edmund leach

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EDMUND LEACH , AS IDEIAS DE' I .LEVI-STRAUSS Tradução de ÁLVARO CABRAL EDITORA CULTRIX SÃO PAULO

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Page 1: Edmund Leach

EDMUND LEACH

,AS IDEIAS DE'I

.LEVI-STRAUSS

Tradução deÁLVARO CABRAL

EDITORA CULTRIXSÃO PAULO

Page 2: Edmund Leach

Título do original:

LÉVI-STRAUSS

Publicado na série Fontana M odern M asters,dirigida por Frank Kermode

Copyright © Edmund Leach, 1970

2." edição

A primeira edição deste livro foi co-editada com aEditora da Universidade de São Paulo

MCMLXXVII

Direitos de tradução para a língua portuguesaadquiridos com exclusividade pela

EDITORA CUL TRIX LTDA.Itll' (:0111 f·llll'il Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo,'1"' • 11 f' , I propri dade literária desta tradução

111I1'1. 01 110 Um ilr, nt» " ", ttrmll

íNDICE

1. O Homem2. Ostras, Salmão Defumado e Queijo Stilton3. O Animal Humano e Seus Símbolos4. A Estrutura do Mito5 . Palavras e Coisas6. As Estruturas Elementares do Parentesco7. "Máquinas Para a Supressão do Tempo"NotasReferênciasLeituras AdicionaisAgradecimentos

92337537989105113115118119

Page 3: Edmund Leach

1. O HOMEM

Claude Lévi-Strauss, Professor de Antropologia Social noCollêge de France, é, por opinião unânime, o mais notávelexpoente dessa particular atividade acadêmica que pode serencontrada em qualquer parte, fora do mundo de fala inglesa;mas os especialistas que a si próprios se intitulam antropólogossociais são de duas espécies. O protótipo da primeira espéciefoi Sir James Frazer (1854-1941), autor de The Golden Bough(O Ramo Dourado). Era um homem de monumental erudiçãoque não tinha um conhecimento direto da vida dos povos pri-mitivos a cujo respeito escreveu. Frazer esperava descobrirverdades fundamentais sobre a natureza da psicologia humanacomparando os detalhes da cultura humana num mundo obser-vado em vasta escala. O protótipo da segunda espécie foiBronislaw Malinowski (1884-1942), nascido na Polônia masnaturalizado inglês, o qual passou a maior parte de sua vidaacadêmica analisando os resultados das pesquisas que pessoal-mente realizara, num período de quatro anos, numa única eminúscula aldeia da longínqua Melanésia. O seu propósito eramostrar como essa exótica comunidade "funcionava" como umsistema social e como os seus membros individuais viviam suasvidas, do berço à sepultura. Malinowski estava mais interessadonas diferenças entre culturas humanas do que em sua seme-lhança global.

A maior parte dos que atualmente se intitulam antropólo-gos sociais, tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos,afirmam ser "funcionalistas"; de um modo geral, são antropó-logos no estilo e tradição de Malinowski. Em contraste, ClaudeLévi-Strauss é um antropólogo social na tradição de Frazer -mas não ao seu estilo. A sua preocupação básica consiste em

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estabelecer fatos que sejam verdadeiros a respeito de "a mentehumana", mais do que apurar a organização de qualquer socie-dade ou classe de sociedades. A diferença é fundamental.

No seu tempo, Malinowski gozou de três espécies de cele-bridade. O seu renome junto do grande público era o de umprofeta do amor livre. Embora insípidas pelos padrões moder-nos, as suas descrições das excentricidades sexuais dos nativosdas Trobriandes foram classificadas como algo que tocava asraias da pornografia. O entusiasmo quase apaixonado dos cole-gas de profissão assentava em outras bases: primeiro, a novidadedos seus métodos de pesquisa de campo, que hoje são univer-salmente imitados; e, segundo, os dogmas da sua marca especialde "funcionalismo", um estilo mecanístico e supersimplificado deteorização sociológica hoje encarado, de um modo geral, comum certo desdém.

O currículo de Lévi-Strauss tem sido muito diferente.Desde o início, foi sempre um verdadeiro intelectual-erudito, oscholar típico. Pondo de parte algumas fotografias cativantesde mulheres nuas da região amazônica, enfiadas no final deTristes Tropiques (Tristes Trópicos) (1955), absteve-se de re-correr a truques popularizantes do gênero que levou Malinows-ki a intitular uma de suas monografias das Trobriandes comoT he Sexual Lt]e 01 Savages (A Vida Sexual dos Selvagens).Pelos padrões de Malinowski, a pesquisa de campo de Lévi--Strauss é de uma qualidade apenas moderada. A característicamais destacada de seus escritos, em francês ou em inglês, éque são difíceis de entender; as suas teorias sociológicas com-binam uma desconcertante complexidade com uma esmagadoraerudição. Alguns leitores até suspeitam de que estão sendovítimas de um truque de malabarismo ou, por outras palavras,que estão sendo vigarizados. Ainda hoje, apesar do seu imensoprestígio, os críticos entre seus colegas profissionais superamem grande número os discípulos. Entretanto, a sua importânciaacadêmica é indiscutível. Lévi-Strauss é admirado não tantopela novidade de suas idéias como pela audaciosa originalidadecom que procura aplicá-Ias. Sugeriu novas maneiras de observarfatos conhecidos; o método é que é interessante, mais do queas conseqüências práticas do uso que lhe tem sido dado.

O método, como tal, é tanto lingüístico quanto antropo-lógico e despertou excitação entre muitos e diferentes setores

intelectuais, estudiosos da literatura, da política, da filosofiaantiga, da teologia e da arte. A finalidade deste livro é for~eceralgumas indicações sobre os motivos que concorreram para ISSO.

Mas, primeiro, devo declarar um preconceito pessoal.

Eu fui um discípulo de Malinowski e ainda sou, no fundo,um "funcionalista", conquanto reconheça as limitações da ~eonapeculiar a Malinowski. Embora tenha empregado, ocasional-mente, os métodos "estruturalistas" de Lévi-Strauss para escla-recer características particulares de determinados sistemas cultu-rais, a diferença entre a minha posição geral e a de Lévi-Straussé muito profunda. Essa diferença de ponto de vista certam~ntese manifestará ao longo das páginas que se seguem. A minhaprincipal tarefa é proceder a uma descrição do~ métodos e ,opi-niões de Lévi-Strauss, e não oferecer ao leitor comentanospessoais; mas não posso fingir que sou um observador neutroe desinteressado.

O meu interesse é pelas idéias de Lévi-Strauss e não pelasua biografia mas, como a sua bibliografia, a partir de 1936,já inclui dez livros e mais de 100 artigos substanciais, ?ão ?ádúvida de que tenho uma formidável tarefa pela frente. Ninguémpoderá analisar essa avalancha sem introduzir algumas distorçõ.ese eu vou tornar as coisas ainda piores ignorando a cronologia.Começarei pelo meio e dai trabalharei ora para trás, ora paradiante. Existe uma justificação pessoal para essa excentricidadeque precisa ser explicada.

Podemos considerar os escritos de Lévi-Strauss como umaestrela de três pontas irradiando em torno do livro autobiogr?-fico, etnográfico e itinerante Tristes Tropiques (195?). As trespontas da estrela seriam então rotuladas: (1),. ~eor!a de. p~:en-tesco, (2) lógica do mito e (3) teoria de classificação pt1mItI~a.Em minha opinião tendenciosa, a primeira destas, que é .tambema mais antiga, é a de menor importância. Isto é um )uízo. devalor de que o nosso autor não compartilha. Em seus escritosulteriores, Lévi-Strauss reporta-se freqüentemente aLes Struc-tures élémentaires de la parenté (As Estruturas Elementares doParentesco) (1949) como se esse livro fosse um marco deci~ivona história da antropologia social e, recentemente, ele. pub~lcouuma edição substancialmente revista (1967), a qual inclui um

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vigoroso e polêmico contra-ataque endereçado às opmioes da-queles admiradores ingleses que, como eu, se atreveram a sugerirque partes da sua teoria não se ajustam aos fatos.

Obviamente, um livro deste gênero não pode fornecer-meuma base a partir da qual se desenvolva um comentário com-preensivo sobre a atitude geral de Lévi-Strauss, Assim, deixá--lo-ei para o fim. Entrementes, necessitamos de uma orientaçãocronológica. O Quadro A fornece datas para uma série deeventos significativos.

Ano19081914-18

1927-32

1932-341934

1934-37

1934?

1936

1938-39

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a As fontes são várias; até 1941, a maioria das informações provémde Tristes 'Tropiques. O autor agradece ao Professor Lévi-Straussalgumas correções feitas no texto, tal corno foi originalmente redigido.

b Lévi-Strauss também recorda que, desde muito cedo, se interessaraintensamente pela geologia e que, no final da adolescência, desen-

1939-401941

1945

QUADRO A. Cronologia da Vida de Claude Léul-Strauss a

AcontecimentoNasce na Bélgica (Bruxelas).Vive com seus pais (o pai era um artista) nos arredores deVersalhes.Estudante na Universidade de Paris, onde se forma em Di-reito e faz concurso para professor de Filosofia. Suas leiturasincluíam as obras dos "mestres da Escola Francesa de Socio-logia" - presumivelmente, Saint Simon, Com te, Durkheime Mauss. b

Trabalha corno professor num lycée.Graças ao patrocínio de Celestin Bouglé, c Diretor da ÊcoleNormale Superieure, é-lhe oferecido um cargo de Professorde Sociologia na Universidade de São Paulo, Brasil.Professor de Sociologia da Universidade de São Paulo. d Du-rante esse período, parece ter voltado à França em numerosasocasiões. Realizou também várias visitas breves ao interiordo Brasil, para se dedicar a investigações etnográficas. Nofinal do período, totalizara uns cinco meses de experiênciasde campo.Lê em inglês Primitive Society (1920), de Lowie; foi o seuprimeiro contato com urna obra antropológica, escrita porum especialista na matéria. A tradução francesa do livro deLowie, por E. Metraux, só seria publicada em 1935.Primeira publicação antropológica: um artigo de 45 páginassobre a organização social dos índios Bororos.Tendo se demitido do serviço da Universidade de São Paulo,obteve apoio financeiro do Governo francês para urna expe-dição mais extensa ao Brasil Central. Os detalhes dessaexpedição são difíceis de determinar. Inicialmente, Lévi--Strauss teve dois companheiros científicos empenhados emoutras espécies de pesquisa. O grupo deixou sua base emCuiabá, em junho de 1938, e atingiu a confluência dos riosMadeira e Machado no fim desse ano. Segundo parece,

1946-471948

1949

1950

1950

19521953-601955

19581959

1960

1962196419671967

1968

estiveram em movimento o tempo quase todo. Tudo o queLévi-Strauss escreveu sobre os índios Nhambiquaras, do nortedo Mato Grosso, e Tupi-Kauahib, do Alto-Machado, pareceter sido baseado nessa experiência.Na França, em serviço militar.(Primavera) Viaja para Nova Iorque, via Martinica e PortoRico, para assumir o cargo na New School of Social Re-search, cargo esse que lhe foi arranjado por Robert Lowie,E. Metraux e Max Ascoli.Colabora com o artigo "L'analyse structurale en linguistiqueet en anthropologie" para Word: Journal of the LinguisticCircle of New York (revista fundada por Roman Jakobson eseus associados).Adido Cultural da França nos Estados Unidos.Publicação de La Vie familiale et sociale des lndiens Nham-biquara (Paris: Société des Américanistes).Publicação de Les Structures élémentaires de Ia parenté (1.aedição, Paris: Presses U niversitaires de France).Diretor de Estudos na Êcole Pratique des H autes Êtúdes,Universidade de Paris (Laboratório de Antropologia Social).Breve excursão para trabalho de campo em Chittagong, Pa-quistão Oriental.Publicação de Race and History (Paris: UNESCO).Secretário-Geral do Conselho Internacional de Ciências Sociais.Publicação de "The Structural Study of Myth", Journal ofAmerican Folklore (Vol. 68, n.? 270, págs. 428-44), e TristesT'ropiques (Paris: Plon).Publicação de Anthropologie Structurale (Paris: Plon).Nomeado para a cátedra de Antropologia Social no Collêg«de France.Publicação de "La Geste d'Asdiwal" (Annuaire de l'E.P.H.E.,s.a seção, Ciências Religiosas, 1958-59: Paris).Publicação de Le Totémisme aujourd'hui e La Pensée sauvage.Publicação de Mythologiques, Vol. I: Le Cru et le cuit.Publicação de Mythologiques, Vol. 11: Du Miei aux cendres.Publicação de Mythologiques, Vol. III: L'Origine des manie-res de table.Distinguido com a Medalha de Ouro do Centre National deIa Recherche Scientifique, "a mais alta distinção científicafrancesa".

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~into-me muito próximo de Sartre sempre que este se aplica, comIncomparável engenhosidade, a captar, em seu movimento dia-lético, uma experiência social passada ou presente, dentro danossa própria cultura (S. M. : 250) .

volveu um acentuado interesse, primeiro, pela Psicanálise e, depois,pelo Marxismo.

c Bouglé estivera anteriormente associado a Emile Durkheim e L' AnnéeSociologique. Por profissão acadêmica, ele era um filósofo mas asua reputação assenta num tratado sobre o Sistema Indiano de Castas,cuja primeira versão foi publicada em 1900. Bouglé nunca visitoua índia.

d A Universidade tinha sido fundada por iniciativa francesa e a missãodiplomática da França ainda estava preocupada com o recrutamentode pessoal docente. Lévi-Strauss afirma que causou alguma cons-ternação entre seus colegas franceses em virtude da sua atitude heré-tica em relação aos ensinamentos funcionalistas de Durkheim e deseu interesse pelos trabalhos dos etnólogos americanos Boas, Kroebere Lowie.

tinham relações comuns anteriores. Assim, Simone de Beauvoire Merleau Ponty foram ambos estudantes normalistas com Lé-vi-Strauss no Lycée J anson de Sailly (P. c. ). Artigos de Lévi--Strauss foram publicados amiúde na revista de Sartre Les T empsModernes mas, ao que parece, as relações pessoais entre os doishomens, por volta de 1955, estavam nitidamente tensas. EmTristes Tropiques, Lévi-Strauss comenta sobre o Existencialismoque:

Promover as preocupações particulares à categoria de problemasfilosóficos é perigoso e pode redundar numa espécie de filosofiade vendeuse (W. W.: 62).

Um outro fato biográfico que se reflete em numerosos es-critos de Lévi-Strauss, notadamente na Introdução (."Ouverture")e nos títulos intricadamente arranjados dos capítulos de Mytho-logiques, é ele ser um músico talentoso.

A Nota b do Quadro A merece maior desenvolvimento. EmTristes Tropiques (1955), Lévi-Strauss descreve a Geologia, aPsicanálise e o Marxismo como suas "três amantes", deixandomuito claro que a Geologia foi o seu primeiro amor.

Reverterei à Geologia dentro de instantes mas, primeiro,analisemos sucintamente o seu Marxismo. O próprio Lévi-Straussobservou que:

E todo o Capítulo 9 de La Pensée Sauvage é dedicado a umataque polêmico contra a Critique de Ia raison dialectique, deSartre. Lévi-Strauss manifesta um especial desdém pela opinião( aparente) de Sartre de que os membros de sociedades exóticasdevem, necessariamente, ser incapazes de análise intelectual edos poderes de demonstração racional. Contudo, teve de admi-tir que:

J

Mas, no fim de contas, Sartre é um marxista; e, de temposem tempos, Lévi-Strauss também o é ... ou assim se diz! Ambosos autores salpicam suas páginas livremente de terminologiamarxista e denunciam o mau uso dado por outros autores aojargão sagrado. Sobre este assunto, limitar-me-ei aqui a chamara atenção do leitor para um comentário de Jean Pouillon (1965)que recorda fortemente a descrição de Lewis Carroll da batalhaque não houve entre Tweedledum e Tweedledee.

Não estou tentando sugerir que a posição atual de Lévi--Strauss seja, em absoluto, afim da dos Existencialistas; pelocontrário, ela é muito remota, em numerosos aspectos. Mas oExistencialismo e o Estruturalismo têm raízes marxistas comunse a distinção entre os dois não é tão nítida quanto alguns crí-ticos de espírito metódico gostariam que acreditássemos. Apesardo violento ataque a Sartre, La Pensée sauuage é dedicado àmemória de Maurice Merleau-Ponty, o filósofo fenomenologista

"O Marxismo parecia-me evoluir no mesmo sentido da geologiae da psicanálise ... Todos os três mostravam que o entendimentoconsiste na redução de um tipo de realidade a um outro; que averdadeira realidade nunca é a mais óbvia das realidades ...em todos esses casos, o problema é o mesmo: a relação... entrea razão e a percepção sensorial ... " (W. W.: 61).

Na prática, a importância da ideologia marxista para umacompreensão de Lévi-Strauss é difícil de determinar. O uso dadialética por parte de Lévi-Strauss, com a seqüência formal detese-antítese-síntese, é mais hegeliano do que marxista e a suaatitude para com a história parece ser inteiramente contrária aodogma marxista. Mas o quadro fica bastante confuso em virtudeda interação dialética entre o Existencialismo de Sartre e oEstruturalismo de Lévi-Strauss,

Lévi-Strauss encontrou-se pela primeira vez com Sartre empessoa em Nova Iorque, corria o ano de 1946, mas ambos'

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cuja posiçao era muito mais próxima do Existencialismo do quedo Estruturalismo.

A briga com Sartre sobre "história" é muito semelhanteà que travou com Ricoeur sobre "herrnenêutica" (Ricoeur:1963). Promana de uma diferente avaliação da "flecha dotempo'. Para os fenomenologistas e os existencialistas, a his-tória fornece o mito que justifica o presente mas o presente étambém uma culminação necessária do ponto a que a histórianos levou. A posição estruturalista é muito menos egocêntrica:a história oferece-nos uma imagem de sociedades passadas queforam transformações estruturais daquelas que conhecemos, nemmelhores nem piores. Nós, situados no vastajoso ponto deobservação do presente, não nos encontramos, entretanto, numaposição privilegiada de superioridade. Mas a atitude de Lévi--Strauss para com a história é algo esquiva e eu só posso acon-selhar o leitor persistente a consultar a densa argumentação daspágs. 256-264 de T he Savage Mind (1966).

Duas características da posição de Lévi-Strauss me parecemcruciais. Primeiramente, ele sustenta que o estudo diacrônicoda história e o estudo transcultural mas sincrônico da antropo-logia são dois métodos alternativos de fazer a mesma coisa:

o antropólogo respeita a história mas não lhe confere um valorespecial. Concebe-a como um estudo complementar do seu própriotrabalho; um deles revela todo o âmbito das sociedades humanasno tempo, o outro no espaço. E a diferença é ainda menor doque poderia parecer, visto que o historiador se esforça por re-construir o quadro de sociedades desaparecidas como eram nospontos que, para elas, correspondiam ao presente, enquanto queo etnógrafo faz o possível por reconstituir os estágios históricosque, temporalmente, precederam suas formas existentes (S. M.:256).

Em segundo lugar, Lévi-Strauss insiste em que, quando ahistória assume a forma de uma recompilação de eventos pas-sados, ela faz parte do presente do pensador, não do seu passado.Para o ser humano pensante, toda a experiência recordada écontemporânea; tal como no mito, todos os eventos fazem partede uma única totalidade sincrônica. Aqui, o modelo subjacenteé Proust e o penúltimo capítulo de La Pensée Sauvage (1962),que se intitula "Les Temps Retrouvé" (O Tempo Reencon-trado ), tem a intenção clara de ecoar A la Reeherehe du T empsPerdu.

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Diga-se -de passagem que todo o corpus dos escritos deLévi-Strauss está repleto de referências oblíquas e jogos depalavras desse gênero, que recordam a fórmula simbolista deVerlaine, pas de couleur, rien que Ia nuanee (nada de cor, ape-nas a nuança). Davy (1965: 54) observou que os poetas sim-bolistas "insistiam em que a função da linguagem poética e,particularmente, das imagens, não era ilustrar idéias mas con-substanciar uma experiência indefinível de qualquer outro mo-do". Os leitores que acham persistentemente esquivo o signi-ficado preciso da prosa de Lévi-Strauss devem levar em contaessa parte da sua formação literária.

Mas, quanto à questão do ponto de vista estruturalista dahistória, um outro ponto merece também ser assinalado. Em-bora Lévi-Strauss reafirme constantemente a sua opinião de queas estruturas do pensamento primitivo estão presentes em nossamente moderna, tanto quanto estão na mente dos que pertencema "sociedades sem história", ele foi muito prudente em suatentativa de demonstração dessa equivalência. Em La Penséesauuage, como veremos (Capítulo 5), ele considera, ocasional-mente, a aplicação de argumentos estruturalistas às caracterís-ticas da cultura da Europa Ocidental contemporânea mas, namaioria das vezes, traça uma linha nítida (embora arbitrária)entre as sociedades primitivas, que são o alimento favorito dosantropólogos por serem intemporais e estáticas, e as sociedadesavançadas, que se furtam à análise antropológica porque estão"na história". Lévi-Strauss recusou-se sistematicamente a apli-car técnicas estruturalistas à análise de seqüências diacrônicas.Os acontecimentos no passado histórico só sobrevivem em nossaconsciência como mito e uma característica intrínseca do mito(e também da análise estrutural de Lévi-Strauss ) é a irrelevân-cia da seqüência cronológica dos acontecimentos.'

É neste contexto que os comentários de Lévi-Strauss sobregeologia se tornam particularmente reveladores.

Os pressupostos dos antropólogos do século XIX erampreto-históricos - evolucionistas ou difusionistas, segundo oscasos. Mas o sentido de tempo de Lévi-Strauss é geológico.Embora pareça, como Tyler e Frazer, estar interessado nos cos-tumes de povos primitivos contemporâneos somente porquepensa que eles são, em certo sentido, primevos, Lévi-Strauss nãoargumenta, como Frazer teria feito, que o que é primevo é

Ji

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inferior. Numa paisagem, rochas de imensa antiguidade podemser encontradas a par de sedimentos de uma origem relativa-mente recente mas. nem por isso argumentamos que umas sãoinferiores às outras. O mesmo ocorre com as coisas vivas (e,por implicação, com as sociedades humanas):

Por vezes ... de um lado e do outro de uma fenda oculta, en-contramos duas plantas verdes de diferentes espécies. Cada umadelas escolheu o solo que lhe convém; e apercebemo-nos de que,dentro da rocha, estão duas amonitas, uma das quais tem invo-luções menos complexas que a outra. Compreendemos, numrelance, que isso significa uma diferença de muitos milhares deanos; o tempo e o espaço misturam-se, de súbito; a diversidadeviva desse momento justapõe uma idade à outra e perpetua-as(W.W.: 60).

Note-se que, realmente, não são as plantas verdes quedespertam o interesse de Lévi-Strauss; elas apenas desencadeiama sua curiosidade. A sua preocupação mais profunda é pelo queestá debaixo - algo mais abstrato, a relação entre duas amo-nitas, resíduos de espécies vivas que deixaram de existir hámilhões de anos. E, no entanto, o motivo pelo qual se sentiujustificado em seu interesse por essa abstração é que ela projetaluz sobre o presente, a diferença entre as suas duas plantasverdes.

Ao invés da história dos historiadores, a história tal como ogeólogo e o psicanalista a vêem tem a finalidade de dar formano tempo - um pouco à maneira de um tableau vivant - certaspropriedades fundamentais do universo físico e psíquico (W. W.:60-1 ).

Essa busca das propriedades fundamentais é um tema cons-tante em todos os escritos de Lévi-Strauss mas não se trata,meramente, de uma questão de curiosidade de antiquário. Oponto é, outrossim, que tudo o que é fundamental e universaldeve constituir a essência da nossa verdadeira natureza e pode-mos utilizar uma compreensão dessa natureza para nos aper-feiçoarmos:

... a segunda fase do nosso empreendimento é que, embora nãonos apeguemos a elementos de qualquer sociedade, em particular,fazemos uso de todos eles para distinguir os princípios da vidasocial que podem ser aplicados com o objetivo de reformar os

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nossos próprios costumes daqueles princípios que regem os costu-mes que nos são inteiramente estranhos ... A nossa própria so-ciedade é a única que podemos transformar e, apesar disso, nãodestruir, dado que as mudanças introduzidas proviriam de dentro(W. W.: 391-2).

Como esta passagem nos mostra, Lévi-Strauss é um VISIO-nário e o problema com os que têm visões é que acham muitodifícil reconhecer o mundo prosaico e trivial que o resto dosmortais vê à sua volta. Lévi-Strauss empenha-se na sua antro-pologia porque concebe os povos primitivos como "modelosreduzidos" do que é essencial em toda a humanidade; mas osnobres selvagens resultantes, à maneira de Rousseau, habitamum mundo muito distante da imundície e da miséria que é oterreno normalmente pisado pelo antropólogo de campo.

Isto é importante. Um estudo cuidadoso de Tristes Tro-piques revela que, em todo o curso de suas viagens brasileiras,Lévi-Strauss nunca pôde permanecer num lugar por mais dealgumas semanas de cada vez e jamais esteve em condiçõesde cenversar facilmente com qualquer dos seus informantes na-tivos, na linguagem nativa deles.

Existem muitas espécies de investigação antropológica maso trabalho intensivo de campo, no estilo de Malinowski, empre-gando o vernáculo, que é hoje a técnica normal de pesquisautilizada por quase todos os antropólogos sociais anglo-america-nos, é um procedimento inteiramente diferente da cuidadosamas menos abrangente descrição de maneiras e costumes, baseadano uso de informantes e intérpretes especiais, que foi a fonteoriginal para a maioria das observações etnográficas em queLévi-Strauss, como os seus predecessores frazerianos, preferiuconfiar.

É perfeitamente verdade que um antropólogo experimen-tado, visitando uma "nova" sociedade primitiva pela primeiravez e trabalhando com a ajuda de intérpretes competentes, po-derá ser capaz, após uma estada de alguns dias, apenas, dedesenvolver em sua própria mente um "modelo" razoavelmenteabrangente de como funciona o sistema social; mas também éverdade que, se permanecer aí seis meses e aprender a falara linguagem local, muito pouco restará desse "modelo" original.Com efeito, a tarefa de compreender como o sistema funciona

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parecerá então ainda mais formidável do que nos primeiros diasapós a sua chegada.

Lévi-Strauss nunca teve a oportunidade de sofrer essa expe-riência desmoralizante nem se viu a braços com as questõesenvolvidas.

Em todos os seus escritos, Lévi-Strauss pressupõe que o"modelo" simples, do primeiro estágio, gerado pelas impressõesoriginais do observador, correspondem fielmente a uma autên-tica (e muito importante ) realidade etnográfica - o "modeloconsciente" que está presente no espírito dos informantes doantropólogo. Em contraste, aos antropólogos que tiveram umagama muito mais ampla e variada de experiências de campoparece por demais óbvio que esse modelo inicial pouco mais édo que um amálgama das pressuposições tendenciosas do próprioobservador.

A este respeito, muitos argumentaram que Lévi-Strauss,como Frazer, é insuficientemente crítico no tocante ao seumaterial básico de informação. Ele parece ser capaz de desco-brir justamente aquilo que estava procurando. Qualquer prova,por muito duvidosa que seja, é aceitável - desde que se ajusteàs expectativas logicamente calculadas; mas, sempre que os dadoscontrariam a teoria, Lévi-Strauss contornará as provas ou mobi-lizará todos os recursos de sua poderosa invectiva para que aheresia seja expulsa, sem apelação! Por isso é convenienterecordar que a formação primordial de Lévi-Strauss foi emFilosofia e Direito; ele comporta-se, sistematicamente, maiscomo um advogado defendendo uma causa do que como umcientista em busca da verdade última.

Mas o filósofo-advogado é também um poeta. The SevenTypes 01 Ambiguity (1931), de William Empson, pertence auma classe de crítica literária que é inteiramente hostil aosestruturalistas contemporâneas; não obstante, serve como exce-lente leitura introdutória para quem quer que se candidate aestudar Lévi-Strauss, Realmente, Lévi-Strauss não publicoupoesia mas toda a sua atitude em relação aos sons e significados,às combinações e permutas, dos elementos da linguagem denunciaa sua natureza.

O imponente estudo em quatro volumes da estrutura daMitologia Ameríndia não se intitula Mythologies mas Mytholo-

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giques - as "lógicas do mito" - e o objeto do exerClClO éexplorar as misteriosas interligações entre essas mito-lógicase outras lógicas. Isto é o terreno do poeta e os que se impa-cientam com a tortuosa ginástica da argumentação de Lévi--Strauss - como acontece com a maioria dos que o lêem -precisam lembrar-se de que ele compartilha com Freud de umacapacidade sumamente extraordinária: a de nos conduzir, semque tenhamos consciência disso, até aos mais profundos recessosdas nossas emoções secretas.

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