doze lições sobre história

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PROST, Antoine. Doze Lições Sobre História. Belo Horizonte: Autentica, 2008.

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  • Biblioteca - ICHS/UFOP930 P966c2008 Ex. 06

    * 1 0 0 0 2 1 3 9 2 4 *

  • Nas pginas a segu ir o le ito r vai poder v is lu m b ra r a m a e s tria de A n to in e P ros t e de seu olhar sobre a H istria . Va lioso para h is to riadores, estudantes e demais envolvidos na rea de Cincias Humanas, este livro surpreende por tecer, em um a nica edio, uma rede informacional rica, pro funda e articulada sobre a Histria, suas prticas e suas nuances. Esta traduo, feita cuidadosamente por Guilherme Joo de Freitas Teixeira, convida os historiadores a uma viagem que passa por caminhos instigantes e reveladores, escapando idia de que Histria se refere a algo que j passou.

    Como fo rm a de estim ular o pensamento crtico, este livro m ostra com o o "fazer histria" veio se configurando at a contemporaneidade. O le itor tem em mos, portanto, uma fonte inesgotvel de leitura prazerosa, para reflexo e questionamentos sobre a Histria, seus processos e o ofcio do historiador.

    O AUTORAntoine Prost historiador,

    professor da Universit Paris I e pesquisador na rea de histria da sociedade francesa no sculo XX nos seus mltiplos aspectos: grupos sociais, instituies, mentali- dades. autor de La grande guerre explique mon petit fils (Seuil) e organizador de Histria da vida privada v. 5 (Companhia das Letras).

    Leia tambm da coleo

    Histria e Historiografia:A leitura e seu pblico no mundo contemporneo: ensaios sobre Histria Cultural Jean-Yves Mollier

  • Doze lies sobre a histria

  • C oleo

    HISTRIA & HISTORIOGRAFIA

    Antoine Prost

    Doze lies sobre a histria

    TRADUO

    G uilherm e Joo de Freitas Teixeira

    autntica

  • T tu lo o r ig ina l: "D o u ze le on s su r l'h is to ir e " , de A n to in e Prost.

    C o p y r ig h t d it io n s du Seu il, 1 996

    COORDENADORA DA CO LE O HISTRIA E HISTORIOGRAFIA

    Eliana de Freitas Dutra

    EDITORAO ELETRNICA

    PROJETO GRFICO DE CAPA

    Teco de Souzac a p a : Sob re im agem de

    Puvis de Chavannes. Le Bois sacr (deta lhe). G ran d A m p h ith tre de la.

    A rch iv e s G ira u d o n . S o rb on n e , ParisTales Leon de Marco

    REVISO

    Aiko Mine

    REVISO TCNICA

    Vera Chacham

    EDITORA RESPONSVEL

    Rejane Dias

    Todos os d ire itos reservados pela Au tn tica Editora.

    Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida, seja por meios mecnicos, e letrnicos, seja via cpia

    xerogrfica, sem a autorizao prvia da editora.

    AUTNTICA EDITORA LTDA.

    Rua Aimors, 981, 8 andar. Funcionrios

    30140-071. Belo Horizonte. MG

    Tel: (55 31) 3222 68 19

    Te le v e n d a s : 0800 283 13 22

    www.autenticaeditora.com.br

    D ad o s In te rn a c io n a is de C a ta lo g a o na P u b lica o (CIP) (C m a ra B rasile ira d o Livro)

    Prost, A n to ine , 1933- .

    Doze lies sobre a h istria / A n to ine Prost ; [traduo de G u ilherm e Joo de Freitas Teixeira]. Belo Horizonte : Au tn tica Editora , 2008.

    T tu lo original: Douze leons sur l'h isto ire.

    B ib liografia.

    ISBN 9 78 -8 5 -7 5 2 6 -3 4 8 -8

    1. H istoriografia 2. H istria - M e todo log ia I. Ttulo.

    0 8 -0 7 5 2 8 CDD -907 .2

    ndices para ca t logo sistem tico:

    1. H istoriografia 907.2

    http://www.autenticaeditora.com.br

  • S U M R IO

    Introduo.................................................................................................... 7

    Captulo I - A histria na sociedade francesa(sculos XIX e XX)...................................................................................... 13

    Captulo II - A profisso de historiador.................................................. 3 3

    Captulo III - Os fatos e a crtica histrica............................................ 5 3

    Captulo IV - As questes do historiador............................................... 75

    Captulo V - Os tempos da histria........................................................ 9 5

    Captulo VI - Os conceitos....................................................................... 115

    Captulo VII - A histria com o compreenso..................................... 133

    Captu lo VIII - Im aginao e atribuio causal.................................. 153

    Captulo IX - O m odelo soc io lg ico ...................................................... 169

    Captulo X - A histria socia l.................................................................... 189

    Captulo XI - C riao de enredos e narratividade............................. 211

    Captulo XII - A histria se escreve......................................................... 2 3 5

    Concluso - Verdade e funo social da histria.............................. 2 5 3

    Referncias.................................................................................................. 2 7 3

    Lista dos livros em destaque..................................................................... 286

  • Introduo

    Se verdade alis, este estudo tenta fazer tal demonstrao que a histria depende da posio social e institucional de quem a escreve, no ficaria bem ocultar o contexto em que estas reflexes foram elaboradas; tendo surgido de u m curso, o ttulo deste livro Lies sobre a histria utilizado em seu sentido prprio.

    C om efeito, a formao dos estudantes em histria inclui, tanto na universidade da qual sou professor quanto em u m grande nm ero de outras, o ensino de historiografia ou de epistem ologia que, atravs de diferentes abordagens, visa suscitar u m olhar crtico sobre o que se faz quando se pretende fazer histria. Esse ensino inscreve-se, por sua vez, em um a tradio secular: antes de ter sido professado, em seu tem po, por Pierre Vilar ou Georges Lefebvre, ele havia sido inaugurado em 18961897, na Sorbonne, por Charles-V ictor Langlois e Charles Seignobos, cujo curso foi publicado, em 1897, com o ttulo que teramos adotado de bom grado Introduction aux tudes historiques.

    N o entanto, trata-se de um a tradio frgil e ameaada; at o final da dcada de 1980, na Frana, a reflexo m etodolgica sobre a histria foi considerada intil. verdade que alguns historiadores, tais com o C h .-O . Carbonell, F. Dosse, F. Hartog, O . D um oulin e ainda outros, chegaram a manifestar interesse pela histria da histria, mas eles deixaram a reflexo epistemolgica nas mos dos filsofos (R. Aron, P. Ricreur). significativo que, atualm ente, as nicas obras de sntese disponveis em livraria sejam iniciativas oriundas do exterior: o livro Histoire et mmoire, de J. Le Goff, foi publicado, inicialmente, em italiano; por sua vez, o com pndio de E. Carr deve-se a George Macaulay Trevelyan lectures de Cambridge, assim com o o livrinho que continua sendo notvel de H .-I. M arrou, D e la

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  • Do z e l i e s s o b r e a Hi s t r i a

    connaissance historique, contendo as aulas administradas em Louvain, na ctedra Cardinal-Mercier. Os inspiradores da escola dos Annales F. Braudel, E. Le R o y Ladurie, F. Furet, P. C haunu multiplicaram as coletneas de artigos ou prom overam a publicao de obras coletivas, por exem plo, aquelas organizadas por J. Le G off e P. N ora; no entanto, M arc Bloch, com seu livro Apologie pour lhistoire infelizm ente, inacabado foi o nico que se em penhou em explicar o oficio de historiador.

    Alis, essa a conseqncia de um a atitude deliberada: at aqui, os historiadores franceses haviam feito pouco caso das consideraes gerais. Para L. Febvre, filosofar constitua o crime capital ;1 na aula inaugural no Collge de France, ele j havia observado que os historiadores no possuem grandes necessidades filosficas . E, para confirmar sua afirmao, citava o depoim ento irnico do poeta Charles Pguy (1988):

    Habitualmente, os historiadores fazem histria sem meditar a respeito dos limites, nem das condies dessa matria. Sem dvida, eles tm razo; prefervel que cada um exera seu ofcio. De maneira geral, um historiador deveria comear por fazer histria sem delongas: caso contrrio, nunca conseguir fazer seja l o que for!2

    Tal postura vai alm da simples diviso das tarefas: mesmo que lhes fosse oferecida tal oportunidade, inmeros historiadores recusariam em preender um a reflexo sistemtica sobre sua disciplina. Tal rejeio relativa s filosofias sobre a histria considerada por Philippe Aris, em seu livro Le temps de lhistoire, com o um a insuportvel vaidade : Elas so ignoradas ou postas de lado, deliberadamente, com um simples dar de ombros, como se tratasse de falatrio terico de amadores sem competncia: a insuportvel futilidade do tcnico que permanece confinado dentro de sua tcnica, sem nunca ter tentado observ-la de fora! (Ar i s , 1986 p. 216).

    A bundam as declaraes para confirmar a pertinncia desse depoimento. Tendo freqentado assiduamente os historiadores, sem se eximir de critic-los, Paul R icreur em sua obra, Temps et Rcit, I cita a este propsito, de forma u m tanto prfida, Pierre Chaunu:

    A epistemologia uma tentao que deveria ser afastada resolutamente [...] No mximo, admite-se que seja oportuno que essa tarefa

    1 R esenha do livro de Marc Bloch, Apologie pour Vhistoire, na Revue de mtaphysique et de morale (LVII, 1949), em Combats pour l histoire (FEBVRE, 1953, p. 419-438): O autor no poder ser acusado de filosofar o que significa, na boca de um historiador, estejamos certos disso, o crime capital (p. 433).

    2 V er a aula de Lucien Febvre em Combats pour Vhistoire (1953, p. 3-17; em particular, p. 4).

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  • In t r o d u o

    seja executada por alguns mentores no esse, absolutamente, nosso caso, nem alimentamos tal desejo a fim de que os robustos artesos de um conhecimento em construo alis, essa seria a nossa nica pretenso fiquem mais bem preservados das perigosas tentaes da mrbida Cpua. (Ric^ ur, 1983-1985, p. 171)

    C om efeito, os historiadores franceses adotam, naturalmente, a postura de u m m odesto arteso: para a foto de famlia, eles posam em seu ateli e exibem-se com o hom ens de ofcio que, aps um a longa aprendizagem, dom inam os recursos de sua arte. Elogiam a beleza da obra e valorizam a habilidade, em vez das teorias de que esto entulhados em sua opinio, inutilm ente os colegas socilogos. Inm eros so aqueles que, no com eo de seus livros, se exim em de definir tarefa considerada obrigatria pelos colegas alemes os conceitos e os esquemas de interpretao utilizados. Por m aior fora de razo, eles julgam que a elaborao de um a reflexo sistemtica sobre sua disciplina algo de pretensioso e perigoso: isso corresponderia a reivindicar um a posio de fundador de escola que um a atribuio rejeitada por sua modstia mesmo que seja fingida e que, sobretudo, deix-los-ia expostos crtica, nem u m pouco benevolente, de colegas que, eventualm ente, pudessem ter a impresso de que eles pretendem ensinar-lhes o ofcio. Segundo parece, a reflexo epistemolgica atenta contra a igualdade dos mestres da corporao; eximir-se de lev-la a efeito um a forma de evitar, por u m lado, perder seu tem po e, por outro, expor-se s crticas dos pares.

    Felizmente, essa atitude est em via de mudar. A indagao m etodolgica tornou-se mais freqente, tanto nas revistas mais antigas por exem plo, a Revue de synthse , quanto nas mais recentes, com o Genses. Por sua vez, em seu sexagsimo aniversrio, a revista dos Annales retom ou um a reflexo que, desde ento, continua a ser elaborada.

    verdade que se alterou a conjuntura do fazer histria. O complexo de superioridade dos historiadores franceses, orgulhosos de pertencerem, em maior ou m enor grau, escola dos Annales cuja excelncia, supostamente, elogiada pelos historiadores do m undo inteiro com eou a tornar-se, no propriam ente irritante, mas injustificado. A historiografia francesa fragmentou-se e trs questes tm lanado a dvida relativamente a suas antigas certezas. Assim, as tentativas de sntese aparecem com o ilusrias e votadas ao fracasso; a nfase atribuda, neste m om ento , s micro-histrias e monografias sobre temas cujo inventrio permanece ilimitadamente aberto. Por outro lado, a pretenso cientfica compartilhada,

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  • Do z e l i e s s o b r e a Hi s t r i a

    apesar de seu desacordo, por Seignobos e Simiand vacila sob os efeitos de u m subjetivismo que incorpora a histria literatura; o universo das representaes desqualifica o dos fatos. P or ltim o, o em preendim ento unificador de Braudel e dos defensores de um a histria total que fosse capaz de recapitular a contribuio de todas as outras cincias sociais redundou em um a crise de confiana: fora de servir-se de questes, conceitos e m todos que ela pede de em prstim o econom ia, sociologia, etnologia e lingstica, a histria passa, hoje em dia, por um a crise de identidade que suscita a reflexo. E m poucas palavras, F. Dosse transform ou, acertadamente, essa constatao em ttulo de u m livro: a histria encontra-se, atualmente, em migalhas .

    Neste novo contexto, u m livro de reflexo sobre a histria nada tem a ver com o manifesto de um a escola. E m vez de um a tom ada de posio terica, destinada a valorizar determinadas formas de histria, desvalorizando as outras, trata-se de participar de um a reflexo com um para a qual todos os historiadores esto convidados; atualmente, nenhum deles pode evitar o confronto entre o que julga fazer e o que faz.

    Posto isto, no vale dissimular que esta reflexo em preendeu, aqui, o itinerrio didtico de u m curso destinado a estudantes universitrios do prim eiro ciclo. Tive prazer de apresent-lo repetidas vezes; m inha im presso a de que ele correspondia a um a expectativa, at mesmo, a um a necessidade. Portanto, resolvi orden-lo e introduzir notas de referncia, ou seja, torn-lo mais consistente e aprimor-lo, sem perder de vista seu pblico-alvo. Resoluo que implica evidentes serventias: o leitor tem o direito de esperar, por exem plo, determinadas informaes mais pertinentes sobre aspectos peculiares aos historiadores experientes, a crtica histrica de acordo com Langlois e Seignobos, ou os trs tempos da histria segundo Braudel. D o mesmo m odo, para garantir a nitidez do texto, tive de sacrificar algumas liberdades de estilo e todas as aluses.

    N aturalm ente, com o qualquer professor, elaborei estas aulas a partir de reflexes elaboradas por outros. Tive u m verdadeiro prazer na leitura de Lacombe, Seignobos, Simiand, Bloch, Febvre, M arrou; ou, entre os autores do exterior, C ollingw ood, Koselleck, H ayden W hite, W eber e ainda muitos outros seria impossvel m encionar o nom e de todos. O desejo de fazer com partilhar este prazer levou-m e a apresentar longas citaes, integrando-as no m eu prprio texto; de fato, pareceu-m e destitu do de interesse repetir bem , pessoalmente com m enos qualidade, o que j havia sido afirmado com brilhantismo por uns, com hum or por

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  • In t r o d u o

    outros, e com pertinncia, por todos. Da, os boxes que no devero ser postos de lado pelo leitor afobado em chegar concluso: tais textos constituem, muitas vezes, etapas essenciais da argumentao.

    C om o se pode ver, em vez de u m manifesto pretensioso ou de um ensaio brilhante, este livro um a modesta reflexo com o objetivo de ser til: eis um a ambio de que sou capaz de avaliar a am plitude. A lm disso, trata-se de um a forma, semelhante a outras, de reencontrar a postura to apreciada pelos historiadores franceses do arteso que explica o ofcio aos aprendizes...

  • A histria na sociedade francesa (sculos XIX e XX)

    A histria o que fazem os historiadores

    Em vez de um a essncia etema, de um a idia platnica, a disciplina chamada histria um a realidade, em si mesma, histrica, ou seja, situada no tem po e no espao, assumida por homens que se dizem historiadores e que so reconhecidos com o tais, alm de ser aceita com o histria por diversos pblicos. E m vez de uma histria sub spccie aetemitatis, cujas caractersticas tivessem atravessado, sem qualquer alterao, as vicissitudes do tem po, existem diferentes produes que os contem porneos de determinada poca esto de acordo em considerar com o histria; ou seja, antes de ser um a disciplina cientfica - segundo sua pretenso e, at certo ponto, conform e ela o efetivamente a histria um a prtica social.

    Essa afirmao pode tranqilizar o historiador que em preende uma reflexo sobre sua disciplina, na medida em que o rem ete ao que ele est acostumado a fazer: o estudo de um grupo profissional, de suas prticas e de sua evoluo. Existem grupos de historiadores que reivindicam tradies, constituem escolas, reconhecem normas constitutivas de seu ofcio com um , obedecem a uma deontologia, alm de praticarem rituais de incorporao e excluso. Os hom ens e as m ulheres que se consideram historiadores cuja unio ocorre, efetivamente, pela conscincia de pertencer a essa com unidade fazem histria para um pblico que os l ou escuta, discute com eles e acha seu trabalho interessante. Certam ente, eles so estimulados, tam bm , pela curiosidade intelectual, pelo am or pela verdade e pelo culto cincia; no entanto, seu reconhecim ento social, assim com o sua subsistncia, dependem da sociedade que lhes atribui um status e lhes garante um a rem unerao. Portanto, um duplo reconhecim ento - pelos pares e pelo pblico consagra o historiador com o tal.

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  • Bis por que os (c*x11 >s histoiiogi.ilu os iU>s lnsoii.tdorcs cstao irl.icio nados com um a histria indissocivel m ente social e c ultural. A opinio dos historiadores de determinada poca ou escola sobre sua disciplina suscetvel de um a dupla leitura: a primeira, ao p da letra, empenha-se 11a concepo da histria definida por seus textos; e a outra, mais distanciada, atenta ao contexto da histria, decifra sua exposio metodolgica ao identificar as mltiplas implicaes desses documentos. Por exemplo, o clebre livro de Langlois e Seignobos, ntroduction aux tudes historiques, correspondeu, em um prim eiro plano, a um discurso do m todo em que a anlise das diversas formas de crtica histrica conserva um interesse por si m esm o; em um segundo nvel, tal obra rem etia a um contexto intelectual, inclusive, poltico, dom inado pelas cincias experim entais m aneira de C laude B ernard ,1 enquanto a em ergncia da sociologia durkheim iana - ao preconizar a aplicao de um rigoroso m todo experim ental aos fatos sociais - ameaava a pretenso cientfica da histria em seu prprio fundam ento.

    Assim, os historiadores que escrevem sobre a histria - e, neste aspecto, no estamos fora do destino com um estariam condenados a situar-se em relao a seus predecessores e seus contemporneos da mesma disciplina, mas tam bm em relao s corporaes cientficas semelhantes, com as quais a histria m antm um a inevitvel com petio pelo controle de um campo simultaneamente cientfico e social. Alm disso, eles devem levar em considerao a sociedade em seu conjunto e em seus segmentos que, afinal, so os destinatrios de seu trabalho e para quem essa histria tem, ou no, sentido. C om o a histria , antes de ser um a prtica cientfica, uma prtica social ou, mais exatamente, com o seu objetivo cientfico , tambm, um a forma de tom ar posio e adquirir sentido em determ inada sociedade, a epistemologia da histria , por sua vez, em parte, um a histria; o que ilustrado, de maneira exemplar, pelo caso francs.

    A histria na Frana: uma p o si o priv ileg iad a

    N o universo cultural e social dos franceses, a histria ocupa uma posio em inente. Em parte alguma, ela est to presente nos discursos polticos ou nos comentrios dos jornalistas; em parte alguma, ela se beneficia de um status to prestigioso. A histria a referncia obrigatria, o horizonte incontom vel de toda a reflexo. J se afirmou que ela era uma

    1 Fisiologista (1813-1878), seu livro Introduo ao estudo da medicina experimental (1865) definiu osprincpios fundamentais de toda a pesquisa cientfica. (N .T.).

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    p.u .111 Ii.iiim-..i ^jnuiAH.i>, 1J'M), talvi. fosse possvel at consider-la < i 111< > 1111ia ,ilrti(.io t oniagiosa no plano nacional.

    Pirstrm os .ilcnao, por exem plo, s vitrines das livrarias: as cole- rt-, de histna destinadas ao grande pblico aparecem a em m aior num ero e so mais importantes que no exterior. A lm das editoras un i- vcrsili ias e tios editores especializados, a histria suscita o interesse das j - , i andes editoras - H achette , Gallim ard, Fayard, Le Seuil, P lon, sem esquecer Hainm arion, nem A ubier-M ontaigne, etc. as quais possuem uma ou vrias colees na rea da histria. Algumas dessas colees, tais com o as biografias publicadas pela Editora Fayard, tm sido verdadeiros sucessos; por outro lado, determ inados ttulos - por exem plo, o livro de R. Le R o y Ladurie, Montaillou, village occitan - chegaram a atingir, sem dvida, um a tiragem superior a 200.000 mil exem plares.3 D o m esm o m odo, as revistas especializadas em histria - L e Miroir de Vhistoire, Historia (vendas em 1980: 155 .000 exem plares), H istoram a (195.000), UHistoire, etc. vendem -se bem nas bancas de jornais das estaes ferrovirias. C om um a tiragem total de 600.000 exemplares, contra 30.000 no R eino U nido , a imprensa de vulgarizao de temas histricos, que no se restringem a assuntos de pouca im portncia, garante a audincia do grande pblico, ao passo que Alain D ecaux relata' a histria na televiso, desde 1969, com um sucesso tal que, aps dez anos, lhe abriu as portas da Acadmie Franaise. Portanto, no surpreendente a porcentagem de franceses que, em 1983, afirmaram seu interesse (52%) e sua paixo (15%) pela histria.4

    O argumento extrado desse sucesso de audincia no , entretanto, decisivo. O fato de que a histria tenha um maior nm ero de leitores ou curiosos, em relao sociologia ou psicologia, estabelece, entre essas disciplinas, um a diferena de grau e no de natureza; tal constatao no prova que ela se beneficie de um status especfico ou de uma posio particular no campo cultural francs. Ora, a se encontra o essencial: a funo parte que a histria desempenha, na Frana, constitui um papel decisivo.

    2 T endo analisado a produo de obras histricas, o au tor faz recuar ao sculo XVI a constituio de uma m em ria nacional; pelo contrrio, ao atribuirmos um papel mais im portante ao ensino, nossa anlise privilegia a R evoluo Francesa e o sculo X IX na institucionalizao dessa memria.

    3 Segundo as indicaes do editor, a tiragem desse livro havia atingido, em janeiro de 1989, 188.540 exemplares; por sua vez, o livro de Georges D uby, Le Tetnps des cathdrales, tinha tido uma tiragem de 75.500 exemplares. Ver C A R R A R J), 1982, p. 16.

    4 Sondagem da revista L Express, ver JO U T A R D , 1993, p. 511.

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  • Para ilustrar essa constatao, vou basear-me em uma frase, cujo interesse o de parecer evidente. Afirmao de bom senso que se impe, por si s, sem que algum tenha vontade de question-la; e, por acrscim o, qualificada po r ter sido proferida pela m aior autoridade do Estado. Em 1982, por ocasio de um Conselho de Ministros em que havia sido evocado o problema do ensino da histria, o presidente M itterrand recebeu um a aprovao unnim e ao declarar: U m povo que no ensina sua histria um povo que perde sua identidade .

    Nessa afirmao, o interessante no , em primeiro lugar, sua falsidade, alis, confirm ada por um a simples olhadela lanada para fora do H exgono3: apesar da posio marginal, inclusive inexistente, do ensino da histria em numerosos pases - a com ear pelos EU A e a Gr-Bretanha , seus habitantes no deixam de manifestar um sentim ento bastante vigoroso de identidade nacional. N os EU A , por exem plo, em toda a escolaridade at os dezoito anos, o lugar da histria reduz-se, em geral, a um s curso, administrado durante um nico ano. D e fato, a construo da identidade nacional pode servir-se de um grande nm ero de outros expedientes, alm da histria. Inversam ente, esta no consegue desenvolver, autom aticam ente, a identidade to cobiada: a independncia da Arglia foi em preendida por hom ens que, durante a infncia, haviam aprendido a histria da Frana, repetindo Nossos antepassados, os gau- leses... . Em decorrncia exatam ente dessa generalidade, a afirmao do ex-presidente da Repblica errnea.

    C ontudo, ela no deixa de ser bastante significativa por duas razes: em prim eiro lugar, ningum ousou apontar, nem mesmo de forma respeitosa, o erro do presidente. D e fato, ele no havia manifestado um a opinio pessoal: limitara-se a exprim ir o ponto de vista correntem ente aceito, um a banalidade. Entre os franceses, existe unanimidade para considerar que sua identidade e, praticam ente, sua existncia nacional passa pelo ensino da histria: U m a sociedade que, insensivelmente, retira a histria de suas escolas suicida.6 Nada menos...

    Nosso intuito, aqui, no discutir tal convico: ao passar por outras vias, a identidade nacional no exclui que, na Frana, ela esteja enraizada, efetivamente, em uma cultura histrica. O importante que, fundamentado

    3 M etonmia aplicada ao territrio francs, cuja configurao geogrfica faz lem brar essa figura geom trica. (N .T.).

    Editorial da revista L Histoire, janeiro de 1980, citado em Historiais et Gographes, n. 277, fev./rnar. 1980, p. 375.

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    nu i i . i ii i im i fi.Mii * ii tm u o il.i luiiao ulentit.ui.i d.i historia ualia investindo n, hr.lon.uloics da mais im portante e prestigiosa de todas as misses; seu shitiis na sociedade encontra-se enaltecido, seja qual Ioi o preo a pagar por esse prestgio redobrado.

    E m segundo lugar, n ingum se espantou que o chefe de Estado tivesse decidido exprimir sua opinio sobre o ensino da histria; para os franceses, parece ser evidente que isso faa parte dos deveres de sua funo. A Frana , sem dvida, o nico pas no m undo em que o ensino da histria um a questo de Estado, evocada com o tal no C onselho de Ministros por exemplo, em 31 de agosto de 1982; m elhor ainda, o nico pas em que o prim eiro-m inistro acha que, no exerccio de suas funes, no perde seu tempo ao pronunciar o discurso inaugural de um colquio sobre o ensino da histria.7 Se, porventura, o presidente dos EU A ou o prim eiro-m inistro britnico adotassem tal procedim ento, eles suscitariam entre os jornalistas um espanto parecido ao que seria provocado se esses polticos se pronunciassem sobre a arbitragem de um a partida de futebol. N a Frana, pelo contrrio, a funo identitria atribuda ao ensino da histria acaba p o r transform -lo em um a questo im portante da poltica.

    Esse lugar particular da histria na tradio cultural francesa aparece, portanto, associado sua posio no ensino: trata-se, de fato, do nico pas em que ela constitui um a disciplina obrigatria em todas as sees e em todos os anos da escolaridade obrigatria, ou seja, dos seis aos dezoito anos.8 A histria do ensino da histria na Frana h de esclarecer-nos sobre a funo especfica que ela desempenha na sociedade francesa, assim com o o lugar ocupado em sua tradio cultural.9

    Deste ponto de vista, a diferena evidente entre o ensino m dio e o fundamental: no primeiro, a histria tom a-se obrigatria desde 1818; e, no segundo, efetivamente, desde 1880. O u seja, no sculo X IX , a histria no diz respeito escola do povo, mas trata-se de um assunto de notveis.

    7 Aluso ao discurso de Pierre M auroy por ocasio do Colloque national sur lhistoire et son enseignement, em M ontpellier, em janeiro dc 1984 (M IN ISTR E ..., 1984, p. 5-13).

    8 Em geral, a histria obrigatria, somente, em uma parte da escolaridade, mais frequentem ente nas classes elementares que nas classes superiores.

    9 Nosso intuito no delinear, propriam ente, a histria da histria no ensino mdio e fundamental. Esse tema foi abordado por Paul G erbod, em relao ao ensino m dio, em seu artigo publicado em L Information historique (1965), texto que continua sendo insubstituvel; relativamente ao ensino fundamenta], cf. o artigo de Jean-N el Luc publicado em Historiens et Gographes (1985, p. 149-207), assim como a tese de Brigitte Dancei (1996).

    ftibtiotrxa Atphonsus dc bumawms]7 iCHS*UF)P

    Mariana MG

  • Os usos sociais da histria no sculo XIX

    A histria no ensino m dio

    A in troduo precoce da histria no ensino m dio tanto mais im pressionante pelo fato de que tal operao o distinguia no s do ensino fundam ental, mas tam bm do ensino superior: a histria foi en sinada nos liceus e colgios m uito antes de ser includa entre as matrias das faculdades. A primeira vista, trata-se de uma defasagem surpreendente, mas que explica a posio central ocupada pelo ensino m dio na sociedade francesa. A t a dcada de 1880, as prprias faculdades de letras esto orientadas para esse ensino: no verdade que sua principal funo consistia em outorgar o baccalaurat?10 Os raros cursos de histria eram ministrados a um pblico m undano, sob um a forma retrica, pelo professor encarregado, simultaneamente, de histria universal e geografia m undial; foi necessrio esperar pela derrota de 1870" e pela chegada dos republicanos para ser constitudo, nas faculdades, o ensino cientfico da histria com professores relativam ente especializados, de alguma forma historiadores profissionais .12

    Em compensao, um papel capital na formao das elites foi desempenhado pelo ensino m dio que, bem cedo, entre suas matrias, incluiu a histria: aps uma tmida apario nas escolas centrais da R evoluo e um a inscrio de princpio nos programas dos liceus napolenicos, ela se instalou realmente, em 1814, nos programas do ensino mdio; e, em 1818, tornou-se matria obrigatria, razo de uma aula de duas horas por semana, a comear pela classe de dnquime at a classe de premire. Na seqncia, esse ensino passou por vrias vicissitudes, sem ter desaparecido:

    O u, na forma abreviada, bac : designa, ao mesmo tem po, os exames e o diploma conferido ao final do 2 ciclo do ensino de 2 grau. Para facilitar a compreenso do texto, apresentamos o quadro da correspondncia, aproximada, entre o sistema escolar francs e o sistema escolar brasileiro: a classe de sixime corresponde, aproximadamente, 5a srie; cinquime = 6a srie; quatrme = T srie; troisime = 8a srie; seconde = I o ano do 2o grau; premire - 2 ano do 2o grau; terminale = 3 ano do 2o grau; e baccalaurat = vestibular. Cf. B O U R D IE U , 1998, p. 249. (N .T.).

    " Diante da Alemanha que sacramenta a queda do 2o Im prio de Napoleo III, seguida pela proclamao da 3a Repblica. Para facilitar a compreenso do texto, apresentamos o quadro dos regimes franceses, a partir da Revoluo Francesa (1789): I a Repblica (1791-1804); I o Imprio (1804-abril de 1814) e os Cem Dias (m aro-junho de 1815); Restaurao (1814-1830); M onarquia de Julho (1830-1848); 2a Repblica (1848-1852); 2o Im prio (1852-1870); 3a R epblica (1871-1940); Estado Francs/Vichy (1940-1944); Governo provisrio da Repblica (1944-1947); 4a Repblica (1947-1959); 5a Repblica (com a proclamao da nova Constituio, em 26 de setembro de 1959). (N .T.).

    12 Em relao a esses aspectos bem conhecidos, ver C A R B O N E L L e K EY LOR.

    .111.is, todos os homens >|ur, no sei ulo XIX, exerceram influencia na 1'rana, im luindo aqueles que se contentaram com os primeiros anos do ensino mdio sem terem atingido o baccalaurat, fizeram a matria de histria.

    Pelo menos, em princpio. D e fato, muitas vezes, verificou-se uma

  • 0 estudo, de acordo com os autores da Antigidade comparados entre si, das mudanas introduzidas na constituio e na sociedade atenienses, desde o final das Guerras Mdicas at Alexandre; a histria da ordem dos cavaleiros romanos, desde os Gracos at a morte de Augusto; e o estado moral e poltico da Glia no m om ento das invases, de acordo com os autores contemporneos ( G e r b o d , 1965, p. 127). Ora, independentem ente de terem preparado o concurso por si mesmos ou na Ecole normale suprieure (ENS), os agrgs15 acabaram por dar o tom, apesar de seu reduzido nmero: 4 a 6 em cada ano e 33 em 1842. Eles eram professores nos liceus mais importantes e seus compndios por exemplo, a coleo lanada por Victor Duruy, jo vem agrg estudante da ENS, nas vsperas dos acontecimentos de 184816 - impuseram um a concepo mais abrangente da histria.

    O mesmo m ovim ento fortaleceu o lugar reservado histria contempornea; na verdade, ela nunca tinha sido totalmente excluda. A lista das questes previstas pelo programa de 1840 para o exame de baccalaurat - os examinadores no tinham o direito de modificar os termos em que elas haviam sido formuladas - compreendia, por exemplo, 50 questes sobre a histria antiga, 22 sobre a histria da Idade M dia e 23 de histria m oderna at 1789. Em 1852, a fronteira simblica da R evoluo Francesa foi transposta e a Antigidade perdeu sua preem inncia, limitada a 22 questes, contra 15 sobre a histria medieval e 25 sobre a histria dos tempos modernos at o I o Imprio.

    N o entanto, tendo sido ministro de 1863 a 1869, Victor D uruy increm entou, de maneira decisiva, a im portncia dos ltimos sculos: em 1863, o programa de retrica inclua o perodo entre meados do sculo XVII e 1815; por sua vez, o de filosofia referia-se Revoluo de maneira detalhada e prosseguia at 1863, segundo um a perspectiva am plam ente aberta para os outros pases e para a histria que designaramos com o econmica e social.

    1. Victor Duruy: Algumas questes de seu programa24- Rpido desenvolvimento da Unio Norte-Americana, suas causas. - Descoberta das jazidas aurferas da Califrnia e da Austrlia: efeitos da abundncia de ouro no mercado europeu. Guen-a entre

    15 Estudante que obteve xito no concurso de agrgation , por conseguinte, portador do ttulo de agrg e titular do posto de professor de liceu ou de faculdade. Para o ensino superior na Frana, consultar: http://vvw w .france.org.br. (N .T.).

    16 As Jornadas de Fevereiro criaram a 2a Repblica, que estabeleceu o sufrgio universal, assim com o aliberdade de imprensa e de reunio. (N .T.).

    20

    os I .t.ulo'. do Niuic r m dn Sul. Situao das antigas colnias espanholas. lxpedio do Mxico. Tomada de Puebla e ocupao do Mxico [...].

    26- Novas caractersticas da sociedade moderna:

    Io Relaes estreitas estabelecidas entre os povos pelas estradas de fenx> e pela navegao a vapor, pelo telgrafo eltrico, pelos bancos e pelo novo regime comercial f...].

    2 Solicitude dos governos pelos interesses materiais e morais do maior nmero possvel de pessoas.

    3o Pela igualdade dos direitos e pela livre expanso da atividade industrial, a riqueza produzida em maior abundncia e se distribui em melhores condies [...]. Grandeza, no sem perigo, da civilizao moderna, necessidade de desenvolver os interesses morais para compensar o imenso desenvolvimento dos interesses materiais. - Participao da Frana na obra geral de civilizao. (Pioietta, 1937, p. 834-835)

    Revista em vrias ocasies, essa arquitetura dos programas de histria subsistiu at 1902; ela se caracterizava por um percurso contnuo dos tempos histricos. Assim, o programa de 1880 reservava 2 horas semanais para o ensino da histria antiga, a com ear pela classe de six im e at a quatrim e. E depois, 3 horas, nas classes seguintes: a Idade M dia, em troisime, at o ano 1270; em seconde, de 1270 a 1610; em retrica, de 1610 a 1789; e, de 1789 a 1875, em filosofia ou matemtica elementar.

    A constituio pelos republicanos de um verdadeiro ensino superio r na rea das letras, nas ltim as dcadas do sculo X IX , serviu de co roam ento a essa evoluo. A agrgation tornava-se a via norm al de recru tam en to de professores especializados, form ados da em diante po r historiadores profissionais das faculdades de letras; ela inclua um a iniciao pesquisa com a obrigao de obter, previam ente, o D ip lo ma de Estudos Superiores (1894), predecessor da maitrise.1' A reform a de 1902 acabou po r conferir as caractersticas desse ensino, ao estabelecer a distino entre um prim eiro e um segundo ciclos: em cada um , percorre-se a totalidade dos perodos, desde as origens ao tem po presente ( D u b i e f , s.d., p. 9 -18).18

    17 Diploma de 2 ciclo, equiparado graduao plena no Brasil, outorgado no final do 4 ano

    universitrio. (N .T.)

    18 A estrutura em dois ciclos foi interrompida entre 1935 e 1938. Para uma comparao sistemtica dos programas, ver LEDUC; M AR CO S-A LV AREZ; LE PELLEC, 1994.

    21

    http://vvww.france.org.br

  • Terceiro aspecto interessante: essa evoluo direcionada para um a histria mais autnoma, mais contempornea e mais sinttica foi conflitante; no foi uma evoluo linear, mas uma sucesso de avanos e recuos, associados ao contexto poltico. A introduo da histria como matria obrigatria deveu- se aos constituintes, inspirados pelos idelogos - por exemplo, R oyer-C o- llard - entre 1814 e 1820. A criao da agrgation, seu fortalecimento e a multiplicao das ctedras especializadas caracterizaram a Monarquia de Julho.19 O Imprio liberal e, em seguida, a 3a Repblica consagraram a importncia da histria nos programas e horrios; inversamente, a passagem pelo poder dos ultra-reacionrios de 1820 a 1828, assim como o Imprio autoritrio, foram perodos de infortnio para a disciplina histria .

    C om efeito, do ponto de vista poltico esse ensino no foi neutro. Certam ente, de todos os lados, repetia-se que ele deveria evitar as consideraes demasiado genricas e os juzos categricos; de acordo com seus partidrios, ele poderia desenvolver o am or pela religio e pelo trono. Apesar de todos os seus esforos, a histria ensinava, por definio, que os regimes e as instituies eram mutveis; tratava-se de um em preendim ento de dessacralizao poltica. A reao podia aceitar uma histria reduzida cronologia, centrada na histria sagrada e no passado mais longnquo; ao abordar os tempos m odernos, e mesmo detendo-se no patamar de 1789, ela tornava-se suspeita de conivncia com o esprito m oderno.

    Inversamente, os partidrios da histria assumiram essa funo poltica, conform e vimos mais acima, com o programa de V. Duruy. O s republicanos reafirmaram, ainda com mais nitidez, a mesma posio: A histria da Frana, em particular, dever enfatizar o desenvolvimento geral das instituies do qual oriunda a sociedade moderna; ela dever inspirar o respeito e o apego aos princpios que servem de alicerce a essa sociedade .20 O lugar da histria no ensino m dio remetia explicitamente a uma funo poltica e social: tratava-se de um a propedutica da sociedade m oderna, tal com o ela procedia da R evoluo e do Imprio.

    Os historiadores no debate p b licoN os liceus e colgios do sculo X IX , a histria foi, assim, um ensino

    precocem ente obrigatrio que evoluiu em direo ao contem porneo e sntese, graas a professores especializados, atravs de conflitos que lhe

    19 Perodo de 1830 a 1848 que corresponde ao reinado de Lus Filipe, marcado pela supremacia poldca e econm ica da burguesia. (N .T.).

    20 Portaria de 12 de agosto de 1880, ver G E R B O D , 1965, p. 130.

    22

    1 1 tiilriii.mi 111n.i sigmlit i politit.i ( social. N o entanto, convm desco- hi ti ,is r.i/e.s de tais car.it icrstiias: por que m otivo esse ensino se tom ou obrigatrio? C om o teria adquirido essa importncia?

    A resposta no pode ser procurada no prprio ensino j que ele carecia dos m ritos pedaggicos que poderiam justific-lo. A m aneira caricatural com o a histria havia sido ensinada no incio do sculo X IX tenderia a conden-la: o simples aprendizado de listas de datas ou reinados no poderia, de m odo algum, servir de formao. A legitimidade e a necessidade relativamente ao ensino da histria baseavam-se em outros aspectos, explicando-se por razes semelhantes s que justificaram a posio considervel ocupada pelos historiadores no debate pblico da poca.

    Existe a u m paradoxo. C om efeito, o ensino da histria nas faculdades inexistia, praticamente, durante os primeiros 75 anos do sculo XIX; no entanto, nesse perodo, grandes historiadores acabaram suscitando o interesse do pblico, prom ovendo debates e conquistando notoriedade. D e fato, em Paris, existiam algumas ctedras de histria - em grandes estabelecimentos, tais com o o Collcge de France,2] Ecole normale suprieure e Sorbonne - , cujo funcionam ento era bastante diferente das faculdades inte- rioranas de letras: seus titulares no se dirigiam a estudantes, mas a um a num erosa audincia culta em um a poca em que as reunies pblicas careciam de autorizao e a imprensa estava sob controle. Nesses recintos preservados, os cursos de histria assumiam, inevitavelmente, um alcance poltico sublinhado, s vezes, por aplausos. O corria que, por sentir-se incom odado, o governo poderia ordenar a suspenso do curso, tal como aconteceu com Guizot, em 1822; a retomada de sua ctedra, em 1828, foi saudada com o uma vitria poltica.

    O grupo desses historiadores era impressionante. Ao lado de G uizot, M ichelet, Q uinet e, mais tarde, R enan e Taine, conviria contar com autores, tais com o Augustin Thierry, Thiers ou Tocqueville: no debate intelectual de seu tem po, eles ocupavam um lugar central. A histria que escreviam ainda no era a histria erudita dos historiadores profissionais do final do sculo: em vez de um verdadeiro trabalho de erudio, ela baseava-se em crnicas e compilaes; alm disso, o prprio M ichelet, que afirmava ter extrado sua obra de um a freqncia assdua dos arquivos, segundo parece, havia limitado sua consulta s ilustraes. Por outro lado, tratava-se de uma histria bastante literria, no estilo propositalmente

    21 Estabelecimento de ensino superior, fora da Universidade, fundado em Paris, em 1529, por Francisco

    I o. (N .T.).

    23

  • oratrio: alis, situao facilmente explicvel pelas condies em que ela se desenvolvia. Os professores de universidade republicanos de 1870- 1880, sensveis ao atraso da Frana diante da erudio alem, iro criticar seus predecessores por terem sido artistas, em vez de cientistas. N o entanto, por sua qualidade de escrita, a obra desses historiadores ainda continua legvel, atualm ente.

    T anto mais que essa histria dem onstra certa ousadia. Seu pblico no teria suportado que eles se perdessem em detalhes insignificantes. Eles tinham predileo pelos amplos afrescos cronolgicos, percorrendo vrios sculos em algumas aulas, o que lhes permitia identificar as grandes evolues. Deste m odo, sua histria no era estritamente poltica; raram ente se referiam ao detalhe dos acontecim entos, preferindo resum ir a significao global e respectivas conseqncias. Seu objeto era mais am plo: tratava-se da histria do povo francs, da civilizao (Guizot) ou da Frana (Michelet). A luz das evolues sociais, eles explicavam as transformaes das instituies; em suma, tratava-se de um a histria, simultaneamente, social e poltica.

    N a verdade, essas obras histricas marcadas, s vezes, pela reflexo filosfica ou pelo que designamos, atualm ente, por cincia poltica, tal com o a de Tocqueville giravam em torno de um a questo central, ou seja, aquela que a R evoluo Francesa havia form ulado sociedade do sculo X IX .22 Da, a suspeio atribuda histria pelos reacionrios: para comear, ela aceitava a R evoluo, ao consider-la com o um fato que se explica e no com o um erro, um a falta ou um castigo divino. Conservadores ou republicanos, os historiadores partiam da R evoluo com o fato consum ado j que eles andavam procura de suas causas e conseqncias.

    Ora, a sociedade francesa do sculo X IX se questionava, predom inantem ente, sobre a questo poltica formulada por esse evento; tratava-se do conflito entre o Antigo R eg im e e o que se designava, ento, com o a sociedade m oderna ou civil , ou seja, sem rei nem deus. D iferentem ente do que ocorria no R eino U nido, a problemtica no se referia ao pauperismo. O problema suscitado pelas revoltas operrias no tinha a ver propriam ente com o desenvolvimento econm ico, mas com o regime; alm disso, elas eram analisadas com o novas figuras da R ev o lu o. N o entanto, esse conflito poltico com portava verdadeiros desafios

    22 A respeito deste aspecto, ver, evidentem ente, os trabalhos de Franois Furet - citados na bibliografia sobre as leituras da R evoluo pelos historiadores e polticos do sculo XIX.

    24

    sociais: de lato, tratava-se dos princpios que serviam de suporte para organizar a sociedade inteira. Assim, na sociedade francesa, a histria assumia o lugar que a econom ia ocupava na sociedade britnica. D o outro lado do Canal da Mancha, a amplitude do desemprego e da misria fazia apelo a uma reflexo econmica: o debate intelectual era dom inado por Adam Smith, R icardo e Malthus. N a Frana, Guizot, Thiers, A. Thierry, Tocqueville, M ichelet tom aram -se protagonistas por abordarem a questo decisiva da R evoluo e das origens da sociedade moderna.

    Ao proceder desta fonna, eles forneciam aos franceses a explicao de suas divises, conferindo-lhes sentido, o que lhes permitia assumi-las e viv-las sob o m odo poltico e civilizado do debate, em vez do m odo violento da guerra civil. P or um desvio reflexivo, a mediao da histria perm itiu assimilar e integrar o acontecim ento revolucionrio, alm de reordenar o passado da nao em funo de tal evento (Jo u t a r d , 1993, p. 543-546). Pela histria, a sociedade francesa representou-se a si mesma, procurou sua prpria compreenso e refletiu sobre si mesma; neste sentido, profundam ente exato que a histria serve de fundam ento identidade nacional.

    A m aneira com o, aps 1870, a escola histrica francesa adotou o m odelo da erudio alem confirma essa anlise. Seignobos, po r exem plo, depois de ter elogiado a erudio crtica dos alemes, no deixou de censur-los po r esquecer a com posio h istrica ; eles careciam de idias gerais e de um trabalho de organizao e criao. A primeira vista, tratava-se de um a acusao surpreendente po r parte de um historiador que criticava Guizot, Thiers e M ichelet por fazerem literatura; essa acusao, porm , traduzia um apego fundamental funo social da histria, tal como ela se havia consolidado na Frana. A histria - escreve ele - , em vez de relatar ou comprovar, feita para responder s questes sobre o passado suscitadas pela observao das sociedades presentes (S e i g n o b o s , I884, p. 35-60). N o mesmo artigo, ele fixava-lhe com o objeto a descrio das instituies e a explicao de suas mudanas, de acordo com um a concepo com tiana em que haveria alternncia entre-perodos de estabilidade e revolues. Mas tal postura vem a dar no mesmo. D e fato, por instituio, ele entendia todos os usos que garantem a unio dos homens na sociedade ( S e i g n o b o s , 1884, p. 37). O problem a central era, portanto, o da coeso social cuja m anuteno cabe s instituies , o que remetia fragilidade da sociedade francesa ou, antes, ao sentim ento experim entado pelos contem porneos, obcecados pela sucesso de revolues que m arcaram o sculo X IX . Eis p o r que, na m em ria assim

    25

  • construda, no h.ivi.i lugai par.i mem rias eom plem eiitares, ideolgicas, sociais ou regionais.23

    Tendo sido, ao lado de Lavisse, um dos organizadores dos estudos de histria nas faculdades, no final do sculo, Seignobos colocava, assim, as tcnicas da erudio alem a servio de um a concepo da histria herdada da prim eira metade do sculo X IX : ele perm itia que a histria prosseguisse a mesma funo social ao beneficiar-se dos prestgios conjugados da m odernidade com a cincia.

    N o incio do sculo X X , os programas do ensino m dio, elaborados por Lavisse e Seignobos, confirm aram essa orientao que j havia sido encetada por Duruy. Ela foi explicitada por Seignobos (1984): O ensino da histria uma parte da cultura geral por levar o aluno a com preender a sociedade em que ele viver, tornando-o capaz de tom ar parte na vida social . A histria era, neste caso, uma propedutica do social, de sua diversidade, de suas estruturas e de sua evoluo. Ela ensinava aos alunos que, por ser normal, a mudana no deveria causar receio; a histria mostrava-lhes com o os cidados podiam dar sua contribuio para tal efeito. Em um a perspectiva progressista e reformista, a m eio cam inho das revolues e do imobilismo, tratava-se exatamente de transformar a histria em um instrum ento de educao poltica .

    O sculo XX: uma histria fragmentada

    O ensino fundamento/: uma histria diferenteEnquanto o debate poltico esteve limitado aos notveis, a histria

    referia-se elite culta e era ministrada apenas no ensino mdio. N o entanto, com a democracia, a poltica tom ou-se o negcio de todos; neste caso, levantou-se a questo da histria no ensino fundamental.

    Neste ponto, as datas so eloqentes: em 1867, quando o 2o Imprio se liberalizava, a histria tomou-se, em princpio, matria obrigatria, no ensino fundamental. Entretanto, na prtica, ela se imps nas classes som ente aps o triunfo dos republicanos: em 1880, fzia parte da prova oral para a obteno do Certificado de Estudos24 e foi necessrio esperar o ano de 1882 para que viesse a ocupar seu lugar definitivo nos horrios - 2 horas por semana - e programas da escola elementar.25 O ensino da histria foi

    23 De acordo com a lcida observao de JO U T A R D , 1993.

    24 Diploma outorgado no final da 8a srie. (N .T.).

    25 Refere-se ao perodo at a 4a srie. (N .T.).

    26

    implementado, ntao, com seu desenrolai regulai e seus suportes peda ggicos; por sua vez, o com pndio tornou-se obrigatrio em 1890. A histria na escola primria atingiu seu apogeu aps a Grande Guerra: por uma portaria de 1917, foi instituda um a prova escrita de histria ou de cincias (por sorteio) para a obteno do Certificado, j m encionado.

    Em relao ao ensino m dio, a defasagem cronolgica patente, duplicando-se por um a diferena fundam ental no esprito e nos m todos. Enquanto a continuidade reinava entre a histria do ensino mdio, por u m lado, e, por outro, a dos grandes historiadores da primeira m etade do sculo ou a dos historiadores profissionais da universidade republicana, a orientao era diferente no ensino fundamental: a histria da escola primria difere da histria tanto dos liceus, quanto das faculdades.

    Em prim eiro lugar, ela dirigia-se a crianas: para ser com preensvel, convinha que fosse o mais simples possvel, evitando raciocnios dem asiadam ente detalhados. N o entanto, alm das exigncias pedaggicas, outros aspectos foram objeto de discusso. Os republicanos contavam com a histria para desenvolver o patriotismo e a adeso s instituies; alm de ter o objetivo de inculcar conhecim entos bem definidos, o ensino da histria deveria levar partilha de sentim entos. O am or pela ptria no se aprende de cor, mas nasce do corao ,26 afirmava Lavisse. E ainda: Evitem os, definitivam ente, aprender a histria com a insensibilidade que convm ao ensino do uso dos particpios; neste asp ec to , tra ta -se da carne de nossa carne e do san g u e de nosso sangue (NoRA, 1984, p. 283).

    Esse objetivo supunha o recurso s imagens, narrativas e lendas. A determinao dos republicanos relativamente construo de uma identidade, indissociavelmente patritica e republicana, ficou perfeitam ente demonstrada por seus esforos para comear o ensino da histria no m aternal (Luc, 1985, p. 127-138); com efeito, desde os cinco anos de idade, eles previam historietas, narrativas e biografias extradas da histria nacional . Tratava-se de construir um repertrio com um de lendas em que, incessantem ente, fossem evocadas as mesmas figuras, desde V ercinge- trix at Joana d Arc. Apesar de conscientes do exagero de tal ambio, as inspetoras hesitaram contestar, em 1880, um ensino que, aparentemente, era defendido com tanto em penho pelos polticos. Foi necessrio esperar

    26 N o original, Lam our de la patrie ne sapprend point par cceur, il sapprend par le cceur - trocadilho, em francs, a partir de um vocbulo cujo timo latino cor, cordis, corao . (N .T.).

    de

    Mariana

  • o incio do sculo XX para que a historia e a geografia nacionais deixassem de aparecer no programa do maternal.

    O ensino da histria teria atingido o objetivo fixado pelos republicanos? difcil apresentar um balano. Graas tese de B. Dancei, sabemos com o esse ensino era ministrado. A m em ria ocupava a um lugar decisivo, apesar da resoluo dos pedagogos oficiais: C onvm confiar m emria apenas o que a inteligncia tenha com preendido perfeitam ente , prescrevia Com payr. D e fato, a aula de histria organizava-se em tom o de palavras-chave, inscritas no quadro negro, explicadas e com entadas pelo mestre, antes de se tornarem o piv de perguntas, cujas respostas constituam seu resumo que deveria ser aprendido e recitado na aula seguinte. Os programas no privilegiavam a R evoluo Francesa, nem a histria do sculo X IX , abordados, em princpio, 110 terceiro trimestre do cours m o y en f com efeito, esses temas ocupavam um lugar central no teste destinado obteno do Certificado de Estudos. N o entanto, as provas da dcada de 1920, encontradas no departam ento de Som m e, no autorizavam qualquer tipo de triunfalismo: apenas metade dos alunos candidatos a esse certificado que, por sua vez, nem representavam 50% dos indivduos de sua faixa etria foram capazes de responder, sem erros, a um pequeno ncleo de conhecim entos sobre 1789, a Tom ada da Bastilha ou a batalha de Valmy.28 O precrio conhecim ento de histria adquirido por um entre quatro alunos do ensino fundamenta] j , certamente, alguma coisa, mas seria possvel esperar m elhores resultados...

    Neste caso, deveramos tirar a concluso de que a escola primria fracassou na transmisso da mensagem que lhe havia sido confiada pelos republicanos? Isso no certo. A idia de que a R evoluo teria institudo um corte entre um antes no qual, certamente, os reis esforaram- se por reunir o territrio, mas no qual predom inavam os privilgios, ao lado da ausncia de liberdade, e 11111 depois perseguido pela Repblica com a garantia da liberdade, o estabelecim ento da igualdade entre os cidados e, graas escola, a possibilidade do progresso - parece ser, efetivamente, objeto de um consenso.

    Pelo menos, o ensino da histria teria conseguido impor-se: os franceses j no concebem ensino fundamental - por m aior fora de razo,

    27 Corresponde, aproxim adam ente, 4a srie. (N .T.).

    28 Em pleno perodo revolucionrio (1789-1799), a vitria obtida nesta batalha (20 de setembro de 1792)contra os prussianos interrompeu a invaso do territrio e devolveu a confiana ao exrcito francs. (N.T.).

    28

    ensino mdio m htsloiu. 1 liia / ou no, tal ensino parece sei indis pensvel; o que ser demonstrado por suas vicissitudes ulteriores.

    As p erip cia s da segunda metade do sculo XXAo universalizarem a escolarizao alm da escola elem entar, em

    estabelecimentos do I o ciclo29 que, progressivamente, ganharam autonomia, as reformas escolares do perodo entre 1959 e 1965 transformaram a prpria funo da escola primria. Da em diante, ela deixou de ser a nica escola do povo e de ter a obrigao de fornecer sozinha aos futuros cidados a bagagem de conhecim entos de que teriam necessidade durante a vida inteira; as lacunas do ensino da escola primria sero completadas, posteriorm ente, pelo colgio de ensino geral ou mdio.

    Essa transformao morfolgica do sistema escolar duplicou-se por um a evoluo pedaggica. A dcada de 1960 acolheu, de bom grado, as abordagens psicossociolgicas ou psicolgicas: na empresa, verificou-se a moda da dinmica de grupo ou dos seminrios inspirados por Carl R o - gers; no ensino, com eou-se a pensar que Piaget e os psiclogos teriam algo a dizer. Prevaleceu a idia de que a democratizao do ensino supunha um a renovao sensvel dos mtodos.

    O ensino fundamental passou, ento, por um profundo questionam ento que atingiu o estatuto de todas as disciplinas. A aprendizagem das linguagens fundamentais - francs e matemtica opunham -se disciplinas, tais com o histria, geografia e cincias; de acordo com as instrues oficiais, deixou de ser necessria a aquisio, na faixa etria de 6 a 11 anos, dos conhecim entos indispensveis a essas disciplinas, um a vez que estes sero garantidos no decorrer do I o ciclo. Em 1969, a reforma do terceiro tem po pedaggico reservou 15 horas semanais s linguagens bsicas, 6 horas educao fsica e esportiva, alm de 6 horas s atividades de estm ulo . Para privilegiar a fomiao intelectual , a escola elementar teve de abandonar o procedim ento de memorizao dos conhecim entos, tornando, assim, o esprito curioso em relao sua existncia e levando-o a participar de sua elaborao; era a condenao dos programas, em beneficio de um a ao pedaggica convidada a servir-se de todas as oportunidades oferecidas pelo ambiente de vida imediato ou longnquo e a privilegiar o trabalho individualizado, a investigao e a pesquisa de docum entos (Luc, 1985, p. 145-207).

    29 C om preende, aproxim adam ente, o perodo entre a 5a e a 8a sries. (N .T.).

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  • A filosolia inspiradora dessa le lo in u nao era absurda. N o entanto, o estimulo teria pressuposto medidas de acompanhamento que foram me

    nosprezadas. C om base na pretenso de suscitar as iniciativas, os professores primrios haviam sido levados a descobrir por si mesmos a maneira como implementar tais princpios. Ora, esse procedimento era m uito mais difcil e complexo que a aplicao de um programa bem definido. Convidados a inovar sem ajuda nem instrues, os professores primrios adotaram as mais diversas solues: uns uma minoria da ordem de um em cinco abandonaram tal ensino, em especial, no curso elementar; outra minoria, um pouco mais numerosa, disps-se a ministr-lo de forma episdica; os restantes continuaram a ensinar a histria de forma regular, dos quais cerca da metade ou seja, 25% do total conservou o programa anterior.

    A transform ao da histria em atividade de estm ulo, na escola primria, j havia sido em preendida h vrios anos quando outra reform a havia includo esta matria, precisam ente, no I o ciclo. Apesar de sua hostilidade aos m petos reform istas, o m inistro R e n H aby em preendeu, nesse nvel, a unificao do ensino da histria, geografia e de um rudim ento de cincias econm icas e sociais, em nom e da afinidade entre essas disciplinas relativam ente a seus procedim entos, objetos e objetivos. Ainda neste aspecto, a in teno era interessante: a interdisciplina- ridade em m oda, nessa poca poderia p erm itir a abordagem do m esm o objeto por vrios procedim entos convergentes. Entre os historiadores, um a corrente inovadora oriunda de M aio de 68 preconizava a quebra dos com partim entos estanques; entretanto, em seu entender, o m inistro era suspeito de p re ten d er subjugar o ensino s exigncias de u m capitalismo m odernizador. P o rtan to , ele foi com batido, direita, pelos conservadores e, ao m esm o tem po, esquerda, pelos reform adores que o acusavam de traio.

    Foi um deus-nos-acuda. D urante o ano de 1980, verificou-se uma mobilizao miditica, sem precedentes, em favor da histria: na im prensa escrita, espocaram tanto as crticas, quanto as invectivas. A campanha culm inou no incio de maro: n o dia 4, por ocasio do lanam ento de seu 400 nm ero, a revista Historia organizou uma jornada de debates com a participao do ministro, de polticos por exemplo, M . Debr, E. Faure, J--P- C hevnem ent - e de historiadores, tais com o F. Braudel, E. Le R o y Ladurie, M . Gallo, H . Carrre d Encausse, alm do presidente da Associao dos Professores de Histria e de Geografia (APHG). T endo recebido a espada de acadmico no dia 5, com a cerim nia de recepo na Acadmie marcada para o dia 13, A. D ecaux conferiu a esse debate um a repercusso

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    s( iu preccilriilt s ! i>. t!u\

  • A P I i l I I t ) II

    A profisso de historiador

    A histria est presente na nossa sociedade no apenas atravs de uma disciplina universitria, de livros e de algumas grandes figuras, mas tam bm - com o ficou demonstrado no decorrer dos debates de 1980 - por um grupo de pessoas que se afirmam historiadores com o acordo de seus colegas e do pblico. Esse grupo, por sua vez, diversificado, com preendendo essencialmente professores e pesquisadores, est unido por uma formao com um , um a rede de associaes e de revistas, assim como pela conscincia ntida da importncia da histria. Alm de compartilhar critrios de julgam ento - sobre a produo de obras histricas, sobre o que um bom ou ru im livro de histria, sobre o que um historiador deve, ou no deve, fazer , ele est unido por normas comuns, a despeito de previsveis clivagens internas. E m suma, estamos em presena de um a profisso poderam os dizer, quase, de um a corporao se levarmos em considerao o grande nm ero de referncias ao ofcio, oficina e bancada de trabalho que circulam no interior do grupo.

    A organizao de uma comunidade cientfica

    A profisso de historiador aparece na transio da dcada de 1880 quando as faculdades de letras propuseram um verdadeiro ensino da histria.' A nteriorm ente, havia amadores muitas vezes, de talento; e, s vezes, de gnio , mas no um a profisso, ou seja, um a coletividade organizada com suas regras, seus rituais de reconhecim ento e suas carreiras. Os

    1 Sobre esse assunto, poderem os consultar alm das obras de C A R B O N E L L (1983) e K EY L O R (1975) - o livro de C hristophe Charle, La Rpubtique des universitaires (1994); o artigo de N O IR IE L (1990) e o texto de C O R B IN (1992).

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  • nicos especialistas, formados nos mtodos da erudio pela l:colc des chai tes, fundada em 1821, eram os arquivistas palegrafos, em geral, isolados nas sedes das administraes regionais e absorvidos pela edio cie documentos e inventrios, sem vnculo com liceus e faculdades.

    Ao tom arem o poder, os republicanos pretendiam criar na Frana, a exem plo do que ocorria na Alemanha, um verdadeiro ensino superior; tal iniciativa exigia um a profunda reforma para fornecer verdadeiros estudantes s faculdades de letras, graas s bolsas concedidas para a obteno de licenar (1877) e de agrgation (1880), alm da criao, ao lado de cursos pblicos, de conferncias hoje, falaramos de seminrios. Assim, os estudantes tiveram a possibilidade de se iniciar, pela prtica, nos mtodos rigorosos da erudio, tais com o eles haviam sido ilustrados pelos beneditinos do sculo XVIII ou pelos alunos de VEcole des chartes e eram praticados pelas universidades alems.

    Essa reform a recebeu o vigoroso apoio de um a gerao de j o vens historiadores, sensveis ao prestgio da historiografia alem e crticos relativam ente ao am adorism o literrio dos historiadores franceses. P ouco antes da G uerra de 1870, a Revue critique d histoire et de littrature, fundada em 1866, a exem plo de Historische Zeitschrift, criticava Fustel de Coulanges, au tor de L a Cit antique (1864), po r no ter procedido a um a anlise suficientem ente sria dos fatos e detalhes; no en tan to , a confirm ao da nova histria cientfica ocorreu apenas com a criao da R evue historque p o r G. M onod e G. Fagniez, em 1876, e com a nom eao de E. Lavisse com o d iretor do D epartam ento de histria na Sorbonne ( N o r a , 1986).

    A profisso de historiador construa-se na conjuno desse empreendimento de cientificizao da histria, que lhe conferia as normas m etodolgicas, com a poltica universitria dos republicanos ao garantir-lhe um a moldura institucional. C om efeito, a reforma implicou a criao de postos de professores universitrios ao lado das ctedras que se multiplicaram e se especializaram: na Sorbonne, por exemplo, as duas ctedras de histria existentes em 1878 passaram, em 1914, para 12.3 O departamento ganha visibilidade, sem atingir uma dimenso considervel em decorrncia do nm ero reduzido de estudantes: em seu conjunto, as faculdades de

    2 Ttulo outorgado no final do 3o ano universitrio. (N .T.).

    3 Cifras fornecidas por D U M O U L IN (1983); por sua vez, K EY L O R (1975) apresenta nm eros umpouco mais elevados.

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    I r h r. nu lu i t w ln .i S o i b o i i i n \ n u i n i p . u a i i i m e n o s d e 100 Icvikvs e m h is t r ia ,

    poi .mo, n o f i n a l d o s c u l o X I X 1 e , e m 1914, e la s c o n t a v a m a p e n a s c o m V > i . i t e d r a s d e h i s t r i a .

    A dupla hierarquia, estatutria e geogrfica, dos postos nas faculdades perm itiu a organizao de carreiras; as mais bem -sucedidas conduzi.mi do posto de professor universitrio no in terior a um a ctedra na Sorbonne ( C h a r l e , 1990, p. 82 ss.). N o entanto, a tomada de decises com petia aos pares: as nom eaes eram feitas pelo m inistro a partir da proposio do Conselho de cada faculdade. Os candidatos eram julgados, portanto, pela bitola de seu valor cientfico, tal com o ele havia sido apreciado pelos colegas da disciplina, e po r sua notoriedade no m undo acadm ico, um a vez que os votantes eram os professores titulares de todas as disciplinas.

    C o m o as carreiras dependiam do ju lgam ento dos pares, as n o rmas profissionais adotadas po r eles im punham -se corporao e contribuam para unific-la; a tese deixou de ser um a dissertao para tornar-se um trabalho de erudio, elaborado a partir de docum entos, e, em prim eiro lugar, de docum entos de arquivos. O respeito pelas regras do m to d o crtico - form alizado, um po u co mais tarde, p o r Langlos e Seignobos, para uso dos estudantes ( L a n g l o i s ; S e i g n o b o s ,I 897) quando um prim eiro trabalho de pesquisa lhes era im posto antes de se subm eterem prova da agrgation, para a ob teno do D iploma de Estudos Superiores (1894), to rnou-se a condio prvia absoluta de qualquer reconhecim ento pelos pares. A corporao adotou critrios de admisso e de excluso. D e um a form a bastante pragm tica, ela tam bm produziu m todos de trabalho: a partir de ento , as fichas substituram os cadernos para as anotaes extradas dos docum entos; ao m esm o tem po, as bibliografias e as referncias de rodap se tom aram incontornveis.

    A profisso de historiador que se constituiu nas faculdades, entre 1870 e 1914, no deixou de permanecer, entretanto, vinculada ao ensino mdio; com efeito, a m aior parte das carreiras de professor de faculdade comeavam pela obteno de um posto de agrg em um liceu. Alis, no seria essa a nica posio que perm itia a um pesquisador preparar sua lese? A nom eao para a faculdade no descartava a eventualidade de algum vir a ser integrado ao ensino m dio porque a preparao dos

    4 G ER B O D (1965, p. 115) indica 40 licences em 1871 e, em 1898, 70.

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  • e s t u d a n t e s p a r a a agrgation c o n s t i t u a u m a d a s p r i n c i p a i s f u n e s r io s p r o f e s s o r e s ;5 p o r t a n t o , a s d u a s o r d e n s d e e n s i n o p e r m a n e c e r a m s o l i d r i a s .

    Essa solidariedade acarretou particularidades notveis que marcaram a singularidade dos historiadores franceses. Os professores universitrios britnicos ou alemes no possuam vnculos anlogos com o ensino mdio, nem eram contratados entre os professores de grammar school ou de Gym- nasium. As qualidades retricas indispensveis ao sucesso no concurso da agrgation tinham, naturalmente, menos importncia no exterior que na Frana e era possvel contentar-se em ler seu texto . Entre os nossos vizinhos, inversamente, pela pesquisa que os candidatos s ctedras universitrias se destacam. Eles perm aneciam na rbita dos seminrios que os haviam formado e constituam um a plataforma de investigao, sem equivalente fora da Frana.

    Alm de explicar a preferncia pelas idias gerais e a im portncia atribuda s qualidades de com posio e de expresso, o vnculo entre a profisso de historiador e o ensino m dio justificava o parentesco bastante forte que unia a histria geografia. Todos os historiadores franceses fizeram geografia porque essa disciplina obrigatria no concurso de agrgation e, com a histria, todos eles a ensinaram aos alunos do ensino m dio; deste m odo, na Frana, a geografia tem sido ensinada nas faculdades de letras, e no nas faculdades de cincias, com o ocorre no exterior. Essa singularidade epistem olgica foi fortalecida pela influncia de mestres, tais com o Vidal de Lablache, cujo livro Tableau de la gographie de la France6 m arcou sucessivas geraes de historiadores e, em particular, os fundadores dos Annales, com o eles prprios tinham prazer em sublinhar; deste ponto de vista, conviria estabelecer um balano das conseqncias positivas e negativas do im pacto da geografia sobre B lo- ch, Febvre ou Braudel.

    A escola dos Annales e a histria-pesquisa

    Uma revista de com bate

    N o universo acadmico, a profisso de historiador se beneficiou, no final do sculo X IX , de um a dupla preem inncia. Por um lado, com o

    5 Ver sobre este aspecto, o estudo de C H ER V EL, 1992, em particular, o captulo VIII, Lagrgation et les disciplines scolaires .

    6 T om o I de Histoire de la France depuis les origines jusqu la R vo lu tio n , dirigida por Lavisse (1903).

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    unos mar. ,n m u, * Itm* >< < u u! da historia era eminente: pela histria, a mu icdade l iamt i i rl leiu sobre si mesma, li, por outro, a histria constituiu um m odelo m etodolgico para outras disciplinas: a crtica literria tornou-se histria literria e a filosofia, histria cia filosofia. Para escapar subjetividade do exprimir-se corretam ente e garantir um texto rigoroso pretensamente cientfico , nas matrias literrias , os contem porneos contavam apenas com os mtodos da histria.

    Esse duplo predom nio foi ameaado pela emergncia da sociologia com D urkheirn e a revista Anne sociologique, desde 1898. A sociologia pretendia propor um a teoria de conjunto da sociedade a partir de m todos mais rigorosos. Terem os a oportunidade de voltar, mais adiante, de ibrma mais aprofundada, ao im portante debate epistemolgico que, nessa poca, opunha historiadores e socilogos. Ao atacar, em 1903, Seignobos, auxiliar de Lavisse e terico do m todo histrico, Simiand foi mal- sucedido; de fato, por razes complexas - a mais insignificante das quais no foi a ausncia de vnculo histrico com o ensino m dio , a sociologia no conseguiu implantar-se, ento, na universidade francesa.7 O fracasso dos socilogos em se constituir com o profisso deixou intacta, provisoriamente, a posio predom inante dos historiadores.

    A organizao da profisso vai, no entanto, modificar-se sob a influncia de trs fatores, cuja natureza e importncia so bastante desiguais: o definhamento das faculdades de letras, a criao dos Annales e a do C N R S .8 O contexto da dcada de 30 foi bastante desfavorvel para as faculdades. O mercado universitrio se retraiu;9 a criao de ctedras tom ou-se um acontecimento raro e ocorreu, essencialmente, no interior da Frana. O nmero de ctedras de histria 55, em 1914 passou, em 1938, para 68, contando as 12 permanentes da Sorbonne, cuja porta de acesso se tom ou cada vez mais estreita. C om a aposentadoria aos 70 anos e, inclusive, aos 75 para os membros do Institu,10 era necessria um a longa espera pela liberao de uma ctedra: por exemplo, G. Lefebvre, candidato Sorbonne em 1926,

    7 Ver, sobre este aspecto, CLA RK (1973) e K A RA D Y (1976).

    11 Sigla de Centre national de recherche scientifique [Centro Nacional de Pesquisa Cientfica], (N .T.).

    '' Todo este desenvolvim ento baseia-se diretam ente na tese principal de O . D um oulin, Profession historien (1983). E incom preensvel que, contrariamente a inm eros estudos sem o seu valor, essa excelente tese no tenha sido publicada.

    Trata-se do Instituto de Frana, instituio cultural francesa criada em 1795 e formada por 5 Academias: Academia Francesa, Academia das Inscries e das Belas-Letras, Academia das Cincias, Academia das Belas-Artes e Academia de Cincias Morais e Polticas. (N .T.).

    Biblioteca AlphcKVSus d e feuimcraeris 37 IC H S/U F3P

    Mariana MG

  • eleito paia outra ctedra em I'MS, j havia ( omplelado \ anos quando leve acesso ctedra de histria da Revoluo, em 1937.

    O retraim ento e a decrepitude da histria universitria acarretaram um verdadeiro conservadorismo; a renovao m etodolgica, a abertura para novas problemticas e para novos horizontes ficaram comprometidas pelo im obilism o. Em decorrncia, particularm ente, de sua posio no ensino m dio e de seu papel no concurso da agrgation, a histria poltica m anteve sua preem inncia. D o ponto de vista institucional, to rnou-se necessrio procurar paliativos: a dificuldade de acesso Sorbonne aum entou o interesse pelos estabelecimentos de ensino franceses no exterior, tais com o as Escolas de Atenas e de R om a, e ainda mais, em Paris, pela Ecole des hautes tudes (IV seo) e polo Collge de France.

    Sim ultaneam ente, surgiram os prim eiros elem entos do que vir a ser o C N R S ; criada em 1921, a Casse des recherches scientifiques subvencionou os trabalhos em curso. E m 1929, M arc Bloch se beneficiou desse recurso para sua investigao sobre as estruturas agrrias. Vrias instituies - Caisse nationale des lettres (1930), Conseil suprieur de la recherche scien- tifique (1933) e Caisse nationale de la recherche scientifique (1935) prodigalizaram um tratam ento favorvel aos historiadores ao financiarem colees e grandes inventrios. E m 1938, G. Lefebvre obteve um a subveno para mandar em preender pesquisas relativamente situao dos casebres insalubres. Nestas condies, apareceram os primeiros professores com contrato por tem po determinado; alm disso, o Estado chegou a rem unerar pesquisadores profissionais, cuja nica contrapartida consistia em efetuar suas investigaes. N o caso da histria, tratava-se, quase sempre, de pessoas idosas, cujo m rito havia sido reconhecido tardiam ente, tais com o Lon C ahen, secretrio da Socit d histoire modeme, que foi contratado com o professor na rea da pesquisa aos 62 anos.

    Nesse contex to institucional de um a profisso em crise, convm incluir a fundao, po r Marc Bloch e Lucien Febvre, em 1929, dos An- nales d histoire conomique et sociale.11 A iniciativa deve ser analisada, a um

    " Raros episdios da historiografia foram to estudados. C itaremos, em particular, o colquio de Estrasburgo editado por CAKBONELL; LIVET, 1983. D o lado dos defensores da herana, ver os artigos Annales de REVEL e C H A R T IE R , assim com o Histoire nouvelle de G O FF (1978); ver, tambm, os artigos de B U R G U I R E (1979) e de REVEL (1979), o de Pom ian (1986), alm da obra de ST O IA N O V IC H (1976), com prefcio de F. Braudel. N em por isso sero menosprezados os estudos dos adversrios, em particular, CO U T A U -B G A R IE: sua obra, Le Phnomne nouvelle histoire (1989) - s vezes, exagerada apresenta um nm ero considervel de informaes. O texto de J. H. Hexter, Fernand Braudel & the M onde Braudellien [s/c] , retom ado em O/i Historians (p. 61-145), repleto de veive e de perspiccia; alm disso, o balano lavrado por GLENISSON em 1965, em Lhistoriographie

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    mi tem po, om.i um i < ti ii> t-i.i juoliv.mii.il e i'oino um novo paradigma da historia I .--. dm r.ti ' to-. \,io indissociveis: a qualidade cientfica do |iaradignia condi loiiava o sucesso da estratgia; inversamente, a estratgia orientava o paradigma. Alis, a iniciativa obteve sucesso sob esse duplo aspecto: alm de terem sido titularizados em Paris L. Febvre no Collge de France, em 1933, e M. Bloch na Sorbonne, em 1936 , tom ou-se in - contom vel o tipo de histria prom ovido por ambos.

    A novidade dos Annales no est no m todo, mas nos objetos e nas questes. As normas da profisso foram integralmente respeitadas por L. Febvre e M . Bloch: o trabalho a partir dos docum entos e a citao das fontes. Eles haviam aprendido o oficio na escola de Langlois e Seigno- bos,12 sem deixar de criticar a estreiteza das indagaes e a fragmentao das pesquisas; rejeitam a histria poltica factual que, nessa poca, era dom inante em um a Sorbonne que, alm de se isolar, estava corroda pelo imobilismo. Eles chegaram a diabolizar, sem poupar exageros e simplificaes ( D u m o u l i n , 1972, p. 70-90; Prost, 1994), essa histria historici- zante o term o foi criado por Simiand no debate de 1903 para opor- lhe um a histria amplamente aberta, um a histria total, em penhada em assumir todos os aspectos da atividade humana. Essa histria econmica e social - para retom ar o ttulo da nova revista - pretendia acolher as outras disciplinas: sociologia, econom ia e geografia. Histria viva, ela se interessava diretamente pelos problemas contemporneos. A maior originalidade da revista, entre 1929 e 1940, foi o lugar considervel atribudo aos sculos X IX e XX: 38,5% dos textos incidiram sobre esse perodo, contra 26% do espao reservado aos diplomas de estudos superiores, 15,6% s teses e 13,1% aos artigos da Revue historique ( D u m o u l i n , 1983).13

    D o pon to de vista cientfico, o paradigma dos Annales fornecia histria uma inteligibilidade bastante superior: a vontade de sntese, relacionando os diferentes fatores de uma situao ou de um problema, permitia com preender, a um s tem po, o todo e as partes. Tratava-se de um a histria mais rica, mais viva e mais inteligente.

    franaise contem poraine, continua sendo til e profundo. Para a evoluo ulterior, alm do compndio dc B O U R D e M A R T IN (1983), mencionaremos DOSSE, cm L Histoire en miettes. Por ter tomado conhecim ento demasiado tarde da obra de RAPHAL (1994), no a levei em considerao neste estudo.

    12 Marc Bloch evoca o hom em de inteligncia to perspicaz que foi meu caro mestre, Seignobos (1960, p. 16). E, em outro trecho, falando dele e de Langlois, escreve: Recebi preciosas demonstraes da boa vontade de ambos; fico devendo grande parte de meus primeiros estudos a seu ensino e a suas obras (p. 109).

    15 Lembremos que o Diploma de Estudos Superiores corresponde atual mahrise.

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  • Entretanto, a criao dos A nnales perseguia, simultaneamente, desafios mais estratgicos, com provando-se a veracidade de que todo projeto cientfico inseparvel de um projeto de poder .14 N este caso, os A nnales em preendiam o com bate em duas frentes: p o r u m lado, ataque contra a concepo dom inante da histria, o que correspondia a um a disputa leal, um a vez que seus representantes se encontravam em com petio com os partidrios dessa histria para obter a hegem onia no campo da disciplina;15 por outro, reivindicao para a histria de um a posio privilegiada no campo das cincias sociais ainda em via de estruturao. Ao preconizar um a histria aberta s outras cincias sociais, ao afirmar a unidade profunda de tais cincias e a necessidade de seu vnculo recproco, eles defendiam a histria com o o prprio espao desse vnculo. C onferiam-lhe, assim, um a espcie de preeminncia: a histria - a nica capaz de fazer convergir as cincias sociais e de prom over a ligao entre as respectivas contribuies - tomava-se a disciplina rainha, mater et magistra, tanto mais que ainda no havia um a rival suficientemente forte para contestar-lhe esse papel. Ao retom ar po r sua conta, com a condenao da histria historicizante, as perspectivas defendidas pelos socilogos no debate de 1903, os Annales fortaleciam a posio dom inante que a histria havia assumido 11 0 incio do sculo; a adeso dos historiadores ao seu campo era tanto mais facil na medida em que suas proposies apareciam com o mais bem posicionadas para confirmar a supremacia da histria. A estratgia extem a dos Annales, diante das outras cincias sociais, fortaleceu, assim, sua estratgia intem a, diante das outras formas de histria.

    A institucionalizao de uma escola

    Aps a guerra, os Annales - cuja revista passou a ter o ttulo de Annales, conomies, Socits, Civilisations perseguiram essa dupla estratgia em um contexto diferente. Em prim eiro lugar, em 1947, com o apoio de fundaes americanas e da diretoria do ensino superior, a criao de uma VT section na Ecole pratique des hautes tudes direcionada para as cincias econmicas e sociais, cuja presidncia foi entregue a L. Febvre. N o incio

    4 B U R G U I R E (1979): O historiador est inserido em uma rede complexa de relaes universitrias e cientficas, cujo pretexto a legitimao de seu saber - ou seja, de seu trabalho - e a preem inncia de sua disciplina. Da dominao puram ente intelectual s mltiplas repercusses sociais dessa dominao, a ambio cientfica pode adotar um verdadeiro leque de objetivos mais ou menos comuns, segundo o tem peram ento do cientista e sua posio na sociedade .

    15 Temvel polemista, Lucien Febvre perdeu o controle, nesse combate, a ponto de com eter injustias ainda remanescentes; apresento alguns exemplos de suas posies no meu artigo Seignobos revisite (1994). Sobre a diabolizao de seus adversrios pelos Annales, ver D U M O U L IN (1983, p. 79-103).

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    il.i dn.uLi li ' i! i i , . r.mit m o loi .r.Minildo poi Irm .iiul Hi.uulrl que vmli.i di m i toip.i^m do poi mi,i tese sobre / ai Mditerrcinc / poque de PUilippc II ( l M9) r,

  • Por outro, .1 histria problema (Ir longa durao e, naturalmente, serial: a regio do Beauvaisis, de P. G oubert, ou L i Mditenane, de F. Braudel, um a histria global, atenta s coerncias que servem de liame aos aspectos econm ico, social e cultural.19

    Para enfrentar o desafio da lingstica e da etnologia, os historiadores que se autoproclam am novos privilegiaram novos objetos e novas abordagens para retom ar o ttulo de dois dos trs volumes de Faire de Vhistoire. C ertam ente, ainda subsistem historiadores fiis vontade de compreenso global da primeira fase dos Annales, mas um grande nm ero renunciou a essa ambio, considerada exagerada, para dedicar-se ao estudo de objetos limitados, cujo funcionam ento desmontado por eles. O livro de E. Le R o y Ladurie, Montaillou20 (1975), por seu prprio sucesso, confirm ou o deslocamento dos temas originais: apesar de evidentes con- tinuidades, a monografia suscitou, da em diante, mais interesse que o afresco panormico, o acontecim ento tom ou-se o revelador de realidades que, caso contrrio, permaneceriam inacessveis ( P o m i a n , 1984, p. 35);21 assim, passava-se das estruturas materiais para as mentalidades, ao passo que o inslito levava a m elhor sobre a relao com o presente.

    Simultaneamente, o aspecto poltico voltou com todo o vigor e, em sua companhia, o acontecim ento: a implosao das democracias populares e o trabalho coletivo sobre a m em ria da guerra prestavam hom enagem ao tem po curto e, com um vivo interesse, foi possvel seguir M arc Feiro, ex-secretrio da redao dos Annales, na srie televisiva semanal, Histoire parallle, ao revisitar as atualidades da ltima guerra.

    Desde ento, tomou-se possvel fzer todo o tipo de histria: a extenso ilimitada das curiosidades histricas tratadas acarretou o fracionamento dos objetos e dos estilos de anlise; esse precisamente o tema da histria em migalhas ( D o s s e , 1987). Em vez de continuar a se definir atravs de determinado paradigma cientfico, a escola dos Annales pautou-se por sua realidade social de grupo centrado sobre uma instituio (a EHESS e a revista). A histria em migalhas no o fim dos plos de influncia, mas apenas o de sua definio em tennos cientficos.

    9 Trata-se da pesquisa Beauvais et le Beauvaisis de 1600 I 130. Contribution Vhistoire sociale de la France du X V II sicle (1982), em que, alm dos grandes comerciantes, o autor tentou conhecer os camponeses desta regio a 70 km a norte de Paris. (N .T.).

    20 Referncia monografia etnogrfica - Montaillou, village occitan - em que ele estuda o m undo dessa aldeia de pastores do sculo XIV. (N .T.).

    21 Voltarei a este aspecto na concluso deste livro.

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    A Irmjmentao da profisso

    Plos de influnciaO sucesso, pelo menos, provisrio dessa estratgia externa preser

    vou a posio da histria no campo das cincias sociais e foi acompanhado pelo sucesso da estratgia interna disciplina. A criao da EHESS no se limitou a um a mudana de nom e: semelhante s universidades, o novo estabelecim ento pde conferir doutorados. D iante da Sorbonne, enfraquecida e dividida aps 1968, um plo autnom o se constituiu e se consolidou e nele se afirmava uma histria isenta das condicionantes do ensino, inclusive, superior. N o mesmo m om ento, o efetivo dos historiadores conheceu um brusco crescimento: seu nm ero passou de algumas centenas, em 1945, para um milhar de professores universitrios e de pesquisadores, em 1967, e, em seguida, para o dobro, em 1991.22 A profisso de historiador se manifestou, assim, aos poucos, entre dois ou, antes, trs - plos de influncia desigual que traaram um a espcie de tringulo no quartier Latin:23 cada um dispunha de seus prprios meios de publicao, de suas prprias redes de influncia e de suas clientelas.

    O plo universitrio continua sendo o mais im portante e, por fora, o mais tradicional, um a vez que leva aos concursos de contratao; em si mesmo, plural, disseminado entre um a meia dzia de universidades na regio parisiense e alguns grandes centros no interior do pas (por exem plo, Lyon ou Aix-en-Province). Ele controla as revistas clssicas, tais com o a Revue historique ou a Reime dhistoire modeme et contemporaine] suas pesquisas so publicadas pelas editoras das universidades (PUF)21 ou pelas editoras clssicas (Hachette); dom ina as teses, os comits de especialistas e as carreiras universitrias. Apesar de ser, incontestavelm ente, o plo mais poderoso pelo nm ero e pela diversidade de seus integrantes e atividades, sua plena irradiao impedida pelas rivalidades internas.

    O segundo plo constitudo pela EHESS, fortalecida pelo C N R S . As pesquisas so mais livres e a inovao tem sido mais facilitada: o desejo

    22 Ver C H A R L E (1993, p. 21-44) e B O U T IE R ; JULIA (1995, p. 13-53). Limitando-se aos historiadores, titulares de postos nas universidades, esses autores indicam (p. 29) as cifras de 302, em 1963, e de 1.155, em 1991.

    23 Bairro Latino , na m argem esquerda do rio Sena: com a fundao da Sorbonne em 1257, esse bairro parisiense concentra, em grande parte, a vida universitria. (N .T.).

    24 Sigla de Presses universitaires de France [Editoras Universitrias da Frana], (N .T.).

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  • de explorar novos territrios 0 11 novos procedim entos est isento de qualquer restrio pedaggica. Esse plo apia-se em um a poderosa rede de relaes internacionais, a qual, certamente, tem com o referncia o prestgio dos Annales. E n tre seus trunfos, ele tem cultivado com esmero as relaes estabelecidas com a mdia e as editoras: o semanrio Le Nouvel Observateur aceita, de bom grado, as resenhas elaboradas por algum dos diretores de departam ento ou de pesquisa da Escola do Boulevard R as- pail sobre o ltimo livro de um dos mem bros da prestigiosa instituio, com a condio de receber um tratam ento semelhante; por sua vez, a editora M ou ton para as publicaes eruditas, enquanto Gallimard e outros editores para os estudos menos especializados, tm publicado as obras desses pesquisadores. Grandes iniciativas editoriais, tais com o Faire de 1histoire (1974), o dicionrio La Nouvelle Histoire (1978), os volumes dos Lieux de mmoire de P. N ora abertos, ecumenicamente, aos historiadores exteriores a esse plo ampliam sua influncia.

    O terceiro plo m enos cocrente por ser constitudo po r algumas grandes instituies, tais com o a Ecole franaise de Rome, dedicada Antigidade e Idade Mdia, e, sobretudo, o Institu d tudes politiques de Paris [I.E.P.j, direcionado para a histria poltica contem pornea. Apoiado na Fondation des sciences politiques, presidida durante m uito tem po po r P. R en o u v in - e, mais recen tem ente, po r R . R m o n d - , d ispondo de recursos financeiros autnom os eventualm ente com pletados pelo C N R S , de postos de pesquisadores e de professores universitrios, aos quais garante condies de trabalho m enos restritivas que as das universidades, este plo capaz de se opor, at certo ponto , aos Annales e EHESS; dispe, igualm ente, de grficas prprias, durante m uito tem po associadas editora A rm and C olin , assim com o de relaes cordiais com a editora Le Seuil, cujas grandes colees so sobejam ente conhecidas, alm de englobarem todos os aspectos da realidade, tais com o a Histoire de la France rurale, La France urbaine ou L a Vie prive. O lanam ento - em colaborao com o Institut d histoire du tempsprsent, fundado pelo C N R S , em 1979 - de uma nova revista, Vingtime sicle, revue d histoire, fortalece a influncia desse plo.

    Entre esses trs plos, est fora de questo imaginar fronteiras intransponveis: os historiadores no so assim to estpidos a pon to de ignorar seus colegas e amigos que no deixam de ser rivais. A hom ogeneidade da formao recebida, a estabilidade de sua definio, desde o incio do sculo, assim com o a precocidade geral da especializao da

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    disi iplm.i 'ItMitiM i< i11 impedido ,i Ir.igmenla.io da prolisso.'"' lxiste intercmbio m in os trs plos; alem disso, a convivncia m antm a possibilidade de administrar em con