escrevendo um romance, primeiro capÍtulo:

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REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO 5(1) | P. 021-044 | JAN-JUN 2009 021 : 9 RESUMO O ARTIGO, POR MEIO DO ESTUDO DE CASOS EXEMPLIFICATIVOS, PROCURA MOSTRAR QUE UM DOS MOTIVOS PARA A FALTA DE UMA CULTURA DE RESPEITO AOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), OU PARA A FALTA DE UM ROMANCE EM CADEIA (DWORKIN), É A DIFICULDADE DE FORMAÇÃO DE UMA RATIO DECIDENDI COMUM ENTRE OS MINISTROS NOS JULGAMENTOS DA CORTE, EM VIRTUDE, POR EXEMPLO, DO PRÓPRIO PROCESSO DECISÓRIO DO TRIBUNAL. A FALTA DE PADRÕES DE DECISÃO IMPLICA QUE CADA CASO SEJA DECIDIDO SEM REFERÊNCIA A CASOS PREVIAMENTE RELACIONADOS. ESSE CONTEXTO PODE COLABORAR PARA A FALTA DE TRANSPARÊNCIA DECISÓRIA E PARA O QUE PODE SER CONSIDERADO UM DEFICIT DEMOCRÁTICO DO STF. PALAVRAS-CHAVE STF; PRECEDENTES; PROCESSO DECISÓRIO; INTERPRETAÇÃO; ROMANCE EM CADEIA. Adriana de Moraes Vojvodic, Ana Mara França Machado, Evorah Lusci Costa Cardoso ESCREVENDO UM ROMANCE, PRIMEIRO CAPÍTULO: PRECEDENTES E PROCESSO DECISÓRIO NO STF ABSTRACT THROUGH THE ANALYSES OF LANDMARK CASES, THIS ARTICLE ARGUES THAT ONE REASON FOR THE TENDENCY BY THE BRAZILIAN SUPREME COURT (STF) TO DISREGARD JUDICIAL PRECEDENTS IS THE DIFFICULTY TO CREATE A COMMON RATIO DECIDENDI IN COURT DECISIONS AND PREVENT THE EMERGENCE OF DWORKINS CHAIN OF LAW. THIS IS DUE, IN PART, TO THE COURTS OWN DECISION PROCESS. THE LACK OF A DECISION PATTERN ENTAILS THAT EACH CASE IS DECIDED WITHOUT REFERENCE TO PREVIOUS CASES. THIS CONTEXT MIGHT FOSTER AN ATMOSPHERE IN WHICH DECISIONS ARE NOT TRANSPARENT, SOMETHING WHICH RISKS CREATING A DEMOCRATIC DEFICIT ON THE STF. KEYWORDS STF; PRECEDENTS; DECISION PROCESS; INTERPRETATION; CHAIN OF LAW. 1 WRITING A NOVEL, CHAPTER ONE: PRECEDENTS AND DECISION PROCESS IN THE BRAZILIAN SUPREME COURT INTRODUÇÃO O Supremo Tribunal Federal (STF) tem passado por profundas transformações nos últimos anos, por iniciativa, principalmente, de seus próprios ministros. Talvez o prin- cipal ponto de mudança esteja na busca pela redução da competência do Tribunal – ou seja, busca pela redução de casos de admissibilidade ou cabimento de recursos). Súmula vinculante e cláusula de repercussão geral, aprovadas pela Emenda Constitucional 45 de 2004, tentam eliminar do horizonte de trabalho dos ministros uma série de casos. Mesmo na própria jurisprudência do Tribunal é possível identificar iniciativas destes ministros para a extensão de efeitos de suas decisões para outros casos.

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Page 1: ESCREVENDO UM ROMANCE, PRIMEIRO CAPÍTULO:

REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO5(1) | P. 021-044 | JAN-JUN 2009

021:9

RESUMOO ARTIGO, POR MEIO DO ESTUDO DE CASOS EXEMPLIFICATIVOS,PROCURA MOSTRAR QUE UM DOS MOTIVOS PARA A FALTA DE UMA

CULTURA DE RESPEITO AOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL (STF), OU PARA A FALTA DE UM ROMANCE EM

CADEIA (DWORKIN), É A DIFICULDADE DE FORMAÇÃO DE UMA RATIO

DECIDENDI COMUM ENTRE OS MINISTROS NOS JULGAMENTOS DA

CORTE, EM VIRTUDE, POR EXEMPLO, DO PRÓPRIO PROCESSO

DECISÓRIO DO TRIBUNAL. A FALTA DE PADRÕES DE DECISÃO IMPLICA

QUE CADA CASO SEJA DECIDIDO SEM REFERÊNCIA A CASOS

PREVIAMENTE RELACIONADOS. ESSE CONTEXTO PODE COLABORAR

PARA A FALTA DE TRANSPARÊNCIA DECISÓRIA E PARA O QUE PODE

SER CONSIDERADO UM DEFICIT DEMOCRÁTICO DO STF.

PALAVRAS-CHAVESTF; PRECEDENTES; PROCESSO DECISÓRIO; INTERPRETAÇÃO;ROMANCE EM CADEIA.

Adriana de Moraes Vojvodic, Ana Mara França Machado, Evorah Lusci Costa Cardoso

ESCREVENDO UM ROMANCE, PRIMEIRO CAPÍTULO: PRECEDENTES E PROCESSO DECISÓRIO NO STF

ABSTRACTTHROUGH THE ANALYSES OF LANDMARK CASES, THIS ARTICLE

ARGUES THAT ONE REASON FOR THE TENDENCY BY THE

BRAZILIAN SUPREME COURT (STF) TO DISREGARD JUDICIAL

PRECEDENTS IS THE DIFFICULTY TO CREATE A COMMON RATIO

DECIDENDI IN COURT DECISIONS AND PREVENT THE

EMERGENCE OF DWORKIN’S CHAIN OF LAW. THIS IS DUE, IN PART, TO THE COURT’S OWN DECISION PROCESS. THE LACK

OF A DECISION PATTERN ENTAILS THAT EACH CASE IS DECIDED

WITHOUT REFERENCE TO PREVIOUS CASES. THIS CONTEXT

MIGHT FOSTER AN ATMOSPHERE IN WHICH DECISIONS ARE

NOT TRANSPARENT, SOMETHING WHICH RISKS CREATING A

DEMOCRATIC DEFICIT ON THE STF.

KEYWORDSSTF; PRECEDENTS; DECISION PROCESS; INTERPRETATION;CHAIN OF LAW.

1

WRITING A NOVEL, CHAPTER ONE: PRECEDENTS AND DECISIONPROCESS IN THE BRAZILIAN SUPREME COURT

INTRODUÇÃOO Supremo Tribunal Federal (STF) tem passado por profundas transformações nosúltimos anos, por iniciativa, principalmente, de seus próprios ministros. Talvez o prin-cipal ponto de mudança esteja na busca pela redução da competência do Tribunal – ouseja, busca pela redução de casos de admissibilidade ou cabimento de recursos).Súmula vinculante e cláusula de repercussão geral, aprovadas pela EmendaConstitucional 45 de 2004, tentam eliminar do horizonte de trabalho dos ministrosuma série de casos. Mesmo na própria jurisprudência do Tribunal é possível identificariniciativas destes ministros para a extensão de efeitos de suas decisões para outros casos.

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É o que aconteceu com um habeas corpus em que o STF decidiu pela inconstituciona-lidade de um trecho da lei sobre crimes hediondos. Por ser uma ação de controledifuso de constitucionalidade, a decisão deveria gerar efeitos apenas entre as partes.A Defensoria Pública da União, no entanto, defendeu na Rcl n. 4335 que a decisãoproferida pelo STF era vinculante e que deveria valer também para outros casos. Oministro relator, Gilmar Mendes, adotou esse entendimento, conferindo efeito ergaomnes à interpretação de inconstitucionalidade, ainda que não tenha sido feita em umaação direta de inconstitucionalidade. O caso ainda não teve o pronunciamento detodos os ministros, mas, se a decisão do Tribunal atribuir o efeito erga omnes, alterarásubstancialmente a história do controle de constitucionalidade do Tribunal.

A preocupação dos ministros, no entanto, não parece ser meramente quantitati-va – visando reduzir o número de casos decididos a cada ano –, mas tambémqualitativa. Em alguns deles, os ministros parecem buscar maiores efeitos às suasdecisões, transformando-as em casos paradigmáticos, em precedentes. Certamente,essa não é uma iniciativa apenas dos ministros. Um caso paradigmático depende deuma conjunção de fatores, como mobilização social em torno do tema, cobertura damídia, manifestações de parlamentares ou membros do Executivo, contrária ou favo-ravelmente. Tudo isso nos dá a impressão de que o STF tem se deparado cada vezmais com “casos difíceis” – interrupção da gestação de fetos anencéfalos, pesquisascom células-tronco, demarcação de terras indígenas, união homoafetiva, proibiçãode nepotismo – e conquistou um espaço diário e aparentemente definitivo nos jor-nais, tornando-se um ator político relevante.

Nesse cenário, verificamos a existência de dois usos das decisões do STF. Emcasos repetitivos ou recorrentes, cuja matéria é menos complexa, como forma decontrolar o volume de casos que chegam à sua alçada, as decisões proferidas peloSTF estariam funcionando como um mecanismo de filtro de decisões. Uma vez quecada um dos ministros tem de dar conta de um volume de distribuições individuaisno ano que supera a casa dos dez mil feitos,2 essa parece ser a solução encontradapela corte para dar vazão aos conflitos de sua pauta. É importante notar que, ape-sar do imenso volume de distribuições anuais, essa corte tem baixa taxa decongestão e consegue dar vazão, ano a ano, a quase totalidade de processos recebi-dos (VERÍSSIMO, 2008).

O outro uso que o STF está dando para suas decisões é visível em julgamentosrelevantes de casos emblemáticos. Mais sensíveis devido à resolução mais complexae ao acompanhamento da mídia, eles exigem, por parte dos ministros, maior cargade argumentação. Nesses casos, verificamos a preocupação, por parte dos ministros,em formar um entendimento sobre o litígio que sirva como precedente para casosposteriores. Esse posicionamento nos leva a crer que as duas funções dadas por suasdecisões seguem o caminho de aproximação do STF ao papel de um tribunal consti-tucional, um modelo distinto de outras cortes constitucionais, mas que se apega a

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algumas das características comumente atribuídas a essas cortes. Esse modelo dife-renciado já foi denominado corte constitucional “à brasileira” (VERÍSSIMO, 2008).

Este artigo tem por objetivo analisar a formação de precedentes desse segundotipo de decisão.

Os casos recentes supracitados ilustram um “ativismo” maior do Tribunal, tanto noque se refere à maior interferência da decisão do STF no texto da lei interpretada, quan-to à repercussão que essas decisões têm na mídia e nas instâncias judiciais inferiores.

Três casos recentes decididos pelo STF podem ser encarados de modo a compreen-der melhor essa nova postura do Tribunal quanto a suas decisões e formação deprecedentes. O primeiro caso que pode ser aqui mencionado é a recente decisão doSTF na ação que questionava a constitucionalidade da permissão de pesquisas com célu-las-tronco embrionárias, prevista na Lei de Biossegurança (trata-se da ADI n. 3510). Ainquestionável atenção dada ao caso, tanto pelas comunidades jurídica e médica, quan-to pela própria mídia e sociedade civil organizada, foram responsáveis por uma grandemobilização do Tribunal para a solução final do caso. Os ministros não se limitaram aanalisar a constitucionalidade da lei, tendo alguns deles apresentado condições à suaconstitucionalidade, que envolviam ações externas do Executivo, como o monitora-mento do uso das células-tronco e a criação de órgãos responsáveis pela fiscalizaçãodessas pesquisas. A despeito de essas condições não comporem a decisão final da corte– que, por maioria, considerou integralmente constitucional o dispositivo –, pode-seentender que, ao incluírem essas condições, os ministros do STF teriam agido como“legisladores”, pois essas inclusões demonstram um papel mais “ativo” que o esperado:a mera interpretação constitucional da lei e a declaração de constitucionalidade ouinconstitucionalidade, sem impor qualquer condição.3

Além dessa “interferência” no conteúdo da lei, a solução – que teve de se voltarà conceituação jurídica da vida e determinar alguns elementos de proteção a essedireito –, citada pelos próprios ministros do STF, já é uma etapa capacitadora doTribunal para análise da constitucionalidade da interrupção de gravidez em caso defeto anencéfalo.

De fato, pouco tempo após a decisão da ação sobre pesquisa com células-tronco,em maio de 2008, o Tribunal voltou a colocar em pauta a discussão referente aosanencéfalos, possibilitando a manifestação da sociedade civil e de especialistas noassunto em audiências públicas. Percebe-se que um caso abre espaço político para adiscussão de outro. A decisão sobre células-tronco possibilitou a retomada do temade interrupção de gravidez de anencéfalo e, possivelmente, no futuro, para a discus-são sobre aborto em geral.

Outro caso recente e muito debatido entra como exemplo do uso que o STF temdado às suas próprias decisões. Trata-se da decisão no caso Raposa Serra do Sol, quediscutiu o tema da demarcação de terra indígena e que atraiu muita atenção justa-mente pela possibilidade de o STF posicionar-se sobre o tema, gerando um precedente.

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Ele possibilitou ao STF definir o que entende por propriedade indígena, à luz daConstituição Federal de 1988.

Assim como no caso de pesquisa com células-tronco, os ministros colocaramcondições ou ressalvas à “implementação” da interpretação constitucional sobre oselementos constitutivos da propriedade de comunidades tradicionais sobre a terra,sobre demarcação, no caso de terras indígenas. Um amplo debate sobre se o mododa demarcação deveria ser contínuo ou em “ilhas” ocupou os jornais, sendo quealguns ministros “anteciparam” seu posicionamento à imprensa, ao mesmo tempo emque testavam a aceitação de seus argumentos, tudo durante um julgamento diferidono tempo, com pedidos de vista e votos proferidos em períodos espaçados.

A polêmica que envolve a demarcação de terras indígenas não é recente, sequerpara o STF – somente a disputa da Raposa Serra do Sol já dura mais de dez anos noTribunal. Especificamente nesse caso, uma conjunção de fatores pode ter colabora-do para a percepção de que a decisão poderia ser paradigmática. Impressionaparticularmente a mobilização de vários atores em diferentes fóruns, com o objeti-vo de influenciar direta ou indiretamente a decisão do STF.

O terceiro caso para o qual chamamos atenção é relativo ao tema da uniãohomoafetiva, que também traz importantes considerações sobre a formação de pre-cedentes. Em fevereiro de 2008, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral,apresentou uma ação pedindo ao STF para interpretar o Estatuto dos ServidoresPúblicos do Rio de Janeiro, na parte referente à concessão de pensões e licenças.Atualmente, esses benefícios são concedidos a cônjuges (casamento) e companheiros(união estável), mas o judiciário do Rio de Janeiro tem se pronunciado de maneiranão homogênea quanto à extensão desses benefícios a casais homossexuais. O meroreconhecimento da “sociedade de fato”, para fins patrimoniais – artifício jurídico jáutilizado pelos tribunais em casos de união estável entre companheiros heterosse-xuais, quando não havia dispositivo protetor desse regime do Código Civil – e cujaaplicação a casais homossexuais está sendo feita por analogia em algumas sentenças– não é suficiente, pois o que está em jogo nesta demanda é o reconhecimento darelação de “afeto”. O pedido é específico (interpretação do Estatuto e uniformizaçãoda jurisprudência do Rio de Janeiro) e tem público-alvo delimitado (servidorespúblicos do Rio de Janeiro), mas qual seria o impacto do reconhecimento da consti-tucionalidade da equiparação entre união estável e união homoafetiva pelo STF? Eletem potencial para atingir os demais estados da federação, bem como casais homos-sexuais não servidores públicos, pois a decisão do STF teria efeitos erga omnes. Alémdisso, o caso não requer apenas a interpretação do Estatuto dos Servidores Públicosdo Rio de Janeiro, mas também a do Código Civil (art. 1.723) e da própriaConstituição, que estabelece que a união estável se dá entre homem e mulher (art.226, § 3º). Além disso, ao equiparar a união homoafetiva à união estável e reconhe-cer a existência de relação de afeto, a decisão do STF possibilitaria a aplicação, no

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futuro, de outras regras do direito de família a casais homossexuais, como adoção oumesmo casamento, pois a união estável estaria a um passo da unidade familiar. Essaé uma decisão difícil, ainda não tomada pelo Tribunal, e que movimenta diversos gru-pos em torno de sua argumentação.

Há quem veja esse fenômeno, presente nos casos supracitados, como manifesta-ção de um ativismo judicial ou de judicialização da política. Não vamos abordar esseponto, mas nos parece que a atividade atualmente desempenhada pelo STF não éimprópria à função de um Tribunal, embora de fato incomode, especialmente aquelesque se atêm a leituras tradicionais e conceitos abstratos sobre separação dos poderes.O processo de legitimação da criação e aplicação do direito é bem mais complexo queo dos artifícios de argumentação. Compartilhamos, no entanto, o mesmo problema:a atuação do STF é legítima? O caminho de resposta é distinto e, no caso deste arti-go, bastante pontual.

A fim de demonstrar e garantir um grau maior de legitimidade em sua atuação, per-cebe-se uma preocupação especial por parte dos ministros ao argumentarem nessescasos difíceis. Eles recorrem a pedidos de vista, proferem votos extensos, solicitamaudiências públicas, aceitam a apresentação de amici curiae, realizam audiências infor-mais com grupos interessados, concedem entrevistas antecipando seus posicionamentosetc. Há também uma grande cobertura da mídia sobre a atuação do STF – notícias dejulgamentos são divulgadas em tempo real, os links para a íntegra dos votos são divulga-dos antes da publicação dos acórdãos, são realizadas matérias especiais sobre casoscomplexos, entrevistas com diferentes atores concernidos etc.

No entanto, falta algo – tanto em relação aos ministros como à “cobertura” doSTF –, ou seja, falta uma observação mais detalhada sobre o seu processo decisórioe as incongruências que pode acarretar neste papel mais “ativo” do Tribunal. Estudaro processo decisório do STF não é uma questão meramente formal. Compreendermelhor como os ministros votam é fundamental para que se exerça um controledemocrático mais apurado de suas decisões. A leitura minuciosa de casos difíceismostra que a falta de clareza, coerência ou até a dificuldade de se encontrar a ratiodecidendi (a linha argumentativa da decisão) são obstáculos a essa função.4

Um bom exemplo para introduzir esse campo de trabalho espinhoso é a jámencionada ação direta de inconstitucionalidade sobre pesquisas com células-tronco (ADI 3510). Após intensos debates promovidos pelos atores interessados,a ação foi considerada integralmente improcedente pelo Tribunal. A decisão final,que manteve, por seis votos a cinco, a permissão para realização desse tipo de pes-quisa, contou com inúmeras divergências na argumentação dos ministros do STF.Um elemento que chama a atenção nos votos individuais desses cinco ministrosque decidiram pela inconstitucionalidade das pesquisas é a inclusão de condiçõesà interpretação de constitucionalidade da lei, o que eles denominaram “decisãoaditiva”, uma nova possibilidade de atuação do STF como legislador positivo.

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Preocupados com que a efetivação das pesquisas fosse baseada em parâmetroséticos, os ministros condicionaram sua liberação à instituição de um órgão cen-tral de controle do uso de células-tronco, à adequação de alguns termos técnicospresentes no texto da lei, à inclusão de uma cláusula de subsidiariedade para oexercício das pesquisas, entre outras medidas. Cada ministro previu uma condi-ção diferente, os votos não se comunicavam. Cada voto de caráter “aditivo” eracomputado pelo placar binário de votação como sendo pela inconstitucionalida-de das pesquisas.

Essa forma de contabilização gerou polêmica. O ministro Cezar Peluso discor-dou da contabilização de seu voto como sendo pela inconstitucionalidade da lei,pois entendeu que a essência de seu voto (sua ratio decidendi) era favorável à reali-zação das pesquisas. No placar, a maioria pendeu pela constitucionalidade da lei,pela permissão incondicionada das pesquisas. Mas e se fosse o contrário? E se osvotos que estabelecem condições díspares entre si formassem um placar majoritá-rio? A Lei de Biossegurança seria completamente inconstitucional? Se, ainda assim,essa lei pudesse ser considerada constitucional, qual a condição e de qual ministroteria de ser cumprida? De todos? Os ministros teriam de deliberar novamentesobre os termos das condições apresentadas? E, mais importante, no cenário deanálise que propomos: como dotar a uma decisão do STF os amplos efeitos que opróprio Tribunal tem procurado dar às suas decisões se não for possível, em algunscasos, determinar qual é a decisão final? Como influenciar cortes inferiores se nãoé possível reconhecer qual é a decisão do STF? O STF tem dado uma resposta claraà sociedade quando decide sobre casos difíceis? Essas são questões que parecem nãoestar no horizonte de preocupações dos ministros do STF, embora representemobstáculos à legitimidade das decisões do Tribunal, especialmente se ele se impõeum papel mais “ativo”.

Ocupar um papel político importante e dialogar com as demais instituições(Legislativo e Executivo) não é um equívoco em si. Disso não decorre uma ilegitimi-dade da atuação do STF. Contudo, esse novo cenário exige maior atenção sobre oprocesso decisório do Tribunal. Poderíamos traduzir essa polêmica para os termosempregados neste artigo. Os ministros estão diante de casos difíceis, em que hánecessidade de decidir formando um precedente que sirva de parâmetro para a deci-são de futuros casos. A argumentação é alvo de maior atenção, seja por parte dospróprios ministros, seja por parte da sociedade. Ainda assim, alguns aspectos impor-tantes relacionados à coerência da decisão não são observados. Por exemplo, o que ératio decidendi (linha argumentativa principal, que pode ser utilizada como preceden-te em casos futuros) e o que é obter dictum (opinião dos ministros expressa nos votos,a qual não produz efeitos na solução de casos futuros)? A ratio decidendi é do minis-tro ou do Tribunal? Em que medida o atual processo decisório do STF ofereceentraves à legitimidade das decisões do Tribunal nesse novo contexto?

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A orientação dos ministros para a formação de precedentes, nas decisões decasos difíceis, parece ser uma tendência recente, que contrasta com o (não/mau)uso que os ministros tradicionalmente fazem de suas “decisões anteriores”, citan-do-as de maneira aleatória, sem confirmação do conteúdo da decisão (ratiodecidendi) –, ou de maneira estratégica –, apenas aquelas que favoreçam a linhaargumentativa do ministro. Percebe-se que, em casos difíceis, é cobrado do STFum diálogo com as decisões anteriores, afinal os ministros são convocados a fixarum “novo” entendimento para a decidibilidade de casos futuros. No entanto, àsvezes, fica-se com a impressão de que há interesse apenas em fixar o “novo”, semnecessariamente remontar a jurisprudência do Tribunal de maneira adequada.Some-se a isso o fato de a jurisprudência constitucional não ser objeto de estudosistemático por parte da academia. Não há, portanto, demanda por maior coerên-cia do Tribunal.

Mais que atentar para o (não/mau) uso dos precedentes, parece necessárioremontar as dificuldades da própria extração da linha argumentativa das decisõesdo Tribunal. Partindo da ideia de Dworkin de romance em cadeia, comparaçãofeita pelo autor entre o processo de interpretação do direito e a literatura, fica-secom a impressão de que o segundo capítulo de um romance em cadeia, em que oautor interpreta o capítulo que recebeu para então escrever o seu, é sempre inter-rompido. O que pretendemos com isso é alertar para a necessidade de umacontinuidade, no tempo, no processo decisório. A teoria de Dworkin é útil namedida em que demonstra a necessidade de diálogo entre decisões para que seforme um entendimento coerente por parte da corte. Esse processo não visaengessar o processo criativo do juiz, atentando para a necessidade de semprerecorrer a casos antigos para formar seu convencimento. Pelo contrário, ele apon-ta para o fato de que uma corte que dialoga com suas próprias decisões pode obtermelhor qualidade nestas, o que pode implicar em um processo interpretativo maisconsolidado no tempo.

Essa dificuldade decorre, em parte, do próprio processo decisório do STF. Nesteartigo, pretendemos ilustrar essas dificuldades a partir de alguns casos. Os casos nãoforam selecionados pela sua relevância temática ou repercussão social; eles servem afins metodológicos de demonstração de algumas possíveis interferências do proces-so decisório na coerência argumentativa do Tribunal. Esses aspectos são muito poucoestudados e discutidos.

Para além da discussão do STF como um ator político, é preciso atentar para seufuncionamento institucional, até mesmo para colocá-lo, também, sob crivo público.Caso contrário, o STF, no sentido oposto que parece indicar seu recente “ativismo”e flerte em ser um Tribunal constitucional, permanecerá um palco de disputas desolução de casos pontuais e de maneira ad hoc, com um possível controle social ape-nas sobre a dimensão material e fática do caso.

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1 O DRAMA DA PÁGINA EM BRANCO. DESAFIOS DE PROCESSO DECISÓRIONA FORMAÇÃO DE RATIO DECIDENDI NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

1.1 VOTAÇÃO UNÂNIME = ÚNICA RATIO DECIDENDI?O primeiro caso,5 a despeito de ter tido votação final unânime, com a presença de novedos onze ministros do STF,6 não chega a formar uma única ratio decidendi do Tribunal.Por essa razão, ele foi escolhido para ilustrar o processo decisório do STF.

O caso envolve a interpretação do direito à reunião e seus limites. Um decretodo governador do Distrito Federal, Brasília,7 proibiu a utilização de carros de somna Praça dos Três Poderes, local onde se encontram os prédios-sede dos três pode-res do Estado brasileiro: o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o próprioSTF. A proibição, fundamentada no direito daqueles que exercem atividade laboralna praça e em seus arredores, terminaria por impedir o exercício do direito de reu-nião, previsto constitucionalmente. Por sua vez, o exercício do direito de reunião, talcomo está disposto no texto constitucional, configura-se condicionado ao preenchi-mento de alguns requisitos, ou seja, seu exercício já encontra algumas limitações nopróprio texto constitucional.8

O problema enfrentado pelo Tribunal se resumiria às seguintes questões: pode odireito de reunião ser restringido por elementos diversos daqueles presentes no dis-positivo constitucional? Se sim, quais os limites de tal regulamentação?

Podemos dizer que todos os ministros identificam o mesmo problema a ser deci-dido, a possibilidade e os meios da restrição a um direito fundamental, como é odireito de reunião. Contudo, o reconhecimento de um mesmo problema não signifi-ca que todos seguirão a mesma linha de raciocínio e fundamentação das decisõesindividuais. Apesar de tratar-se de uma decisão final unânime, decretando a inconsti-tucionalidade do decreto, não se pode dizer que se trate de uma ratio decidendi única.

O voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski, contém os principais funda-mentos apresentados na decisão para a determinação da inconstitucionalidade dodecreto analisado. Afirma desde o início de seu voto que o direito de reunião se rela-ciona com outros dois direitos: liberdade de expressão e manifestação do pensamento.

A presença do direito de reunião nas constituições brasileiras prévias àConstituição de 1988 seria um demonstrativo da garantia de uma liberdade pública decaráter fundamental no capítulo dos direitos e garantias individuais. Ao fazer tal cons-tatação, o ministro toma o cuidado de demonstrar como e em que medida o direitode reunião é e já foi previsto como garantia constitucional. Nesse sentido, afirma tam-bém que os limites e as condições para seu exercício estão previstos no textoconstitucional, não fazendo parte das atribuições de um legislador infraconstitucionala inclusão de novas possibilidades de restrição. Em resumo, “reunir-se pacificamente”,“sem armas”, sob a condição de que “não frustrem outra reunião anteriormente con-vocada para o mesmo local” e dependendo do “prévio aviso à autoridade competente”

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seriam as únicas limitações possíveis a esse direito fundamental. Pode-se dizer queesse é um dos principais fundamentos de sua decisão.

Ao mesmo tempo em que apresenta essa fundamentação, mantém um posiciona-mento claro no sentido de afirmar que a liberdade de expressão não configura umdireito absoluto. Além de generalizar o argumento, dizendo que nenhum direito éabsoluto, uma vez que até mesmo os direitos havidos como fundamentais encontramlimites implícitos e explícitos no texto das constituições. A possibilidade de limita-ção de direitos fundamentais, que aparece como premissa para o desenvolvimento doraciocínio do juiz em sua fundamentação, pode ser aqui identificada como um segun-do fundamento essencial.

Ao apresentar um exemplo de caso semelhante, que serviria para a contraposi-ção dos argumentos até então expostos, o ministro aventa a possibilidade de se fazeruma reunião na frente de um hospital, situação na qual se apresentaria uma hipótesede colisão entre direitos fundamentais, em que o direito dos pacientes à recuperaçãoda saúde certamente prevaleceria sobre o direito de reunião. Em uma situação comoessa, a restrição ao uso de carros, aparelhos e objetos sonoros mostrar-se-ia perfei-tamente razoável, tratando-se, assim, de uma exceção à regra da impossibilidade denovas limitações por parte de um legislador infraconstitucional, indicada por ele noinício de seu voto.

A analogia feita pelo ministro mostra-se essencial para a configuração da ratiodecidendi de sua decisão, uma vez que afirma que a situação do hospital não guardanenhuma semelhança com o caso em julgamento. Proibir a utilização de carros, apa-relhos e objetos sonoros, nesse e em outros espaços públicos, os quais o decretodiscrimina, inviabilizaria por completo a livre expressão do pensamento nas reuniõeslevadas a efeito nesses locais, porque as tornaria emudecidas, sem nenhuma eficáciapara os propósitos pretendidos.

A potencialidade de se causar um prejuízo irreparável àqueles que estão nas ime-diações da manifestação próxima a um hospital é o que justificaria a proibição dessamanifestação. O prejuízo irreparável, portanto, seria a condição para a possibilidadede novas restrições ao texto constitucional. A inexistência de um prejuízo irrepará-vel, no caso do Decreto do governador do DF, impede que as duas situações sejamtratadas da mesma maneira.

A ratio de seu voto poderia ser entendida da seguinte maneira: a ConstituiçãoFederal já prevê possibilidades de restrição ao direito de reunião, que só poderiamser aumentadas caso a reunião ferisse irreparavelmente direitos alheios. O decreto éinconstitucional em virtude da finalidade a que se volta, que não justifica a criaçãode mais uma limitação além daquelas já existentes na constituição.

Após a manifestação do relator, tem-se a votação dos demais ministros, a qual nãose limita à aceitação ou rejeição da decisão tomada pelo primeiro, mas, sim, à inclu-são de novos argumentos à decisão tomada. Cada um dos ministros dá sua decisão,

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contrária ou de acordo, fundamentada com a decisão tomada pelo relator. A narraçãodos votos em sequência seguirá a ordem em que se deu no momento da votação, agru-pando-se as manifestações em um mesmo sentido.

Um segundo grupo de argumentos encontra-se presente no voto do ministro ErosGrau, que também defere o pedido de inconstitucionalidade. Sua fundamentação écompletamente diversa da apresentada pelo ministro relator. Esse ministro afirma quea inconstitucionalidade deve-se a uma questão formal, já que a regulamentação de umdireito fundamental, ainda que possível, não poderia ter sido feita por meio de decre-to, mas tão-somente por meio de lei. A inconstitucionalidade por questões formais fazcom que a matéria a ser julgada torne-se prejudicada. O ministro não faz nenhumaafirmação com relação aos fundamentos apresentados pelo ministro relator.

O terceiro grupo de argumentos presentes na decisão do caso privilegia a pro-teção da liberdade de expressão em detrimento de eventuais prejuízos que reuniõesem locais públicos poderiam causar. A relação existente entre o direito de reuniãoe as liberdades de expressão e livre manifestação das ideias deixaria clara a prepon-derância destes sobre eventuais prejuízos decorrentes do exercício desses direitos.O argumento, presente unicamente no voto do ministro Celso de Mello, não deixaexpressa a possibilidade ou impossibilidade de uma restrição legislativa do direitode reunião. Apesar de identificar o mesmo problema dos demais ministros, a ratiodecidendi desse voto não inclui as mesmas razões pelas quais o decreto foi julgadoinconstitucional pelo relator.

Diversamente do que sustentou o voto do ministro relator, podemos identificar,no voto do ministro Gilmar Mendes, a afirmação de que a Constituição Federal nãoprevê, expressamente, nenhuma reserva legal ao direito de reunião. Ao questionar aeventualidade de esse fato significar a impossibilidade de novas restrições a esse direi-to, o ministro vai em direção contrária à da afirmação do ministro relator. Assim, aprópria formulação do inciso XVI, quando diz “desde que não frustrem outra reuniãoanteriormente convocada para o mesmo local”, já sugere o problema de eventual coli-são, típica entre direitos idênticos – dois grupos que querem se manifestar no mesmolugar e na mesma hora – dada a possibilidade de conflito e necessidade de interven-ção de polícia, “sendo apenas exigido aviso prévio à autoridade competente”, temaque também pode demandar algum tipo de disciplina.9 Em resumo, novas regulamen-tações, que, no caso do ministro relator decorreriam somente de casos excepcionais,são, na visão do ministro Gilmar Mendes, inerentes à possibilidade de exercício dodireito de reunião. Haveria, portanto, a presença de uma reserva legal implícita, auto-rizadora de novas restrições ao direito de reunião, independentemente de ser essarestrição um meio de se garantir a efetivação de outro direito fundamental (tal comoafirmado pelo ministro relator).

Por fim, pode-se reconhecer a existência de um último grupo de argumentos,que configuraria uma quarta ratio decidendi do caso julgado. O Ministro Sepúlveda

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Pertence julga procedente o caso concreto, mas afirma que isso não significa umamanifestação a respeito da possibilidade de regulação de direitos fundamentais.

Note-se, dessa maneira, a dificuldade em se determinar, ainda que em um casode decisão unânime, qual foi a decisão tomada pelo Tribunal como um todo. Aindaque se entenda que o voto do ministro relator, que guia a tomada de decisão dosdemais ministros, tem um peso maior na fundamentação do caso, podendo-se enten-der que a partir dele seria possível extrair a ratio decidendi, não há como deixar deconsiderar o fato de que fundamentações conflitantes com o voto do ministro rela-tor relativizam a adequação dessa ratio decidendi ao que foi efetivamente decididopelo Tribunal. A unanimidade se dá tão-somente com relação ao dispositivo da deci-são, o elemento questionado por meio da ADI, mas não se reflete no momento dajustificação dessa solução dada pelo Tribunal.

Uma consequência dessa peculiaridade da decisão do STF, que decorre do modocomo se dá a tomada de decisão, é o alto grau de personalismo dotado aos seus julga-mentos. Poder-se-ia falar em ratio do ministro, em uma linha de pensamentodesenvolvida por ele e, inclusive, em aplicação de precedentes individuais. Não há,especialmente nos casos que envolvem aplicação de princípios – como ficou explícitono caso analisado –, a possibilidade de extração de uma ratio coletiva, institucional.

1.2 AFINAL, QUAL É O PROBLEMA QUE ESTAMOS DECIDINDO?O segundo caso envolve a aplicação da pena de racismo a Siegfried Ellwanger, umeditor-autor de livros que nega a existência do holocausto contra judeus, ocorridona 2ª Guerra Mundial. O caso Ellwanger, como ficou conhecido na literatura jurídi-ca do País, chamou a atenção de acadêmicos e juristas e teve grande impacto na mídiadurante seu longo julgamento – de dezembro de 2002 a setembro de 2003.

A tese sustentada pelo autor, na impetração de um recurso ao STF (HC 82.424),era composta por um simples argumento: o crime de racismo não havia se configu-rado, pois judeus não compõem uma raça. Com argumentação, o autor pretendia verafastada a acusação de racismo, crime constitucionalmente imprescritível, e configu-rar sua conduta como discriminação – crime prescritível que, por decurso de prazo,já não seria mais aplicável.

Diante de tese tão controvertida, a atenção dada pelo Tribunal a esse julgamen-to foi grande. Em uma decisão de quase quinhentas páginas, os ministros se dividiramem grupos de argumentos e teses diferentes acerca da conceituação de racismo, dacondição dos judeus no Brasil, na Europa, hoje e desde tempos passados, o papel daliberdade de expressão e manifestação do pensamento em sociedades democráticas,possíveis limitações a esse direito e formas de se avaliar a legitimidade das limita-ções, a efetividade de incitações e manifestações que se dão por meio de livros,entre outros temas, acrescentados à medida que cada ministro anunciava sua deci-são individual.

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O que se nota também nesse caso é o reconhecimento da característica reativada decisão individual de cada ministro, ou seja, os votos são proferidos a partir dainterpretação do voto relator. A cada decisão proferida, percebe-se que o ministroestá preocupado não só em dar uma resposta para o caso em julgamento, mas emrebater ou corroborar um ponto específico de uma das decisões proferidas anterior-mente. Acontece que o que poderia ser entendido como diálogo entre os ministrosacaba por tornar-se uma profusão de argumentos que em alguns momentos se ligame em outros se chocam, pois cada ministro elege para si um problema diverso a serrespondido pelo Tribunal, apoiando-se em argumentações anteriores para expressara sobreposição de uma questão à outra, coisa que não necessariamente se relacionacom a realidade do julgamento.

Assim, é possível dizer que, no caso Ellwanger, os ministros não chegam a um acor-do sobre qual é o problema principal do caso que estão decidindo. Cada ministrodesenvolve a sua própria linha argumentativa e de fundamentação para o problema queconsideram como principal no caso concreto. Isso significa que, em um julgamento noqual os onze ministros proferiram decisões fundamentadas individualmente, não é pos-sível dizer que uma única questão foi decidida, o que não é em si um problema. Noentanto, se as decisões não tratam das mesmas questões, identificamos um problema nadecisão dos ministros.

De maneira simplificada e esquemática, foi possível identificar três ordens de pro-blemas decididos pelos ministros: (a) raça é conceito jurídico ou biológico? Pode seraplicada a judeus?; (b) quais são as condutas que configuram o crime de racismo?Publicar um livro? Ter uma editora? Caso a conduta incriminadora seja a publicação deum livro, de que tipo – como um manifesto, incitação ao racismo, científico ou revi-sionista?; (c) a liberdade de expressão excepciona ou não a aplicação da lei de racismo?A partir de cada problema enfrentado pelos ministros, é possível identificar o desen-volvimento de linhas de argumentação diferentes, que serão apresentadas a seguir.

Os ministros podem ser agrupados em quatro tipos diferentes de argumentos, quecombinam esses problemas de formas diferentes, conforme foram apresentados pelospróprios ministros, como as questões centrais a serem respondidas pelo Tribunal:

(a.1) A primeira questão se resume à identificação ou construção de um conceitode racismo, problema central na visão dos ministros Cezar Peluso e SepúlvedaPertence. (a.2) Um segundo grupo de ministros questiona a possibilidade de haver crime deracismo contra judeus. Esse grupo é formado pelos votos dos ministros MoreiraAlves, Celso de Mello, Carlos Velloso, Nelson Jobim e Ellen Gracie. (b) Em terceiro lugar, quais seriam os meios pelos quais o crime de racismo podeser cometido. É a questão essencial presente nos votos dos ministros GilmarMendes, Nelson Jobim e Carlos Velloso.10

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(c) Por fim, qual seria o resultado do choque entre liberdade de expressão edignidade da pessoa humana no caso da criminalização de manifestações dopensamento, é o centro do questionamento feito pelos ministros Carlos Britto eMarco Aurélio.11

Ao comparar essa divisão de “grupos de problemas” com a resposta construídapor cada um dos ministros, percebe-se que não necessariamente todos os ministrosse manifestam a respeito de todos os problemas existentes. Reconhecemos que casosdifíceis são fonte de inúmeras questões jurídicas que, por vezes, ensejam leiturasdiferentes com relação aos problemas envolvidos pelo caso.12 O que se identifica nojulgamento do caso Ellwanger, porém, é a escolha, por parte de cada ministro, de umproblema específico que, no dizer de cada um, resume a controvérsia como um todo.No limite, ao escolherem problemas diferentes, ao invés de terem perspectivas deinterpretação diferentes de um mesmo problema, cada ministro decide um casocompletamente diferente.

Inicialmente, pode-se dizer que há um consenso em relação a uma questão cen-tral do caso julgado. Todos os ministros, com exceção do relator – ministro MoreiraAlves –, concordam com a premissa de que a discriminação contra judeus configuracrime de racismo, já que esse conceito não se limita a um conceito biológico de raça.A conceituação jurídica de racismo, portanto, é elemento comum das decisões dosministros, inclusive daqueles que decidem o caso em sentido contrário ao que se deuna decisão da maioria. Esse poderia ser identificado como um dos elementos consti-tutivos da ratio decidendi, que congregaria o entendimento de todos os onze ministros.No entanto, tal consenso é insuficiente para o que consideramos como ratio decidendie sua relação com a potencialidade de normatização de um precedente. Entender quesomente as premissas mais abstratas de um raciocínio formam a ratio decidendi de umcaso é torná-lo quase inútil para a resolução de casos futuros.13

Com isso, queremos apontar que da aceitação unânime da premissa de que oconceito de raça se deve a fatores culturais, e não biológicos, não decorre a conclu-são de que todos enxergam uma mesma questão jurídica a ser decidida pelo STF. Oprocesso decisório, como é estruturado, permite tal escolha dos ministros, sobrequal problema querem resolver com sua argumentação, sem que haja um pronuncia-mento de todos os ministros sobre ele. Ao mesmo tempo, necessariamente, não hádeliberação entre os ministros, para que cheguem a um acordo pelo menos com rela-ção a qual é o principal problema trazido pelo caso.

1.3 O QUE FOI DECIDIDO MESMO?O terceiro caso selecionado aborda a aplicação do Código de Defesa do Consumidor(CDC) às relações contratuais bancárias.14 Após o acórdão ser proferido pelo Tribunal,houve embargo de declaração ao conteúdo da ementa (resumo do julgamento), pois

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não estava claro se o seu conteúdo refletia realmente o que havia sido decidido pelosministros e pelo Tribunal no acórdão.15 Durante a discussão do embargo, os ministrosdiscordaram do conteúdo da ementa, pois ela correspondia apenas à linha argumentati-va do voto do ministro relator, e não ao que havia sido deliberado por todos. Uma boaementa deveria se aproximar, portanto, do conteúdo da ratio decidendi do Tribunal, e nãoda ratio decidendi de apenas um dos ministros, no caso o relator, responsável pela reda-ção da ementa. O que se percebe, a partir da leitura da transcrição dos debates dessaaudiência sobre o embargo, é que os ministros aproveitaram a ocasião para re-decidir ocaso, apresentando argumentos diversos dos que haviam sido apresentados anterior-mente (muitas vezes desconsiderando a ratio decidendi de seus votos na decisão anterior)e buscando uma nova ratio decidendi do Tribunal, fruto de um debate consensual sobreos termos que deveriam constar na ementa final do caso.

A discussão gira em torno da revisão da correção monetária e dos juros estipu-lados em contratos entre pessoas físicas ou pequenas empresas e instituiçõesfinanceiras, em face da alegação de práticas abusivas por parte das últimas no esta-belecimento das taxas de juros aplicáveis sobre as obrigações contratuais. Asinstituições financeiras questionavam a aplicação do Código de Defesa do Consu-midor16 a relações dessa ordem, pois o Sistema Financeiro teria peculiaridades edisciplina própria que afastariam o regramento do CDC. Assim sendo, aConfederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) propôs ação direta de inconsti-tucionalidade pretendendo a declaração da inconstitucionalidade da expressão“inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, constante doart. 3º, § 2º, da Lei n. 8.078/90.

A principal questão trazida pelo caso, e implícita na argumentação da Consif, dizrespeito à definição sobre quem é competente para regular o Sistema Financeiro,essencialmente no que concerne à questão dos juros.17 Se a aplicação do CDC afe-tasse relações próprias ao Sistema Financeiro Nacional (art. 192 da ConstituiçãoFederal), estaria invadindo o âmbito reservado à disciplina por lei complementar.

O primeiro problema durante o julgamento foi a dificuldade das diferentes par-tes em concordarem quanto a qual seria a questão principal em debate. O ministroJoaquim Barbosa, em seu voto, explicita esse fato ao mostrar qual acha ser a questãode fundo: “A corte discutiu, desde o início do julgamento, se seria necessário utili-zar da técnica de interpretação conforme a Constituição, julgando a açãoparcialmente procedente, para estabelecer que o Código de Defesa do Consumidornão poderia ser aplicado em questões que discutissem juros”.

A segunda questão decorre dos embargos à ata do julgamento. A ata é redigidapelo ministro relator Eros Grau e é embargada sob a alegação de não refletir a deci-são do julgamento. A embargante alega contradição entre a certidão de julgamento(que afirma a improcedência total do pedido) e a ementa (que afirma a procedênciaparcial da ação).

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Durante as discussões do julgamento dos embargos ocorrem novas contradições.O ministro relator Eros Grau diz entender que todos concordaram quanto a umponto, porem é contestado por colegas18. O ministro relator entende que a ratio deci-dendi explicitada em seu voto é unânime entre os ministros. No entanto, durante osdebates, o entendimento do ministro é questionado e as rationes dos demais são con-sideradas. Os ministros, então, rediscutem o caso e uma nova ementa é elaborada,dessa vez reflexo do (novo) julgamento.19

Consideremos alguns problemas no julgamento. Primeiro, a dificuldade dos pró-prios ministros em identificar qual é a questão em discussão. Cada ministro decidesobre um ponto e não há a formação de rationes acerca do mesmo problema. Segundo,o ministro relator não consegue identificar quais foram as rationes de seus colegas e,portanto, não consegue identificar qual foi a ratio decidendi do julgamento, consideran-do somente a sua como prevalecente. Desse modo, não é possível a formação de umaratio decidendi do Tribunal.

Como vimos, o grau de discricionariedade do relator, no momento de redigir aementa do caso, é muito grande. Nesse caso, se não fossem opostos embargos dedeclaração à ementa, ela permaneceria não refletindo o julgamento.

Para se atingir um consenso, os ministros realizam um debate durante o julga-mento da ementa em que se busca um denominador comum dos votos. Verifica-se,nesse momento, que eles fazem um novo julgamento, desconsiderando seus votosanteriores e, portanto, mudando sua ratio decidendi.20 No momento em que os minis-tros reveem suas decisões e as discutem, pode-se dizer que há uma busca por umaratio decidendi do Tribunal. A decisão unânime pela improcedência da ação demonstraque há um entendimento coletivo da corte.

O desfecho do julgamento deixou claro que não há, no STF, um consenso sobrequal entidade deve regular os juros no Brasil e que há limites para a aplicação do CDCa instituições financeiras. A decisão é incapaz de sinalizar como se dá a incidência doCDC sobre relações financeiras, o que resultará em novos conflitos no momento daconsideração dessa decisão em casos futuros. Segundo o ministro Marco Aurélio, esseslimites não estão claros, sendo deixados à definição por meio de processos subjetivosque sejam iniciados no Poder Judiciário. O julgamento da questão é, portanto, joga-do para o futuro e o Tribunal ganha tempo para formar seu entendimento ou, no casoem questão, talvez fique clara a intenção deste de evitar se pronunciar sobre temapolêmico e formar um precedente.21

A partir dos casos analisados, pode-se notar que há diversas relações entre a estru-tura da argumentação dos ministros e do Tribunal e o processo decisório do STF: umavotação unânime não possui, necessariamente, uma ratio decidendi do Tribunal sobre ocaso, pois ela pode versar apenas sobre a parte dispositiva; cada ministro pode, no limi-te, estabelecer uma ratio decidendi própria em seu voto independente; por vezes, osministros diferem não apenas na linha argumentativa em torno de um mesmo problema

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que o caso trás, mas, também, com relação ao próprio problema a ser solucionado nocaso. Não há um espaço determinado no processo decisório para que os ministros deci-dam de maneira consensual sobre o problema envolvido pelo caso ou sobre qual linhade argumentação deve prevalecer no Tribunal; o processo de argumentação é eminen-temente individual; o voto do relator é importante na determinação dos votosseguintes, mas, em casos difíceis ou de grande repercussão, os ministros procuramdesenvolver uma argumentação própria. Os próprios ministros têm dificuldade emextrair a ratio decidendi do Tribunal ou mesmo de cada voto em um determinado acór-dão; a ementa de um caso não necessariamente representa a ratio decidendi do Tribunalsobre o caso, ela pode ser uma leitura do ministro relator sobre o que foi decidido.

2 ESBOÇANDO O SEGUNDO CAPÍTULO DO ROMANCE. QUANDO ALGO JÁ FOI DITO ANTESO último caso ilustra o esforço dos ministros do STF em remontar os precedentes doTribunal para fixarem um novo entendimento. O diálogo com as decisões anteriores doTribunal parece ter sido crucial no caso, pois havia um entendimento anterior consoli-dado na sua jurisprudência. Inovar implicava justificar muito bem o que estava mudandoe por quê. A ruptura com um precedente claro exige maior argumentação, obriga oTribunal a dialogar com a sua história. Mas será que os ministros estão fixando um novoentendimento quando constroem diferentes rationes? Em outras palavras, eles concor-dam com o passado, mas divergem com relação à regulamentação futura. Isso é ruim?

O problema comum identificado pelos ministros é a constitucionalidade da pri-são do depositário infiel, uma vez que a Constituição Federal de 1988 permite e aConvenção Americana de Direitos Humanos proíbe tal prisão. Várias ações que tra-mitam atualmente no STF abordam essa questão. Em três delas, os ministros fixaramo entendimento da inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel.22 Os argu-mentos dos ministros, no entanto, diferem com relação à interpretação de por quetal prisão é inconstitucional.23

Há um entendimento claramente consolidado na jurisprudência do STF de quetratados internacionais são equiparados hierarquicamente à legislação infraconstitu-cional. Tratados de direitos humanos, no entanto, ocupariam uma posição hierárquicadiferenciada? O art. 5º, § 2º, da Constituição Federal abria margem à interpretaçãosobre a recepção como normas constitucionais dos tratados de direitos humanos: “Osdireitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes doregime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que aRepública Federativa do Brasil seja parte”.

A análise da íntegra dos votos dos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendespermite estudar como cada ministro retomou o histórico da jurisprudência doTribunal e, no caso de Celso de Mello, o seu próprio entendimento anterior sobre o

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tema. Os ministros dialogaram com os precedentes contrários da corte ou com aratio decidendi de seus votos anteriores, formando um novo entendimento.24

Os ministros não buscam apenas a solução do caso concreto, mas também esta-belecer parâmetros para a decidibilidade de conflitos futuros, que envolvam ainterpretação da hierarquia jurídica de todos os tratados internacionais de direitoshumanos firmados pelo Brasil. O ministro Gilmar Mendes adota a tese da supralega-lidade dos tratados internacionais de direitos humanos, pois estariam entreConstituição e a legislação ordinária,25 e identifica que essa tese já havia sido aven-tada em caso anterior pelo ministro Sepúlveda Pertence.26

O ministro Celso de Mello, por sua vez, adota a tese da constitucionalidade dostratados internacionais de direitos humanos e revê seu entendimento anterior, de quetinham nível hierárquico de legislação ordinária. Para ele, a principal motivação para aformação de uma nova ratio decidendi é a emenda constitucional que estabeleceu a regrapara que os tratados internacionais de direitos humanos que venham a ser assinadospelo País tenham status constitucional condicionado à aprovação por três quintos doCongresso Nacional.27 A dúvida permanece para os tratados internacionais de direitoshumanos que foram internalizados antes da emenda constitucional que estabelece essaregra. Este é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos. Para Celso deMello, nestes casos, os tratados já haviam sido incorporados pela ConstituiçãoFederal.28 Já para Gilmar Mendes, nestes casos, os tratados dependem de votação peloCongresso Nacional para que alcem a condição de constitucionais.29

A partir do material levantado, podemos identificar, portanto, duas linhas argu-mentativas acerca da constitucionalidade da prisão do depositário infiel: (a) a prisãoé inconstitucional em decorrência da supralegalidade da Convenção Americana deDireitos Humanos; (b) a prisão é inconstitucional em decorrência da constituciona-lidade da Convenção Americana. Com o julgamento conjunto das três ações, foipossível contrastar o posicionamento dos ministros do STF acerca de qual tese eramadeptos. Formou-se um placar de cinco contra quatro no Tribunal pela supralegali-dade dos tratados internacionais de direitos humanos.30

Cabem, no entanto, algumas considerações sobre o interregno em que a maioriado Tribunal já havia se pronunciado pela proibição da prisão do depositário infiel,mas que ainda pairava a dúvida sobre qual seria o posicionamento do Tribunal sobrea posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos. Ou seja, operíodo em que os votos majoritários pela proibição já geravam efeitos para algumasdecisões do próprio Tribunal, mas que a posição hierárquica dos tratados internacio-nais só gerava polêmicas.

Entendemos que a particularidade do processo decisório do STF permite que osministros apresentem diferentes rationes em seus votos, sem que necessariamente elascomponham uma configuração majoritária que possa ser compreendida como umaratio decidendi do Tribunal sobre o caso. Isso implica, em nossa opinião, uma decisão

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diferida no tempo. Os atuais ministros jogam a decisão sobre qual é a ratio decidendique prevalecerá para o futuro, para outros tribunais e juízes. As diferentes rationes pro-duzidas são elementos persuasivos para a argumentação de futuras decisões. Essaforma de votação possibilita um entendimento a ser formado ao longo do tempo.

A falta de clareza de uma decisão (quando não se consegue extrair uma ratio deci-dendi do Tribunal ou do voto), por vezes, constitui uma maneira de decidir de maneirainformal, evitando formar um precedente do Tribunal que provoque consequênciasindesejáveis em casos de grande repercussão; a pluralidade de rationes, por vezes, jogapara o tempo futuro a decisão sobre qual linha argumentativa deve prevalecer.

Em cortes supremas de outros países, também está presente a questão da coerênciano tempo, embora haja uma diferença clara. Nessas cortes, o que possibilita na decisãouma mudança de entendimento futura ou a formação de uma nova ratio decidendi é ovoto dissidente ou concorrente, em contraposição à ratio decidendi do Tribunal, que seencontra no acórdão único. Tais votos têm o potencial de se tornarem rationes de deci-sões futuras. Funcionam como orientações da própria corte de outras possíveis formasde decidir o mesmo caso e fundamentá-lo. No caso do STF, por não haver um textoúnico de seus acórdãos e, sim, uma sucessão de votos, é possível que a decisão de umcaso produza múltiplas rationes, que poderão influenciar a decisão de casos futuros. Odesenho institucional do STF favorece, em nossa opinião, a formação de ratio decidendide cada ministro, e não da corte, mas isso não necessariamente é algo ruim.

3 POTENCIAL DEMOCRÁTICO DO PROCESSO DECISÓRIO DOSUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DE UMA CULTURA DE PRECEDENTESNO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIROA particularidade do processo decisório do STF não implica necessariamente em umdeficit de legitimidade. Podemos especular um potencial democrático do mesmo emdeterminados casos. Quando a decisão é composta por múltiplas rationes, isso podeindicar que diferentes argumentos foram representados por ela. Argumentos que tal-vez tenham sido levantados na esfera pública, por meio do debate promovido pelotrâmite do caso no STF.31

Há potencial democrático também quando a decisão sobre a ratio prevalecente éjogada para uma construção futura, pois isso possibilita a inclusão de novos atores noprocesso decisório.32 Não apenas os próprios ministros, mas outros juízes, advoga-dos e a própria sociedade, podem influenciar na escolha da ratio decidendiprevalecente. Isso pode ser particularmente relevante em casos de alto impactosocial ou com bastante repercussão na mídia, possibilitando ampla participação naconstrução da argumentação e interpretação dos ministros e do STF.

Essa potencialidade só seria factível na medida em que houvesse uma cultura derespeito aos precedentes no sistema jurídico brasileiro. De nada serve identificar que

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há um ponto de interpretação em disputa – em que falta uma ratio decidendi prevalecen-te –, buscar participar e influenciar a formação desta ratio, se não houver depois umreconhecimento pelos demais tribunais de que aquela decisão serve como precedente.

Com isso, não queremos dizer que esta decisão será estritamente vinculante,mas, sim, que seria um elemento persuasivo importante na argumentação dos demaisjuízes, com o qual teriam de dialogar, interpretar criativamente e, eventualmente, seafastar de maneira justificada, formando um novo entendimento.

Segundo Dworkin, o autor envolvido na elaboração de um romance em cadeiadeve considerar a continuidade do romance, e não um novo começo a cada capítulo.Ao detalhar o processo de interpretação, há duas dimensões às quais sua interpreta-ção será submetida à prova. A primeira é a da adequação, em que o intérprete nãopode adotar uma interpretação que acredite representar sua leitura individual daobra – à qual nenhum outro autor poderia chegar – fugindo à própria figura de umromancista em cadeia, preocupado com uma interpretação que faça o texto fluircomo um todo. A segunda dimensão é a escolha entre as interpretações adequadasdaquela que se ajusta melhor à obra em desenvolvimento como um todo.33 Essasdimensões devem ser levadas em consideração pelo(s) autor(es) em todas as etapasda obra, do primeiro ao último capítulo do romance.

Em um sistema jurídico em que há respeito aos precedentes, pode-se identificarum processo contínuo de julgamento, um romance em cadeia. As decisões a partirde um contexto histórico não são dadas de maneira pontual apenas para se resolverum único caso concreto. São consideradas no tempo. Também por isso é que busca-mos uma definição mais ampla de precedentes, como sendo o diálogo fundamentadocom decisões anteriores.

A própria participação reiterada nesse processo de disputa entre interpretaçõespossíveis pode acarretar uma cultura de respeito aos precedentes. À medida que dife-rentes atores enxergarem o STF como um fórum de disputa de interpretações, emque direitos são potencialmente criados ou reconhecidos, e utilizarem as decisõesobtidas em outros fóruns, pode-se criar uma cultura de precedentes no sistema jurí-dico brasileiro. Quando esses outros atores identificarem um ponto positivo na ratiodecidendi formada, poderão constituir um elemento de controle social sobre a inter-pretação e aplicação desta ratio em casos futuros. Identificamos, portanto, umpotencial democrático, que é o controle social sobre o processo de interpretação eaplicação do STF, na medida em que haja uma cultura de respeito aos precedentes.

Em resumo, com decisões claras, nas quais se pode extrair a ratio decidendi, sejado voto, seja do Tribunal, há maior transparência, accountability, e melhor diálogocom a sociedade.34 O ganho com uma cultura de respeito aos precedentes em queestá presente a noção de romance em cadeia, por sua vez, é a possibilidade de umcontrole social, uma incidência estratégica de longo prazo, sobre os precedentes for-mados pelo Tribunal.

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Este artigo, não conclui que, necessariamente, o processo decisório do STF implicaa falta de uma cultura de precedentes. Tampouco a reforma do regulamento do Tribunal,transformando o processo decisório em uma esfera de deliberação e consenso entre osministros seria a única solução para a instauração dessa cultura de precedentes.

Sem dúvida, publicizar o processo pelo qual os ministros decidem pode provocaruma discussão pública sobre o procedimento, sobre a instituição, e não apenas sobre oscasos concretos. Abrir essa margem de deliberação pública sobre o desenho do Tribunalé importante, até mesmo para que todas essas transformações institucionais pelas quaiso STF tem passado recentemente – que tendem a uma concentração de poderes e a um“ativismo político” – não sejam fruto apenas de onze ministros, e não passem em bran-cas nuvens, sem controle social.

Podemos, inclusive, especular potencialidades democráticas na forma atual em queo Tribunal está estruturado, mas isso depende de uma mudança na cultura jurídica,rumo a um respeito maior aos precedentes do STF e maior controle social sobre comoo STF decide.

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NOTAS

1 Agradecemos os comentários e críticas apresentados a uma versão preliminar deste artigo pelos professoresDiogo R. Coutinho e Virgílio Afonso da Silva, ambos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e ao GrupoExtramuros da Sociedade Brasileira de Direito Público, no qual foram gestadas inúmeras reflexões aqui presentes e pude-mos discutir uma versão preliminar deste texto. Agradecemos, ainda, aos integrantes do Núcleo Direito e Democracia doCentro Brasileiro de Análises e Planejamento (Cebrap) e do grupo de trabalho “Controles democráticos e instituiçõespolíticas” do 32º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), emespecial a Rogério Bastos Arantes e Adrián Gurza Lavalle. Agradecemos a Ben-Hur Belmonte Neto pela revisão e pelassugestões. As eventuais incorreções são de inteira responsabilidade das autoras.

2 Número que toma por base os dados divulgados pelo próprio STF em seu site. Por ano, em média, o STF temdecidido em torno de cem mil casos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=esta-tistica&pagina=movimentoProcessual>.

3 O mesmo tipo de inclusão se deu na decisão envolvendo a reserva indígena Raposa Serra do Sol (PET 3.388).Dessa vez as condições impostas pelos ministros (dezenove ao todo) fazem parte da decisão final majoritária.

4 Utilizaremos ao longo deste artigo um conceito amplo de ratio decidendi, definição dada por MacCormick:“[Ratio decidendi] is a ruling expressly or implicitly given by a judge which is sufficient to settle a point of law put in issue bythe parties’ argument in a case, being a point in which a ruling was necessary to his justification (or one of the alternative justi-fications) of the decision of the case”. MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Eds. Interpreting Precedents. Aldershot:Dartmouth, 1997.

: ARTIGO APROVADO (15/06/2009) : RECEBIDO EM 03/04/2009

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5 ADI n. 1.969.

6 Apesar de nove ministros terem votado na ADI n. 1.969, apenas sete apresentaram fundamentações próprias. Aanálise dos argumentos a seguir faz-se com referência a esses sete votos. Consideramos que a fundamentação dos votosdas ministras Ellen Gracie e Carmen Lúcia segue integralmente o voto do relator.

7 Decreto n. 20.098 de 15/03/1999.

8 Artigo 5º, XVI, da Constituição Federal: “XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locaisabertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocadapara o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

9 Ao que parece, ele admite a possibilidade de regulamentação dos elementos já presentes no inciso. A questão ésaber se o legislador pode criar novas limitações. Isso não fica claro, pois ele acaba fundamentando seu voto pelo voto dorelator, que admite restrições desde que não desproporcionais.

10 Os ministros Nelson Jobim e Carlos Velloso encontram-se nos dois grupos. Isso porque a interpretação acercade qual seria o problema central identificado em cada voto depende do modo como esses problemas são apresentadospelos próprios ministros. Nos dois casos comentados neste artigo, os ministros afirmam, em momentos diferentes, queessas são as duas questões centrais a serem enfrentadas pelo STF.

11 Como se pode observar, o agrupamento dos ministros não reflete uma uniformidade no tipo de resposta dadaao caso em julgamento. Aqueles que identificam o mesmo problema não votam, necessariamente, em um mesmo senti-do, assim como os que têm a mesma decisão final não identificaram, necessariamente, problemas semelhantes.

12 Essa pluralidade de leituras pode até ser considerada reflexo do influxo de diferentes demandas de interpreta-ção e construção de conceitos por parte da esfera pública no processo decisório do STF, o que seria algo positivo emtermos de legitimidade democrática das decisões do Tribunal. Sobre o caso Ellwanger: “O que se presenciou, naquelaslongas sessões de julgamento, foi, diante da abertura de um campo de indeterminação no Direito, a disputa pela fixaçãodo sentido e do alcance de uma norma, a concorrência de diversos argumentos dogmaticamente aceitáveis e as diversaspossibilidades de interpretação de um mesmo dispositivo legal que, muito provavelmente, expressavam opiniões que cir-culavam na esfera pública. Evidentemente, para traçar o caminho desses argumentos da sociedade até o Poder Judiciário,seria preciso realizar pesquisas empíricas”. Rodriguez, Püschel e Machado, mimeo, 2006.

13 Aqui, podemos identificar dois tipos de influências que um precedente pode gerar em decisões futuras. Rationesmuito abstratas, que se resumem, por exemplo, a afirmar a preponderância de um princípio jurídico em relação a outro,em um determinado tipo de situação, pode ser considerada uma ratio abrangente, pois terá a capacidade de influenciarum grande número de casos futuros. Rationes mais específicas, que se referem mais precisamente a determinados tiposde situações, e acabam por exigir diversas condicionantes para que possa ser aplicada em casos futuros. No entanto, ograu de persuasão, ou de força normativa, que cada uma dessas rationes terá será inverso ao seu grau de amplitude. Ouseja, uma ratio genérica, ampla, tem a capacidade de servir de parâmetro de julgamento de um número maior de casos,mas, ao mesmo tempo, seu poder de persuasão com relação a esses casos será mais fraco, e mais facilmente se justificaa sua não aplicação.

14 A ação direta de inconstitucionalidade 2591-ED/DF foi julgada improcedente pelos ministros pela maioria denove votos a dois.

15 Os embargos servem para esclarecer algum ponto da decisão considerado obscuro, contraditório, omisso ouduvidoso. No caso em questão, se pretendia somente que o acórdão do julgamento ficasse mais claro, não que o julga-mento fosse modificado. No entanto, a decisão dos embargos de declaração foi unânime pela improcedência total da açãodireta de inconstitucionalidade, em contraposição à ementa redigida pelo ministro relator Eros Grau, pela procedênciaparcial da ação.

16 O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) visa reequilibrar interesses nas relações contratuais, demodo a evitar que a posição menos favorecida do consumidor, em comparação aos fornecedores ou prestadores de servi-ços que com ele contratam, resultasse em abuso por parte destes em detrimento dos consumidores. A Súmula 297 doSuperior Tribunal de Justiça de 12/05/2004 reconheceu aplicação do CDC a instituições financeiras.

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17 Transparece essa preocupação na petição inicial, notadamente no instante em que ataca a inadequação doCDC às relações que ocorrem no Sistema Financeiro, pois o CDC, em seu art. 51, permite a revisão judicial de umcontrato quando este se torne excessivamente oneroso ao devedor, entretanto, sem garantir, conforme faz o CódigoCivil, o equilíbrio das prestações entre as partes. A caracterização desse tópico, como o cerne do debate, tambémpode ser encontrada no Parecer do Procurador-Geral da República, que opinou pelo provimento parcial da ação.

18 Eros Grau considera que todos os ministros concordam com a exceção à aplicação do CDC por ele preconi-zada, ao passo que nenhum dos ministros evidenciou efetivamente essa posição: “Evoluo no sentido de acolher, porquechegamos ao mesmo resultado, mas, talvez, de modo mais efetivo”; “Julgo improcedente. Chegamos com isso a um consenso;mais uma vez o colegiado manifesta sua sabedoria e prudência”; “Nem mesmo a circunstância de meu voto original tersido redesenhado no correr da sessão de julgamento ensejaria qualquer dúvida” (grifos no original). No entanto, oministro é confrontado pelo colega Sepúlveda Pertence: “A unanimidade vai do inciso III da ementa até a declaraçãoexpletiva de que o preceito vinculado no art. 3, § 2, do CDC deve ser interpretado em coerência com a constituição.A partir daí há uma dispersão de fundamentos entre os votos proferidos”.

19 “A nova ementa será aquela consubstanciadora da síntese do julgamento de hoje”, ministro Celso de Mello.

20 O ministro Eros Grau, por exemplo, que havia votado pela procedência parcial da ação, vota pela totalimprocedência da mesma. O julgamento da Adin teve o placar de nove votos a dois, ao passo que os embargos foramjulgados em decisão unânime pela total improcedência da ação sem interpretação conforme a constituição.

21 Trata-se de uma estratégia informal de decisão do STF, para os casos em que uma decisão final de méri-to, especialmente sobre controle concentrado de constitucionalidade, que geraria efeitos erga omnes, e poderiaprovocar amplas consequências políticas ou econômicas negativas. Isso viabiliza decisões finais de mérito sem queessa decisão acarretasse graves inconvenientes. Outra estratégia informal de decisão seria o adiamento de deci-sões finais de mérito, até que se consume ou se acomode uma situação de fato, que faça a ação perder seu objeto.Como essa estratégia informal leva, via de regra, ao arquivamento da ação, ela permite ao STF resolver casos difí-ceis sem criar precedentes que comprometeriam a coerência da ordem jurídica e da jurisprudência do Tribunal(ROCHA, 2004).

22 As decisões ocorridas em uma mesma sessão plenária (03/12/2008) ainda não foram publicadas integral-mente no site do STF (RE 349703, RE 466343 e HC 87585). Mesmo antes da decisão final, o posicionamentoapresentado pela maioria dos ministros nesses casos já era utilizado como precedente da corte. Essa maioria justifi-cou a concessão de liberdade em sede de habeas corpus pelo STF em vários casos. Nesse período, a maioria representouuma ratio decidendi em formação do Tribunal e produziu efeitos, mesmo sem a ação ter sido finalizada, servindo comoum “precedente” para outras decisões do tribunal.

23 A análise será feita com base na íntegra de dois votos, já publicados, dos ministros Celso de Mello e GilmarMendes. Não tivemos acesso a todos os votos proferidos, mas decidimos manter a análise dos casos, pois esses votossão ilustrativos da formação de rationes diversas entre os ministros, e da possibilidade de jogar para o tempo futuroqual delas prevalecerá. Informações adicionais serão fornecidas com base em notícias disponíveis no próprio STF eem sites especializados em informação jurídica.

24 O ministro Celso de Mello, em casos anteriores, considerava que: “A prisão civil não transgride aConstituição, nem ofende o sistema de proteção instituído pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pactode San José da Costa Rica, de 1969)”. “A convenção ou tratado internacional que se oponha ou restrinja o conteúdode aplicação da lei ou altere lei fundamental é considerado inválido” (Habeas corpus 81319). (Notícia STF. “Pleno rei-tera entendimento de que depositário infiel será preso quando não pagar dívida”, 07/02/2002).

25 “Entendo que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos DireitosCivis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art.7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especialdesses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estan-do abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratadosinternacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucio-nal com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação” (voto ministro Gilmar Mendes - RE n.466.343/SP).

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26 Gilmar Mendes reconheceu uma ratio decidendi vencida do ministro Sepúlveda Pertence, “essa tese foi aventada,em sessão de 29/03/2000, no julgamento do RHC n. 79.785-RJ, pelo voto do Eminente Relator, Min. SepúlvedaPertence, que acenou com a possibilidade da consideração dos tratados sobre direitos humanos como documentos supra-legais” (voto ministro Gilmar Mendes - RE n. 466.343/SP).

27 “É que, como já referido, a superveniência, em dezembro de 2004, da EC n. 45 introduziu um dado juridica-mente relevante, apto a viabilizar a reelaboração, por esta Suprema Corte, de sua visão em torno da posição jurídica queos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos assumem no plano do ordenamento positivo domésticodo Brasil. Vale dizer, essa nova percepção crítica, legitimada pelo advento da EC n.. 45/2004 – que introduziu um novoparadigma no cenário nacional – estimula novas reflexões, por parte do STF, em torno das relações da ordem jurídicainterna brasileira com o direito internacional em matéria de direitos humanos” (voto ministro Celso de Mello – Habeascorpus 87.585-8 TO).

28 “É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais de direitoshumanos celebradas antes do advento da EC n. 45/2004, pois, quanto a elas, incide o § 2º do art. 5º da Constituição, quelhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se subsumam à noçãomesma de bloco de constitucionalidade” (voto ministro Celso de Mello – Habeas corpus 87.585-8 TO).

29 “De qualquer forma, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o Pacto Internacional dosDireitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, além deoutros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, talcomo definido pela EC n. 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional” (voto ministro Gilmar Mendes - REn. 466.343/SP).

30 De acordo com notícia publicada pelo STF, à tese da supralegalidade, defendida pelo ministro Gilmar Mendes,aderiram os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito, e à tese da constitucio-nalidade dos tratados internacionais de direitos humanos do ministro Celso de Mello, os ministros Cezar Peluso, ErosGrau e Ellen Gracie. Notícia STF. “STF restringe a prisão civil por dívida a inadimplente de pensão alimentícia,03/12/2008. O placar da do STF, especificamente com relação a este tema, portanto, foi de cinco contra quatro.

31 Os argumentos plurais presentes na decisão do STF podem ser decorrentes inclusive da participação direta dediferentes atores no próprio processo decisório. Alguns mecanismos de participação estão previstos em ações de contro-le concentrado de constitucionalidade, como os amici curiae e as audiências públicas. Os atores que se valem dessesmecanismos procuram influenciar a ratio decidendi prevalecente do tribunal naquele caso. O objetivo dessa participação éa formação de precedentes para casos futuros, como em casos de grande impacto social ou repercussão na mídia, comoos que atualmente tramitam no STF sobre o uso de células-tronco para pesquisas científicas e sobre as cotas para negros,indígenas e pobres nas universidades.

32 Não podemos ignorar, no entanto, que em muitos casos, a decisão é jogada para o futuro como uma maneira dotribunal não participar da decisão do conflito, justamente para não formar um precedente (ROCHA, 2004).

33 Dworkin, 2003, p. 277-278.

34 “Todo depende de la concepción de sentencia que escojamos como la más interesante y convincente. Una concepción desentencia que denomino formalista propendería por la expedición de sentencias aptas para la solución exclusiva de los litigios, parahacer ‘justicia en el caso concreto’. Una sentencia formalista entonces no consideraría significativos valores como la coherencia, laclaridad y la buena citación. Por el contrario, una sentencia que se rija por una concepción axiológica superará la egoísta funciónde resolución de litigios particulares. Una sentencia antiformalista o axiológica, también se preocupa porque su escritura conduz-ca a una comprensión clara de todos os argumentos, tendrá un hilo conductor al mejor estilo de los dramas modernos, provocará lasensación de que se lee algo más que el derecho esotérico de los especialistas y estructura responderá a criterios de coherencia, cla-ridad y eficacia del lenguaje. Así el final de la sentencia, es decir la solución del caso, será una consecuencia lógica del nudo y elclímax expuestos en las motivaciones de los jueces. La jurisprudencia así, quizá se convierta en un invaluable repositorio de expe-riencia normativa” (Lopez Medina e Gordillo, 2002, p. 45-46).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ESCREVENDO UM ROMANCE, PRIMEIRO CAPÍTULO: PRECEDENTES E PROCESSO DECISÓRIO NO STF:044

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DIREITO PELA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE

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BRASILEIRO DE ANÁLISES E PLANEJAMENTO (CEBRAP)

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