ei, professor, vem cá e lê esse artigo! variação linguística do

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paginas.ufrgs.br/revistabemlegal REVISTA BEM LEGAL • Porto Alegre • v. 2 • nº 1 • 2012 82 Ei, professor, vem cá e lê esse artigo! Variação linguística do imperativo no ensino de português como língua adicional 1 Colega professor, antes de iniciar o artigo, convidamos você a um exercício em dois tempos: 1) Abra (abre?) uma gramática ou livro didático de português e procure o capítulo que trata do modo imperativo. Você provavelmente vai encontrar algo parecido com o quadro abaixo: Tu anda Você ande Nós andemos Vós andai Vocês andem QUADRO A Se encontrou um quadro como esse, observe se também é apresentado um perfeito paralelismo entre verbos e os pronomes tu, você, nós, vós, vocês, provavelmente sim. Se você NÃO encontrou algo parecido com o quadro A, por favor, nos escreva um e- mail informando o título, o nome do(s) autor(es) e da livraria onde podemos comprar essas pérolas. 1 Artigo elaborado a partir dos resultados da pesquisa Modo imperativo: uma análise da variação das formas indicativas e subjuntivas, empreendida na cadeira Linguística Aplicada ao Ensino de Português como Língua Adicional. A disciplina, eletiva do currículo de Licenciatura em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é ministrada pelos professores Margarete Schlatter e Pedro Garcez.

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paginas.ufrgs.br/revistabemlegal REVISTA BEM LEGAL • Porto Alegre • v. 2 • nº 1 • 2012 82

Ei, professor, vem cá e lê esse artigo!

Variação linguística do imperativo no ensino de português como língua adicional1

Colega professor, antes de iniciar o artigo, convidamos você a um

exercício em dois tempos:

1) Abra (abre?) uma gramática ou livro didático de português e procure o capítulo

que trata do modo imperativo. Você provavelmente vai encontrar algo

parecido com o quadro abaixo:

Tu anda

Você ande

Nós andemos

Vós andai

Vocês andem

QUADRO A

Se encontrou um quadro como esse, observe se também é apresentado um perfeito

paralelismo entre verbos e os pronomes tu, você, nós, vós, vocês, provavelmente sim.

Se você NÃO encontrou algo parecido com o quadro A, por favor, nos escreva um e-

mail informando o título, o nome do(s) autor(es) e da livraria onde podemos comprar

essas pérolas. 1 Artigo elaborado a partir dos resultados da pesquisa Modo imperativo: uma análise da variação das

formas indicativas e subjuntivas, empreendida na cadeira Linguística Aplicada ao Ensino de Português

como Língua Adicional. A disciplina, eletiva do currículo de Licenciatura em Letras da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é ministrada pelos professores Margarete Schlatter e Pedro

Garcez.

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2) Agora assista a programas de tv (novelas, talk-shows, programas de entrevistas,

comerciais, etc.) e dê uma olhada nos anúncios publicitários. Também preste atenção

na sua fala ou na fala das pessoas com quem você convive, observando se as

informações do quadro A se confirmam nos usos reais do português brasileiro que

você analisou.

Se você encontrou o mesmo paralelismo do quadro A no uso concreto do

português, por favor, nos envie detalhes de suas análises - nomes dos programas de tv,

região onde vive e nomes das pessoas, cuja fala analisou. Mas, se você se deparou com

uma grande incoerência entre o quadro/descrição do uso do imperativo e os usos

reais, bem-vindo ao clube dos que perceberam o enorme abismo que existe entre

muitos materiais didáticos e a realidade linguística do Brasil.

Não é nosso intuito convencer você a abandonar gramáticas e livros

didáticos. Temos objetivos mais nobres: (1) discutir que, na maioria das vezes, embora

embasados em estudos sólidos, muitos instrumentos de ensino não dão conta da

realidade do português brasileiro; (2) propor abordagens reflexivas e críticas de ensino

do Modo Imperativo, a partir de um quadro sistemático alternativo dos usos do

imperativo e de uma unidade didática.

Nossas propostas partem da argumentação desenvolvida por Maria Marta

Scherre no texto A norma do imperativo e o imperativo da norma2. Pesquisa que,

resumindo, aponta para o fato de que o uso do imperativo na sua forma indicativa

(deixa/recebe/abre/dá/diz/vai), associadas ao pronome tu no quadro A, dominam

grande parte da realidade da fala do Brasil, mais especificamente nas regiões Sudeste,

Sul e Centro-Oeste; e o uso do imperativo na sua forma subjuntiva

(deixe/receba/abra/dê/diga/vá), associadas ao pronome você no quadro A, abundam

2 Publicado no livro Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito (2005).

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em quase 100% dos textos escritos, independentemente da região, salvo raras e

especiais exceções.3

Após investirmos em uma pesquisa4 por diversos textos, como novelas de

televisão e propagandas, chegamos às mesmas conclusões que Scherre:

1. Na fala das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste

1.1. Não existe paralelismo perfeito entre verbos e pronomes, ou seja, as

formas verbais do imperativo não são mais associadas ao tu e ao você. Assim,

contrariando o quadro A e os de muitas gramáticas e livros didáticos, nasce o quadro

B:

3 Encontramos usos do Imperativo formado pelo subjuntivo na língua falada na telenovela Malhação,

quando os personagens falavam como “avô”. 4 O livro Nada na Lingua é por acaso de Marcos Bagno é o grande responsável por despertar nosso

interesse para esse caso de variação linguística.

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QUADRO B

2. Em textos escritos

2.1. Normalmente, ou encontramos o paralelismo entre verbos e formas,

segundo o uso das pessoas tu e você, ou se assume que a forma da escrita é a

subjuntiva (abra, analise, discuta), independentemente do uso de tu e você. No

entanto, podemos encontrar casos em que os textos querem reproduzir a oralidade

ou, como em anúncios publicitários para evitar ambiguidades quanto à ideia de

“ordem”. Por exemplo, se o anúncio:

fosse escrito com outra forma verbal, ou seja, “Bebe Coca-Cola”, poderia gerar

ambiguidade; alguém poderia perguntar: Quem bebe Coca-Cola? Quando existe

ausência de tu ou você só formas como beba, coma e compre garantem uma leitura

“imperativa”.

Então, parece que, afinal, o que temos que discutir com nossos alunos é: Qual forma

verbal usar? Quando usar? Onde e por que usar? E aí que o QUADRO B se torna muito

mais útil que o QUADRO A, não? Mas, simplesmente apresentar o QUADRO B nao

adianta. Vamos então, pelo uso de textos autênticos, tentar levar à sala de aula a

variedade do português brasileiro, buscando pensar a língua como algo que só adquire

significado no uso. Assim, nosso aluno terá condições de perceber que os diferentes

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usos que se fazem da língua, as variações linguísticas, interferem na construção dos

sentidos. Propomos então uma UNIDADE DIDÁTICA5 (dê uma boa olhada):

Unidade didática: Publicidade Responsável

Material elaborado pelos professores Ana Paula Vial, Bruno Coelho, Fabíola Stein e

Larissa Goulart

PUBLICIDADE RESPONSÁVEL?

1. Converse com seus colegas:

1.1 Você consome bebidas alcoólicas?

1.2. As pessoas do seu país consomem esse tipo de bebida? Os maiores “bebedores”

são jovens ou adultos?

1.3. Há muitas propagandas de bebidas alcoólicas nos meios de comunicação do seu

país? Onde essas propagandas são veiculadas (rádio, televisão, jornais, revistas, etc.)?

1.4. Que elementos a publicidade de bebidas alcoólicas costuma usar (mulheres e

homens bonitos, carros, momentos de felicidade, etc.)?

1.5. Você já viu alguma propaganda de bebida alcoólica no Brasil? De qual bebida

(vinho, cerveja, destilados, etc.)? Essas propagandas utilizaram algum dos elementos

discutidos em 1.4?

2. Agora você vai ler o texto “Publicidade de bebidas alcoólicas”, publicado no blog

Marketing News (http://vvveronicagomes.blogspot.com.br/2011/02/publicidade-de-

bebidas-alcoolicas.html). Após a leitura, discuta com seus colegas as questões

propostas:

5 Embora ambas, unidade didática e sistematização do imperativo, tenham sido criadas para aplicação no

ensino de português para falantes de outras línguas de nível Intermediário I, os professores interessados

podem utilizar nossas propostas em diferentes contextos de ensino, adaptando-as às suas realidades. A

unidade tem como objetivo principal fazer com que os alunos pratiquem ações concretas, utilizando

recursos do português.

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Glossário:

Nocivo: 1 Que causa dano. 2 Pernicioso, prejudicial.

Subliminar: O mesmo que subliminal. Propaganda subliminar: diz-se daquela que

utiliza processos subconscientes.

Fálico: Que se refere ao falo (pênis) ou ao seu culto.

Liminar: Ordem judicial provisória.

Endossar: Exprimir aprovação ou aceitação; aprovar, apoiar, suportar.

Trakinas: Marca de biscoitos da empresa Kraft Foods muita famosa no Brasil.

2.1. Você acha que os adolescentes são mais facilmente “atingidos” pela publicidade

de bebidas? Por quê? Quais motivos a autora atribui a vulnerabilidade dos jovens?

Você concorda?

2.2. A presença de artistas famosos pode influenciar o aumento de consumo de álcool?

Por quê?

2.3. Você concorda com a opinião de Marcel Sacco, diretor de marketing do grupo

Schincariol? Se ele não trabalhasse numa empresa que comercializa bebidas, a opinião

poderia ser diferente?

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2.4. Na sua opinião, que medidas são necessárias para afastar os jovens do consumo

excessivo do álcool?

3. Leia/assista a algumas propagandas de famosas marcas de cerveja. Enquanto

lê/assiste preencha o quadro, especificando os recursos visuais e linguísticos utilizados:

(A)

CERVEJA SKOL: O Sol fritando – Um por todos. Todos por um.

Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=JYPesSZzl1s&feature=relmfu

Argumento

O que conta o comercial? Qual a sua história?

Recursos visuais

Que elementos o comercial traz (mulheres e homens bonitos, jovens, adultos, velhos, crianças, carros,

coisas modernas, etc.)?

Recursos linguísticos

Quais modos e tempos verbais são utilizados? Os personagens utilizam o pronome “tu” ou “você”? Os

personagens usam gírias? Que outros recursos linguísticos você observou?

(B)

CERVEJA POLAR: Gaúcho sem modéstia

Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=0_x4O7ku7Ng

Argumento

O que conta o comercial? Qual a sua história?

Recursos visuais

Que elementos o comercial traz (mulheres e homens bonitos, jovens, adultos, velhos, crianças, carros,

coisas modernas, etc.)?

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Recursos linguísticos

Quais modos e tempos verbais são utilizados? Os personagens utilizam o pronome “tu” ou “você”? Os

personagens usam gírias? Que outros recursos linguísticos você observou?

(C)

CERVEJA SCHINCARIOL: Peça Schin

Anúncio disponível em: http://4.bp.blogspot.com/-iFh62kXNzAQ/TjgWtQH4wBI/AAAAAAAADQc/-

2jgCJ71544/s1600/schincariol+cartaz.jpg

Argumento

Que mensagem o anúncio veicula?

Recursos visuais

Que elementos o anúncio traz (mulheres e homens bonitos, jovens, adultos, velhos, crianças, carros,

coisas modernas, etc.)?

Recursos linguísticos

Quais modos e tempos verbais são utilizados? O texto apresenta o pronome “tu” ou “você”? Há uso de

gírias? Que outros recursos linguísticos você observou?

(D)

CERVEJA KAISER: Garanta a sua

Anúncio disponível em: http://www.s2.com.br/s2arquivos/457/Imagens/3692Image.jpg

Argumento

Que mensagem o anúncio veicula?

Recursos visuais

Que elementos o anúncio traz (mulheres e homens bonitos, jovens, adultos, velhos, crianças, carros,

coisas modernas, etc.)?

Recursos linguísticos

Quais modos e tempos verbais são utilizados? O texto apresenta o pronome “tu” ou “você”? Há uso de

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gírias? Que outros recursos linguísticos você observou?

3.2. Na sua opinião, os anúncios (A), (B), (C) e (D) têm o mesmo público-alvo?

Partilham o mesmo objetivo?

3.3. Você acha que os jovens poderiam ser facilmente influenciados por alguns deles?

Qual? Por quê?

3.4. Os recursos visuais usados nas propagandas ajudam a promover as marcas? E os

linguísticos?

3.5. Alguma das propagandas mostra os malefícios que o abuso de álcool causa à

saúde?

3.6. Se você fosse responsável por uma dessas campanhas publicitárias, como

construiria as propagandas? Qual seria seu objetivo? Quem seria seu público-alvo?

Veicularia seu trabalho na TV, no rádio ou em jornais e revistas? Que recursos visuais

utilizaria? De quais recursos linguísticos lançaria mão?

AGORA É A SUA VEZ

Você e mais dois colegas compõem uma equipe de publicidade. Uma grande empresa

cervejeira contratou você para elaborar a nova campanha publicitária a ser veiculada

em TV e jornais, com o principal objetivo de promover a marca, alavancar as vendas e

estimular o consumo consciente de bebidas alcoólicas por parte dos jovens.

Para cumprir a missão, o grupo deverá seguir o seguinte roteiro:

a) Selecionar recursos visuais;

b) Selecionar recursos linguísticos;

c) Pesquisar benefícios e/ou malefícios do álcool à saúde que podem ser incluídos na

publicidade;

d) Elaborar roteiro do comercial televisivo;

e) Sistematizar as mensagens que o anúncio veiculará

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O caso do imperativo ilustra muito bem os dilemas contra os quais alguns

professores que querem trabalhar com a língua em uso além do material didático

enfrentam. No entanto, existem à disposição inúmeras pesquisas que podem auxiliar

nossa prática docente. Acreditamos que é tarefa do professor munir os alunos de

recursos e apontar as consequências desta ou daquela escolha de uso da língua.

Neste artigo transformamos uma dessas pesquisas sobre a língua em uma

unidade didática que pode ser usada em qualquer sala de aula. Também, tentamos

mostrar que o caminho para se levar a língua em uso para sala de aula pode ser mais

trabalhoso, mas também muito recompensador. Fazer o aluno entender não só as

regras que estão postas na gramática, mas também refletir sobre a língua que o cerca

não tem preço.

Referências

CLARK, H. Language use. In: H. Clark, Using Language. Cambrige University Press, 1996.

p. 3-25 [Clark, H. (2000). O uso da linguagem. Cadernos de tradução do Instituto de

Letras UFRGS, 9: 49-71.]

SCHERRE, Marta. A norma do imperativo e o imperativo da norma. In: Doa-se lindos

filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola

Editorial, 2005.

SCHERRE, Maria Marta Pereira. Aspectos sincrônicos e diacrônicos do imperativo

gramatical no português brasileiro. Alfa, 51 (1): 189-222, 2007a.

SCHERRE, Maria Marta Pereira, NARO, Anthony J, CARDOSO, Caroline Rodrigues. O

papel do tipo de verbo na concordância verbal no português brasileiro. DELTA. vol. 23,

nº especial, em homenagem a Lúcia Lobato. 2007b. p. 283-317.

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Ana Paula Seixas Vial - Graduanda em Letras - Português/Inglês da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atualmente é

bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) Letras.

Larissa Goulart da Silva - Graduanda em Letras - Português/Inglês da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atualmente é

bolsista de Iniciação Científica.

Fabíola Stein - Graduanda em Letras – Português/Espanhol da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atualmente é

bolsista de Iniciação Científica, professora de Português para

Estrangeiros na UFRGS.

Bruno Coelho Rodrigues - Graduando em Letras –

Português/Espanhol da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) e atualmente é professor de Português para Estrangeiros na

UFRGS.