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Page 1: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

Tomaacutes de Aquino e a Metafiacutesicadas Liacutenguas Bantu e Tupi

Luiz Jean Lauandjeanlauauspbr

Fac Educ Univ Satildeo Paulo

Metafiacutesica Bantu

Em diversas outras ocasiotildees temos feito referecircncia ao conceito lohmanniano de sistema liacutenguapensamento aplicado ao caso das liacutenguas semitas e agraves indo-europeacuteias Neste estudo consideraremos as classes gramaticaismetafiacutesicas um fato peculiar agraves dezenas de liacutenguas bantu liacutenguas da Aacutefrica subsaariana (dando particular destaque ao kimbundo[1] a liacutengua africana que mais influenciou o portuguecircs do Brasil)

Se toda liacutengua traz consigo uma visatildeo de mundo no caso das liacutenguas bantu com suas classes este fato eacute ainda mais acentuado E a filosofia bantu (uma filosofia natildeo escrita uma filosofia sem filoacutesofos no dizer de Tempels) a liacutengua e os proveacuterbios aparecem como elementos especialmente privilegiados a liacutengua como a proacutepria base sobre a qual se edifica o pensamento os proveacuterbios como sua primeira elaboraccedilatildeo

Assim apoacutes apresentar alguns aspectos da liacutenguapensamento bantu - relativos sobretudo agrave nona classe e aos conceitos de Deus (Nzambi) e de Criaccedilatildeo - iremos estabelecendo (a partir de sugestivos proveacuterbios africanos) um confronto com os mesmos temas na tradiccedilatildeo filosoacutefico-teoloacutegica claacutessica ocidental[2] aqui representada por Tomaacutes de Aquino Precisamente a acentuada diversidade dessas perspectivas torna ainda mais interessantes as coincidecircncias

As classes bantu

Haacute um traccedilo marcante nas liacutenguas bantu que imediatamente desperta a atenccedilatildeo do filoacutesofo a divisatildeo dos substantivos em classes nominais geralmente dez que ao contraacuterio das declinaccedilotildees latinas (por exemplo) natildeo se limitam a agrupar gramaticalmente as palavras Transcendendo a gramaacutetica as classes estabelecem uma autecircntica divisatildeo metafiacutesica a primeira siacutelaba de cada palavra eacute um classificador indica em que setor da realidade[3] (ser humano animal rio categoria abstrata instrumento etc) situa-se[4] o ente designado[5]

Exemplificaremos a seguir com o kimbundo No kimbundo - como em geral nas liacutenguas bantu - encontramos dez classes nominais[6] Os classificadores de singular e plural satildeo

Classe Classificador

(siacutelaba inicial)

singular plural

1a mu a

2a mu mi

3a ki i

4a ri ma

5a u mau

8a ku maku

9a variado ji

10a ka tu

Alguns exemplos sobre esse sistema de classes

A primeira classe - cujo classificador eacute mua - eacute a dos entes racionais as pessoas A palavra-chave desta classe eacute mutu ou muntu pessoa (daiacute o plural bantu) da qual evidentemente derivou o classificador mu Assim as palavras desta classe satildeo na verdade contraccedilotildees mukongo caccedilador = mu (tu) pessoa + (ku) kongo caccedilar Desta classe passaram para nossa liacutengua palavras como mukama e muleke[7]

Jaacute a oitava classe kumaku eacute a dos termos verbais ku eacute semelhante ao to do infinitivo verbal do inglecircs[8] Penetraram no portuguecircs do Brasil Kuxila dormitar (Mendonccedila) Kufundu penetrar enterrar (Mendonccedila) Jaacute em Cannecattim (196 207) encontramos nfundu escondido secreto Daiacute kafundoacute e kafuneacute (accedilatildeo carinhosa dos dedos no cabelo) Xinga insultar (Quintatildeo 35) sunga puxar (Quintatildeo 35) Samba eacute rezar (Cannecattim 206) Quando Vinicius de Moraes diz que o bom samba eacute uma forma de oraccedilatildeo estaacute afirmando algo estritamente rigoroso do ponto de vista etimoloacutegico

De especial interesse para as comparaccedilotildees que faremos com o pensamento claacutessico ocidental eacute a nona classe seu classificador plural eacute ji e

apresenta singular variado mas frequumlentemente iniciado por n (ng nd nz) ou m (mb) A consoante que se segue ao n da classe eacute eufocircnica a fim de evitar que o n entre em contato direto com a vogal do radical (Kagame 136) Eacute de decisiva importacircncia a observaccedilatildeo de Ntite Mukendi (Mukendi 103) o classificador n eacute um indicador de ser N no caso indicaria o que aquele que por excelecircncia ostensiva ou tipicamente exerce tal accedilatildeo Assim da accedilatildeo de nadar (zoua) procede a palavra para pato (nzoue aquele que por excelecircncia nada) de longa (carregar) ndongo (canoa a que carrega) de lula (ser amargo) ndululu (fel o que tipicamente eacute amargo) de enda (andar) ngenji (viajante) etc (Quintatildeo 109110)

Dessa classe eacute-nos familiar Ngambi o linguarudo (de amba falar) Eacute interessante observar que o sufixo verbal -ela (Quintatildeo 83 Valente 207) indica finalidade motivaccedilatildeo daiacute deriva ngambela engambelar falatoacuterio para obter algo falar e falar a fim de

Deus criaccedilatildeo e falar no pensamento de Tomaacutes de Aquino[9]

As teses de Tomaacutes sobre o falar e a Criaccedilatildeo permitir-nos-atildeo estabelecer interessantes relaccedilotildees com as concepccedilotildees de Deus e da Criaccedilatildeo na filosofia bantu

Locutio est proprium opus rationis (I 91 3 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da inteligecircncia Ora entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida haacute um terceiro elemento essencial na linguagem que eacute o conceptus o conceito a palavra interior (verbum interius verbum mentis verbum cordis) que se forma no espiacuterito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem que constitui seu signo audiacutevel (o conceito por sua vez tem sua origem na realidade)

Mas se a palavra sonora eacute um signo convencional (a aacutegua pode chamar-se aacutegua water eau etc) o conceito pelo contraacuterio eacute um signo necessaacuterio da coisa designada nossos conceitos se formam por adequaccedilatildeo com a realidade E a realidade cada coisa real tem um conteuacutedo um significado um quecirc uma verdade que por um lado faz com que a coisa seja aquilo que eacute e por outro torna-a cognosciacutevel para a inteligecircncia humana Eacute precisamente isto o que Tomaacutes designa por ratio Assim indagar O que eacute isto (O que eacute uma aacutervore O que eacute o homem) significa afinal das contas perguntar pelo ser pelo quecirc (quid-ditas whatness quumlididade) pela ratio pela estruturaccedilatildeo interna de um ente que faz com que ele seja aquilo que eacute Daiacute a sugestiva forma interrogativa do francecircs Quest-ce que que eacute este quecirc que quecirc eacute isto

Esta ratio que estrutura que plasma um ente eacute a mesma que se oferece agrave inteligecircncia humana para formar o conceito que seraacute tanto mais adequado

quanto maior for a objetividade com que se abrir agrave realidade contida no objeto

Dentre as muitas e variadas formas de interpretaccedilatildeo da expressatildeo Deus fala[10] haacute uma especialmente importante nas relaccedilotildees entre Deus e o homem natildeo eacute por acaso que Joatildeo emprega o vocaacutebulo grego Logos (Verbum razatildeo palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma Trindade que se fez carne em Jesus Cristo o Verbum natildeo soacute eacute imagem do Pai mas tambeacutem princiacutepio da Criaccedilatildeo (cfr Jo 13) E a Criaccedilatildeo deve ser entendida precisamente como projeto design feito por Deus atraveacutes do Verbo Numa comparaccedilatildeo imprecisa[11] com o ato criador divino considero o isqueiro que tenho diante de mim Este objeto eacute produto de uma inteligecircncia haacute uma racionalidade[12]

que o estrutura por dentro Eacute precisamente essa ratio que se por um lado estrutura por dentro qualquer ente por outro permite como diziacuteamos acesso intelectual humano a esse ente[13] No caso do isqueiro a ratio que o constitui enquanto isqueiro eacute o que me permite conhececirc-lo e uma vez conhecido consertaacute-lo trocar uma peccedila etc

Guardadas as devidas distacircncias[14] eacute nesse sentido que o cristianismo fala da Criaccedilatildeo pelo Verbo e eacute por isso tambeacutem que a Teologia - na feliz formulaccedilatildeo do teoacutelogo alematildeo Romano Guardini - afirma o caraacuteter verbal (Wort-charakter) de cada ser Ou em sentenccedila de Tomaacutes Assim como a palavra audiacutevel manifesta a palavra interior[15] assim tambeacutem a criatura manifesta a concepccedilatildeo divina () as criaturas satildeo como palavras que manifestam o Verbo de Deus (I d 27 22 ad 3)

Assim para Tomaacutes natildeo soacute Deus eacute por excelecircncia Aquele que fala mas as proacuteprias criaturas satildeo palavras proferidas por Deus

Essa concepccedilatildeo de Criaccedilatildeo como fala de Deus a Criaccedilatildeo como ato inteligente de Deus foi muito bem expressa numa aguda sentenccedila de Sartre que intenta negaacute-la Natildeo haacute natureza humana porque natildeo haacute Deus para concebecirc-la De um modo positivo poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma soacute se pode falar em essecircncia em natureza em verdade das coisas na medida em que haacute um projeto divino incorporado a elas ou melhor constituindo-as

A natureza especialmente no caso da natureza humana natildeo eacute entendida pela Teologia como algo riacutegido como uma camisa de forccedila metafiacutesica mas como um projeto vivo um impulso ontoloacutegico inicial[16] um lanccedilamento no ser cujas diretrizes fundamentais satildeo dadas precisamente pelo ato criador que no entanto requer a complementaccedilatildeo pelo agir livre e responsaacutevel do homem

Nesse sentido Tomaacutes fala da moral como ultimum potentiae como um processo de auto-realizaccedilatildeo do homem corresponde-lhe continuar levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus Assim todo o agir humano (o trabalho a educaccedilatildeo o amor etc) constitui uma colaboraccedilatildeo do homem com o agir divino precisamente porque Deus quis contar com essa cooperaccedilatildeo

Essas consideraccedilotildees serviratildeo para analisar algumas convicccedilotildees da visatildeo de mundo expressa por proveacuterbios bantu que surpreendentemente coincidem de modo profundo com o conceito cristatildeo de criaccedilatildeo

Tomaacutes de Aquino e a metafiacutesica dos proveacuterbios bantu

Nas liacutenguas bantu encontraremos diversas designaccedilotildees de Deus (cfr Kagame 135 e ss) como Kalunga aquele-que-por-excelecircncia-junta[17] Leza o todo-poderoso Molimo o Espiacuterito Ruhanga O Criador etc Mas eacute Nzambi (ou zambi) da nona classe a forma mais frequumlente e tambeacutem a mais sugestiva de nomear a Deus Nzambi eacute um derivado do verbo amba[18] que significa falar E chamar a Deus de Nzambi[19] eacute chamaacute-lo literalmente de aquele que por excelecircncia fala[20]

Haacute cerca de duzentos anos numa das primeiras gramaacuteticas de kimbundo Cannecattim indica que em liacutengua congueza Deus o Criador natildeo soacute se diz Nzambi (aquele a quem compete falar) mas Nzambi-Mpungu (p 176) forma encontrada ainda hoje em certas regiotildees (Kagame 132 145 etc) Segundo Marie-Bernard (cit Kagame 145) mpungu significa aquele que voa muito alto Tal significado eacute derivado por analogia mpungu eacute originalmente uma espeacutecie de aacuteguia que voa tatildeo alto a ponto de tornar-se invisiacutevel a olho nu Daiacute tambeacutem os significados derivados de mpungu como adjetivo o maior o mais elevado o supremo o excelente (Kagame 145) Mpungu - segundo Laman (cit Kagame 145) - acompanha Nzambi ou outras palavras para expressar as qualidades mais altas Donde Nzambi-Mpungu aquele que eminentemente por excelecircncia fala

Essa forma de designar a Deus como Aquele-que-Profere aproxima a concepccedilatildeo bantu do Logos (Verbum) de Jo 11 e da ideacuteia de criaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino Uma confirmaccedilatildeo desse sentido da Criaccedilatildeo como falar criador de Deus eacute encontrada em dois interessantiacutessimos proveacuterbios kiuoio (Vaz 178)

A kilamba natildeo tem raiacutezes Mas natildeo foi Deus quem a fez

Chi lambu ka kambua li sina - Bati Nzambi ku chi vanga koacute

O proveacuterbio - muito tradicional entre os Cabindas - refere-se agrave surpreendente planta kilamba que (ao menos aparentemente) natildeo tem raiacutezes

Ora isto (que diabos uma planta sem raiz) contraria a natureza das coisas natildeo condiz com a Criaccedilatildeo que eacute sempre ratio Daiacute a duacutevida (retoacuterica) expressa na pergunta final

Em outra versatildeo o mesmo proveacuterbio eacute assim apresentado (JM 61 e 429)

A kilamba a que natildeo tem raiz natildeo foi Deus quem a fez

Kilamba kikambua lisina Nzambi ka sa kivanga ko

Em Ciscato (p 307) encontramos

A serpente por dom de Muluku[21] pode correr mesmo natildeo tendo patas

Enowa evahiweacute ti Muluku wi enaacutetchimaka ehiriacute ni Mechoacute

Um outro proveacuterbio ainda mais significativo fala da criatura como palavra proferida por Deus[22]

Palavra proferida por Deus compete ao homem completaacute-la

Kambua kikamba Nzambi muntu limonho uisesula (JM 431)

Do conceito de criaccedilatildeo como pensamento de Deus decorre o conceito de misteacuterio para a tradiccedilatildeo filosoacutefico-teoloacutegica do Ocidente (e para as tribos africanas) Misteacuterio natildeo significa apenas natildeo-conhecimento (faacutetico) mas um determinado tipo de natildeo-conhecimento aquele que decorre do excesso (e natildeo da falta) de luz

Se o mundo foi criado por Deus isto eacute projetado concebido falado pensado pelo Verbo-Nzambi entatildeo cada ente eacute misteacuterio e a realidade criada transcende a capacidade de compreensatildeo de uma criatura como o homem Precisamente esta eacute a razatildeo pela qual Tomaacutes de Aquino afirmou que nenhum filoacutesofo jamais esgotaria sequer a essecircncia de uma mosca A essa transcendecircncia referem-se alguns proveacuterbios

Coraccedilatildeo de Deus guarda todas as coisas

Ntima Nzambi lunda mamonso (JM 432)

Esta sentenccedila aplica-se como convite agrave paciecircncia (Deus eacute quem sabe) Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima) coraccedilatildeo o iacutentimo de cada um Trata-se de um conceito importante na visatildeo de mundo bantu Embora haja variaccedilotildees regionais recolhamos aqui o conceito que Laman[23]

apresenta em seu dicionaacuterio kikongo ntima coraccedilatildeo sentimento consciecircncia o interior

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coraccedilatildeo de Deus) guarda todas as coisas afirma-se tambeacutem o ato criador soacute Deus conhece o ntima de cada criatura

O que estaacute no coraccedilatildeo de outro ningueacutem o sabe

Make mu ntima ngana ka mazaacutebi ko (JM 410)

O coraccedilatildeo humano natildeo se contenta com pouco nem com muito

Murima ohinamweacutela ni ekhani ni etoacutekwenetho (EC 261)

Se o coraccedilatildeo fosse um cadeado certamente eu o abriria

Monti ntima nkandau Nkanu mazibula (JM 411)

Ah se o coraccedilatildeo fosse nariz

(Que bom seria se pudeacutessemos pelo faro saber como satildeo as pessoas)

Murima waacuteri ephulaacute (EC 135)

Comemos juntos e rimos juntos O que estaacute no coraccedilatildeo poreacutem natildeo o sabemos (Vaz 203)

Liaacute tu seva Ma keacute mu ntima ku podi ku ma zaba koacute

Os coraccedilotildees diferem haacute gente boa e gente maacute ([24])

Ntima viakene ike muntu mbote ike muntu mbi (JM 411)

E assim cada um eacute como eacute como Deus o fez (o que do ponto de vista da eacutetica da convivecircncia eacute um chamado agrave compreensatildeo)

Quando cerrando os dentes bates no catildeo sabes o que estaacute no coraccedilatildeo dele

Abu uibula mbuaacute ui kanga meno ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuaacute (JM 208)

O papagaio natildeo pode pocircr ovos em outra parte foi Deus quem o fez assim (JM 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko naveka Nzambi uvanga buau

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

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TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

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[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 2: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

Exemplificaremos a seguir com o kimbundo No kimbundo - como em geral nas liacutenguas bantu - encontramos dez classes nominais[6] Os classificadores de singular e plural satildeo

Classe Classificador

(siacutelaba inicial)

singular plural

1a mu a

2a mu mi

3a ki i

4a ri ma

5a u mau

8a ku maku

9a variado ji

10a ka tu

Alguns exemplos sobre esse sistema de classes

A primeira classe - cujo classificador eacute mua - eacute a dos entes racionais as pessoas A palavra-chave desta classe eacute mutu ou muntu pessoa (daiacute o plural bantu) da qual evidentemente derivou o classificador mu Assim as palavras desta classe satildeo na verdade contraccedilotildees mukongo caccedilador = mu (tu) pessoa + (ku) kongo caccedilar Desta classe passaram para nossa liacutengua palavras como mukama e muleke[7]

Jaacute a oitava classe kumaku eacute a dos termos verbais ku eacute semelhante ao to do infinitivo verbal do inglecircs[8] Penetraram no portuguecircs do Brasil Kuxila dormitar (Mendonccedila) Kufundu penetrar enterrar (Mendonccedila) Jaacute em Cannecattim (196 207) encontramos nfundu escondido secreto Daiacute kafundoacute e kafuneacute (accedilatildeo carinhosa dos dedos no cabelo) Xinga insultar (Quintatildeo 35) sunga puxar (Quintatildeo 35) Samba eacute rezar (Cannecattim 206) Quando Vinicius de Moraes diz que o bom samba eacute uma forma de oraccedilatildeo estaacute afirmando algo estritamente rigoroso do ponto de vista etimoloacutegico

De especial interesse para as comparaccedilotildees que faremos com o pensamento claacutessico ocidental eacute a nona classe seu classificador plural eacute ji e

apresenta singular variado mas frequumlentemente iniciado por n (ng nd nz) ou m (mb) A consoante que se segue ao n da classe eacute eufocircnica a fim de evitar que o n entre em contato direto com a vogal do radical (Kagame 136) Eacute de decisiva importacircncia a observaccedilatildeo de Ntite Mukendi (Mukendi 103) o classificador n eacute um indicador de ser N no caso indicaria o que aquele que por excelecircncia ostensiva ou tipicamente exerce tal accedilatildeo Assim da accedilatildeo de nadar (zoua) procede a palavra para pato (nzoue aquele que por excelecircncia nada) de longa (carregar) ndongo (canoa a que carrega) de lula (ser amargo) ndululu (fel o que tipicamente eacute amargo) de enda (andar) ngenji (viajante) etc (Quintatildeo 109110)

Dessa classe eacute-nos familiar Ngambi o linguarudo (de amba falar) Eacute interessante observar que o sufixo verbal -ela (Quintatildeo 83 Valente 207) indica finalidade motivaccedilatildeo daiacute deriva ngambela engambelar falatoacuterio para obter algo falar e falar a fim de

Deus criaccedilatildeo e falar no pensamento de Tomaacutes de Aquino[9]

As teses de Tomaacutes sobre o falar e a Criaccedilatildeo permitir-nos-atildeo estabelecer interessantes relaccedilotildees com as concepccedilotildees de Deus e da Criaccedilatildeo na filosofia bantu

Locutio est proprium opus rationis (I 91 3 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da inteligecircncia Ora entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida haacute um terceiro elemento essencial na linguagem que eacute o conceptus o conceito a palavra interior (verbum interius verbum mentis verbum cordis) que se forma no espiacuterito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem que constitui seu signo audiacutevel (o conceito por sua vez tem sua origem na realidade)

Mas se a palavra sonora eacute um signo convencional (a aacutegua pode chamar-se aacutegua water eau etc) o conceito pelo contraacuterio eacute um signo necessaacuterio da coisa designada nossos conceitos se formam por adequaccedilatildeo com a realidade E a realidade cada coisa real tem um conteuacutedo um significado um quecirc uma verdade que por um lado faz com que a coisa seja aquilo que eacute e por outro torna-a cognosciacutevel para a inteligecircncia humana Eacute precisamente isto o que Tomaacutes designa por ratio Assim indagar O que eacute isto (O que eacute uma aacutervore O que eacute o homem) significa afinal das contas perguntar pelo ser pelo quecirc (quid-ditas whatness quumlididade) pela ratio pela estruturaccedilatildeo interna de um ente que faz com que ele seja aquilo que eacute Daiacute a sugestiva forma interrogativa do francecircs Quest-ce que que eacute este quecirc que quecirc eacute isto

Esta ratio que estrutura que plasma um ente eacute a mesma que se oferece agrave inteligecircncia humana para formar o conceito que seraacute tanto mais adequado

quanto maior for a objetividade com que se abrir agrave realidade contida no objeto

Dentre as muitas e variadas formas de interpretaccedilatildeo da expressatildeo Deus fala[10] haacute uma especialmente importante nas relaccedilotildees entre Deus e o homem natildeo eacute por acaso que Joatildeo emprega o vocaacutebulo grego Logos (Verbum razatildeo palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma Trindade que se fez carne em Jesus Cristo o Verbum natildeo soacute eacute imagem do Pai mas tambeacutem princiacutepio da Criaccedilatildeo (cfr Jo 13) E a Criaccedilatildeo deve ser entendida precisamente como projeto design feito por Deus atraveacutes do Verbo Numa comparaccedilatildeo imprecisa[11] com o ato criador divino considero o isqueiro que tenho diante de mim Este objeto eacute produto de uma inteligecircncia haacute uma racionalidade[12]

que o estrutura por dentro Eacute precisamente essa ratio que se por um lado estrutura por dentro qualquer ente por outro permite como diziacuteamos acesso intelectual humano a esse ente[13] No caso do isqueiro a ratio que o constitui enquanto isqueiro eacute o que me permite conhececirc-lo e uma vez conhecido consertaacute-lo trocar uma peccedila etc

Guardadas as devidas distacircncias[14] eacute nesse sentido que o cristianismo fala da Criaccedilatildeo pelo Verbo e eacute por isso tambeacutem que a Teologia - na feliz formulaccedilatildeo do teoacutelogo alematildeo Romano Guardini - afirma o caraacuteter verbal (Wort-charakter) de cada ser Ou em sentenccedila de Tomaacutes Assim como a palavra audiacutevel manifesta a palavra interior[15] assim tambeacutem a criatura manifesta a concepccedilatildeo divina () as criaturas satildeo como palavras que manifestam o Verbo de Deus (I d 27 22 ad 3)

Assim para Tomaacutes natildeo soacute Deus eacute por excelecircncia Aquele que fala mas as proacuteprias criaturas satildeo palavras proferidas por Deus

Essa concepccedilatildeo de Criaccedilatildeo como fala de Deus a Criaccedilatildeo como ato inteligente de Deus foi muito bem expressa numa aguda sentenccedila de Sartre que intenta negaacute-la Natildeo haacute natureza humana porque natildeo haacute Deus para concebecirc-la De um modo positivo poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma soacute se pode falar em essecircncia em natureza em verdade das coisas na medida em que haacute um projeto divino incorporado a elas ou melhor constituindo-as

A natureza especialmente no caso da natureza humana natildeo eacute entendida pela Teologia como algo riacutegido como uma camisa de forccedila metafiacutesica mas como um projeto vivo um impulso ontoloacutegico inicial[16] um lanccedilamento no ser cujas diretrizes fundamentais satildeo dadas precisamente pelo ato criador que no entanto requer a complementaccedilatildeo pelo agir livre e responsaacutevel do homem

Nesse sentido Tomaacutes fala da moral como ultimum potentiae como um processo de auto-realizaccedilatildeo do homem corresponde-lhe continuar levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus Assim todo o agir humano (o trabalho a educaccedilatildeo o amor etc) constitui uma colaboraccedilatildeo do homem com o agir divino precisamente porque Deus quis contar com essa cooperaccedilatildeo

Essas consideraccedilotildees serviratildeo para analisar algumas convicccedilotildees da visatildeo de mundo expressa por proveacuterbios bantu que surpreendentemente coincidem de modo profundo com o conceito cristatildeo de criaccedilatildeo

Tomaacutes de Aquino e a metafiacutesica dos proveacuterbios bantu

Nas liacutenguas bantu encontraremos diversas designaccedilotildees de Deus (cfr Kagame 135 e ss) como Kalunga aquele-que-por-excelecircncia-junta[17] Leza o todo-poderoso Molimo o Espiacuterito Ruhanga O Criador etc Mas eacute Nzambi (ou zambi) da nona classe a forma mais frequumlente e tambeacutem a mais sugestiva de nomear a Deus Nzambi eacute um derivado do verbo amba[18] que significa falar E chamar a Deus de Nzambi[19] eacute chamaacute-lo literalmente de aquele que por excelecircncia fala[20]

Haacute cerca de duzentos anos numa das primeiras gramaacuteticas de kimbundo Cannecattim indica que em liacutengua congueza Deus o Criador natildeo soacute se diz Nzambi (aquele a quem compete falar) mas Nzambi-Mpungu (p 176) forma encontrada ainda hoje em certas regiotildees (Kagame 132 145 etc) Segundo Marie-Bernard (cit Kagame 145) mpungu significa aquele que voa muito alto Tal significado eacute derivado por analogia mpungu eacute originalmente uma espeacutecie de aacuteguia que voa tatildeo alto a ponto de tornar-se invisiacutevel a olho nu Daiacute tambeacutem os significados derivados de mpungu como adjetivo o maior o mais elevado o supremo o excelente (Kagame 145) Mpungu - segundo Laman (cit Kagame 145) - acompanha Nzambi ou outras palavras para expressar as qualidades mais altas Donde Nzambi-Mpungu aquele que eminentemente por excelecircncia fala

Essa forma de designar a Deus como Aquele-que-Profere aproxima a concepccedilatildeo bantu do Logos (Verbum) de Jo 11 e da ideacuteia de criaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino Uma confirmaccedilatildeo desse sentido da Criaccedilatildeo como falar criador de Deus eacute encontrada em dois interessantiacutessimos proveacuterbios kiuoio (Vaz 178)

A kilamba natildeo tem raiacutezes Mas natildeo foi Deus quem a fez

Chi lambu ka kambua li sina - Bati Nzambi ku chi vanga koacute

O proveacuterbio - muito tradicional entre os Cabindas - refere-se agrave surpreendente planta kilamba que (ao menos aparentemente) natildeo tem raiacutezes

Ora isto (que diabos uma planta sem raiz) contraria a natureza das coisas natildeo condiz com a Criaccedilatildeo que eacute sempre ratio Daiacute a duacutevida (retoacuterica) expressa na pergunta final

Em outra versatildeo o mesmo proveacuterbio eacute assim apresentado (JM 61 e 429)

A kilamba a que natildeo tem raiz natildeo foi Deus quem a fez

Kilamba kikambua lisina Nzambi ka sa kivanga ko

Em Ciscato (p 307) encontramos

A serpente por dom de Muluku[21] pode correr mesmo natildeo tendo patas

Enowa evahiweacute ti Muluku wi enaacutetchimaka ehiriacute ni Mechoacute

Um outro proveacuterbio ainda mais significativo fala da criatura como palavra proferida por Deus[22]

Palavra proferida por Deus compete ao homem completaacute-la

Kambua kikamba Nzambi muntu limonho uisesula (JM 431)

Do conceito de criaccedilatildeo como pensamento de Deus decorre o conceito de misteacuterio para a tradiccedilatildeo filosoacutefico-teoloacutegica do Ocidente (e para as tribos africanas) Misteacuterio natildeo significa apenas natildeo-conhecimento (faacutetico) mas um determinado tipo de natildeo-conhecimento aquele que decorre do excesso (e natildeo da falta) de luz

Se o mundo foi criado por Deus isto eacute projetado concebido falado pensado pelo Verbo-Nzambi entatildeo cada ente eacute misteacuterio e a realidade criada transcende a capacidade de compreensatildeo de uma criatura como o homem Precisamente esta eacute a razatildeo pela qual Tomaacutes de Aquino afirmou que nenhum filoacutesofo jamais esgotaria sequer a essecircncia de uma mosca A essa transcendecircncia referem-se alguns proveacuterbios

Coraccedilatildeo de Deus guarda todas as coisas

Ntima Nzambi lunda mamonso (JM 432)

Esta sentenccedila aplica-se como convite agrave paciecircncia (Deus eacute quem sabe) Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima) coraccedilatildeo o iacutentimo de cada um Trata-se de um conceito importante na visatildeo de mundo bantu Embora haja variaccedilotildees regionais recolhamos aqui o conceito que Laman[23]

apresenta em seu dicionaacuterio kikongo ntima coraccedilatildeo sentimento consciecircncia o interior

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coraccedilatildeo de Deus) guarda todas as coisas afirma-se tambeacutem o ato criador soacute Deus conhece o ntima de cada criatura

O que estaacute no coraccedilatildeo de outro ningueacutem o sabe

Make mu ntima ngana ka mazaacutebi ko (JM 410)

O coraccedilatildeo humano natildeo se contenta com pouco nem com muito

Murima ohinamweacutela ni ekhani ni etoacutekwenetho (EC 261)

Se o coraccedilatildeo fosse um cadeado certamente eu o abriria

Monti ntima nkandau Nkanu mazibula (JM 411)

Ah se o coraccedilatildeo fosse nariz

(Que bom seria se pudeacutessemos pelo faro saber como satildeo as pessoas)

Murima waacuteri ephulaacute (EC 135)

Comemos juntos e rimos juntos O que estaacute no coraccedilatildeo poreacutem natildeo o sabemos (Vaz 203)

Liaacute tu seva Ma keacute mu ntima ku podi ku ma zaba koacute

Os coraccedilotildees diferem haacute gente boa e gente maacute ([24])

Ntima viakene ike muntu mbote ike muntu mbi (JM 411)

E assim cada um eacute como eacute como Deus o fez (o que do ponto de vista da eacutetica da convivecircncia eacute um chamado agrave compreensatildeo)

Quando cerrando os dentes bates no catildeo sabes o que estaacute no coraccedilatildeo dele

Abu uibula mbuaacute ui kanga meno ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuaacute (JM 208)

O papagaio natildeo pode pocircr ovos em outra parte foi Deus quem o fez assim (JM 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko naveka Nzambi uvanga buau

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

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JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

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MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

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QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 3: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

apresenta singular variado mas frequumlentemente iniciado por n (ng nd nz) ou m (mb) A consoante que se segue ao n da classe eacute eufocircnica a fim de evitar que o n entre em contato direto com a vogal do radical (Kagame 136) Eacute de decisiva importacircncia a observaccedilatildeo de Ntite Mukendi (Mukendi 103) o classificador n eacute um indicador de ser N no caso indicaria o que aquele que por excelecircncia ostensiva ou tipicamente exerce tal accedilatildeo Assim da accedilatildeo de nadar (zoua) procede a palavra para pato (nzoue aquele que por excelecircncia nada) de longa (carregar) ndongo (canoa a que carrega) de lula (ser amargo) ndululu (fel o que tipicamente eacute amargo) de enda (andar) ngenji (viajante) etc (Quintatildeo 109110)

Dessa classe eacute-nos familiar Ngambi o linguarudo (de amba falar) Eacute interessante observar que o sufixo verbal -ela (Quintatildeo 83 Valente 207) indica finalidade motivaccedilatildeo daiacute deriva ngambela engambelar falatoacuterio para obter algo falar e falar a fim de

Deus criaccedilatildeo e falar no pensamento de Tomaacutes de Aquino[9]

As teses de Tomaacutes sobre o falar e a Criaccedilatildeo permitir-nos-atildeo estabelecer interessantes relaccedilotildees com as concepccedilotildees de Deus e da Criaccedilatildeo na filosofia bantu

Locutio est proprium opus rationis (I 91 3 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da inteligecircncia Ora entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida haacute um terceiro elemento essencial na linguagem que eacute o conceptus o conceito a palavra interior (verbum interius verbum mentis verbum cordis) que se forma no espiacuterito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem que constitui seu signo audiacutevel (o conceito por sua vez tem sua origem na realidade)

Mas se a palavra sonora eacute um signo convencional (a aacutegua pode chamar-se aacutegua water eau etc) o conceito pelo contraacuterio eacute um signo necessaacuterio da coisa designada nossos conceitos se formam por adequaccedilatildeo com a realidade E a realidade cada coisa real tem um conteuacutedo um significado um quecirc uma verdade que por um lado faz com que a coisa seja aquilo que eacute e por outro torna-a cognosciacutevel para a inteligecircncia humana Eacute precisamente isto o que Tomaacutes designa por ratio Assim indagar O que eacute isto (O que eacute uma aacutervore O que eacute o homem) significa afinal das contas perguntar pelo ser pelo quecirc (quid-ditas whatness quumlididade) pela ratio pela estruturaccedilatildeo interna de um ente que faz com que ele seja aquilo que eacute Daiacute a sugestiva forma interrogativa do francecircs Quest-ce que que eacute este quecirc que quecirc eacute isto

Esta ratio que estrutura que plasma um ente eacute a mesma que se oferece agrave inteligecircncia humana para formar o conceito que seraacute tanto mais adequado

quanto maior for a objetividade com que se abrir agrave realidade contida no objeto

Dentre as muitas e variadas formas de interpretaccedilatildeo da expressatildeo Deus fala[10] haacute uma especialmente importante nas relaccedilotildees entre Deus e o homem natildeo eacute por acaso que Joatildeo emprega o vocaacutebulo grego Logos (Verbum razatildeo palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma Trindade que se fez carne em Jesus Cristo o Verbum natildeo soacute eacute imagem do Pai mas tambeacutem princiacutepio da Criaccedilatildeo (cfr Jo 13) E a Criaccedilatildeo deve ser entendida precisamente como projeto design feito por Deus atraveacutes do Verbo Numa comparaccedilatildeo imprecisa[11] com o ato criador divino considero o isqueiro que tenho diante de mim Este objeto eacute produto de uma inteligecircncia haacute uma racionalidade[12]

que o estrutura por dentro Eacute precisamente essa ratio que se por um lado estrutura por dentro qualquer ente por outro permite como diziacuteamos acesso intelectual humano a esse ente[13] No caso do isqueiro a ratio que o constitui enquanto isqueiro eacute o que me permite conhececirc-lo e uma vez conhecido consertaacute-lo trocar uma peccedila etc

Guardadas as devidas distacircncias[14] eacute nesse sentido que o cristianismo fala da Criaccedilatildeo pelo Verbo e eacute por isso tambeacutem que a Teologia - na feliz formulaccedilatildeo do teoacutelogo alematildeo Romano Guardini - afirma o caraacuteter verbal (Wort-charakter) de cada ser Ou em sentenccedila de Tomaacutes Assim como a palavra audiacutevel manifesta a palavra interior[15] assim tambeacutem a criatura manifesta a concepccedilatildeo divina () as criaturas satildeo como palavras que manifestam o Verbo de Deus (I d 27 22 ad 3)

Assim para Tomaacutes natildeo soacute Deus eacute por excelecircncia Aquele que fala mas as proacuteprias criaturas satildeo palavras proferidas por Deus

Essa concepccedilatildeo de Criaccedilatildeo como fala de Deus a Criaccedilatildeo como ato inteligente de Deus foi muito bem expressa numa aguda sentenccedila de Sartre que intenta negaacute-la Natildeo haacute natureza humana porque natildeo haacute Deus para concebecirc-la De um modo positivo poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma soacute se pode falar em essecircncia em natureza em verdade das coisas na medida em que haacute um projeto divino incorporado a elas ou melhor constituindo-as

A natureza especialmente no caso da natureza humana natildeo eacute entendida pela Teologia como algo riacutegido como uma camisa de forccedila metafiacutesica mas como um projeto vivo um impulso ontoloacutegico inicial[16] um lanccedilamento no ser cujas diretrizes fundamentais satildeo dadas precisamente pelo ato criador que no entanto requer a complementaccedilatildeo pelo agir livre e responsaacutevel do homem

Nesse sentido Tomaacutes fala da moral como ultimum potentiae como um processo de auto-realizaccedilatildeo do homem corresponde-lhe continuar levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus Assim todo o agir humano (o trabalho a educaccedilatildeo o amor etc) constitui uma colaboraccedilatildeo do homem com o agir divino precisamente porque Deus quis contar com essa cooperaccedilatildeo

Essas consideraccedilotildees serviratildeo para analisar algumas convicccedilotildees da visatildeo de mundo expressa por proveacuterbios bantu que surpreendentemente coincidem de modo profundo com o conceito cristatildeo de criaccedilatildeo

Tomaacutes de Aquino e a metafiacutesica dos proveacuterbios bantu

Nas liacutenguas bantu encontraremos diversas designaccedilotildees de Deus (cfr Kagame 135 e ss) como Kalunga aquele-que-por-excelecircncia-junta[17] Leza o todo-poderoso Molimo o Espiacuterito Ruhanga O Criador etc Mas eacute Nzambi (ou zambi) da nona classe a forma mais frequumlente e tambeacutem a mais sugestiva de nomear a Deus Nzambi eacute um derivado do verbo amba[18] que significa falar E chamar a Deus de Nzambi[19] eacute chamaacute-lo literalmente de aquele que por excelecircncia fala[20]

Haacute cerca de duzentos anos numa das primeiras gramaacuteticas de kimbundo Cannecattim indica que em liacutengua congueza Deus o Criador natildeo soacute se diz Nzambi (aquele a quem compete falar) mas Nzambi-Mpungu (p 176) forma encontrada ainda hoje em certas regiotildees (Kagame 132 145 etc) Segundo Marie-Bernard (cit Kagame 145) mpungu significa aquele que voa muito alto Tal significado eacute derivado por analogia mpungu eacute originalmente uma espeacutecie de aacuteguia que voa tatildeo alto a ponto de tornar-se invisiacutevel a olho nu Daiacute tambeacutem os significados derivados de mpungu como adjetivo o maior o mais elevado o supremo o excelente (Kagame 145) Mpungu - segundo Laman (cit Kagame 145) - acompanha Nzambi ou outras palavras para expressar as qualidades mais altas Donde Nzambi-Mpungu aquele que eminentemente por excelecircncia fala

Essa forma de designar a Deus como Aquele-que-Profere aproxima a concepccedilatildeo bantu do Logos (Verbum) de Jo 11 e da ideacuteia de criaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino Uma confirmaccedilatildeo desse sentido da Criaccedilatildeo como falar criador de Deus eacute encontrada em dois interessantiacutessimos proveacuterbios kiuoio (Vaz 178)

A kilamba natildeo tem raiacutezes Mas natildeo foi Deus quem a fez

Chi lambu ka kambua li sina - Bati Nzambi ku chi vanga koacute

O proveacuterbio - muito tradicional entre os Cabindas - refere-se agrave surpreendente planta kilamba que (ao menos aparentemente) natildeo tem raiacutezes

Ora isto (que diabos uma planta sem raiz) contraria a natureza das coisas natildeo condiz com a Criaccedilatildeo que eacute sempre ratio Daiacute a duacutevida (retoacuterica) expressa na pergunta final

Em outra versatildeo o mesmo proveacuterbio eacute assim apresentado (JM 61 e 429)

A kilamba a que natildeo tem raiz natildeo foi Deus quem a fez

Kilamba kikambua lisina Nzambi ka sa kivanga ko

Em Ciscato (p 307) encontramos

A serpente por dom de Muluku[21] pode correr mesmo natildeo tendo patas

Enowa evahiweacute ti Muluku wi enaacutetchimaka ehiriacute ni Mechoacute

Um outro proveacuterbio ainda mais significativo fala da criatura como palavra proferida por Deus[22]

Palavra proferida por Deus compete ao homem completaacute-la

Kambua kikamba Nzambi muntu limonho uisesula (JM 431)

Do conceito de criaccedilatildeo como pensamento de Deus decorre o conceito de misteacuterio para a tradiccedilatildeo filosoacutefico-teoloacutegica do Ocidente (e para as tribos africanas) Misteacuterio natildeo significa apenas natildeo-conhecimento (faacutetico) mas um determinado tipo de natildeo-conhecimento aquele que decorre do excesso (e natildeo da falta) de luz

Se o mundo foi criado por Deus isto eacute projetado concebido falado pensado pelo Verbo-Nzambi entatildeo cada ente eacute misteacuterio e a realidade criada transcende a capacidade de compreensatildeo de uma criatura como o homem Precisamente esta eacute a razatildeo pela qual Tomaacutes de Aquino afirmou que nenhum filoacutesofo jamais esgotaria sequer a essecircncia de uma mosca A essa transcendecircncia referem-se alguns proveacuterbios

Coraccedilatildeo de Deus guarda todas as coisas

Ntima Nzambi lunda mamonso (JM 432)

Esta sentenccedila aplica-se como convite agrave paciecircncia (Deus eacute quem sabe) Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima) coraccedilatildeo o iacutentimo de cada um Trata-se de um conceito importante na visatildeo de mundo bantu Embora haja variaccedilotildees regionais recolhamos aqui o conceito que Laman[23]

apresenta em seu dicionaacuterio kikongo ntima coraccedilatildeo sentimento consciecircncia o interior

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coraccedilatildeo de Deus) guarda todas as coisas afirma-se tambeacutem o ato criador soacute Deus conhece o ntima de cada criatura

O que estaacute no coraccedilatildeo de outro ningueacutem o sabe

Make mu ntima ngana ka mazaacutebi ko (JM 410)

O coraccedilatildeo humano natildeo se contenta com pouco nem com muito

Murima ohinamweacutela ni ekhani ni etoacutekwenetho (EC 261)

Se o coraccedilatildeo fosse um cadeado certamente eu o abriria

Monti ntima nkandau Nkanu mazibula (JM 411)

Ah se o coraccedilatildeo fosse nariz

(Que bom seria se pudeacutessemos pelo faro saber como satildeo as pessoas)

Murima waacuteri ephulaacute (EC 135)

Comemos juntos e rimos juntos O que estaacute no coraccedilatildeo poreacutem natildeo o sabemos (Vaz 203)

Liaacute tu seva Ma keacute mu ntima ku podi ku ma zaba koacute

Os coraccedilotildees diferem haacute gente boa e gente maacute ([24])

Ntima viakene ike muntu mbote ike muntu mbi (JM 411)

E assim cada um eacute como eacute como Deus o fez (o que do ponto de vista da eacutetica da convivecircncia eacute um chamado agrave compreensatildeo)

Quando cerrando os dentes bates no catildeo sabes o que estaacute no coraccedilatildeo dele

Abu uibula mbuaacute ui kanga meno ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuaacute (JM 208)

O papagaio natildeo pode pocircr ovos em outra parte foi Deus quem o fez assim (JM 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko naveka Nzambi uvanga buau

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

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TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 4: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

quanto maior for a objetividade com que se abrir agrave realidade contida no objeto

Dentre as muitas e variadas formas de interpretaccedilatildeo da expressatildeo Deus fala[10] haacute uma especialmente importante nas relaccedilotildees entre Deus e o homem natildeo eacute por acaso que Joatildeo emprega o vocaacutebulo grego Logos (Verbum razatildeo palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma Trindade que se fez carne em Jesus Cristo o Verbum natildeo soacute eacute imagem do Pai mas tambeacutem princiacutepio da Criaccedilatildeo (cfr Jo 13) E a Criaccedilatildeo deve ser entendida precisamente como projeto design feito por Deus atraveacutes do Verbo Numa comparaccedilatildeo imprecisa[11] com o ato criador divino considero o isqueiro que tenho diante de mim Este objeto eacute produto de uma inteligecircncia haacute uma racionalidade[12]

que o estrutura por dentro Eacute precisamente essa ratio que se por um lado estrutura por dentro qualquer ente por outro permite como diziacuteamos acesso intelectual humano a esse ente[13] No caso do isqueiro a ratio que o constitui enquanto isqueiro eacute o que me permite conhececirc-lo e uma vez conhecido consertaacute-lo trocar uma peccedila etc

Guardadas as devidas distacircncias[14] eacute nesse sentido que o cristianismo fala da Criaccedilatildeo pelo Verbo e eacute por isso tambeacutem que a Teologia - na feliz formulaccedilatildeo do teoacutelogo alematildeo Romano Guardini - afirma o caraacuteter verbal (Wort-charakter) de cada ser Ou em sentenccedila de Tomaacutes Assim como a palavra audiacutevel manifesta a palavra interior[15] assim tambeacutem a criatura manifesta a concepccedilatildeo divina () as criaturas satildeo como palavras que manifestam o Verbo de Deus (I d 27 22 ad 3)

Assim para Tomaacutes natildeo soacute Deus eacute por excelecircncia Aquele que fala mas as proacuteprias criaturas satildeo palavras proferidas por Deus

Essa concepccedilatildeo de Criaccedilatildeo como fala de Deus a Criaccedilatildeo como ato inteligente de Deus foi muito bem expressa numa aguda sentenccedila de Sartre que intenta negaacute-la Natildeo haacute natureza humana porque natildeo haacute Deus para concebecirc-la De um modo positivo poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma soacute se pode falar em essecircncia em natureza em verdade das coisas na medida em que haacute um projeto divino incorporado a elas ou melhor constituindo-as

A natureza especialmente no caso da natureza humana natildeo eacute entendida pela Teologia como algo riacutegido como uma camisa de forccedila metafiacutesica mas como um projeto vivo um impulso ontoloacutegico inicial[16] um lanccedilamento no ser cujas diretrizes fundamentais satildeo dadas precisamente pelo ato criador que no entanto requer a complementaccedilatildeo pelo agir livre e responsaacutevel do homem

Nesse sentido Tomaacutes fala da moral como ultimum potentiae como um processo de auto-realizaccedilatildeo do homem corresponde-lhe continuar levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus Assim todo o agir humano (o trabalho a educaccedilatildeo o amor etc) constitui uma colaboraccedilatildeo do homem com o agir divino precisamente porque Deus quis contar com essa cooperaccedilatildeo

Essas consideraccedilotildees serviratildeo para analisar algumas convicccedilotildees da visatildeo de mundo expressa por proveacuterbios bantu que surpreendentemente coincidem de modo profundo com o conceito cristatildeo de criaccedilatildeo

Tomaacutes de Aquino e a metafiacutesica dos proveacuterbios bantu

Nas liacutenguas bantu encontraremos diversas designaccedilotildees de Deus (cfr Kagame 135 e ss) como Kalunga aquele-que-por-excelecircncia-junta[17] Leza o todo-poderoso Molimo o Espiacuterito Ruhanga O Criador etc Mas eacute Nzambi (ou zambi) da nona classe a forma mais frequumlente e tambeacutem a mais sugestiva de nomear a Deus Nzambi eacute um derivado do verbo amba[18] que significa falar E chamar a Deus de Nzambi[19] eacute chamaacute-lo literalmente de aquele que por excelecircncia fala[20]

Haacute cerca de duzentos anos numa das primeiras gramaacuteticas de kimbundo Cannecattim indica que em liacutengua congueza Deus o Criador natildeo soacute se diz Nzambi (aquele a quem compete falar) mas Nzambi-Mpungu (p 176) forma encontrada ainda hoje em certas regiotildees (Kagame 132 145 etc) Segundo Marie-Bernard (cit Kagame 145) mpungu significa aquele que voa muito alto Tal significado eacute derivado por analogia mpungu eacute originalmente uma espeacutecie de aacuteguia que voa tatildeo alto a ponto de tornar-se invisiacutevel a olho nu Daiacute tambeacutem os significados derivados de mpungu como adjetivo o maior o mais elevado o supremo o excelente (Kagame 145) Mpungu - segundo Laman (cit Kagame 145) - acompanha Nzambi ou outras palavras para expressar as qualidades mais altas Donde Nzambi-Mpungu aquele que eminentemente por excelecircncia fala

Essa forma de designar a Deus como Aquele-que-Profere aproxima a concepccedilatildeo bantu do Logos (Verbum) de Jo 11 e da ideacuteia de criaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino Uma confirmaccedilatildeo desse sentido da Criaccedilatildeo como falar criador de Deus eacute encontrada em dois interessantiacutessimos proveacuterbios kiuoio (Vaz 178)

A kilamba natildeo tem raiacutezes Mas natildeo foi Deus quem a fez

Chi lambu ka kambua li sina - Bati Nzambi ku chi vanga koacute

O proveacuterbio - muito tradicional entre os Cabindas - refere-se agrave surpreendente planta kilamba que (ao menos aparentemente) natildeo tem raiacutezes

Ora isto (que diabos uma planta sem raiz) contraria a natureza das coisas natildeo condiz com a Criaccedilatildeo que eacute sempre ratio Daiacute a duacutevida (retoacuterica) expressa na pergunta final

Em outra versatildeo o mesmo proveacuterbio eacute assim apresentado (JM 61 e 429)

A kilamba a que natildeo tem raiz natildeo foi Deus quem a fez

Kilamba kikambua lisina Nzambi ka sa kivanga ko

Em Ciscato (p 307) encontramos

A serpente por dom de Muluku[21] pode correr mesmo natildeo tendo patas

Enowa evahiweacute ti Muluku wi enaacutetchimaka ehiriacute ni Mechoacute

Um outro proveacuterbio ainda mais significativo fala da criatura como palavra proferida por Deus[22]

Palavra proferida por Deus compete ao homem completaacute-la

Kambua kikamba Nzambi muntu limonho uisesula (JM 431)

Do conceito de criaccedilatildeo como pensamento de Deus decorre o conceito de misteacuterio para a tradiccedilatildeo filosoacutefico-teoloacutegica do Ocidente (e para as tribos africanas) Misteacuterio natildeo significa apenas natildeo-conhecimento (faacutetico) mas um determinado tipo de natildeo-conhecimento aquele que decorre do excesso (e natildeo da falta) de luz

Se o mundo foi criado por Deus isto eacute projetado concebido falado pensado pelo Verbo-Nzambi entatildeo cada ente eacute misteacuterio e a realidade criada transcende a capacidade de compreensatildeo de uma criatura como o homem Precisamente esta eacute a razatildeo pela qual Tomaacutes de Aquino afirmou que nenhum filoacutesofo jamais esgotaria sequer a essecircncia de uma mosca A essa transcendecircncia referem-se alguns proveacuterbios

Coraccedilatildeo de Deus guarda todas as coisas

Ntima Nzambi lunda mamonso (JM 432)

Esta sentenccedila aplica-se como convite agrave paciecircncia (Deus eacute quem sabe) Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima) coraccedilatildeo o iacutentimo de cada um Trata-se de um conceito importante na visatildeo de mundo bantu Embora haja variaccedilotildees regionais recolhamos aqui o conceito que Laman[23]

apresenta em seu dicionaacuterio kikongo ntima coraccedilatildeo sentimento consciecircncia o interior

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coraccedilatildeo de Deus) guarda todas as coisas afirma-se tambeacutem o ato criador soacute Deus conhece o ntima de cada criatura

O que estaacute no coraccedilatildeo de outro ningueacutem o sabe

Make mu ntima ngana ka mazaacutebi ko (JM 410)

O coraccedilatildeo humano natildeo se contenta com pouco nem com muito

Murima ohinamweacutela ni ekhani ni etoacutekwenetho (EC 261)

Se o coraccedilatildeo fosse um cadeado certamente eu o abriria

Monti ntima nkandau Nkanu mazibula (JM 411)

Ah se o coraccedilatildeo fosse nariz

(Que bom seria se pudeacutessemos pelo faro saber como satildeo as pessoas)

Murima waacuteri ephulaacute (EC 135)

Comemos juntos e rimos juntos O que estaacute no coraccedilatildeo poreacutem natildeo o sabemos (Vaz 203)

Liaacute tu seva Ma keacute mu ntima ku podi ku ma zaba koacute

Os coraccedilotildees diferem haacute gente boa e gente maacute ([24])

Ntima viakene ike muntu mbote ike muntu mbi (JM 411)

E assim cada um eacute como eacute como Deus o fez (o que do ponto de vista da eacutetica da convivecircncia eacute um chamado agrave compreensatildeo)

Quando cerrando os dentes bates no catildeo sabes o que estaacute no coraccedilatildeo dele

Abu uibula mbuaacute ui kanga meno ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuaacute (JM 208)

O papagaio natildeo pode pocircr ovos em outra parte foi Deus quem o fez assim (JM 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko naveka Nzambi uvanga buau

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

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TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

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[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 5: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

Nesse sentido Tomaacutes fala da moral como ultimum potentiae como um processo de auto-realizaccedilatildeo do homem corresponde-lhe continuar levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus Assim todo o agir humano (o trabalho a educaccedilatildeo o amor etc) constitui uma colaboraccedilatildeo do homem com o agir divino precisamente porque Deus quis contar com essa cooperaccedilatildeo

Essas consideraccedilotildees serviratildeo para analisar algumas convicccedilotildees da visatildeo de mundo expressa por proveacuterbios bantu que surpreendentemente coincidem de modo profundo com o conceito cristatildeo de criaccedilatildeo

Tomaacutes de Aquino e a metafiacutesica dos proveacuterbios bantu

Nas liacutenguas bantu encontraremos diversas designaccedilotildees de Deus (cfr Kagame 135 e ss) como Kalunga aquele-que-por-excelecircncia-junta[17] Leza o todo-poderoso Molimo o Espiacuterito Ruhanga O Criador etc Mas eacute Nzambi (ou zambi) da nona classe a forma mais frequumlente e tambeacutem a mais sugestiva de nomear a Deus Nzambi eacute um derivado do verbo amba[18] que significa falar E chamar a Deus de Nzambi[19] eacute chamaacute-lo literalmente de aquele que por excelecircncia fala[20]

Haacute cerca de duzentos anos numa das primeiras gramaacuteticas de kimbundo Cannecattim indica que em liacutengua congueza Deus o Criador natildeo soacute se diz Nzambi (aquele a quem compete falar) mas Nzambi-Mpungu (p 176) forma encontrada ainda hoje em certas regiotildees (Kagame 132 145 etc) Segundo Marie-Bernard (cit Kagame 145) mpungu significa aquele que voa muito alto Tal significado eacute derivado por analogia mpungu eacute originalmente uma espeacutecie de aacuteguia que voa tatildeo alto a ponto de tornar-se invisiacutevel a olho nu Daiacute tambeacutem os significados derivados de mpungu como adjetivo o maior o mais elevado o supremo o excelente (Kagame 145) Mpungu - segundo Laman (cit Kagame 145) - acompanha Nzambi ou outras palavras para expressar as qualidades mais altas Donde Nzambi-Mpungu aquele que eminentemente por excelecircncia fala

Essa forma de designar a Deus como Aquele-que-Profere aproxima a concepccedilatildeo bantu do Logos (Verbum) de Jo 11 e da ideacuteia de criaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino Uma confirmaccedilatildeo desse sentido da Criaccedilatildeo como falar criador de Deus eacute encontrada em dois interessantiacutessimos proveacuterbios kiuoio (Vaz 178)

A kilamba natildeo tem raiacutezes Mas natildeo foi Deus quem a fez

Chi lambu ka kambua li sina - Bati Nzambi ku chi vanga koacute

O proveacuterbio - muito tradicional entre os Cabindas - refere-se agrave surpreendente planta kilamba que (ao menos aparentemente) natildeo tem raiacutezes

Ora isto (que diabos uma planta sem raiz) contraria a natureza das coisas natildeo condiz com a Criaccedilatildeo que eacute sempre ratio Daiacute a duacutevida (retoacuterica) expressa na pergunta final

Em outra versatildeo o mesmo proveacuterbio eacute assim apresentado (JM 61 e 429)

A kilamba a que natildeo tem raiz natildeo foi Deus quem a fez

Kilamba kikambua lisina Nzambi ka sa kivanga ko

Em Ciscato (p 307) encontramos

A serpente por dom de Muluku[21] pode correr mesmo natildeo tendo patas

Enowa evahiweacute ti Muluku wi enaacutetchimaka ehiriacute ni Mechoacute

Um outro proveacuterbio ainda mais significativo fala da criatura como palavra proferida por Deus[22]

Palavra proferida por Deus compete ao homem completaacute-la

Kambua kikamba Nzambi muntu limonho uisesula (JM 431)

Do conceito de criaccedilatildeo como pensamento de Deus decorre o conceito de misteacuterio para a tradiccedilatildeo filosoacutefico-teoloacutegica do Ocidente (e para as tribos africanas) Misteacuterio natildeo significa apenas natildeo-conhecimento (faacutetico) mas um determinado tipo de natildeo-conhecimento aquele que decorre do excesso (e natildeo da falta) de luz

Se o mundo foi criado por Deus isto eacute projetado concebido falado pensado pelo Verbo-Nzambi entatildeo cada ente eacute misteacuterio e a realidade criada transcende a capacidade de compreensatildeo de uma criatura como o homem Precisamente esta eacute a razatildeo pela qual Tomaacutes de Aquino afirmou que nenhum filoacutesofo jamais esgotaria sequer a essecircncia de uma mosca A essa transcendecircncia referem-se alguns proveacuterbios

Coraccedilatildeo de Deus guarda todas as coisas

Ntima Nzambi lunda mamonso (JM 432)

Esta sentenccedila aplica-se como convite agrave paciecircncia (Deus eacute quem sabe) Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima) coraccedilatildeo o iacutentimo de cada um Trata-se de um conceito importante na visatildeo de mundo bantu Embora haja variaccedilotildees regionais recolhamos aqui o conceito que Laman[23]

apresenta em seu dicionaacuterio kikongo ntima coraccedilatildeo sentimento consciecircncia o interior

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coraccedilatildeo de Deus) guarda todas as coisas afirma-se tambeacutem o ato criador soacute Deus conhece o ntima de cada criatura

O que estaacute no coraccedilatildeo de outro ningueacutem o sabe

Make mu ntima ngana ka mazaacutebi ko (JM 410)

O coraccedilatildeo humano natildeo se contenta com pouco nem com muito

Murima ohinamweacutela ni ekhani ni etoacutekwenetho (EC 261)

Se o coraccedilatildeo fosse um cadeado certamente eu o abriria

Monti ntima nkandau Nkanu mazibula (JM 411)

Ah se o coraccedilatildeo fosse nariz

(Que bom seria se pudeacutessemos pelo faro saber como satildeo as pessoas)

Murima waacuteri ephulaacute (EC 135)

Comemos juntos e rimos juntos O que estaacute no coraccedilatildeo poreacutem natildeo o sabemos (Vaz 203)

Liaacute tu seva Ma keacute mu ntima ku podi ku ma zaba koacute

Os coraccedilotildees diferem haacute gente boa e gente maacute ([24])

Ntima viakene ike muntu mbote ike muntu mbi (JM 411)

E assim cada um eacute como eacute como Deus o fez (o que do ponto de vista da eacutetica da convivecircncia eacute um chamado agrave compreensatildeo)

Quando cerrando os dentes bates no catildeo sabes o que estaacute no coraccedilatildeo dele

Abu uibula mbuaacute ui kanga meno ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuaacute (JM 208)

O papagaio natildeo pode pocircr ovos em outra parte foi Deus quem o fez assim (JM 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko naveka Nzambi uvanga buau

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

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QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 6: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

Ora isto (que diabos uma planta sem raiz) contraria a natureza das coisas natildeo condiz com a Criaccedilatildeo que eacute sempre ratio Daiacute a duacutevida (retoacuterica) expressa na pergunta final

Em outra versatildeo o mesmo proveacuterbio eacute assim apresentado (JM 61 e 429)

A kilamba a que natildeo tem raiz natildeo foi Deus quem a fez

Kilamba kikambua lisina Nzambi ka sa kivanga ko

Em Ciscato (p 307) encontramos

A serpente por dom de Muluku[21] pode correr mesmo natildeo tendo patas

Enowa evahiweacute ti Muluku wi enaacutetchimaka ehiriacute ni Mechoacute

Um outro proveacuterbio ainda mais significativo fala da criatura como palavra proferida por Deus[22]

Palavra proferida por Deus compete ao homem completaacute-la

Kambua kikamba Nzambi muntu limonho uisesula (JM 431)

Do conceito de criaccedilatildeo como pensamento de Deus decorre o conceito de misteacuterio para a tradiccedilatildeo filosoacutefico-teoloacutegica do Ocidente (e para as tribos africanas) Misteacuterio natildeo significa apenas natildeo-conhecimento (faacutetico) mas um determinado tipo de natildeo-conhecimento aquele que decorre do excesso (e natildeo da falta) de luz

Se o mundo foi criado por Deus isto eacute projetado concebido falado pensado pelo Verbo-Nzambi entatildeo cada ente eacute misteacuterio e a realidade criada transcende a capacidade de compreensatildeo de uma criatura como o homem Precisamente esta eacute a razatildeo pela qual Tomaacutes de Aquino afirmou que nenhum filoacutesofo jamais esgotaria sequer a essecircncia de uma mosca A essa transcendecircncia referem-se alguns proveacuterbios

Coraccedilatildeo de Deus guarda todas as coisas

Ntima Nzambi lunda mamonso (JM 432)

Esta sentenccedila aplica-se como convite agrave paciecircncia (Deus eacute quem sabe) Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima) coraccedilatildeo o iacutentimo de cada um Trata-se de um conceito importante na visatildeo de mundo bantu Embora haja variaccedilotildees regionais recolhamos aqui o conceito que Laman[23]

apresenta em seu dicionaacuterio kikongo ntima coraccedilatildeo sentimento consciecircncia o interior

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coraccedilatildeo de Deus) guarda todas as coisas afirma-se tambeacutem o ato criador soacute Deus conhece o ntima de cada criatura

O que estaacute no coraccedilatildeo de outro ningueacutem o sabe

Make mu ntima ngana ka mazaacutebi ko (JM 410)

O coraccedilatildeo humano natildeo se contenta com pouco nem com muito

Murima ohinamweacutela ni ekhani ni etoacutekwenetho (EC 261)

Se o coraccedilatildeo fosse um cadeado certamente eu o abriria

Monti ntima nkandau Nkanu mazibula (JM 411)

Ah se o coraccedilatildeo fosse nariz

(Que bom seria se pudeacutessemos pelo faro saber como satildeo as pessoas)

Murima waacuteri ephulaacute (EC 135)

Comemos juntos e rimos juntos O que estaacute no coraccedilatildeo poreacutem natildeo o sabemos (Vaz 203)

Liaacute tu seva Ma keacute mu ntima ku podi ku ma zaba koacute

Os coraccedilotildees diferem haacute gente boa e gente maacute ([24])

Ntima viakene ike muntu mbote ike muntu mbi (JM 411)

E assim cada um eacute como eacute como Deus o fez (o que do ponto de vista da eacutetica da convivecircncia eacute um chamado agrave compreensatildeo)

Quando cerrando os dentes bates no catildeo sabes o que estaacute no coraccedilatildeo dele

Abu uibula mbuaacute ui kanga meno ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuaacute (JM 208)

O papagaio natildeo pode pocircr ovos em outra parte foi Deus quem o fez assim (JM 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko naveka Nzambi uvanga buau

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

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JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 7: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

apresenta em seu dicionaacuterio kikongo ntima coraccedilatildeo sentimento consciecircncia o interior

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coraccedilatildeo de Deus) guarda todas as coisas afirma-se tambeacutem o ato criador soacute Deus conhece o ntima de cada criatura

O que estaacute no coraccedilatildeo de outro ningueacutem o sabe

Make mu ntima ngana ka mazaacutebi ko (JM 410)

O coraccedilatildeo humano natildeo se contenta com pouco nem com muito

Murima ohinamweacutela ni ekhani ni etoacutekwenetho (EC 261)

Se o coraccedilatildeo fosse um cadeado certamente eu o abriria

Monti ntima nkandau Nkanu mazibula (JM 411)

Ah se o coraccedilatildeo fosse nariz

(Que bom seria se pudeacutessemos pelo faro saber como satildeo as pessoas)

Murima waacuteri ephulaacute (EC 135)

Comemos juntos e rimos juntos O que estaacute no coraccedilatildeo poreacutem natildeo o sabemos (Vaz 203)

Liaacute tu seva Ma keacute mu ntima ku podi ku ma zaba koacute

Os coraccedilotildees diferem haacute gente boa e gente maacute ([24])

Ntima viakene ike muntu mbote ike muntu mbi (JM 411)

E assim cada um eacute como eacute como Deus o fez (o que do ponto de vista da eacutetica da convivecircncia eacute um chamado agrave compreensatildeo)

Quando cerrando os dentes bates no catildeo sabes o que estaacute no coraccedilatildeo dele

Abu uibula mbuaacute ui kanga meno ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuaacute (JM 208)

O papagaio natildeo pode pocircr ovos em outra parte foi Deus quem o fez assim (JM 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko naveka Nzambi uvanga buau

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

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JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 8: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

Fenocircmeno admiraacutevel o do ovo carne por dentro osso por fora

Bunkuacutelu bukioacute Nsunha mukati mvese kunganda (JM 137)

Aplicam-se estes dois uacuteltimos proveacuterbios ao que estaacute fora da regra geral Pois o que a inteligecircncia de Deus cria nem sempre a mente humana alcanccedila (e em qualquer caso nunca esgota)

Embrulho que Deus amarrou soacute Deus pode desamarrar

Kifunda kikanga Nzambi Uala lukuacutetula Nzambi to (JM 57)

Noacute que Deus amarra o homem natildeo pode desamarrar

Likova likanga Nzambi muntu limonho podi kuacutetula ko (JM 139)

Questotildees do coraccedilatildeo a cabeccedila do homem natildeo comporta

Mambu manata ntima Ntu muntu limonho kapoacutedi ku manata ko (JM 412)

Mas no geral a Criaccedilatildeo enquanto fala de Deus eacute audiacutevel pelo homem pois as leis da Criaccedilatildeo satildeo fala de Deus

Voz da terra voz de Deus (Vaz 17)

Mbembu nsi mbembu Nzambi

Metafiacutesica tupi-I Abaeteacute

Uma coisa eacute buriti (a palmeira de Deus)

outra eacute buritirana (Guimaratildees Rosa)

Coincidecircncia coincidir nem sempre indicam casualidade Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo e portanto co-incidam natildeo por obra do acaso (Que coincidecircncia vocecirc por aqui) mas ateacute deliberadamente como quem por exemplo dissesse Jaacute que haacute coincidecircncia de interesses podemos fazer uma sociedade

Uma dessas coincidecircncias natildeo-casuais eacute a que se daacute entre duas antigas sabedorias a da milenar tradiccedilatildeo ocidental - representada aqui por Tomaacutes de Aquino - e a tupi

Sabedoria tupi que deve ser procurada natildeo em tratados filosoacuteficos mas - como certa vez disse Joatildeo Guimaratildees Rosa referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na liacutengua Toda liacutengua satildeo rastros de velho misteacuterio

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

CISCATO Elia Masiposhipo proverbi detti espressioni idiomatiche del popolo lomwe Milano Segr Missioni

JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 9: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

A liacutengua tupi no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade vem dar com uma das mais fundamentais convicccedilotildees da doutrina claacutessica do Ocidente a respeito da Moral Moral entendida no sentido que lhe daacute Tomaacutes o ser do homem o maacuteximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem um processo de realizaccedilatildeo pessoal em que se caminha para a plena realizaccedilatildeo das proacuteprias potencialidades ontoloacutegicas

A moral eacute concebida pois como uma questatildeo de ser ou natildeo ser plenamente homem Eacute nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare por todos conhecida mas que soacute nesse enquadramento pode ser compreendida pois agrave primeira vista surpreende que Hamlet indeciso sobre o que vai fazer (ou natildeo fazer) natildeo se indague To do or not to do E eacute que como diziacuteamos na concepccedilatildeo tradicional do Ocidente o agir remete a algo de mais profundo o ser O que eu fizer ou deixar de fazer implicaraacute o que serei ou natildeo serei enquanto homem e portanto to be or not to be eacute que eacute a questatildeo

Na cultura tupi evidentemente natildeo podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafiacutesica dos transcendentais ou fundamentos ontoloacutegicos da Moral Mas na liacutengua encontramos interessante coincidecircncia

Ensinam as gramaacuteticas que o superlativo (portanto o ultimum o maacuteximo) em tupi constroacutei-se pela justaposiccedilatildeo de -eteacute ao termo assim por exemplo catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturiteacute (o melhor) Note-se que -eteacute pode significar natildeo soacute o superlativo mas tambeacutem verdadeiro e bom (no sentido ontoloacutegico dos transcendentais como quando se diz Ameacutelia eacute que era mulher de verdade ou que tal cheque eacute bom para dia tal isto eacute vale eacute em ato a partir do dia tal)

Em tupi uma mesma palavra yaguar designa de cachorro a onccedila Mas yaguareteacute natildeo significa catildeozinho qualquer mas somente a onccedila que eacute o yaguar-maacuteximo para valer de verdade eteacute

Jaacute o contraacuterio de -eteacute far-se-aacute com o sufixo -ran (ou rana) Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhanccedila e eacute natural que uma liacutengua primitiva como o tupi construa muitos conceitos com base na parecenccedila cajarana (parece cajaacute) tatarana (parece fogo) etc

Mais interessante poreacutem para este nosso estudo eacute o significado derivado do sufixo -ran parecido no sentido de falhado fracassado o que parece mas natildeo eacute Precisamente o oposto de -eteacute[25] Um exemplo nos ajudaraacute a comparar esse sentido de -ran com seu contraacuterio -eteacute Terra eacute ibi uma terra boa feacutertil onde basta lanccedilar a semente e logo sem maiores cuidados ela germina floresce e daacute abundantes frutos eacute naturalmente ibi-eteacute Jaacute uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente natildeo vinga eacute ibi-ran parece

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

CISCATO Elia Masiposhipo proverbi detti espressioni idiomatiche del popolo lomwe Milano Segr Missioni

JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 10: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

terra tem cor de terra cheiro de terra consistecircncia de terra mas na realidade natildeo eacute terra

Que tem tudo isto que ver com a moral claacutessica Homem em tupi eacute aba Um homem moralmente bom honrado digno eacute aba-eteacute (homem ao maacuteximo de verdade ao superlativo ultimum) jaacute o canalha o imoral eacute aba-ran parece homem mas natildeo eacute Tal como na concepccedilatildeo de Tomaacutes

Como explicar a coincidecircncia Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator a realidade

Metafiacutesica tupi-2 Guumlera Puera Quumlera

O filoacutesofo ideal diz T S Eliot deveria estar familiarizado com todas as liacutenguas Natildeo se trata aqui naturalmente da possibilidade - sem duacutevida do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicaccedilotildees estrangeiras da especialidade no original Nesse sentido o tupi natildeo teria o menor relevo para o estudioso de filosofia

Mas se aceitamos que o filosofar eacute um resgate das grandes experiecircncias humanas que se condensam em linguagem comum entatildeo natildeo nos pareceraacute exagerada a sentenccedila de Eliot

E para noacutes o tupi oferece um interesse adicional na medida em que influenciou o portuguecircs falado no Brasil

Na singeleza e transparecircncia do tupi encontram-se como diziacuteamos sugestivas peculiaridades filosoacuteficas estranhas ao falante de liacutenguas europeacuteias eacute o caso da composiccedilatildeo com guumlera

Ao ajuntar a um substantivo x a terminaccedilatildeo -guumlera (quumlera ou puera de acordo com a eufonia) obtemos uma curiosa alteraccedilatildeo semacircntica x-guumlera eacute o que foi x jaacute natildeo eacute mais (ao menos em sentido proacuteprio e rigoroso) mas preserva algo daquele x que um dia foi

Assim anhangaacute eacute diabo espiacuterito com poderes jaacute anhanguumlera[26] eacute algueacutem que sem ser (mais) diabo preserva algo do diaboacutelico poder que um dia teve em plenitude Ibirapuera eacute o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibiraacute)[27] Itaquumlera o mesmo para pedreira (ita como se sabe eacute pedra) e Piaccedilaguumlera eacute porto em ruiacutenas que jaacute natildeo se usa mais

A composiccedilatildeo com -guumlera eacute frequumlentiacutessima no tupi e estaacute continuamente a recordar-nos - algo hoje tatildeo esquecido - que haacute uma conexatildeo entre o presente e o passado entre o futuro e o presente que haacute leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as accedilotildees tecircm consequumlecircncias projetam-se deixam um rastro um guumlera

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

CISCATO Elia Masiposhipo proverbi detti espressioni idiomatiche del popolo lomwe Milano Segr Missioni

JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 11: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

Cutucaguumlera (cicatriz) por exemplo faz lembrar imediatamente que aquele sinal no corpo eacute o que ficou como resiacuteduo de uma espetada (cutuc eacute ferir com ponta) capuera roccedila abandonada tapuera (taba-puera) os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba De pay (como o iacutendio chamava o padre) procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc[28]

O portuguecircs natildeo distingue a carne integrada no vivente da que se vende no accedilougue nem a pele do animal vivo da que estaacute na bolsa ou artefato Poreacutem para a sensibilidade em face da natureza que haacute no tupi sooacute eacute a carne viva do animal mas a que estaacute na panela ou churrasqueira eacute algo diferente eacute sooacutequumlera a pele no corpo do animal vivo eacute pi uma vez extraiacuteda poreacutem eacute pipera[29] E peruca eacute abaguumlera (aba eacute cabelo vivo) enquanto de canga (osso) forma-se canguumlera ossada esqueleto de animal e pepocoera eacute a pena (pepoacute) uma vez arrancada do paacutessaro

Interessante eacute observar que guumlera natildeo se aplica soacute a realidades fiacutesicas (como aquelas com que ateacute aqui temos exemplificado) mas tambeacutem agrave realidade propriamente humana e ateacute moral

Assim mbaeacute tem o sentido amplo de coisa jaacute mbaeacutepuera eacute somente intriga fofoca mexerico Nheen eacute falar a fala viva da voz - forma originaacuteria de toda comunicaccedilatildeo - nheenguumlera eacute o recado o escrito

Diziacuteamos que esta articulaccedilatildeo x-guumlera do tupi pode ser de grande alcance moral A eacutetica claacutessica ocidental apoacuteia-se na constataccedilatildeo de que o ato humano natildeo se esgota no momento em que a accedilatildeo foi praticada projeta-se criando na alma uma preacute-disposiccedilatildeo (um guumlera) para o viacutecio ou para a virtude Precisamente este eacute um dos sentidos de guumlera o haacutebito a disposiccedilatildeo para praticar novos atos no sentido dos anteriores Assim o viciado em aguardente (kauim) eacute kauguumlera o metido a falar eacute juruguumlera (juru eacute boca) o risonho pukaguumlera etc[30]

E tambeacutem o conceito filosoacutefico-teoloacutegico de reato de culpa poderia ser - se S Tomaacutes tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-guumlera

Metafiacutesica tupi-3 Putaacuteri cy

No claacutessico pensamento ocidental haacute por assim dizer dois niacuteveis de querer naquele sentido de que fala Platatildeo no Goacutergias o homem injusto que faz o que quer mas natildeo faz o que quer

Assim uma conduta egoiacutesta interesseira motivada pelo afatilde de poder injusta por muito que possa favorecer as realizaccedilotildees perifeacutericas do ser humano necessariamente natildeo conduz agrave realizaccedilatildeo fundamental a do ser Com

isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

CISCATO Elia Masiposhipo proverbi detti espressioni idiomatiche del popolo lomwe Milano Segr Missioni

JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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isto se diz que natildeo somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coraccedilatildeo humano querer ser feliz E que pela criaccedilatildeo jaacute estatildeo previamente traccediladas as diretrizes fundamentais dessa nossa realizaccedilatildeo

Em outras palavras por natureza isto eacute por nascenccedila o homem jaacute conta com uma dinacircmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude Nossa liberdade soacute atua no outro niacutevel o das decisotildees aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em accedilatildeo aquela inclinaccedilatildeo natural[31] Evidentemente cada passo neste niacutevel pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a accedilatildeo seja boa ou maacute) daquela realizaccedilatildeo definitiva e profunda agrave qual por natureza estamos chamados

No que se refere ao niacutevel fundamental Tomaacutes afirma querer ser feliz natildeo eacute objeto de livre escolha e o homem por natureza e necessariamente quer a felicidade[32] Natildeo eacute pois de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade agraves necessidades naturais de beber e comer[33]

Precisamente essa natildeo-possibilidade de escolha sobre o fim uacuteltimo da existecircncia essa anterioridade (o homem jaacute estaacute lanccedilado em busca do seu bem objetivo) eacute um dos pontos chaves da cosmovisatildeo de S Tomaacutes Poreacutem ao traduzir a realidade em linguagem natildeo encontramos nas liacutenguas europeacuteias reflexos niacutetidos dessa dualidade de niacuteveis dizemos indiscriminadamente eu quero isto eu quero aquilo eu quero um sorvete de creme ou eu quero ser feliz

Uma vez mais como faz notar Couto de Magalhatildees[34] encontramos agudas intuiccedilotildees metafiacutesicas na liacutengua tupi O tupi vale-se muito frequumlentemente do verbo putaacuteri (querer desejar) Xa u putaacuteri piraacute eu quero comer peixe ou Xa u putaacuteri sooacutequumlera eu quero comer carne E putaacuteri percorre um mais amplo espectro de desejos[35] sendo mesmo levado a extremos semacircnticos e inclusive ao superlativo putaacuteri-reteacute quero muito mesmo preciso disto Quando poreacutem se trata de desejo que eacute fruto natildeo de escolha mas de imposiccedilatildeo da natureza entatildeo natildeo dizem putaacuteri mas cy ou cey palavras que indicam dor desestruturaccedilatildeo do ser[36] se a necessidade natildeo for satisfeita Xa iumacy quero comer (natildeo jaacute comer isto ou aquilo peixe ou carne mas a necessidade natural de alimentar-me) Igualmente ter sede eacute y cey e natildeo putaacuteri

Com esta distinccedilatildeo do tupi eacute-nos muito mais faacutecil conceber e expressar a bem-aventuranccedila humana que como se sabe jaacute foi descrita como coroamento da fome e sede de verdade e justiccedila

Metafiacutesica tupi-4 PorangaCatu - O transcendental belo

Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

CISCATO Elia Masiposhipo proverbi detti espressioni idiomatiche del popolo lomwe Milano Segr Missioni

JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Bom em tupi eacute catu belo poranga (ou poratilde em guarani) Duas palavras que aos brasileiros satildeo familiares especialmente a uacuteltima pelos topocircnimos como por exemplo Botucatu (vento bom bons ares) Ponta-Poratilde (hiacutebrida ponta bonita) E haacute pelo menos oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga

No tupi descrito por Couto Magalhatildees haacute uma interessante peculiaridade assim descrita por esse autor Em vez de dizerem alguma coisa boa eles dizem alguma coisa bonita (poranga) Bondade fiacutesica para eles eacute o mesmo que boniteza e vice-versa A palavra catu bom exprime ou qualidades morais ou bondade que natildeo se veja como a de uma planta eficaz para uma moleacutestia[38]

E assim uma vez mais a liacutengua indiacutegena vem ao encontro da filosofia de S Tomaacutes

O belo eacute um transcendental do ser algo idecircntico (na coisa) ao ente (e ao bem) e com ele conversiacutevel[39] embora tenha uma razatildeo de definiccedilatildeo diferente O belo eacute idecircntico ao bem soacute dele difere pelo aspecto que enfatiza[40] E este algo que o belo acrescenta ao bem eacute uma certa relaccedilatildeo com o conhecimento neste ponto S Tomaacutes faz notar (sempre a linguagem comum) que dentre as coisas sensiacuteveis chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo uma melodia bela) mas natildeo aos aromas ou sabores E conclui Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite belo agravequilo cuja apreensatildeo nos apraz[41]

Essa intuiccedilatildeo metafiacutesica do tupi curiosamente ocorre tambeacutem - embora seja menos evidente - nas liacutenguas latinas e especialmente no portuguecircs bonito e belo satildeo ambos derivados de bom (e acabaram por suplantar pulcher cuja forma portuguesa pulcro tambeacutem caiu em desuso na linguagem corrente)

Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais eacute do que um diminutivo familiar de bom empregado em todas as eacutepocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianccedilas - algo assim como o pretty inglecircs) e por seu caraacuteter afetivo acabou por superar pulcher na liacutengua do povo

Se no tupi bonito ocupa parte do espaccedilo semacircntico de bom no portuguecircs satildeo formas originariamente afetivas e derivadas de bom que expressam o bonito

Nos dois casos o fundamento eacute o mesmo que na realidade bom e belo satildeo idecircnticos[43] diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44] daquilo que portanto eacute formoso

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

CISCATO Elia Masiposhipo proverbi detti espressioni idiomatiche del popolo lomwe Milano Segr Missioni

JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 14: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

Bibliografia

CANNECATTIM Fr Bernardo M Liacutengua Bunda ou Angolense e Diccionaacuterio Abbreviado da liacutengua Congueza Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1805

CISCATO Elia Masiposhipo proverbi detti espressioni idiomatiche del popolo lomwe Milano Segr Missioni

JAHN Janheinz Muntu Las culturas neoafricanas Meacutexico-Buenos Aires F de Cult Econ 1963

KAGAME Alexis La philosophie Bantu compareacutee Paris Preacutesence Africaine 1976

KUKANDA Vatomene Esquisse Grammaticale du Kimbundu (diss) Univ Nationale du Zaire 1974

MARTINS VAZ J Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II) Lisboa Agecircncia Geral do Ultramar 1970

MARTINS Joaquim Sabedoria Cabinda Siacutembolos e Proveacuterbios Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar1968

MENDONCcedilA Renato A influecircncia africana no Portuguecircs do Brasil 4a ed Rio de Janeiro Civ Bras 1973

MUKENDI Ntite Langues Africaines et vision du monde art publ em Preacutesence Africaine 103 3o trim 1977

QUINTAtildeO Joseacute Luiz Gramaacutetica de Kimbundo Lisboa Descobrimento 1936

TEMPELS Placide La philosophie bantoue Paris Preacutesence Africaine 1965 (orig holand 1948)

VALENTE Joseacute Francisco Gramaacutetica Umbundu Lisboa Junta de Investigaccedilotildees de Ultramar 1964

[1] Falado em certas regiotildees de Angola Referir-nos-emos tambeacutem a duas outras liacutenguas angolanas o umbundu e o kiuoio A coletacircnea de proveacuterbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe de Moccedilambique [2] Esse confronto com o pensamento europeu eacute tema tratado por autores como Kagame Tempels e Jahn Todos os autores e lexicoacutegrafos citados neste estudo encontram-se na Bibliografia apresentada ao final Citaremos pelo

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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Page 15: Tomás de Aquino e a Metafísica · PDF fileTomás de Aquino e a Metafísica das Línguas Bantu e Tupi Luiz Jean Lauand jeanlaua@usp.br Fac. Educ. Univ. São Paulo Metafísica Bantu

sobrenome seguido da paacutegina (quando natildeo indicarmos a paacutegina trata-se de referecircncia a dicionaacuterios ou listas em ordem alfabeacutetica) O livro de Joaquim Martins seraacute abreviado por JM [3] Este fato eacute independente das diversas interpretaccedilotildees sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade Como se sabe haacute diversas teorias a esse respeito A realidade para os bantus na interpretaccedilatildeo pioneira de Tempels (cap II) estaacute centrada natildeo no ser mas na forccedila na forccedila vital Para o bantu a forccedila natildeo eacute um acidente eacute muito mais ateacute do que um acidente necessaacuterio eacute a proacutepria essecircncia do ser em si Jaacute Kagame (pp 210 e ss) faz seacuterias criacuteticas agrave teoria da forccedila vital 4 Advirta-se desde logo que o observador europeu ou americano encontraraacute nessas classes muitas exceccedilotildees intromissotildees e permeabilidades inter-classes imprevistas para quem supotildee que uma loacutegica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da liacutengua e principalmente para quem ignora o fenocircmeno da formaccedilatildeo de palavras por extensatildeo de sentido ou ainda o particular acircngulo de observaccedilatildeo do homem africano [5] Para aleacutem desta primeira divisatildeo em dez classes haacute o que Kagame designa por quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas que por sua vez remetem a uma uacutenica raiz transcendental -ntu ser (Kagame 121 e ss) Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretaccedilotildees da filosofia subjacente agrave linguagem bantu (suas classes e categorias) Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizaacute-las com Tempels As quatro noccedilotildees unificadoras uacuteltimas - misto de ser forccedila e substacircncia - satildeo assim apresentadas por Jahn Muntu = homem Kintu = coisa Hantu = lugar e tempo Kuntu = modalidade Satildeo as quatro categorias da filosofia africana Tudo o que eacute todo ente qualquer que seja a forma sob a qual se apresente pode se incluir numa destas quatro categorias Fora delas nagraveo haacute nada de imaginaacutevel Ntu eacute a forccedila universal em si mas que jamais aparece separada de suas formas fenomecircnicas Muntu Kintu Hantu e Kuntu (Jahn 136-137) [6] Palavras da 6a e da 7a classes satildeo muito raras Jaacute a nona classe interessar-nos-aacute particularmente Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado do ponto de vista da liacutengua em Linguagem-Filosofia Bantu e Tomaacutes de Aquino Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Educaccedilatildeo EDF- FEUSP vol I No1 1993 pp 15-28 [7] Em kimbundo kuamua (Quintatildeo 34 77) ou em umbundu kamwa (Valente 396) eacute a forma passiva de mamar chupar Muleke - menino (Cannecattim 193) [8] Ku (ao contraacuterio de ki 3a classe que aponta para accedilatildeo intermitente) indica accedilatildeo contiacutenua Nesses termos verbais o classificador ku natildeo eacute conjugado Da 8a classe procedem diversas palavras Nos exemplos que seguem omitiremos por vezes o ku [9] Boa parte dos conceitos apresentados neste toacutepico recolhem ideacuteias do excelente capiacutetulo de Josef Pieper Was heisst Gott Spricht in Uumlber die Schwierigkeit heute zu Glauben Muumlnchen Koumlsel 1974 que deve ser consultado para uma exposiccedilatildeo mais ampla do assunto

[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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[10] Deus fala gerando eternamente o Verbo fala tambeacutem na inspiraccedilatildeo ou na iluminaccedilatildeo miacutestica do homem hagioacutegrafo ou profeta fala ainda pela luz da feacute que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradiccedilatildeo a palavra do Senhor verbum Domini Fala de Deus em um outro sentido eacute a Encarnaccedilatildeo do Verbo com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua maacutexima realizaccedilatildeo (cfr Hbr I 1) [11] Imprecisa pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligecircncia divina e no outro de um objeto artificial projetado pelo homem [12] Inteligentemente o designer articulou a pedra a mola o gaacutes etc [13] Natildeo por acaso Tomaacutes considera que inteligecircncia eacute intus-legere (ler dentro) a ratio do conceito na mente eacute a ratio lida no iacutentimo da realidade [14] Infinitas no caso do ato criador de Deus [15] O conceito a ideacuteia [16] Ou melhor principial [17] Agrave primeira vista surpreende que Kalunga Deus seja da 10a clas-se (a dos diminutivos ka) Na verdade o africano muitas vezes vale-se do diminutivo para aumentar [18] Forma muito comum agraves liacutenguas bantu Como jaacute vimos em toacutepico anterior ngambi eacute o linguarudo e samba eacute orar oraccedilatildeo tambeacutem em latim procede de os oris boca [19] O N como diziacuteamos eacute o prefixo da 9a classe que significa aquele que por excelecircncia [20] A transformaccedilatildeo do a final de amba no i de Nzambi eacute absolutamente exigida pela foneacutetica [21] Muluku (cfr EC p 86) eacute transcendente (e ao mesmo tempo imanente) livre e soberano eixo profundo da moral e da religiatildeo presidindo a vida a consciecircncia e a natureza [22] Note-se no original que o radical amb se repete por trecircs vezes [23] Cit por Kagame p 245 [24] Dentre as expressotildees idiomaacuteticas dos lomwe destacamos Oruacute-wana etchekuacute (EC 1625) girar o coraccedilatildeo (mudar de atitude) Eacute interessante observar que tambeacutem na tradiccedilatildeo biacuteblica e oriental o coraccedilatildeo eacute um girador Em aacuterabe esta concepccedilatildeo verifica-se ateacute etimologicamente qalb coraccedilatildeo procede do verbo qalaba virar girar oscilar Daiacute que o ser humano girando em seu centro volitivo e existencial seja inconstante ora volta-se para uma coisa ora para outra Tambeacutem a nossa canccedilatildeo popular registra o verso Ai gira girou meu coraccedilatildeo navegador [25] Contou-me Dito Quevedo futebolista matogrossense (que tambeacutem jogou no Paraguai) que quando um jogador perde um gol feito por querer enfeitar a torcida de seu time (entre muitas outras coisas) o chama de Pereacute-ran um Peleacute que natildeo deu certo um pseudo-Peleacute que parece Peleacute mas natildeo eacute um Peleacute falhado [26] Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte os termos tupis a que referimos podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulaacuterio tupi-guarani-portuguecircs S Paulo Brasilivros 3a ed 1984

[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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[27] Ibiraacute ou Ubiraacute (lembre-se que o U tupi -uuml- eacute grafado i ou u em portuguecircs) como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata) [28] Nem sempre guumlera indica decomposiccedilatildeo ou corrupccedilatildeo como ateacute aqui indicam os exemplos pode-se deixar de ser o que foi preservan-do algo em outro estado transformado por exemplo ypuera eacute suco de fruta manipuera suco de mandioca [29] Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhatildees O Selvagem ed fac-sim Edusp-Itatiaia 1976 p 12 [30] Edelweiss F Estudos tupis e guaranis Rio Brasiliana 1969 pp 258-259[31] Haacute portanto uma duacuteplice voluntariedade a necessaacuteria no primeiro niacutevel a de escolha no segundo [32] I 18 10 e I 94 1 resp [33] Cfr por exemplo Pieper Gluumlck und Kontemplation cap VI[34] Op cit pp 81 84-85[35] Nas lendas indiacutegenas recolhidas por Couto de Magalhatildees mesmo o ardente desejo de relaccedilotildees sexuais eacute expresso por putaacuteri [36] No inglecircs encontramos o sugestivo adveacuterbio badly para necessidades prementes [37] BA GO MS PB SP SE MG CE ocorrendo por vezes as variantes Itapuratilde ou Itapuranga [38] Op cit p 65-66[39] S Tomaacutes S Theol I-II 27 1 ad 3[40] Ibidem loc cit [41] Ibidem loc cit [42] Verbete bonus Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine Paris Klinksieck 1951 3eacuteme ed [43] Na linguagem que se dirige agraves crianccedilas eacute frequumlente designar o mal (sobretudo o mal moral real embora invisiacutevel) pela sua versatildeo sensiacutevel Natildeo mente que eacute feio ou ironicamente Muito bonito Foi assim que a mamatildee ensinou

[44] Formas que por sua vez remetem em uacuteltima instacircncia ao ser

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