de legitimação da Educação Física na Escola, é bem provável que a Escola, concretamente, já esteja, através das aulas de Educação Física, servindo a esta nova indústria, e a Educação Física esteja recebendo o reconhecimento a partir do reconhecimento tácito [que em nota de rodapé Bracht traduz por consumo] destas práticas corporais na sociedade como um todo” (p. 46).

É aí que localizo o referido paradoxo da Educação Física quando ensina o esporte

na escola: a Educação Física ‘conquista’ a sua legitimidade pedagógica na medida em que

‘perde’ a sua autonomia pedagógica. Servir à indústria do esporte, transmitindo os seus

códigos e valores: eis a legitimidade, eis a perda de autonomia. Não haverá saída para este

paradoxo?

10

Page 11: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

2. A escola, a Educação Física e a prática cultural de esporte: construindo uma

relação de tensão permanente

Não se questiona aqui o fato de o esporte ter se desenvolvido mundialmente ao

ponto de se ter transformado em elemento hegemônico da cultura de movimento. Esse é

mesmo um fato histórico. Que o esporte tenha influenciado a Educação Física e se

transformado no seu principal (ou até o único) conteúdo de seu ensino na escola nos

últimos 50 anos, disso também não se discorda.

As questões que coloco para este diálogo são estas: a Educação Física, na escola,

tem sido mesmo apenas e tão somente um veículo de transmissão/reprodução do esporte,

com os códigos do esporte de rendimento citados por Bracht? Ela apenas está “servindo à

indústria do esporte” ? Ou, de outra forma: a escola não possui e nem sequer desenvolveu

nenhum “grau de autonomia” para, por intermédio da Educação Física (mas também de

outros tempos e espaços educativos), ensinar o esporte por seus próprios

códigos/normas/critérios? Ela se resume a realizar uma “transplantação reflexa” do esporte

produzido “totalmente fora dela”? Ela não tem ou nem pode construir uma forma própria

de cultivar e ensinar o esporte?

Como prática cultural, o esporte incorpora valores sociais, culturais, econômicos e

estéticos de uma dada sociedade historicamente organizada, sendo realizado em diferentes

espaços sociais e culturalmente apropriado de múltiplas formas — inclusive as não-

autorizadas. A escola é um desses espaços de realização e de apropriação da prática cultural

de esporte, e é o tratamento que ela dá a ele, na Educação Física, que interessa aqui7.

Assim, de um lado, pergunta-se: é impossível a produção de um “esporte da

escola”, isto é, um esporte como uma prática da cultura escolar, com seus códigos

próprios? E, de outro lado, também pergunta-se: como seria isso sem o “esporte na

escola”?

Creio que o problema central está aqui: ao afirmar que “temos não o esporte da

escola e sim o esporte na escola”, Bracht estabelece uma negação radical da possibilidade

7O tratamento que a escola, como instituição, e os/as alunos/alunas, como sujeitos, dão ao esporte também poderia ser discutido em outros tempos e espaços escolares (o recreio e o pátio, por exemplo), e não só no ensino de Educação Física. Essa discussão não será, entretanto, objeto deste ensaio.

11

Page 12: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

de se ter o “esporte da escola”, que se dá com a presença do “esporte na escola”. Ou seja, a

existência deste impõe-se de tal forma na escola (e à escola), que inibe, inviabiliza, opõe-

se, enfim, nega a existência daquele. Então, é a instituição esportiva, como um “sistema

mais poderoso”, que determina as ações que uma outra instituição mais fraca, a escola (e,

nela, a Educação Física), deve realizar. Em decorrência, a ação da Educação Física na

escola se limita a ser a “base da pirâmide esportiva”, a fonte dos talentos para o esporte de

rendimento. É a configuração da relação assimétrica a que se referiu o autor. No limite,

isso elimina a possibilidade de a cultura escolar ter o seu esporte. É a perda da autonomia

pedagógica, ainda que com a conquisa da legitimidade pedagógica.

Sim, pode-se admitir que esta é uma das possíveis manifestações do esporte na

escola. Mas seria essa negação radical a única possibilidade de relação entre o esporte e a

escola?

2.1 - O esporte entra em ‘campo’8 na escola

Como prática cultural, o esporte ocupa um importante lugar nas relações sociais.

Assim é que a história do esporte, no Brasil, evidencia a sua origem aristocrática, mas

também um movimento de popularização crescente de algumas de suas manifestações (o

maior exemplo é o futebol). O uso do esporte para fins políticos e ideológicos também é

um fato (a era Vargas e a era da ditadura militar são ilustrativas; LINHALES, 1996).

Por um lado, numa sociedade estruturada em moldes predominantemente

capitalistas de produção, como é a brasileira, o esporte não ficou imune a um processo de

mercantilização que parece sem fronteiras. O esporte incorpora (ou já é mesmo criado com)

os valores estimulados por este modelo: a competição, a classificação, a seleção, a

comparação, a ‘performance’, a vitória... enfim, aqueles mesmos códigos indicados por

Bracht. A paulatina constituição do esporte com a propriedade de ser ‘de rendimento’,

indica uma das suas possíveis formas de manifestação numa sociedade de moldes

capitalistas. O processo de mercantilização referido pode ser exemplificado na venda de

espaços para publicidade nos lugares da prática esportiva (estádios e ginásios, por exemplo)

e nos uniformes dos atletas; na compra, na venda ou na troca dos próprios atletas (talvez

8A palavra ‘campo’ é utilizada como uma imagem referente ao campo de futebol.

12

Page 13: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

ainda a maior e mais rentável das mercadorias esportivas, com sua expressão legal na Lei

do “passe”); no gerenciamento empresarial dos clubes; num imenso mercado gerado em

torno do esporte (produtos de beleza, cigarros, bebidas, roupas, calçados, uma infinidade de

material esportivo, carros, bicicletas, motocicletas... tudo pode ser melhor vendido quando

associado ao esporte, à idéia de que ele é um bem acima de qualquer suspeita). Os

exemplos poderiam continuar, garimpados de praticamente todos os campos da atividade

humana. (GHIRALDELLI, 1989; CASTELLANI Fº, 1989; BRACHT, 1992; KUNZ 1991,

LINHALES, 1996).

Mas essa forma de existência não ficou restrita às fronteiras capitalistas:

paradoxalmente, os países ditos socialistas também desenvolveram e usaram o esporte com

esses mesmos códigos, para fins políticos e ideológicos. A Guerra Fria talvez seja o

exemplo máximo do uso do esporte para tentativas de demonstração de supremacia

ideológica, política e econômica, envolvendo os blocos antagônicos (capitalista e

comunista) num confronto sem precedentes.

Por outro lado, no entanto, o percurso histórico do esporte, no Brasil, também pode

ser investigado a partir das tentativas de apropriação de suas várias manifestações, das

formas de resistência ao seu controle político, econômico e cultural e, ainda, da produção

de outras formas de praticá-lo, por parte dos setores populares da sociedade — esse é um

tema de investigação ainda pouco explorado na Educação Física.

Não aceitando ser meros coadjuvantes da história, os setores populares também

buscaram (e buscam) se apropriar das práticas culturais de esporte. O futebol, como citado,

talvez seja o melhor exemplo disso: de esporte aristocrático transformou-se num dos

maiores fenômenos de massa, no Brasil, sendo praticado em condições diversas.

Fundamental é que ele também foi apropriado pelos setores populares.

Um exemplo disso pode ser retirado da dissertação de Mestrado de Meily

LINHALES (1996). Neste trabalho, a pesquisadora reconhece, de um lado, que

“parte da ação coletiva organizada a partir do esporte tende a se caracterizar como uma forma de resistência incapaz de promover transformações ou rupturas na ordem social.”

Mas, de outro lado, ela pondera que mesmo

13

Page 14: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

“desprovida de um projeto político estratégico e de condições mobilizadoras suficientes, não deixa de ser resistência, na medida em que funciona como uma referência coletiva, concreta, à construção de identidades e à experimentação do espaço/tempo compartilhados”.

Esta pesquisadora também considera ser necessário ressaltar que as

“organizações esportivas estruturadas como movimentos sociais de ação restrita, ao se depararem com interesses antagônicos e ameaçadores à sua própria existência, podem se transformar em movimentos de caráter instrumental-reinvindicativo”

Para ilustrar essa idéia, Linhales recorre ao estudo de Schifnagel sobre o futebol

como atividade popular de lazer, que mostra a luta de vários times amadores pela sua

permanência em um contexto urbano seletivo e excludente:

“Reconstruindo dados relativos a história de aproximadamente 50 times existentes em um único bairro paulistano, a autora [Schifnagel] destaca que desde a década de 20, vários clubes de futebol de várzea eram criados para preencher o tempo de lazer dos moradores. Estes clubes, que intensificaram suas atividades nas décadas de 40 e 50, promoviam, além de jogos e campeonatos, outras atividades sociais como festas e reuniões. O crescimento da cidade e os melhoramentos urbanos no bairro valorizaram a região do ponto de vista imobiliário. Os times que usavam terrenos públicos, cedidos ou alugados, para o estabelecimento de seus campos de futebol passaram a mobilizar toda a comunidade local - moradores, comerciantes, imprensa de bairro - em defesa, inclusive com ação judicial, dos terrenos que ocupavam”.

E Linhales cita Schifnagel:

"Com base em jornais da época, podemos afirmar que a luta do 1o. de Maio (juntamente com o Leão do Morro e o 7 de Setembro que tinham campos no mesmo local) mobiliza e empolga a população do bairro que passa a reinvindicar uma praça de esportes e a intervenção da Federação Paulista de Futebol na proteção dos interesses do time".

Linhales prossegue, com base em Schinagel:

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Page 15: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

“Embora a mobilização das organizações esportivas não tenha sido suficiente para fazer frente ao processo de espoliação urbana patrocinado pelo Estado, a autora afirma que, até a época da pesquisa, o referido clube 1o. de Maio era considerado, no bairro, como um símbolo de luta e resistência”.

A conclusão de Schfinagel, citada por Linhales, destaca o potencial organizativo do

futebol de várzea ao constatar que:

"De certa forma, este é o motivo mais importante para que não desapareçam os times, assim como essa atividade, mesmo com o desaparecimento dos campos e crescimento da cidade. Em muitos casos, porém, quando a população mais pobre vai sendo expulsa para a periferia de São Paulo, os times se mantém organizados, apenas formalmente, mantendo um ponto de reunião (normalmente um bar), mas seus jogadores terminam por se integrar nos times de sua nova região de moradia". (Schifnagel, citada por LINHALES, 1996)

E a própria Linhales também conclui afirmando:

“A variação dos graus em que o esporte passa de uma "atividade desinteressada", com fim em si mesmo, para uma atividade política por excelência, constituída por sistemas de interesses cada vez mais ampliados, guarda relação com a multiplicidade de atores e disputas que o próprio fenômeno esportivo passa a incorporar. A nosso ver, assim se desenvolve o processo de politização do esporte, decorrente da inserção deste fenômeno, tipicamente moderno, no jogo das relações econômicas e políticas que o engendram. Contrapomo-nos assim àquelas abordagens que reduzem a explicação do processo de politização do esporte às disputas entre nações, decorrentes do movimento olímpico. Finalmente, também vale considerar que, se por um lado, a pluralidade de interesses constitui-se como força propulsora ao movimento de institucionalização e universalização do esporte, por outro, configura-se, também, como um fator desvirtuador do fenômeno esportivo, reduzindo-o, muitas vezes, a mero instrumento para realização de fins externos a ele mesmo, que, no limite, podem comprometer sua própria existência”.

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Page 16: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

Há então muitas imbricações a serem consideradas pelos estudiosos da Educação

Física no percurso histórico do esporte no Brasil, para que se possa ampliar a compreensão

das múltiplas formas de apropriação desta prática cultural.

Pois bem, essas breves considerações históricas, aliadas àquelas citadas de Bracht,

tem a intenção de perguntar: poderia a escola ficar indiferente ou alheia a essa história?

Os estudos sobre a história da Educação Física e do esporte já demonstraram que

não. Especificamente sobre as relações entre o esporte e a Educação Física na escola, tais

estudos —e os de Bracht são muito importantes para isso— apontam a predominância de

uma relação histórica onde a submissão e a dependência da Educação Física ao esporte de

rendimento aparecem com muita força (KUNZ, 1991). Essa relação se inicia já na era

Vargas, entre 1930 e 1945 (LINHALES, 1996), e se aprofunda nos anos seguintes, em

decorrência principalmente daquele referido processo de consolidação e de expansão do

modelo capitalista de produção, com a subserviência inestimável dos sucessivos governos

brasileiros.

Essa relação de submissão e de dependência da Educação Física ao esporte também

está expressa na legislação escolar brasileira, onde se destaca o Decreto 69. 450, de 01 de

novembro de 1971, baixado pela ditadura militar, e que dispõe sobre a prática da Educação

Física em todos os graus da escolaridade. Em seu o artigo 2º, tratando do relacionamento

da Educação Física com a Sistemática da Educação Nacional, o Decreto se refere a uma

“educação física, desportiva e recreativa”, que integrará , “como atividade escolar

regular, o currículo dos cursos de todos os graus de qualquer sistema de ensino”. Parece

explícito que o tratamento a ser dado ao esporte será prioritário, sendo mesmo a única

prática corporal citada (e exigida) explicitamente pelo Decreto, como ocorre em seguida,

quando impõe que “a partir da 5ª série de escolarização, deverá ser incluída na

programação de atividades a iniciação desportiva” (Art. 3º, inciso III, parágrafo 2º, grifos

meus).

Nos anos 1980, essa relação de submissão começa a ser problematizada por

estudiosos/as da Educação Física. Entre eles, os escritos de Bracht (no caso, os capítulos 1

e 2 de seu livro) parecem indicar a existência da referida negação radical: tem-se o esporte

na escola mas não o esporte da escola.

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Page 17: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

Realmente, por suas relações com a totalidade social, da qual é uma manifestação, a

escola não poderia ficar alheia a todo esse processo histórico de consolidação do esporte

como prática cultural da sociedade moderna. Ele penetra por seus portões, é praticado em

seus espaços (qualquer espaço) e em seus tempos (qualquer tempo), consolida-se como

conteúdo de ensino da Educação Física (o espaço e o tempo oficiais para o seu ensino). É

eleito (ou imposto?) como algo digno de ser ensinado. Em suma, é por esse processo

histórico que se tem o “esporte na escola”: o esporte entrou em ‘campo’ na escola.

No entanto, há que se investigar também se a escola não foi (ou é) um ‘campo’

apropriado pelos alunos oriundos dos setores populares para o acesso à prática de esportes.

E não me refiro aqui somente às aulas curriculares de Educação Física. Refiro-me também,

e principalmente, às estratégias usadas para ocupação dos espaços e dos tempos escolares,

ainda que contra a (ou apesar da) própria escola, para a prática das modalidades esportivas,

e com códigos que não necessariamente reproduzem os do esporte de rendimento, mas com

a construção de regras, de tempos e de espaços próprios. Como assinalei, as apropriações e

as práticas não autorizadas de esporte se constituem num interessante tema para pesquisas

em Educação Física.

Assim, diferentemente de uma negação radical do esporte da escola pelo esporte na

escola, considero ser frutífero para a Educação Física avançar nos sentido de construir uma

relação de tensão permanente entre eles.

Uma relação de tensão permanente que se estabeleça entre uma prática de esporte

produzida e acumulada historicamente (um saber erudito de esporte) e uma prática escolar

de esporte (saber escolar de esporte, ou a cultura escolar de esporte).

2.2 - Da negação radical à tensão permanente: os/as professores/as de Educação Física

como produtores/as de cultura na escola

É certo que se pode questionar os limites políticos e culturais que possui a escola

para criar uma cultura de esporte, com códigos e regras próprias para, com ela, confrontar-

se com o chamado esporte de rendimento, produzido no interior de uma sociedade

predominantemente capitalista e portador dos valores desta. Consciente destes limites, creio

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Page 18: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

também que é aí que se localiza a principal tarefa do/da professor/a: ser um/uma produtor/a

de cultura. Aliás, uma tarefa ao mesmo tempo desafiadora e (por isso mesmo) estimulante.

Então, a partir desta relação de tensão permanente, pode-de discutir as

possibilidades que se abrem para o ensino de Educação Física ao tratar da prática cultural

de esporte como um de seus temas, e aí, provocando a construção de sua cultura escolar do

tema esporte.

O esporte que penetra o espaço escolar é o esporte criado e praticado pela

sociedade. A sociedade, que legitima culturalmente o esporte, coloca para escola a idéia de

que ele é algo digno de ser por ela tratado como tema de uma de suas disciplinas

curriculares (a Educação Física).

O esporte, como uma prática sóciocultural da sociedade moderna está “na escola”, e

tudo indica a sua permanência nela. E por que o esporte não estaria na escola? A propósito,

Denis Lawton, por intermédio de Fourquin (1992), chama a atenção para o fato de que

“certos aspectos de nosso modo de vida, certos tipos de conhecimento, certas atitudes e certos valores são considerados, na verdade, como tendo suficiente importância para que sua transmissão à geração seguinte não seja deixada ao acaso em nossa sociedade, mas seja confiada a profissionais especialmente formados (os docentes) no contexto de instituições complexas e custosas (as escolas)” (p.31).

Creio que tal se aplica à prática cultural do esporte. E, por isso, estranho mesmo

seria ele não estar lá “na escola”. A questão central passa a ser, então, o tratamento, a

relação da escola com essa prática cultural no seu processo de ensino, na Educação Física.

Veja-se que Lawton, como Bracht, também se refere somente à “transmissão” de certos

tipos de conhecimento. Mas não avança para a idéia de que haja produção de uma cultura

escolar.

A esse respeito, há uma importante discussão a ser aprofundada (e que deve se

estender muito além deste ensaio, obviamente).

Bracht defende em seu texto que a Educação Física deve realizar uma “filtragem

crítica” das atividades corporais, ao ensiná-las na escola, o que seria fundamental para o

desenvolvimento de sua identidade pedagógica (p. 24). Isso se oporia àquela

18

Page 19: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

“transplantação reflexa” dos códigos do esporte para a escola (e de outras práticas), que ele

menciona (p.

22). Com esta mesma preocupação, Kunz (1994) se refere a uma “transformação didática

do esporte” a ser realizada pela escola. A “filtragem crítica” proposta por Bracht e a

“transformação didática do esporte”, de Kunz, se aproximam da idéia de Fourquin (1992)

sobre a tarefa de “transposição didática” que a escola pode realizar:

“A educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre os saberes e os materiais culturais disponíveis num momento dado da sociedade. Ela deve também, a fim de os tornar efetivamente transmissíveis, efetivamente assimiláveis para as jovens gerações, se entregar a um imenso trabalho de reorganização, de reestruturação, de ‘transposição didática’. ” (p. 32)

Fourquin basea-se no trabalho de Y. Chevallard sobre transposição didática e

também se apoia em Michel Verret, de onde extrai a idéia de que “toda prática de ensino

de um objeto pressupõe a transformação prévia deste objeto em objeto de ensino”.

Aplicando tal idéia ao esporte, tem-se que a ‘transposição didática’ do esporte, isto

é, a passagem de sua condição de saber erudito para a condição de saber ensinado na

escola, pressupõe, então, a sua transformação em um objeto de ensino da escola.

Se isso é fundamental, no entanto, não é suficiente, pois, ainda assim, continua-se

no entendimento de que cabe à escola apenas o papel de transmitir saberes produzidos fora

dela, ainda que ela possa transformar esse saber. Até aqui, não se atingiu, ainda, o

entendimento de que a escola pode produzir o seu saber, a sua cultura escolar.

É em André Chervel (1990) que se pode encontrar um avanço necessário a este

entendimento:

“A história das disciplinas escolares expõe à plena luz a liberdade de manobra que tem a escola na escolha de sua pedagogia. Ela depõe contra a longa tradição que, não querendo ver nas disciplinas ensinadas senão as finalidades que são efetivamente a regra imposta, faz da escola o santuário não somente da rotina mas da sujeição, e do mestre, o agente impotente de uma didática que lhe é imposta do exterior” (p. 193).

19

Page 20: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

Com isso, prossegue Chervel, “permanecendo totalmente no interior desse quadro

rígido (...) se fechou toda possibilidade de ver o movimento surgir do interior [da escola]”.

Note-se que Chervel se aproxima aqui daquela crítica de António Novoa a uma visão

reducionista de escola.

Ora, se como afirmou Nóvoa, não se pode ignorar “o trabalho interno de produção

de uma cultura escolar”, e agora, como registra Chervel, é preciso perceber “o movimento

surgir do interior da escola”, pode-se, então, admitir que a escola — com sua cultura e seu

movimento interior — tem condições de estabelecer uma relação de tensão entre o ‘saber

erudito’ e o ‘saber escolar’, não se limitando apenas a realizar uma ‘transposição didática’,

ou uma ‘filtragem crítica’.

Concordo, então, com Chervel, para quem a escola possui uma considerável

autonomia didática e organizacional (portanto, autonomia pedagógica) para produzir e

transmitir um saber gerado em seu próprio interior, dadas as suas especificidades como

instituição.

Certamente que essa relação de tensão (entre saber erudito e saber escolar) pode

estar presente quando uma prática cultural como o esporte penetra o espaço escolar e

quando a escola, por meio da Educação Física, produz o seu próprio saber sobre ela.

Afirma-se aqui, portanto, a escola como um lugar de produção de cultura. Cabe-

lhe, então, ao tratar do esporte, produzir outras possibilidades de se apropriar dele. E, com

isso, influenciar a sociedade para conhecer e usufruir destas outras possibilidades de

vivência do esporte. Buscar uma tensão permanente entre o espaço social da escola e o

espaço social mais amplo.

A escola pode, por exemplo, problematizar o esporte como fenômeno sociocultural,

construindo um ensino que se confronte com aqueles valores e códigos que o tornaram

excludente e seletivo, para dotá-lo de valores e códigos que privilegiam a participação, o

respeito à corporeidade, o coletivo e o lúdido, por exemplo. Agindo assim, ela produz uma

outra forma de apropriação do esporte, produz um outro conhecimento acerca do esporte.

Enfim produz uma outra prática cultural de esporte. Com ela, a escola vai tencionar com

os códigos dominantes da sociedade agregados ao esporte (principalmente com a exclusão

da prática cultural de esporte a que a ampla maioria dos alunos é submetida e com a idéia

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Page 21: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

de rendimento e performance que predominantemente orientam o seu ensino na escola). E

isso porque o ensino produzido e realizado na escola não se encerra nele mesmo:

“As disciplinas escolares intervêm igualmente na história cultural da sociedade. Seu aspecto funcional é o de preparar a aculturação dos alunos em conformidade com certas finalidades: é isso que explica sua gênese e constitui sua razão social. Mas se se as consideram em si mesmas, tornam-se entidades culturais como outras, que transpõem os muros da escola, penetram na sociedade, e se inscrevem então na dinâmica de uma outra natureza”. (CHERVEL, 1990: 220)

Daí se avança para a compreensão de que o “esporte da escola” pode “intervir na

história cultural da sociedade”. Ora, com essa compreensão, recusa-se aquela idéia de que o

“esporte na escola”, com os códigos produzidos por “sistemas mais poderosos”, vai ser a

negação radical do “espote da escola”, inibindo e inviabilizar a sua existência. E supera-se

também a idéia de que a escola não pode produzir uma prática de esporte com seus códigos

próprios, ou que isso seria algo inantingível e mesmo derrotado de uma vez por todas.

Aceita-se então a idéia de que não só é possível à escola produzir o seu próprio saber sobre

o esporte — uma cultura escolar de esporte — como também a de que é com esse saber,

com essa cultura, que a escola vai intervir na história cultural da sociedade. É exatamente

aí que está o lugar da tensão permanente a que me referí. Implícito está que, nesse caso, o

professor e a professora de Educação Física são entendidos como produtores de cultura.

A propósito, é preciso que se afirme radicalmente esta capacidade de intervenção da

escola na sociedade, pois o que de pior poderia acontecer à idéia de se construir um esporte

como prática cultural portadora de valores que privilegiam, por exemplo, o coletivo e o

lúdico, é o enclausuramento dessa idéia na escola, como se ela fosse possível e desejada

somente em seu interior. Aprisionar essa idéia na escola é antecipar a sua morte. É o que

pode ocorrer, paradoxalmente, se aceitarmos um esporte exclusivo “da escola”, que só

possa ser praticado no interior de seus muros. Aceitar isso seria negar a gênese social da

escola e a sua permanente inserção na totalidade social, negar que ela possa oferecer à

sociedade outras possibilidades de fruição do esporte. Ora, em última instância, isso seria

esvaziar de sentido o ensino de esporte como um dos temas da Educação Física, ou, então,

21

Page 22: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

até mesmo reforçar o seu ensino nos moldes atuais, baseado predominantemente na

exclusão de muitos e na performance de poucos.

Não se trata, então, de agir apenas para que a escola tenha o ‘seu’ esporte. Trata-se

de problematizar a prática cultural do esporte da sociedade (que é, ao mesmo tempo o

esporte da e na escola), para reinventá-lo, recriá-lo, reconstruí-lo, e, ainda mais, produzí-lo

a partir dos códigos da escola, para tencionar com aqueles já citados, que a sociedade

incorporou a ele (e para superá-los). Não sendo mesmo possível à escola isolar-se da

sociedade, já que a escola é, ela mesma, uma instituição da sociedade, uma de suas tarefas

então, é a de debater o esporte, de criticá-lo, de produzí-lo... e de praticá-lo!

Ora, se se quer o confronto — a tensão permanente — com os códigos e valores

agregados ao esporte pela forma capitalista de organização social para construírmos outros

valores a partir da escola (a solidariedade esportiva, a participação, o respeito à diferença, o

lúdico, por exemplo), é fundamental que o façamos para toda a sociedade.

Se é assim, cabe à escola e, mais especificamente, à Educação Física, como uma de

suas tarefas, oferecer à sociedade outras possibilidades de prática do esporte. E é isso que a

coloca numa posição de produzir novos conhecimentos acerca do esporte, colocando-os à

disposição da sociedade. O que é completamente diferente e distante de ela ser apenas um

lugar de transmissão de um conhecimento já pronto e inabalável sobre o esporte, ou de

apenas o transpor didaticamente para a escola.

De toda forma, o fundamental é que, na escola, os professores e as professoras de

Educação Física, ao transformarem o esporte em objeto de ensino, têm condições de

ampliar sua prática para produzir uma cultura escolar de esporte. Para isso, e pensando

hoje diferentemente de Bracht, acredito que a escola, os professores e as professoras de

Educação Física já possuem um grau de “autonomia pedagógica” nessa empreitada que,

sem ilusões, creio até que já esteja sendo por muitos realizada (e isso certamente inclui

Bracht!). Muitos que se envolvem no “imenso trabalho de reorganização, de

reestruturação” referido por Fourquin que a escola deve realizar, aqui particularmente no

ensino de Educação Física. Muitos que se envolvem com a produção de uma cultura

escolar de esporte. É ela um dos instrumentos de intervenção cultural da Educação Física

na sociedade, a partir da escola.

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Page 23: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

A legitimidade do ensino da Educação Física na escola, entre outros “argumentos

plausíveis”, poderia ser fortalecida não com o reconhecimento tácito de que ela transmite o

esporte hegemônico, mas de que ela concretamente pode produzir uma cultura escolar de

esporte, confrontando-a com a cultura esportiva hegemônica.

3. A tensão permanente entre o esporte na escola e o esporte da escola encontrada no

próprio Bracht

Se há exemplos que podem ser aqui citados para ilustrar este confronto — que estou

chamando de tensão permanente entre o esporte da escola e o esporte hegemônico na

sociedade —, vou buscá-los no próprio livro de Bracht. Trata-se de seus dois últimos

capítulos, que aliás, como registrado por ele mesmo na Apresentação do livro, foram

escritos cronologicamente antes do Capítulos 1 e 2. Mas, vou continuar obedecendo a

seqüência exposta no livro.

No Capítulo 3, o autor procura refletir acerca da contribuição da Educação Física no

processo de socialização de crianças e de adolescentes. Depois de salientar que existem

diferentes valorizações deste processo e de que elas são decorrentes de diferentes visões de

mundo, e que o “processo de socialização não é um processo neutro pois ele acontece

dentro de um contexto de valores específicos” onde “os valores inculcados são os valores

dominantes que (...) são sempre os valores da classe dominante”, conforme citação de

Marx, (p. 61), ele afirma que

“a socialização através do esporte escolar pode ser considerada uma forma de controle social, pela adaptação do praticante aos valores e normas dominantes como condição alegada para a funcionalidade e desenvolvimento da sociedade. Um dos papéis que cumpre o esporte escolar em nosso País, então, é o de reproduzir e reforçar a ideologia capitalista, que por sua vez visa fazer com que os valores e normas nela inseridos se apresentem como normais e desejáveis. Ou seja, a dominação e a exploração devem ser assumidas e consentidas por todos, explorados e exploradores, como natural” (p.61).

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Page 24: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

Em outra passagem, o autor é ainda mais rigoroso e taxativo na análise sobre as

possibilidades de o esporte ter um sentido educativo:

“... realmente o esporte educa. Mas, educação aqui significa levar o indivíduo a internalizr valores, normas de comportamento, que lhe possibilitarão adaptar-se à sociedade capitalista. Em suma, é uma educação que leva ao acomodamento e não ao questionamento. Uma educação que ofusca, ou lança uma cortina de fumaça sobre as contradições da sociedade capitalista. Uma educação que não leva à formação ‘do indivíduo consciente, crítico, sensível à realidade que o envolve’[citando Oliveira, 1993]” (p. 63).

Bracht aqui ainda está preso àquele olhar um tanto funcionalista da escola, da

Educação Física e mesmo do esporte, como prática cultural. Mas, Bracht também se

pergunta: “em que medida ou até que ponto poderemos chegar a um quadro diferente? Ou

seja, o eporte escolar pode ser diferente? Pode cumprir um papel diferente do de inculcar

a ideologia burguesa?”

E ele se posiciona sobre tais perguntas:

“Embora reconhecendo as ferrenhas determinações sociais que sobre a Educação Física Escolar recaem, acreditamos que no seu interior a contradição não foi suprimida, ela persiste. Embora os espaços a serem ocupados no sentido de uma ação transformadora sejam restritos, admitimos a sua existência. Neste sentido, o da identificação destes espaços, cumpre inicialmente incluir a Educação Física/Esporte escolar no contexto mais amplo da Educação e, enquanto parte desta, analisar as possibilidades de contribuição/colaboração para o processo de transformação social, condição para a concretizaçào de uma sociedade mais justa e livre.”

Em seguida, Bracht escreve que “a escola não é um instrumento homogêneo da

classe dominante” e que, por isso mesmo, admite que nela “existe um espaço, embora

pequeno, para o que Gadotti (1983, p. 162) chama de ‘guerrilha ideológica travada na

escola’ ” (p. 65). Aqui o seu olhar para a escola já parece mais aberto e atento às múltiplas

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Page 25: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

possibilidades de apropriação deste lugar. Assim, ele defende que a tarefa dos professores

de Educação Física

“é a de desenvolver uma pedagogia desportiva que possibilite aos indivíduos pertencentes à classe dominada, aos oprimidos, o acesso a uma cultura esportiva desmistificada. Permitir ou possibilitar através desta pedagogia, que estes indivíduos possam analisar criticamente o fenômeno esportivo, situá-lo e relacioná-lo com todo o contexto sócio-econômico-político e cultural” (p. 65).

Não seria essa “pedagogia desportiva” uma possibilidade de se construir uma

relação de tensão permanente entre uma prática escolar de esporte (o esporte da cultura

escolar) e a prática cultural de esporte hegemônica na sociedade?

No Capítulo 4, Bracht apresenta inúmeras considerações sobre o esporte e seu

processo de socialização, com base em diversos autores. Ele relata uma pesquisa que

realizou com alunos de 6ª série numa Escola Pública da cidade de Santa Maria (RS). Nesta

pesquisa, o autor se propôs a verificar os resultados da aplicação prática de uma

metodologia de ensino de esporte (modalidade basquete), a qual foi denominada

Metodologia Funcional Integrativa (MFI).

O que quero dela trazer ao diálogo são os animadores resultados que uma prática

pedagógica em Educação Física pode alcançar quando se propõe a problematizar a prática

cultural de esporte realizada socialmente e a construir outras possibilidades de usufruí-la (é

a isso que chamo produzir uma cultura escolar de esporte), confrontando-se com aquela

perspectiva de se colocar a Educação Física “a serviço da indústria do esporte”, como ele

escreveu.

Na conclusão de sua pesquisa, o autor ainda demonstrava uma posição bastante

determinista e mesmo reducionista sobre a Escola e sobre a presença do esporte em seu

interior. Naquela ocasião, ele afirmava que “a escola reproduz a ideologia da classe

dominante” ou ainda que “a sociedade encontra na escola, de maneira notável e

solidamente organizada, o esteio e a garantia de perenidade de suas estruturas vigentes”,

de onde ele acaba concluindo que “o esporte na escola não deixa de veicular e reproduzir

esta ideologia [da classe dominante]”. Era muito forte, à época, a idéia da escola como

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Page 26: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

reprodutora da ideologia dominante. Esta posição, de certa forma, se mantém

posteriormente nos textos do autor (que no livro são os capítulos 1 e 2) e talvez seja ela que

acaba induzindo o autor a uma negação radical da possibilidde de a escola produzir a sua

cultura de esporte, conforme tentei demostrar. Creio que hoje esta posição esteja superada

na área de Educação, e creio também que pelo autor.

De todo modo, os próprios resultados que ele obteve na pesquisa indicam que esta

sua posição determinista pode ser bastante relativizada. Então, resgato os procedimentos

do professor na conduta de uma prática escolar de Educação Física com o tema esporte,

propostos por ele em sua pesquisa:

“- incentivar os alunos e possibilitar-lhes a participaçãono planejamento das aulas; - incentivar os alunos a expressarem idéias para a realização dos jogos; - conduzir reflexões e discussões com os alunos sobre as atividades desenvolvidas, levando-os a refletir quanto a: 1. importância da participação de todos os integrantes do grupo; 2. possibilidade e necessidade de mudança de regras; necessidade de conseguir ambiente agradável, cooperativo e de companheirismo nos jogos; - considerar as idéias expressas pelos alunos e submetê-las à apreciação do grupo; - engajar os alunos na organizaçào e validação das atividades realizadas nas aulas; - levar em consideração a importância de uma disciplina funcional, espontânea, em contraposição à disciplina imposta; - explorar e utilizar a colocação de problemas aos alunos, com o objetivo de levá-los à atividade reflexiva;-limitar ao mínimo indispensável a direção pessoal das atividades.” (p.90)

E também alguns aspectos da metodologia empregada:

“... na metodologia que propomos, a MFI, além de buscar a eliminação da dominação pela autoridade, sem no entanto renunciar o direito e o dever do professor de indicar uma direção, indicadora do compromisso político assumido, procura-se mostrar o esporte numa perspectiva crítica, onde os alunos possam realmente ‘fazer’ o seu esporte levando em consideração as características de sua realidade infantil e existencial (social, econômica, política, cultural), e não apenas praticar o esporte. Para isso, entre outras coisas, o aluno tem de participar ativa e conscientemente do processo de normatização que determina as condições das interações no esporte.” ( p. 109, grifo meu)

26

Page 27: Esporte Da Escola, Esporte Na Escola

“A MFI substitui também a prioridade dada pela metodologia tradicional ao ensino dos gestos e ao aprendizado das regras esportivas internacionais, pela vivência do jogo, procurando trasformar as aulas num campo de ação e vivência social” (p. 109).

“...na MFI prevê-se o envolvimento dos alunos no processo de regulamentação dos jogos,o que implica a criação pelos alunos de seus próprios papéis representativos” (p. 105)

A partir disso, foi possível ao autor verificar uma melhoria significativa nas

categorias por ele construídas e analisadas, comparadas com uma metodologia tradicional

de ensino de esporte. Por exemplo, houve na categoria chamada ‘nível de participação’

uma freqüência dos alunos às aulas muito superior, com uma participação com “maior

entusiasmo e maior alegria” e “um envolvimento consciente nas decisões de aula” (p.99).

Também na categoria ‘contatos sociais’, houve melhoria significativa na comunicação

entre os alunos, e consequentemente na participação deles na “organização das atividades

da aula e na superação dos conflitos, quando se pretende exercitar a cooperação” (p.

100). E um último exemplo retirado da categoria ‘mudança de regras/expressão de idéias’

onde houve, por parte dos alunos, uma “maior freqüência de expressão de idéias e

sugestões de mudanças de regras ocorridas nas aulas desenvolvidas com a MFI”. Com

isso, os alunos transformaram regras internacionais do esporte e puderam construir outras.

Ora, esses exemplos retirados da pesquisa de Bracht não são outra coisa senão a

construção por professores e alunos, na escola, de outras possibilidades de praticar o

esporte: é a produção de uma cultura escolar de esporte.

E então retomo aquelas questões que apresentei para este diálogo: será que não

houve autonomia pedagógica na realização desta prática escolar? Creio que houve sim, pois

o mais significativo da pesquisa de Bracht, a meu ver, é que ela realiza concretamente o

esporte da escola, sem “servir à indústria do esporte” e sem fazer uma “transplantação

reflexa” do esporte de rendimento para a escola.

Houve, além disso, tanto uma “transformação do esporte em objeto de ensino” com

aquele “imenso trabalho de reorganização, de reestruturação” de um saber acumulado

historicamene, como escreveu Forquin, como também uma produção de novas formas de

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praticar o esporte na escola, com a participação do professor e dos alunos. Bracht realizou

o que Chervel chamou de “liberdade de manobra que tem a escola na escolha de sua

pedagogia”. E então as finalidades da escola não foram a “regra imposta”, a escola não foi

o “santuário da rotina e da sujeição” e nem tampouco foi o professor “o agente impotente

de uma didática que lhe é imposta do exterior”, conforme reclamava Chervel.

Enfim, com aquela prática escolar, Bracht produziu uma “cultura escolar em relação

com o conjunto das culturas em conflito numa dada sociedade, mas com especificidades

próprias (...)”, como defende Nóvoa.

E, ainda, aqui não ocorre aquele paradoxo a que me referi, onde a Educação Física

conquista a sua legitimidade pedagógica na medida em que perde a sua autonomia: os

resultados da pesquisa indicam que ambas ocorreram numa mesma prática escolar — ou

seja, a prática escolar de Educação Física assim construída superou a subordinação ao

esporte de rendimento e, ao mesmo tempo, conquistou uma maior legitimidade, quer seja

entre os alunos quer seja, por extensão, na escola. Pode-se dizer, assim, que a escola agora

tem os “argumentos plausíveis” reclamados por Bracht para justificar a sua presença no

currículo escolar. E isso é também a concretização da sua intervenção na cultura da

sociedade (ainda que numa microsociedade).

Em síntese, entendo que a pesquisa de Bracht mostra a possibilidade concreta de se

estabelecer uma relação de tensão entre o esporte da escola (com seus códigos próprios) e o

esporte como prática cultural da socidade (com os atuais códigos hegemônicos citados).

Creio então que se pode pelo menos relativizar o efeito daquela afirmação do

próprio Bracht de que se tem “o esporte na escola mas não o esporte da escola”. Existe, a

meu ver, uma prática cultural de esporte na sociedade que certamente penetra a escola, e

ela, na medida em que produz uma cultura escolar de esporte, pode se relacionar com ele,

confrontando-se, colocando-o em conflito, enfim, estabelecendo com ele uma tensão

permanente.

Conclusão: resgatando as duas idéias ‘abandonadas’ por Bracht

No início deste texto, afirmei que Bracht teria ‘abandonado’ duas idéias. A primeira

a de que a escola, como um sistema, teria um grau de liberdade para estabelecer e regular

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os seus próprios critérios seletivos de relação com o meio-ambiente (com os outros

sitemas). E a segunda — a de que a Educação Física assume e incorpora os códigos e as

funções da própria escola.

Pois bem, creio que neste diálogo tenha ficado explícito que considero procedentes

estas idéias de Bracht, e mesmo de fundamental importância para o entendimento do lugar

da escola na sociedade, das suas possibilidades de intervenção cultural. Para isso, trouxe

para o diálogo as contribuições de estudiosos da história das disciplinas escolares (Nóvoa,

Fourquin e Chervel), já que as idéias que eles apresentam sobre a produção de uma cultura

escolar e sobre a intervenção da escola na história cultural da sociedade estavam bem

próximas daquelas duas idéias ‘abandonadas’ por Bracht.

Não seria, então, o caso de se resgatar as duas idéias do próprio Bracht?

Finalizando, registro que ainda que o diálogo com Bracht aqui tenha sido em torno

do tema esporte, já me referi (nota de rodapé nº 5) ao fato de acreditar que as reflexões

aqui expostas, notadamente sobre a relação de tensão permanente entre saber socialmente e

saber escolar, podem ser, em minha opinião, articuladas aos demais temas do ensino de

Educação Física, como a ginástica, a dança, as lutas, os jogos populares. Seria o caso,

então, de se ampliar a discussão sobre a produção, pela Educação Física, de uma cultura

escolar de práticas corporais lúdicas. Tema para muitos diálogos!

Para prosseguir este diálogo, é muito importante perguntar como Valter Bracht

discute hoje esta questão. Qual o seu entendimento sobre o lugar da escola na totalidade

social? Como ele considera a presença da prática cultural de esporte hoje na escola?

Motivá-lo a escrever sobre tais questões é também um dos objetivos deste diálogo.

Bracht com a palavra!

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