Download - Os Óculos de Paula

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  • Copyright 2014 by Cassionei Niches PetryCopyright desta edio 2014 by Livros Ilimitados

    Conselho Editorial:Bernardo CostaJohn Lee Murray

    IsBn:

    Projeto grfico e diagramao: John Lee Murray

    Direitos desta edio reservados Livros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA.Rua Repblica do Lbano n. 61, sala 902 CentroRio de Janeiro RJ CEP: 20061-030contato@livrosilimitados.com.brwww.livrosilimitados.com.br

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Proibida a reproduo, no todo ou em parte,atravs de quaisquer meios.

  • 5Os culos de Paula

    ApresentaoNorberto Perkoski

    Doutor em Letras, professor do Mestrado em Letras

    da Unisc Universidade de Santa Cruz do Sul

    O romance Os culos de Paula, de Cassionei Ni-ches Petry, exige um leitor ativo, uma vez que a nar-rativa institui-se como um enigma que potencializa no uma, mas vrias possibilidades de leitura. O texto tanto pode ser lido como um romance de ideias, uma vez que temas polmicos so discutidos no decorrer da trama, entre eles o atesmo e o suicdio, quanto como uma trama passional, porquanto apresenta um trin-gulo amoroso no transcorrer de suas pginas.

    A trade afetiva composta por Fred, Paula e seu marido. Os dois primeiros so os protagonistas da narra-tiva, especialmente a figura feminina de quem um narra-dor onisciente revela a problemtica situao existencial e a falncia de seu casamento. No presente da narrativa, Paula tem conscincia do vazio da sua relao com o es-poso e reata a relao com Fred, que fora seu namorado nos tempos da faculdade. A retomada do envolvimento com Fred ocorre atravs do acesso de Paula ao blog que ele mantm nas redes sociais. Fred, tambm casado e, assim como Paula, com um filho, professor e polemiza atravs da internet a temtica do atesmo e, principal-mente, do suicdio, assuntos para ele obsessivos.

    A complexidade da narrativa se adensa com o apa-recimento de outro narrador que invade a histria, in-trometendo-se de tempos em tempos na narrao. Esse

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    narrador invasivo um escritor em crise que resolve se isolar para escrever o romance em que est trabalhando.

    A fragmentao existencial das personagens reforada por uma pertinente estratgia de Cassionei Niches Petry atravs da tambm fragmentao da obra com captulos predominantemente curtos. Ressalte-se igualmente o uso da intertextualidade com referncias a diversas obras e escritores consagrados, requerendo do leitor o processo de estabelecer relaes diversas no momento da leitura. Alm disso, so discutidos no trans-correr do texto aspectos da metafico, bem como da au-tofico, revelando um enovelar-se da narrativa e de seu processo de criao sobre si mesma. H, ainda a ressal-tar, o uso da intratextualidade, no caso com o verdadeiro autor do romance: Os culos de Paula o ttulo de um livro comentado no conto nibus, da obra Arranhes e outras feridas, publicada por Cassionei em 2012.

    O final surpreendente da obra implode vrios elementos que pareciam verdadeiros no transcurso do narrado, obrigando o leitor, ao trmino da narrao, a levantar os olhos do texto e se perguntar, espantado: quem conta a histria que acabei de ler? Assim como Paula, o leitor talvez precise de culos novos, ou seja, uma releitura da narrativa para tentar decifrar o mis-trio do romance.

  • 7Os culos de Paula

    Pens: se me han cado las gafas. Pens: hasta hace un momento yo no sa-ba que utilizaba gafas. Pens: ahora per-cibo los cambios. Y eso, saber que ahora saba que necesitaba gafas para ver, me hizo temerario y me agach y encontr mis lentes (qu diferencia entre tenerlos pues-tos y no tenerlos!) (Los detectives salvajes, Roberto Bolao)

    1.Tirou os culos e os acomodou sobre o livro. Os

    olhos se voltaram para a porta, de onde surgiu o vulto do filho com o caderno nas mos. A professora man-dara um bilhete. Reps os culos e leu uma crtica s atitudes do menino em sala de aula. Por ser mais inteligente, terminava as atividades antes de todos e comeava a cantar, atrapalhando os colegas. Paula apenas sorriu, lembrando a menina que entrara na escola sabendo ler. Sua professora, no entanto, man-dava recados de elogio no caderno, no reclamava.

    Assinou o bilhete e tirou os culos. Pensou em

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    acrescentar uma resposta professora, mas se limi-tou a reprimir o filho, para que ele passasse a ser

    mais obediente. E que aproveitasse o castigo de ir biblioteca como uma oportunidade para ler mais.

    Reps os culos e pensou na aparente incoern-cia no seu discurso. Queria o filho obediente, mas o

    incentivava a ler. Fechou o livro e o ps sobre o criado-mudo.

    Nossa condio de servirmos aos outros sem falar nada, pensou.

    2. Com essas filosofices voc vai acabar indo para

    o inferno disse sua me, na verdade o padre pela boca de sua me.

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    3.Paula acordou no quarto do rapaz, o mesmo que

    na noite anterior havia colocado uma questo muito importante no debate.

    O que nos faz ser de alguma religio? J para-ram para pensar sobre isso? Qual foi o ponto de par-tida? A resposta mais frequente ser: Porque minha famlia segue essa religio. O que nos provoca outra pergunta: E por que sua famlia segue essa religio?

    Para provocar ainda mais, proponho um exerc-cio de imaginao. Se voc tivesse nascido em outro pas, com uma cultura diferente e cuja religio pre-dominante diferente? Ser que seguiria a mesma crena? E se nascesse no seio de uma famlia que no acreditasse em um deus, voc acreditaria nele?

    Quando a pessoa fica acuada com essas questes,

    ela j diz que tem um lado espiritual independente de qualquer religio, expresso que se popularizou nos sites de relacionamento da internet. Mas esse lado es-piritual surgiu do nada? Lgico que no, pois nasceu de um processo de questionamento. um passo para a descrena, talvez, no fosse a necessidade pessoal de crer ou a presso da sociedade para crer.

    No estou com isso querendo destruir nenhuma crena, mas mostrar que ela um atributo pessoal do ser humano que no deve ser imposto a outros. Querer impor sua verdade desrespeitar o seu se-melhante, e o respeito um dos fatores da tica que devem ser mantidos para o convvio na sociedade.

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    4.Tirou os culos antes de tomar o caf quente,

    pois a fumaa os embaciava sempre. Quando o filho

    apareceu na cozinha, pediu a bno e ela respondeu deus lhe abenoe, sem olhar para o menino. Depois, o marido saiu para trabalhar, no sem antes lhe dar um beijo na testa. Ela disse v com deus, auto-maticamente, assim como foi a resposta do marido: amm.

    5.O rapaz deu bom-dia e tentou beij-la. Ela se

    esquivou porque no tinha escovado os dentes ainda. Hbitos arraigados, disse o rapaz, gente como voc nunca os perde, no ?

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    6.O menino tambm saiu. Dessa vez ela no reco-

    mendou v com deus e nem ele sentiu falta.

    7.Ao voltar para casa, sua me a repreendeu, disse

    que no ia ficar pagando a faculdade para ela ficar s

    de namoro, a faculdade custava caro, ora essa. Nessas horas, ela colocava as mos nos ouvidos, fechava os olhos e a boca, o que a fazia lembrar-se da clssica imagem dos trs macacos.

    Nem na missa vai mais, onde j se viu!

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    8.Ps os culos e continuou a leitura. Deixou a

    loua suja sobre a pia. O livro a estava fazendo re-fletir depois de anos de certo marasmo intelectual.

    Lembrava-se de algo com respeito reflexo, reflexo

    no espelho, olhar para dentro de si mesmo. Encontrar um espelho como esse, anos depois de outro ser que-brado, despertava o Crbero dentro dela.

    9.Paula, pensa comigo, no estaria o inferno den-

    tro de ns mesmos? Estamos sempre querendo ver o cu ou o inferno em um alm-tmulo, mas a paz ou o conflito no esto dentro de nosso prprio crebro?

    No toa que na mitologia grega o mundo dos mor-tos era protegido pelo co de trs cabeas chamado Crbero, que controlava a sada do Hades.

    Note a semelhana entre o nome do monstro e a palavra crebro. Pois cada cabea desse ser mitolgico

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    pode simbolizar as divises do inconsciente, de acordo com Sigmund Freud: o id, que so nossos instintos e desejos mais primitivos, relacionados busca pelo prazer; o superego, que representa a censura que a cultura impe ao indivduo, as represses aos dese-jos do id; e o ego, que o equilbrio, controlando o comportamento, pois nem o id nem o superego podem prevalecer um sobre o outro, caso contrrio acontecem os distrbios mentais.

    Ento, quem se deixa dominar pelos seus dese-jos mais recnditos pode ser tachado de pervertido. Quem se deixa ser controlado em demasia pode se tor-nar um fantico religioso, por exemplo.

    O inferno, portanto, no um lugar alm-tmulo fictcio, tampouco o nosso mundo o , muito menos

    so as outras pessoas, como escreveu Sartre. O in-ferno est dentro de cada um de ns, e, como disse Juan Pablo Castel, personagem do romance O tnel, do argentino Ernesto Sabato, os muros deste inferno sero, assim, cada dia mais hermticos. Se as pessoas deixassem de acreditar nesse inferno que no existe e se voltassem para si prprias, o mundo seria muito melhor. Mas, claro, s minha opinio, fica com a

    sua, ou melhor, com a que lhe enfiaram goela abaixo

    durante toda sua vida.

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    10.Paula tirou os culos e foi lavar a loua.

    11.Paula ps os culos pela primeira vez e foi como

    se um novo mundo surgisse na sua frente. A primeira coisa que lhe chamou a ateno foi poder enxergar o letreiro dos nibus. Uma vez quase perdera sua linha, pois ficava aguardando at o ltimo instante o veculo

    se aproximar da parada para ler o destino. Agora, de longe, podia ver. Logicamente, passou a perceber mui-tos detalhes da paisagem urbana de forma diferente. Mas no se acostumou, em princpio, com a extenso dos seus olhos e preferia tir-los para falar com as pessoas. Talvez por no querer ver suas imperfeies que ficavam mais visveis, principalmente as dele. A

    barba sempre mal aparada, dessa forma, quase no era notada por ela.

    Com o tempo os graus aumentaram e ela no

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    tirou mais os culos. Inclusive passou a necessitar deles para ler. Aconselharam o uso de lentes de con-tato, mas gostava dos seus culos. Eles lhe davam um toque intelectual, um plus a mais, pleonasmo que seu antigo namorado usava quando queria debochar dos pseudointelectuais que arrotavam suas titulaes. Foi Borges quem disse que os culos so a extenso da nossa viso, sendo que o livro o da imaginao e da memria. Na verdade, ele falou do microscpio e do telescpio. De qualquer forma, bastavam os culos para ler, e os livros lhe proporcionavam uma viso melhor das pequenas coisas ou das que esto distan-tes. Mais do que qualquer outra lente.

    12.Os culos estavam sobre o criado-mudo. Muda

    ela permaneceu quando o marido lhe falou da visita prxima de alguns amigos dele e de suas respectivas esposas, que no eram necessariamente amigas dela. Nesse ponto, Sartre estava certo: o inferno so os ou-tros.

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    13.Fred era o apelido do namorado. Fred de Fre-

    derico, que nem era seu nome, mas os colegas da fa-culdade o chamavam assim devido as suas filosofices

    inspiradas em Nietzsche. Hoje estou meio apolneo ou hoje estou dionisaco eram as senhas para esta-belecer um dilogo com ele. Paula se encantava com seus comentrios sobre religio. Mas foi uma conversa sobre a boceta, numa roda de amigos no intervalo das aulas, que a fez se apaixonar por ele.

    Lembram o mito da Caixa de Pandora? Ela teria sido a primeira mulher criada por Zeus como vejam s, mulheres castigo para os homens, pois o tit Prometeu roubara o fogo do Olimpo. O deus mais poderoso do panteo grego a presenteou com uma caixa, porm, com a ordem de no abri-la. Lo-gicamente, como toda mulher, muito curiosa, ela no respeitou a proibio. Como consequncia, de dentro do recipiente saram todos os males l guardados. Ou seja, quem a culpada pelas coisas ruins do mundo? A mulher, claro. Mas isto, veja bem, o mito que diz.

    Uma histria semelhante est num livro que vocs acham que conhecem: a Bblia Sangrada, digo, Sagrada. No Gnesis, Deus fez Ado e depois, para que ele no ficasse sozinho, criou, a partir da costela

    dele, uma mulher, a Eva. O criador ordenou que no comessem o fruto da rvore do conhecimento. Mas a mulher, agora provocada por uma cobra falante, vai l

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    e come o fruto. Como se no bastasse, oferece a Ado, que, como todo o homem obediente mulher, tambm come. Como era um alimento desconhecido para eles, Ado acaba engolindo o caroo, o que deu origem ao chamado Pomo de Ado. O resultado dessa desobe-dincia: o pecado entra no mundo. Mais uma vez, a mulher a culpada.

    O mais curioso: se vocs procurarem o signifi-cado da palavra boceta no dicionrio, vero que ela significa uma caixinha oval, que aparece inclusive em

    muitos textos de Machado de Assis, e era utilizada para guardar rap.

    Essa palavra acabou, talvez pela analogia com o seu formato, sendo sinnimo do rgo sexual feminino no Brasil. Em Portugal ela ainda utilizada no seu sentido original, tanto que o mito grego da primeira mulher l chamado de Boceta de Pandora. Bem, se pensarmos que ela abriu a boceta...

    Quanto ao mito bblico, no h meno no G-nesis de que o fruto fosse uma ma. Mas por que essa fruta acabou ganhando a fama, e aparecendo em vrias pinturas que retratam a histria? Bem, olhem para essa ma na minha mo. Vou cort-la ao meio, ok? Pronto. Agora reparem como ela lembra justa-mente a vagina de uma mulher com as pernas aber-tas. E se Eva deu a ma para o Ado comer...

    Quando ele disse isso, olhou fixamente para

    Paula.

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    14.Paula ficou lendo durante quase toda a madru-

    gada na sala. Quando o sono chegou, fechou o livro e comeou a ouvir o ronco do marido vindo do quarto. Parecia mais alto do que de costume. Ou era ela que no prestava ateno, j acostumada com o rudo. s vezes, as coisas se tornam to corriqueiras que no nos espantamos mais. Na sua primeira ida de nibus a Porto Alegre, ficara durante todo o trajeto olhando

    pela janela. J na stima, dormiu durante as duas horas e meia de viagem. Quando perdemos o espanto, leu em algum livro de filosofia na poca da universi-dade, deixamos de compreender a vida. E se deixamos de compreender a vida, deixamos de viver.

    15.Voltou a acreditar depois que viu uma reporta-

    gem sobre o chamado Santo Sudrio numa TV cat-lica, dessas que pedem dinheiro para se manter no ar.

  • 19Os culos de Paula

    Um estudioso do assunto explicou que a imagem de Jesus deve ter sido impressa no tecido pela mesma maneira com que foram impressas as sombras das pessoas mortas nas caladas ou paredes depois da bomba de Hiroshima. Na hora da ressurreio, o corpo de Jesus se desintegrou numa pequena exploso. O telogo falou com tal poder de persuaso que ela pas-sou a acreditar na veracidade do pano que teria en-volvido o Salvador. Bem verdade que ela estava em um momento de desespero na sua vida, depois de ter terminado com Fred. Ela precisava se apegar a algo para se salvar.

    16.Se me perguntam o que faz um ateu na hora

    de um desespero ou quando fica doente, respondo que

    nessas horas que ele fica mais convicto da inexistn-cia de um amigo imaginrio, pois se existisse deus ele no iria deixar seus filhos (mesmo quem no acredita

    nele seria seu filho, no ?) em momentos ruins, salvo,

    como j disse, se ele fosse mau, mas a derruba todas as justificativas de quem o adora. Se o ateu entra em

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    desespero, fica doente, etc., busca ajuda em pessoas

    reais, um amigo, um irmo, os pais, a esposa, os fi-lhos, um mdico, um psiclogo, um psiquiatra... Um psicanalista? No, um psicanalista no.

    17.Na fila para beijar a imagem do Senhor morto,

    na Sexta-Feira Santa, encontrou aquele que seria seu marido. Mesmo dentro da igreja e numa hora sagrada como aquela, os dois permaneceram se olhando du-rante todo o tempo, mas nenhum deles teve coragem de tomar a iniciativa de se aproximar. S durante a festa do Divino Esprito Santo, na mesma parquia, viram-se mais uma vez, agora na fila da galinhada.

    Sentaram-se juntos e conversaram durante toda a tarde. Na mesma parquia, se casaram e foram mais tarde o casal festeiro, ostentando a bandeira do Di-vino com orgulho. Nessa mesma parquia, seu filho

    foi batizado e faria a comunho. Nessa mesma par-quia, ela ouviu o sermo do padre que condenava as pessoas de pouca f.

  • 21Os culos de Paula

    18.Algum j disse que nomes condicionam des-

    tinos. Paula significa pequena. Sempre se sentiu

    pequena, no s por causa da altura e das mos pe-quenas que a impediram de ser jogadora de vlei pro-fissional. Sentia-se assim, por exemplo, quando ia

    igreja. Era uma poca em que ainda no usava cu-los, porm j tinha as vistas cansadas e comeava a ver as coisas com certa dificuldade. A figura do padre

    no plpito era a de um gigante para a jovem, no en-tanto maiores eram as coisas que ele pregava. Somos formigas frente ao Criador e devemos ser tementes a Ele. Gostava, alis, da histria de Davi contra Go-lias. Entretanto, no entendia por que era exaltada a vitria do pequeno contra o grande, mas no podia a formiga ser contra o Criador.

    Num Dia de Ao de Graas na escola, assistia dois degraus acima dos outros, numa escada s apresentaes e mensagens lidas por seus colegas. A diretora discursou sobre a importncia de agrade-cer a Deus mais do que pedir. Depois, todos canta-ram juntos uma msica com a letra da orao de So Francisco de Assis. Cantavam automaticamente, sem questionar o significado daquilo. Ela nunca questio-nou tambm. Por ltimo, rezaram o Pai Nosso. Mais palavras que saam automticas da boca de todo mundo e da boca de Paula tambm. Olhos fechados, juntaram-se as mos e todos numa s voz proferiram a orao que o Pai nos ensinou.

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    Paula limpou os culos e buscou nas prateleiras o livro com as poesias do Poverello. Gostava dele, prin-cipalmente depois de assistir ao filme do Zeffirelli. So

    Francisco era o padroeiro dos animais e sempre que Paula era perseguida por um cachorro na rua, rezava para que seu santo a protegesse, mas sem resultado, pois sempre era mordida no calcanhar. Calcanhar de Aquiles, pois isso fazia momentaneamente balanar a sua f.

    19.O primeiro assunto dos amigos, mal se cumpri-

    mentavam, sempre era o futebol. Era timinho pra c, era timo pra l, uns exaltavam as ltimas conquistas internacionais de uma das equipes, outros menciona-vam o fracasso da mesma equipe no mundial interclu-bes, lembravam um ranking em que um time estava na frente do outro que por sua vez estava na frente em outra lista. Passado e presente se debatiam. Paula tentava ver lgica naqueles argumentos, mas no en-contrava nenhuma.

    As mulheres, por sua vez, variavam os assuntos:

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    filhos, novela, beleza, as ltimas das celebridades, pi-tadas de futebol ou sobre os jogadores, mais preci-samente suas pernas e, em voz baixa, o desempenho sexual dos seus maridos.

    Paula sentia-se deslocada e no fazia nenhum esforo, dessa vez, para agradar aos convidados. Po-deria ser chamada depois de antiptica por elas. No se importava. No queria mais agradar aos outros de-sagradando a si prpria.

    20.Se antes, Paula, a religio era o pio do povo,

    acrescente agora o futebol, a novela, a opinio das ce-lebridades, etc.

  • 24 Cassionei Niches Petry

    21.Paula tirou os culos e segurou-os, pondo uma

    das hastes na boca: por que no procur-lo? Com as facilidades da internet talvez no fosse to difcil. Seu filho dizia, no h nada que o So Google no resolva,

    me.Achou o nome verdadeiro dele, relacionado ao

    apelido, em vrias ligaes possveis: professor de Li-teratura (ao contrrio dela, ele prosseguira os estu-dos), autor de um blogue, colaborador de um jornal,

    em que escrevia sobre livros. O blogue, alm de falar sobre literatura, abordava tambm o atesmo. Leu v-rios textos dele, alguns lembravam os discursos nas mesas da lancheria na universidade. Era s clicar ali, na caixa de comentrios, e manteria contato com ele. Foi o que fez, como annima:

    Gostei muito da tua ltima crnica. No per-deste nada de teu veneno desde a ltima vez que nos vimos.

    Hesitou um pouco, mas, antes que se arrepen-desse, clicou no boto publicar seu comentrio. Alea jacta est.

    Certa noite, depois de um dia agi-tado, me sentei em frente ao computador e me vi metamorfoseado num horrendo inseto, que o senso comum resolveu cha-mar de escritor. Era a consequncia de

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    quem lia muito. Havia me afundado tanto na leitura que enlouqueci. Porm, dife-rentemente do Cavaleiro da Triste Figura, no sa pelas ruas com cavalo, espada e escudeiro enfrentando moinhos de vento. Fechei-me no meu mundo, com o teclado e a tela para escrever histrias. Uma loucura em um mundo em que viver sozinho uma afronta ao semelhante.

    22.J provaste deste veneno?, foi a resposta que

    encontrou na caixa de comentrios do blogue. Sentiu um temor de que fizera uma bobagem, afinal de con-tas ela era casada e quem sabe ele tambm fosse. De certa forma, porm, nenhum dos dois muito menos ela escreveu nada demais. Por sorte ela no colocara seu nome. Nem ele perguntou.

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    23.Foram, juntamente com os amigos, a uma chur-

    rascaria. O marido de Paula logo se irritou com uma placa que advertia para no fumar no local. As novas leis antitabagistas que surgiam no pas o deixavam preocupado. No, ele no fumava. Sua preocupao era porque trabalhava em uma fumageira, uma das mais tradicionais empresas de beneficiamento de

    fumo na cidade, cuja economia dependia desse pro-duto. Indignava-se quando via pessoas reclamando de outras que fumavam:

    Esses filhos da puta no sabem que depen-dem do fumo para sobreviver? Esto vendo aquela moa? Ela atendente de uma loja de roupa. Ora, um monte de gente que trabalha numa firma de fumo vai

    comprar na loja onde ela trabalha. Se continuar essa briga contra o cigarro, menos fumo vai ser comprado. Por consequncia, as empresas vo empregar menos e a menos pessoas vo comprar na loja onde ela atendente. Logo, ela pode perder o emprego e ainda por cima vai engrossar as filas nas vagas de safrista

    justamente de uma fumageira. V como so as coisas? Cambada de ignorantes.

    Paula se dizia fumante passiva assumida. No se importava com a fumaa expelida pelos ami-gos, achava at esteticamente bonito v-la rodeando o rosto das pessoas em contraste com a luz do restau-rante. Imagem que no se poderia mais ver devido

  • 27Os culos de Paula

    s restries ao cigarro. O que a incomodava era o barulho, todo mundo conversando e querendo supe-rar o volume da msica, antes s voz e violo, agora tambm havia um baterista acompanhando o outrora solitrio cantor. Fred chamaria isso de esttica do grito, expresso que se referia tambm s igrejas evanglicas e aos apresentadores de programas sen-sacionalistas na TV.

    24.Quando ouo ou leio a bobagem repetida por

    maus religiosos (os bons religiosos no julgam os ou-tros) de que os ateus no tm corao, me lembro da

    dedicatria que Jos Saramago fez a Pilar del Ro no romance Caim: A Pilar, como se dissesse gua. O livro, diga-se de passagem, causou muita polmica justamente por mostrar um deus nada amoroso, que semeia o dio contra quem no o adora. Porm, Sa-ramago no criou esse personagem: s ler o Antigo Testamento da Bblia Sagrada, pois esto l todos os atos sanguinrios perpetrados por esse deus egosta.

    notrio o amor que Saramago, chamado pelos

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    seus detratores de ser amargo, tinha pela sua es-posa, ela catlica, ele ateu. Hoje li num jornal uma frase do escritor dita no documentrio que retrata o casal: Se eu tivesse morrido aos 63 anos, antes de lhe ter conhecido, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora.

    Muitos crentes querem a exclusividade da pala-vra amor, como se fosse algo criado por um ser divino. Recentemente, um mau apresentador por sinal um dos adeptos da esttica do grito na TV brasileira passou boa parte do programa to sanguinrio quanto a Bblia dizendo que so os ateus os cul-pados pelos atos de violncia relatados no programa, chegando a afirmar que as pessoas que respondiam

    pelo telefone pesquisa afirmando ser ateias esta-riam ligando de dentro dos presdios.

    A moral tem a ver com alguma crena? Acre-dito que no, at porque a prpria histria nos mostra isso, pois h atos imorais praticados tanto por ateus quanto por religiosos, da mesma forma que atos de bondade so praticados pelos dois grupos. Agora, quando os crentes dizem ou gritam, porque tambm so seguidores da esttica do grito que os ateus no tm Deus no corao, eu assino embaixo, pois no tenho mesmo.

    Falando em esttica do grito, h um apresen-tador de TV que passa o tempo todo gritando, no importa o assunto. Por ironia, um dos produtos que ele anuncia justamente um aparelho de surdez.

  • 29Os culos de Paula

    25.Enquanto o msico interpretava uma cano de

    Caetano Veloso, Paula pensava na boa msica de an-tigamente. Nesse momento, o olhar dela, atravs das lentes dos seus culos, tropeava nas mesas desas-trado at que caiu nele, Fred. Mais magro, a barba por fazer, como sempre, porm os mesmo gestos deci-didos quando estava opinando sobre algo.

    Pedi dez pacotes de cigarro e quatro garrafas de usque para o dono do merca-do. Sempre tinha em mente que um bom escritor deve beber usque escocs (falso, claro) e fumar muito. Faz parte do ritual da escrita, assim como o caf, cujo estoque que tenho em casa suficiente para uns

    trs meses. Para comer, comprei alguns enlatados. Alis, como ficarei nos prxi-mos dias, enlatado dentro do meu apar-tamento, pois preciso entregar o novo ro-mance dentro do prazo estabelecido pelo editor. o nus de quem quer entrar nessa vida. O culpado: Kafka, talvez.

  • 30 Cassionei Niches Petry

    26.Paula limpou os culos e os ps mais uma vez,

    querendo ter certeza de que era mesmo ele. Era. Numa mesa no muito distante, conversava com al-guns amigos. Nenhuma mulher junto com eles. Esta-ria solteiro ainda?

    Seu marido continuava falando muito. Depois que bebia, ele, geralmente quieto, se revelava. Alis, justamente era essa tese que defendia naquele mo-mento. Para ele, a pessoa revela o que realmente depois de beber. Nada muito novo verdade, mas re-petia isso sempre para provar sua masculinidade:

    O cara que tarado e se controla, depois de tomar umas e outras, acaba passando a mo em al-gum ou olhando fixamente para o decote da mulher

    do seu melhor amigo. O chato se torna mais chato. O que esconde sua afetividade quando est sbrio quer beijar todos os amigos depois de beber. Aquele que no dana por se sentir ridculo, depois de algumas doses segue a sequncia vexatria: primeiro bater o pezinho, depois praticar leves movimentos de cabea, depois leves movimentos dos ombros, depois fortes movimentos de cabea e de ombros, at chegar core-ografia de YMCA!

    Arrancava o riso da sua pequena plateia e isso o enchia de contentamento. Na verdade, eram todos seus subordinados na empresa e no deixariam o chefe na mo.

  • 31Os culos de Paula

    E tem mais: o cara que um veado enrustido, sai do armrio rapidinho... Por isso me garanto, pois nunca desmunhequei depois de ficar bbado!

    Mais risos. Somente Paula no ria, pois queria estar assistindo a outro espetculo, provavelmente mais inteligente do que presenciava nesse momento.

    27.Vi voc no restaurante ontem. No perdeu o

    costume do discurso nas mesas da vida.O novo comentrio foi postado, ainda de forma

    annima, no blogue do Fred. Ele demorou, porm, para responder. Isso a deixou muito angustiada. Per-maneceu frente do computador durante todo dia, dando F5 a todo o momento e navegando pelos links recomendados pelo blogue. S noite recebeu uma resposta: Tambm vi voc. Agora j sei quem o an-nimo, ou melhor, a annima. Me manda um e-mail.

    Causou surpresa a resposta, pois ela no per-cebeu que havia sido notada. Ele soubera disfarar muito bem que a reconhecera. O que ser que achou dela? Teria tido uma surpresa negativa? A julgar pelo

  • 32 Cassionei Niches Petry

    pedido de contato, poderia ter voltado a se interessar em reatar algo. Ou simplesmente gostaria de conver-sar com uma velha amiga.

    Responderia a Fred ou no?Leu algumas das postagens recentes do blogue

    enquanto decidia. No entanto, os textos a deixavam perturbada. No por acaso, uma mensagem fixa na la-teral da pgina avisava: Este meu pequeno mundo virtual. Espero que no fique vontade. Era a cara

    dele.

    28.Para um trabalho da disciplina de Antropologia

    Cultural, um grupo visitou um centro esprita. Os co-legas elogiaram o trabalho de caridade da instituio e ficaram impressionados com os mdiuns. Fred ouvia

    tudo em silncio. At que um dos membros do grupo disse que era esprita. Fred, ento, se meteu:

    A proposta do trabalho era conhecermos uma cultura diferente da nossa de uma forma isenta. Como voc esprita, no h nada l que j no co-nhea e, alm disso, sua opinio contaminada por

  • 33Os culos de Paula

    sua crena. Pra voc, por exemplo, Chico Xavier psico-grafava grandes escritores, como Augusto dos Anjos, e nem mesmo tua condio de estudante de Letras o faria pensar que ele era um charlato.

    Essa palavra desrespeitosa com a memria dele.

    Esto vendo? Para o colega, Chico Xavier um nome sagrado. No questiona a possibilidade de estar errado.

    Por que ele era charlato, se no ganhava di-nheiro com isso e morreu praticamente na pobreza?

    Fama, meu caro, fama. Chico Xavier poderia ter sido escritor. Tinha talento. Como ele no viu perspectivas de que fosse reconhecido, escreveu os poemas atribuindo-os a outros poetas. Talvez incons-cientemente, por que no? Porm, no devem ter sido os espritos dos escritores, principalmente os que j tinham reconhecimento em vida. Sobre os desconhe-cidos, eram desconhecidos para a maioria de ns, mas no para ele, que era um grande leitor. Ele queria ser reconhecido, amado, idolatrado e conseguiu. Ray Bradbury, escritor de fico cientfica, escreveu sobre

    a vida em Marte. H um conto dele em que espritos de escritores vivem em um planeta e esto prestes a receber a visita indesejada de um foguete vindo da Terra. O conto bem posterior aos primeiros escritos de Chico Xavier, mas mostra como podemos canalizar nossas fantasias para a fico e no para uma reli-gio.

    Fred no era bem visto pelos demais colegas

  • 34 Cassionei Niches Petry

    porque ele discordava de todos e no fazia questo nenhuma de agradar. Costumava dizer que o Diabo o havia mandado para a Terra dizendo: Sobe e inco-moda.

    Paula, por sua vez, acompanhava cada vez mais admirada as palavras de Fred.

    Depois de um livro de contos (Arra-nhes e outras feridas) e uma narrativa in-fantojuvenil (L em cima ou l embaixo?),

    comprada pelo governo e distribuda nas escolas, hoje posso viver apenas com a literatura. O dinheiro chega para meus pe-quenos gastos (estou solteiro) e a compra de livros. Tenho um filho pequeno de um

    casamento que no deu certo, mas minha relao com ele mais ou menos como a de Paulo Honrio com o seu. Alm disso, a me dele no vai mais precisar de penso, pois est namorando com um sujeito rico. Ele, por sinal, entende muito de economia e comrcio, mas pouco de literatura. Cer-ta vez, quando fui visitar meu filho, me viu

    com um exemplar de O tempo e o vento

    e perguntou se era um livro sobre meteo-rologia.

  • 35Os culos de Paula

    29.Marcaram um encontro numa livraria e cafete-

    ria. Lugar apropriado para dois amantes. Amantes do caf e dos livros.

    O que conversar depois de todos esses anos? Pois , conversar sobre o qu? Quem sabe sobre o blogue, os textos para o

    jornal, seus livros... No h livro nenhum ainda, pelo menos no

    foram publicados. Ento, quem sabe podemos falar sobre a possi-

    bilidade de publicao deles. Mas no vamos falar s sobre mim. Quero

    saber mais de voc. O que uma dona de casa tem para dizer sobre

    si mesma? Nada. A no ser se voc quer saber de-talhes domsticos, dicas de produtos de limpeza ou sugestes de receitas.

    No seria m ideia, so assuntos sobre os quais preciso tomar conhecimento.

    Bobo. Sabe melhor do que eu que esses assun-tos no so importantes pra voc.

    Mas voc no deixou de ler esse tempo todo, n?

    Lendo eu continuo sim, mas no tanto como na poca da universidade.

    Humm, ento, podemos falar sobre suas leitu-ras tambm.

  • 36 Cassionei Niches Petry

    , podemos.

    Cada um pediu um expresso e ficaram em siln-

    cio por uns instantes.

    O que est lendo?

    Os livros do Sam Harris. De fico, o Philip

    Roth. E voc?

    De tudo um pouco. Hoje estou lendo os primei-

    ros livros do Vila-Matas, que foram lanados num s

    volume h pouco tempo.

    E sobre o romance de que tanto fala no blogue?

    sobre um rapaz negro, sua histria desde a

    infncia, a perda da me, os abusos que sua irm so-

    fria, o preconceito na escola, etc. Mas estou com uma

    certa dificuldade de levar adiante o projeto, pois no

    encontrei o tom ainda. O medo escrever um texto

    panfletrio.

    Vai dar certo, voc sempre teve talento.

    o que me dizem, mas tenho meus receios.

    Ganho muito tapinha nas costas, mas s isso no

    suficiente para me deixar mais otimista.

    Entendo, a demora em conseguir algo o que

    nos mata.

    E voc no escreve nada?

    No.

    Chegou o caf e junto aquela incmoda sensa-

    o de o que fazer para prosseguir a conversa. Paula

    sempre foi de conversar muito pouco. Fred, apenas

    quando se empolgava com um tema. O clima entre os

    dois no ajudava muito.

  • 37Os culos de Paula

    Sabe, Paula, at hoje no sei por que termina-mos o namoro. Aconteceu to naturalmente...

    Pois , eu fui diminuindo o nmero de cadeiras at que tive que interromper o estudo. Acabamos nos vendo menos, at que tranquei a matrcula. Acaba-mos trancando o namoro tambm.

    Acho que eu passei a dar pouca ateno pra voc, tambm. Trabalhava e estudava muito, alm de ler e escrever feito um condenado.

    Que lugar-comum este! Verdade. Bem, preciso ir, tenho que buscar meu filho na

    escola. Como ele se chama? Francisco. Homenagem ao Kafka? Nem tinha pensado nisso. E voc tem filhos?

    No, mas minha esposa quer um. No sei se ela vai me convencer.

    Marcamos outro caf pra conversarmos. Certo! Tchau. Tchau!

  • 38 Cassionei Niches Petry

    30.Depois de Fred discursar sobre caixas e mas,

    foi conversar com Paula. Ela aproveitou para expor sua admirao por ele:

    Gosto muito de ouvir voc falar. Quero ler um livro seu ainda.

    Por mim esse livro viria logo, mas o mercado editorial muito fechado para os escritores iniciantes.

    Tudo vai dar certo. E quero ser a primeira da fila de autgrafos.

    E podes ter certeza que a dedicatria ser es-pecial.

    No semestre seguinte, comearam a namorar.

    31.Paula ps os culos e continuou a leitura do blo-

    gue, depois de deixar a casa toda arrumada. Seu ma-rido estava reclamando da baguna dos ltimos dias, que ela estava ficando um pouco relapsa com a ordem

    da casa. Ordem. At agora sua vida estava seguindo

  • 39Os culos de Paula

    uma determinada ordem. Ela foi quebrada, porm. Pelas leituras, pelo reencontro com o Fred.

    Esperava mais do reencontro. No uma reapro-ximao, longe disso. Desejava ouvir Fred falando, era disso que tinha saudade. Ele estava, porm, muito diferente daquele Fred da universidade, assim como do blogue, mais prolfico. Mudara ele ou a percepo

    que ela tinha sobre ele estava errada?

    32.Me acham muito quieto quando nos reunimos

    com os nossos amigos. Alis, amigos da minha esposa, pois eles s so prximos a mim devido a ela. Jamais fariam amizade comigo. Somos diferentes. Por isso sou o quieto da turma. Os assuntos sobre os quais conversam no me interessam. Costumo dizer que sou econmico, que poupo minhas cordas vocais, pois, afi-nal de contas, em sala de aula tenho de falar muito. At na sala dos professores sempre estou calado, at porque no me interessa falar sobre novela ou cho-radeira contra alunos e salrio. Agora, se a conversa gira em torno dos meus interesses, falo at demais.

  • 40 Cassionei Niches Petry

    33.Primeiro h um degrau. Voc pode, porm, pular

    o primeiro e o segundo para chegar mais rpido ao terceiro. Mas cansativo. preciso ter pacincia. De-grau por degrau melhor.

    Quando voc chegar ao ltimo, pode ficar l por

    um tempo e depois voltar, degrau por degrau ou pu-lando alguns novamente. No aconselhvel. O risco de queda muito grande.

    Mas o que h no final da escada? o fim? Ou o

    comeo de algo? H uma outra escada depois? Duas ou trs? Ou h simplesmente o vazio, no qual voc pode cair? Ou h uma parede que o impede de continuar? Ou h uma porta trancada? Trouxeste a chave? Ou ela est aberta? Se est, o que o impede de abri-la?

    O que fazer?, voc se pergunta.E se h um espelho no final? Voc se olha nele

    e percebe que est mais velho? Ou foi a subida que o envelheceu? O reflexo do espelho tambm mostra os

    degraus que voc teve que subir. O caminho percor-rido. E se voc puder entrar dentro deste espelho, vol-tar ao lugar de onde veio? O que h alm do espelho?

    Voc quis chegar aqui em cima. Atingiu o obje-tivo plenamente. Ou no? Sente que faltou algo. Desce e resolve isso ou vai adiante? Para onde?

    Sim, eu prefiro ser essa metamorfose

    parada chamada escritor. S um indivduo

  • 41Os culos de Paula

    como esse consegue sentar a bunda numa cadeira por horas e horas e ser vrias pes-soas ao mesmo tempo. No momento, sou o Dudu, mas tambm sou eu quem vai deci-dir o destino dele. Est a outro motivo que me fez seguir a carreira de escritor: ser um Deus, como se existisse um.

    34.No agi certo com voc e com minha esposa,

    Paula. J estava at namorando com ela quando nos conhecemos, inclusive quando voc foi dormir l em casa. Quando voc saiu da universidade e termina-mos, eu j tinha at um filho com ela.

  • 42 Cassionei Niches Petry

    35.Paula no imaginava que Fred fosse casado. Pa-

    recia ser to diferente dos outros homens, mas no era. Bem, ela no podia conden-lo, afinal tambm

    era casada e estava tendo uma atrao por ele agora. Como seu marido sempre dizia, a bosta falando da merda.

    Ambos tinham filhos tambm. No entendeu por

    que ele mentiu dizendo que no tinha e preferiu reve-lar tudo apenas por e-mail. Talvez por estar trocando a vida real pela virtual?

    Seu marido comeou a notar que ela estava fi-cando estranha. Alm de deixar a casa um lixo, no havia mais o mesmo carinho de antes. Ela apenas dizia que isso so coisas de mulher, logo passa. Era uma desculpa que usava sempre, inclusive na poca da escola para ir ao banheiro quando o professor era um homem. Era s dizer que no podia revelar o mo-tivo de ir ao banheiro que os mestres ficavam verme-lhos e autorizavam a sada da sala de aula.

    Desculpas. Somos especialistas em arrumar des-culpas. Desculpa para ir ao banheiro, desculpa para faltar o trabalho, desculpa para no transar com o marido, desculpa para no sair noite com os amigos. Dor de cabea, cansao, estar com o time vermelho em campo, no estar disposta. Desculpas, desculpas.

  • 43Os culos de Paula

    36.@fredn Se eu sumir do twitter, do orkut, do fa-

    cebook e do msn, no se preocupem, ser por muito tempo, talvez para sempre.

    @fredn s vezes penso em cometer suicdio vir-tual: twiticdio, facebookcdio, orkuticdio, blogcdio... mas so muitas vidas!

    @fredn E se meu livro de contos no sair ainda este ano, cometerei um literacdio.

    @fredn Comeando o suicdio virtual. Vai ser aos poucos, para no doer muito. Primeiro vou diminuir minhas vindas aqui no Twitter. O blog continua.

    @fredn Estou vivendo mais uma das tantas cri-ses virtuexistenciais.

    37.Um ato falho no twitter desencadeou uma por-

    o de coisas na minha cabea. Queria tuitar que a msica Suicide solution, do Ozzy Osbourne, seria

  • 44 Cassionei Niches Petry

    usada dentro das minhas pesquisas sobre o suicdio. Por ter clicado em enter sem querer, acabei escre-vendo: Suicide solution est.

    Suicdio a soluo?

    38.Paula ps os culos e voltou ao livro do Richard

    Dawkins, autor sugerido por Fred. Questionar a exis-tncia de deuses no era novidade na sua vida, mas as leituras que justificavam sua descrena eram orien-tadas agora por Fred, apesar de ele deixar um pouco de lado o atesmo no blogue. Ele j estava convicto sobre a no existncia de deuses. Ela no acreditava, porm no estava to certa assim. Por isso, passou a ver com a ateno tudo o que ele escrevia sobre o assunto, inclusive debates antigos em redes sociais da internet. Levava muito em considerao o que ele dizia, at porque via em Fred uma das poucas pessoas que tinha ideias afins com as dela na pequena cidade

    com nome relacionado ao cristianismo. Ou ser que ela que estava pensando como ele?

    Por isso no conseguia ficar muito tempo lendo

  • 45Os culos de Paula

    o livro. Logo estava na frente do computador, dando F5 na pgina do blogue, visitando o Facebook dele ou o Twitter, bem como verificando a caixa de entrada do e-mail a todo o momento. Ser que marcaria outro encontro?

    Os contatos passaram a ser apenas por MSN. Meu bruxo e minha bruxa eram como se chamavam. No blogue e nas redes sociais, ele jamais fazia meno a ela. O mximo foi um incio de amizade no Facebook e curtirem os compartilhamentos um do outro. Ela queria compartilhar mais que links da internet, que-ria lincar no bytes, mas sim sua vida a dele. No podia. Entre eles havia outras pessoas. Paula no queria ser egosta.

    Havia tambm os livros. Isso Fred lhe disse nas suas conversas on-line. Se um dia se separasse da es-posa, seria para ficar sozinho com seus livros. Alm

    dos livros, seus filmes baixados na internet, seus Cds, as visitas virtuais aos museus. E caf. Muito caf.

  • 46 Cassionei Niches Petry

    39.Ontem tive um sonho muito, muito estranho.

    Bem, vocs podem dizer que os sonhos so sempre estranhos. Mas estou tendo sonhos diferentes do que costumava ter. Por isso vou inaugurar esta seo no blog para registr-los.

    Estava entre estantes de uma enorme biblio-teca. Em minhas mos, Rayuela, do Cortzar. Com os dedos, eu marcava o captulo 33. No sabia o que estava fazendo ali, tampouco sabia quem eu era. Apalpei meu bolso em busca de documentos. Nada encontrei. Eu era um mistrio para mim mesmo.

    No sabia para onde ir, por isso pensei em dor-mir entre os livros, mas as cmeras de vigilncia me flagraram e os funcionrios me convidaram gentil-mente para sair.

    Fui dormir na praa da cidade. Acordei com o sol na cara. Sim, estava sonhando ainda. Fiquei pe-rambulando, com fome, mas no tinha dinheiro para comprar nada.

    Comecei a pedir esmolas. Era um mendigo? Tal-vez. A primeira pessoa que abordei, um homem velho, com um livro na mo, me deu R$ 33. Pude ver na lom-bada o ttulo: Los prmios, do Cortzar. E acordei.

  • 47Os culos de Paula

    40.Paula, na caixa de comentrios do blogue, escre-

    veu que ele deveria jogar no bicho. Ele respondeu que no gostava de jogar, mas pesquisou sobre o nmero no Google. Era cobra. Acabou sabendo tambm, atra-vs de uma notcia de jornal, que no Rio de Janeiro uma operao da Polcia Civil prendera 33 pessoas envolvidas no jogo do bicho.

    41.Era uma das poucas coisas inexplicveis em que

    sua mente ctica acreditava. Ou no tinha como ques-tionar. Sua me ganhava quase toda semana jogando nos nmeros sugeridos nos sonhos. No apenas nos sonhos dela, mas nos dos outros. Tambm jogava em nmeros sugeridos pelo comportamento das pessoas. Quando o marido brigava com ela, com seu jeito rude, jogava no cavalo e acertava. Se encontrava uma mu-lher com quem no se dava muito e se olhavam de

  • 48 Cassionei Niches Petry

    atravessado, jogava na vaca e acertava. Se discutia com a sogra, jogava na cobra e acertava.

    Um dia, Paula voltou da escola chorando. Quando sua me perguntou o que houve, respondeu que havia cado um tombo na frente dos colegas e no sabia onde meter a cara. A me jogou no avestruz. E acertou.

    42.Paula arrumava a mesa do caf enquanto seu

    filho irrompia na cozinha: Bno, me. Bom-dia,

    filho, ela respondeu, sem se dar conta. Nem o menino

    reparou no ato falho. Quando o marido saiu para o trabalho, ela disse tchau, e ele respondeu amm.

    A literatura que pretendo fazer est longe de uma literatura engajada, nem pretende trazer alguma mensagem. Jorge Volpi escreveu que os escritores nasci-dos entre os anos 70 e 80 so apolticos. Somente lhe interessa o poder na medida em que interfere nas suas vidas privadas.

  • 49Os culos de Paula

    Concordo com ele. Quero fazer arte com as palavras e tratar do ser humano e as questes existenciais que ele enfrenta. Se

    trato do suicdio, no pretendo defender essa escolha. Se abordo o atesmo, tam-pouco quero defend-lo. Se escrevo sobre a vida de um menino negro da periferia, o drama humano, e no social, que me in-teressa.

    43.Tinham um encontro virtual marcado. Fred

    tinha sua manh de folga e ficava lendo, escrevendo,

    tuitando, atualizando os contatos. Ela adiaria as ta-refas da casa.

    Est to distante, escreveu ela.Sei l, muitas preocupaes, respondeu ele.Vc ainda no disse se ficou decepcionado co-

    migo.Decepcionado com o qu?Ah, sei l, minha aparncia. Estou mais velha.Capaz, voc a mesma ainda, minha bruxinha.

  • 50 Cassionei Niches Petry

    Adoro quando vc diz isso, meu bruxinho.Idem.Odeio isso.O qu?Esse idem.Ah, costume, no fique brava.

    T bom.Seu marido no desconfia das suas conversas

    na internet?Ele nem d muita bola. Mas geralmente s

    entro quando ele e o meu filho no esto em casa. E a

    sua mulher?Pra ela tudo bem, at porque fico sempre escre-

    vendo meus textos mesmo. Ela fica no outro computa-dor. s vezes at conversamos por aqui, rsrs.

    Ser que ela no fica aprontando tambm.

    E eu fico por acaso?

    Desculpa.Que isso. De certa forma estou mesmo.Pois .Hum.Dois.Rsrsrs.Kkkkk.Desculpe se eu demorar um pouco para respon-

    der. Estou escrevendo um post pro blog.No quero atrapalhar.Capaz, vai falando que eu respondo.Sobre o que ?J vai ver. At menciono seu nome.

  • 51Os culos de Paula

    Puxa, fiquei mais curiosa ainda. Olha o que vai escrever, hein?

    Fica tranquila. Nada que v comprometer.T bom.Alguns minutos de silncio dos dois lados da

    tela. Aquele momento de um bate-papo on-line em que no se sabe quem recomea. Um fica esperando o outro, um no quer se mostrar desesperado para conversar e o outro, s vezes, gostaria de no ser in-comodado no que est fazendo.

    Eu queria ser o Lcio Grauman.Quem esse, meu bruxinho?Uma personagem do Fernando Monteiro. Ele

    imagina um escritor brasileiro que ganha um Prmio Nobel de Literatura. O mais interessante que a per-sonagem natural daqui.

    Daqui do estado?No, da cidade mesmo.Hum, entendi.Quem sabe eu no transforme em realidade a

    fico.Talento vc tem.Poderamos tb transformar o que virtual em

    realidade.Vc teve essa chance, lembra?Pois .Hummm.Bom, tenho que sair agora.Fugindo.No, que eu tenho algumas coisas pra fazer.

    Se fico por aqui, tudo se atrasa.

  • 52 Cassionei Niches Petry

    Sei. srio.Fico pensando quando voc vai ter uma horinha

    pra mim, depois de tanto tempo que estamos longe um do outro.

    Ah, o tempo. Diz o ditado que o tempo o se-nhor da razo. Escrevi sobre o tempo no meu blog. J leu?

    No, est nos arquivos mais antigos?Sim. Ento d um pouco do seu tempo para ler

    o meu texto. o que estou fazendo nos ltimos dias. Meu

    tempo est quase todo dedicado a vc.No faa isso, por favor. Vc tem a sua famlia.T bom, vc est certo. Acho que estou enten-

    dendo seu recado. Tchau, ento.Por favor, no fique chateada, mas temos nos-

    sas vidas.T bom, vou tentar entender. Bjs.Bjs. Se cuida, bruxinha.Adoro quando vc me chama assim.Fred parece estar off-line.

  • 53Os culos de Paula

    44.Gosto de escrever aqui no blog um tipo de texto

    literrio chamado crnica. um gnero destinado ao jornal, tratando de questes do nosso cotidiano, algu-mas vezes com humor, outras vezes de forma potica. A palavra vem de Cronus, que na mitologia grega o deus do tempo, originando outros vocbulos da nossa lngua, como cronmetro, cronologia, cronograma. Na sua origem a crnica era um registro de fatos histri-cos. Hoje, relata coisas de nosso tempo presente, por isso ela na maioria das vezes tem seu valor s naquele dia. No outro, vai servir para embrulhar o produto da feira ou para forrar o local onde o bichinho de estima-o faz suas necessidades.

    Se o leitor tiver tempo, quero justamente con-versar sobre o tempo. No o meteorolgico, e sim o do relgio.

    Voltando ao deus Cronus. Segundo a mitologia, temendo ser destronado por um de seus filhos (assim

    como fizera, outrora, com o seu pai Urano), ele os en-golia assim que nasciam. Quando Reia, sua esposa, concebeu Zeus (ou Jpiter, na mitologia romana), en-rolou com panos uma pedra no seu lugar e ofereceu ao marido. Como ele devorava tudo, no percebeu a diferena. Zeus se tornou, mais tarde, o mais pode-roso de todos os deuses do Monte Olimpo.

    Se pensarmos no nosso dia a dia, estamos sem-pre olhando para o relgio ou prestando ateno na

  • 54 Cassionei Niches Petry

    hora certa dada pelo rdio. Afinal, temos hora para

    chegar ao trabalho ou escola, hora do descanso, hora para tomar o remdio, hora para pegar o nibus, etc. E o tempo sempre nos engana. Se samos adiantados de casa, no encontramos nenhum obstculo e chega-mos at cedo demais ao local desejado. O trnsito flui

    e o nibus pode at sair da parada um pouco depois do seu horrio. No entanto, se estamos atrasados, pode estar certo que vamos esquecer alguma coisa em casa, nos obrigando a voltar, ou o trnsito estar lento, ou vamos encontrar um conhecido na rua que puxar conversa ou o desgraado do nibus vai sair at um pouco antes da hora. Isto tudo um complexo aparato que o tempo usa contra ns, como se dissesse aqui quem manda sou eu.

    Assim o tempo. Ele nos limita, nos diz o que fazer. Tentamos, imitando Reia, engan-lo, mas no conseguimos. Ele implacvel. Ele passa e a gente no sabe o que fazer. Somos escravos do relgio. Como disse o filsofo Herbert Spencer, tempo aquilo que o

    homem est sempre tentando matar, mas que no fim

    acaba matando-o.O tempo passa e, como o deus Cronus, ele devora

    tudo o que v pela frente, principalmente aquilo que deixamos de fazer agora. H uma msica composta por Cristvo Bastos e Aldir Blanc que se chama Res-posta ao tempo, cujos versos dizem que o tempo ri e zomba da gente porque sabe passar e eu no sei. Se no soubermos aproveitar o tempo presente, ficare-mos cada vez mais perdidos neste mundo do corre--corre e envelheceremos cada vez mais tristes.

  • 55Os culos de Paula

    O que fazer? Talvez a nica coisa capaz de lu-dibriar o tempo o amor, que o diga o grande poeta Carlos Drummond de Andrade: O tempo passa? No passa/ no abismo do corao./ L dentro, perdura a graa/ do amor, florindo em cano./.../ No h tempo consumido/ nem tempo a economizar./ O tempo todo vestido/ de amor e tempo de amar.

    45.O tempo custava a passar para Paula. Revivia

    aqueles momentos da juventude em que aguardava o momento de rever o namorado. Agora, esperava pelo menos por um contato virtual, um novo texto do Fred no blogue ou no jornal. Voltava a ser uma adolescente?

  • 56 Cassionei Niches Petry

    46.J passei dos 25 anos. Andrs Caicedo, escritor

    colombiano, se suicidou na tarde do dia 4 de maro de 1977, com essa idade. No mesmo dia, havia recebido o primeiro exemplar de seu romance, Qu viva la m-sica! Tomou 60 plulas de Seconal. J havia tentado tirar a vida outras duas vezes, pois costumava dizer que vivir ms de veinticinco aos era una insensatez.

    47.Paula lia mais uma das postagens de Fred no

    blogue enquanto no recebia um novo contato. Era uma citao de Cioran. Ele continuava escrevendo, mas h alguns dias no aparecia online. Os novos tex-tos eram dedicados mais literatura e filosofia. O

    atesmo deixou de ser o assunto mais recorrente. O que a estava inquietando, no entanto, eram as

    referncias ao suicdio, tanto em textos literrios como nos filosficos. Era o tema do momento para Fred e

  • 57Os culos de Paula

    uma preocupao para Paula. Estaria ele pensando em suicdio? Estaria passando por algum problema na famlia? Seria ela a responsvel por tudo isso?

    48.Um livro um suicdio adiado, escreveu Cio-

    ran, em Do inconveniente de haver nascido.

    49.Paula disse ao marido que iria voltar a estudar.

    Sua vida como dona de casa estava ficando montona.

    Poderia, quem sabe, lecionar, o que era seu sonho de criana. No disse a ele que esse sonho fora interrom-pido pelo casamento.

  • 58 Cassionei Niches Petry

    Voc que sabe disse ele. Voc est muito estranha nos ltimos dias. Ajudo a pagar, mas v se no vai esquecer as obrigaes da casa.

    Lgico que o marido no ia deixar de lembrar o que ele considerava o mais importante numa mulher. Paula no comentou nada, apenas agradeceu. Tirou os culos e foi deitar-se.

    50.Buracos enormes nas ruas da cidade. So obras

    da companhia de gua que causam revolta nos moto-ristas. As pessoas reclamam dos buracos, mas tam-bm reclamam se no h melhorias no abastecimento de guas. Gostaria de ver a mesma indignao em outros casos mais escabrosos como a corrupo dos polticos, a violncia ou o descaso com a educao.

    No romance pera dos mortos, do mineiro Au-tran Dourado, havia voorocas nas ruas da cidade de Duas Pontes. Uma metfora para a populao destru-da moralmente. Qualquer semelhana NO mera coincidncia. Em Noite do orculo, uma personagem de Paul Auster diz que o escritor no escreve sobre o passado, mas sim sobre as coisas que vo acontecer.

  • 59Os culos de Paula

    51.Queria um conselho de Fred sobre voltar a es-

    tudar. A opinio dele era importante. Preciso falar com voc, escreveu Paula, por e-mail. Pediu para que ele entrasse no messenger. Ele demorou para respon-der. Disse que estava um pouco ocupado para ficar

    no MSN, estava se dedicando a escrever, mas que ela poderia dizer o que queria por e-mail mesmo.

    Paula achou-o muito frio, distante. Sentiu-se preterida. Tirou os culos e os acomodou sobre um livro fechado. Comeava a se sentir arrependida de querer reviver aquele velho e adolescente amor.

    Deveria esquec-lo? J tinha vivido mais de uma dcada sem ele. Por que se importar com ele agora? Sim, por qu?, perguntava-se. Se ele no estava se im-portando com ela, por que ela deveria? Sim, por qu?

    Ps os culos e comeou a escrever um poema. At suas tentativas de escrever poesia haviam ficado

    adormecidas durante anos e foram despertadas pelo Fred.

    J se passou mais um dia,E nessa noite fria Mais uma vez estou sPosso no ter insistidoEu me dei por vencidaMas pra mim foi melhorS de ouvir as bobagens que voc me falouE as outras tantas que eu tambm cometi

  • 60 Cassionei Niches Petry

    Faz de conta que eu no ouviQue voc nada escutouFinja que nunca existi

    Gostaria, porm, de estar ao lado dele e conti-nuou escrevendo:

    Agora consigo viver minha vidaE meu ponto de partida conseguir me encontrarSe escolhi o sossego porque tenho medoPrefiro imaginarS de pensar que no sou mais bem-vindaQue para outros olhos que voc sorriFao de conta que estou aQue estou vendo voc dormindoFinjo que nunca te perdi

    Depois deletou os versos do computador. No as-sassinaria a literatura dessa forma. Tampouco desis-tiria to fcil assim de Fred. Precisava compreend-lo, afinal o escritor precisa de tempo e tranquilidade para escrever e ela o estava atrapalhando.

  • 61Os culos de Paula

    52.Se estou postando pouco no blog porque tenho

    que me dedicar escrita de um romance que h tem-

    pos me persegue. Na verdade, eu perseguia a ideia h

    anos e nunca conseguia p-la no papel. Pensei ento

    em deixar de correr atrs dela. Com os gatos devemos

    agir dessa forma. Se corremos atrs deles, eles fogem.

    Mas se fingimos indiferena eles se aproximam. Com

    as mulheres no diferente. Para conquist-las, no

    podemos ficar no encalo a todo momento. Se insisti-

    mos demais, rodeando-as de forma acintosa, no lo-

    gramos xito. Mas basta nos afastarmos para que elas

    passem a nos procurar. No sei se o contrrio acontece,

    mas assim que eu percebo, ou pelo menos minhas

    experincias me fizeram chegar a essa concluso.

    Deixando de perseguir a ideia, ela passou a me

    perseguir. Como aconteceu com Brs Cubas, pendu-

    rou-se-me uma ideia no trapzio que eu tinha no c-

    rebro, tentando chamar a ateno para si. O difcil

    saber o momento de desistir de ignor-la. A ideia pode

    recuar. A magia consiste no momento exato de voltar-

    -se e abra-la, lev-la para casa, talvez prend-la. A

    percepo desse momento o que chamamos de inspi-

    rao. Depois disso domar a fera, domestic-la. a

    fase da transpirao. preciso suar. a parte braal

    que se junta intelectual.

  • 62 Cassionei Niches Petry

    Isso tudo s acontece, repito, quando recusamos

    a ideia. Se ela tambm desistir e no nos perseguir,

    um sinal de que no era boa.

    53.Paula leu as entrelinhas da postagem e viu uma

    mensagem dirigida a ela. Estaria ele agindo assim, se

    esquivando tal qual um gato malandro? No deveria

    desistir, ento? Mas valeria a pena correr atrs de um

    homem que a desdenhava dessa forma, um homem que

    via na literatura seu nico norte?

  • 63Os culos de Paula

    54. PaulaEstou morando sozinho desde ontem noite.

    Minha esposa e meu filho foram morar na casa da me dela. Passei a dedicar mais ainda os meus ltimos dias s minhas leituras e aos meus escritos e me distanciei dos dois. Preciso de tranquilidade para escrever, mas no queria que as coisas chegassem a esse ponto. Me tornei um egosta ao querer preservar tanto a minha individualidade. Espero que entenda o porqu de eu no te procurar e gostaria que voc no repetisse o meu erro.

    Abs.Fred.

    55.Paula ficou feliz, mas em parte, pois a separao

    no havia acontecido por causa dela. Fred deixara bem claro: os livros o afastaram da famlia. Ela esperava agora que os livros os unissem. No seria uma tarefa fcil.

  • 64 Cassionei Niches Petry

    No repetir o erro. Seria um erro o que ele fez? Paula achava que no. Seguir o velho chavo de fazer o que o corao manda no errado. Paula no que-ria ouvir o conselho do Fred, por mais que ela fosse influenciada por tudo o que ele escrevia. Havia dado voz razo durante toda a sua vida. Faria diferente dessa vez. No deixaria o seu marido de uma hora para outra, pois ainda pensava no filho, apegado ao pai. No entanto, arrastar por muito mais tempo um relacionamento desgastado seria pior para o pequeno.

    Voltar a estudar seria uma volta juventude, simbolicamente falando. Comear tudo de novo, mesmo no sendo tudo igual, renovava o nimo de Paula. Como o seu desejo, porm, era deixar de ser dependente do marido, precisava trabalhar. Mas em qu?

    56.O filsofo Jos Ortega y Gasset escreveu, no seu

    primeiro livro, de 1914, Meditaciones del Quijote, uma das frases mais conhecidas do pensamento universal: Yo soy yo y mi cirunstancia. Cada vez que a leio, as circunstncias so diferentes e, por conseguinte, as

  • 65Os culos de Paula

    interpretaes tambm. Na primeira vez, li a frase pensando na maneira como as pessoas guiam suas vidas. Elas se adaptam ao meio, acabando por se aco-modar e a imitar o que os outros fazem.

    Hoje, no entanto, vejo a sentena de outra forma. Como o filsofo se utiliza do pronome posses-sivo minha, ele pode estar excluindo as circunstn-cias externas ao indivduo. Parto do princpio, ento, de que sou eu que devo criar as circunstncias, no esperar que os outros se adaptem s minhas ou que eu acabe me acomodando com as circunstncias que me apresentam. Alis, a continuao da frase elucida um pouco mais a questo: y si no la salvo a ella no me salvo yo. Em outras palavras, se nos deixamos nos levar pelo coletivismo, acabamos esquecendo o nosso eu e nos tornamos infelizes.

    Sinto-me um peixe fora dgua (ah, os clichs!).

    Tenho um crculo de amigos que no tem os mesmos gostos do que os meus. Eles no leem, no so crticos, gostam de msicas que considero muito ruins, falam sobre assuntos que no me atraem nem um pouco, como futebol e outras futilidades. Nas escolas onde trabalho, difcil encontrar algum com quem trocar ideias, mesmo sendo professores. Ficar no intervalo ouvindo colegas conversarem sobre novela, sobre o cachorro que est doente, sobre a roupa que compra-ram, sobre os perfumes que a fulana est vendendo, sobre as ltimas do reality show do momento, etc., etc. Tudo isso uma forte poro de drogas para os ouvidos e o crebro.

  • 66 Cassionei Niches Petry

    Por isso, crio eu minhas prprias circunstncias. Nessas horas me lembro de letras dos Engenheiros do Hawaii: Ando s/ como um pssaro voando/ ando s/ como se voasse em bando, de uma das faixas do lbum Vrias variveis. Ou em Humano demais, do lbum Minuano, em que Humberto Gessinger cita Or-tega y Gasset: e agora somos s ns dois: eu e minha circunstncia/ sempre foi s ns dois: eu e minha cir-cunstncia/ sempre s ns dois: eu e eu. Nesses mo-mentos que no me agradam fico quieto no meu canto,

    s vezes observando para, quem sabe, utilizar tudo que ouo em algum conto. Ou tento ler um livro, a nica coisa que me faz fugir da realidade para poder entend-la.

    Sei que pareo criar um muro floydiano em volta

    de mim, mas antes o muro separando do que uma ponte me unindo s imbecilidades do cotidiano. Pa-rafraseando Cames, prefiro andar solitrio entre as

    pessoas.

  • 67Os culos de Paula

    57.Paula tirou os culos, limpou-os e os ps mais

    uma vez. Aquele Fred que gostava de estar nas rodas de amigos estava definitivamente mudado. O desejo

    dele era mesmo ficar sozinho ou seria uma forma de

    aparecer desaparecendo, como escreveu Vila-Matas, que ele citou no blogue? Seu sonho era ser um grande escritor, sempre foi, desde os tempos da universidade. Mas ser um autor como J. D. Salinger, Thomas Pyn-chon, Dalton Trevisan ou Rubem Fonseca, menciona-dos por ele em um texto sobre escritores reclusos, no era uma boa ideia, pois a interao com os leitores, numa era dominada pela internet, imprescindvel para se tornar conhecido e lido. No conversar com seus leitores seria um suicdio literrio. Ser que a isso que ele se refere quando menciona esse ato tres-loucado de tirar a prpria vida?, pensou Paula.

  • 68 Cassionei Niches Petry

    58.Mudei a foto de fundo do blog. Como vocs

    podem ver no vendo, meus sete leitores fiis, apareo

    agora escondido atrs de um livro de Roger Shattuck, Conhecimento proibido. Apareo sem aparecer. No vou mais associar a minha imagem com a de um es-critor que no sabe escrever, mas quer escrever. uma forma de suicdio, j que no tenho coragem de tirar minha prpria vida. O livro que seguro no foi escolhido por acaso.

    Fico imaginando um crtico que vai escrever que o meu romance devedor de Rubem Fonseca, porm o discpulo no consegue superar o mestre, alis, como todos os escritores que tentam imit-lo. Ele vai dizer isso, mesmo se o estilo to-talmente diferente, pois qualquer um que tenha a petulncia de escrever sobre a pe-riferia e a violncia imediatamente com-parado ao autor de Feliz Ano Novo.

    J ouvi expresses como esttica da

    fome, esttica do no sei o qu. H nos fil-mes norte-americanos a esttica do tiro. Na televiso, estamos sendo dominados pela esttica do grito. s ver a gritaria de alguns apresentadores, que noticiam qualquer coisa aos berros, mais ou menos

  • 69Os culos de Paula

    como os pastores de igrejas evanglicas. A literatura contempornea, no entanto, vive a esttica do politicamente correto. No meu romance, devo seguir essa linha, apontando quem sabe a sociedade como culpada dos atos dos pobres; ou posso par-tir para algo bem oposto, mais reacionrio, apontando que quem matou o fez porque pobre e negro, a sociedade no tem nada a ver com isso, o neguinho tem que mofar na cadeia.

    59.Paula ps os culos para ler um livro com seu

    filho. Ler junto. Uma escritora e filsofa, Mrcia Ti-buri, escreveu sobre isso, mais especificamente sobre

    ler filosofia. Paula lia com uma criana, que era um

    dos homens da casa. Com o outro seria impossvel ler algo. Por isso procurava ler com Fred. O que ela lia, lia com ele, mesmo no estando ao seu lado. Mas por que no sozinha? Por que no refletir sozinha, so-mente ela com ela mesma? Por que se deixar levar

  • 70 Cassionei Niches Petry

    pela influncia do outro? Por que ver o mundo a partir

    do olhar do outro? o que costumamos fazer, pensava Paula.

    o que costumo fazer.

    60. 33 anosTinha um nome bastante incomum, talvez nico.

    Dizia que, se soubesse da existncia de um homnimo, o chamaria para um duelo, pois o mundo era pequeno demais para duas pessoas com esse mesmo nome.

    Pois existia outro, que pensava a mesma coisa.O enterro ser hoje, dia 3 de agosto, s 3h30 da

    tarde.

  • 71Os culos de Paula

    61.A filsofa escreveu que o livro um dispositivo.

    Um dispositivo para o pensamento. Deixar de ser pas-sivo para pensar, indo alm da leitura.

    O livro foi o dispositivo para Paula decidir procu-rar por Fred, encontrar aquele que no queria ser en-contrado. Se estava separado, no haveria problema se fosse sua casa. Ficar parada na frente do compu-tador esperando um sinal de vida virtual de Fred no iria adiantar nada. Precisava conversar com ele, pre-cisava estar junto dele. S l-lo no a satisfazia mais.

    Mas como poderia saber onde ele morava? Pelo jornal? Mandou um e-mail para a redao, mas eles no estavam autorizados a fornecer o endereo dele. A escola onde trabalhava? Disseram que tambm no poderiam dar essa informao. Que tal um amigo em comum no Facebook? Sua pgina no existia mais, pois a havia apagado. Lendo um dos textos do blogue, porm, acabou descobrindo onde ele vivia. No ficou

    exatamente sabendo qual era a rua e o nmero, mas as indicaes da crnica a deixariam perto. Depois, no seria difcil localiz-lo.

  • 72 Cassionei Niches Petry

    62.Vejam como so as coisas. Quando criana, pen-

    sei em fugir de casa com meus amigos, apesar de a minha infncia ter sido muito feliz. Sempre achamos, no entanto, que no somos compreendidos e queremos ter liberdade. O lugar para onde iramos era prximo ao arroio dos Pick. amos todos os dias de vero tomar banho l, escondidos dos nossos pais. Era nossa diver-so. Nada melhor do que ir morar nesse lugar. S que os planos de fuga no lograram sucesso e desistimos da ideia.

    Duas dcadas depois, constru minha casa em um terreno loteado pela famlia Pick, a poucos metros do arroio da minha infncia. O mundo girou e girou e eu voltei para o bairro onde nasci e fui viver onde eu sempre queria. Encontrei a liberdade a que sempre almejei.

  • 73Os culos de Paula

    63.Sabia, portanto, o nome do lugar. Loteamento

    Pick, prximo ao arroio que j tinha outro nome do que fora citado no blogue, mas que permaneceu na memria dos moradores com a denominao antiga.

    Como Fred era professor, no foi difcil encon-trar a residncia. Os vizinhos sabiam onde ele mo-rava, pois ele passava a p na frente das suas casas para ir escola com sua pasta preta e mais uma sa-cola repleta de livros, alm de usar diferentes cami-setas dos formandos do Ensino Mdio, com o nome de cada aluno s costas.

    Chegou frente da casa. Uma janela estava aberta. Estava em casa. Era s bater na porta e espe-rar para rev-lo. Ficaria feliz ou a mandaria embora? Aproximou-se e deu dois toques com os ns dos dedos na madeira da porta. Tirou os culos para limp-los enquanto esperava ser atendida. Ouviu o barulho da fechadura.

  • 74 Cassionei Niches Petry

    64.Passar a viver sozinho me proporcionou mais

    tempo para ler e escrever. A vida de casado quase nunca me trouxe felicidade, com exceo do nasci-mento do filho que, porm, est cada vez mais distante

    de mim. Ou melhor, eu estou distante dele. Alis, pre-ciso visit-lo. O apartamento onde esto morando, no entanto, fica do outro lado da cidade. Sem carro fica

    difcil e no saio de casa a no ser para trabalhar. Coi-sas que s uma vida sem atrativos pode trazer. Hoje, nada que no literatura me interessa. Antes eu era um inseto kafkiano dentro de casa. Precisava me li-vrar da vida absurda que levava. Me suicidei para re-encarnar como um solteiro. Um escritor solteiro. Um escritor e pai solteiro. E que precisa trabalhar ainda. No consegui reencarnar num escritor em tempo in-tegral.

  • 75Os culos de Paula

    65.Paula se surpreendeu ao se deparar com a mu-

    lher que abriu a porta. Ficou sem saber o que fazer. Dizer que foi engano ou perguntar pelo Fred? Seria sua esposa ou uma faxineira? Apareceu tambm um menino, curioso para ver a visita, o que a deixou mais apreensiva ainda. Lembrou-se do filho, quela hora

    na escola, e do quanto estava deixando de dar ateno a ele em nome de uma paixo. Via-se agora como uma intrusa, se que era a famlia do Fred que surgia a sua frente. Imersa nos seus pensamentos, no notou que a mulher perguntava o que ela desejava. Reps os culos e viu o quanto era ela bonita. Rapidamente surgiu na sua mente uma resposta possvel, tendo em vista a profisso de Fred e o receio de falar alguma

    bobagem que estragasse tudo. Eu estou precisando de umas aulas particu-

    lares de Lngua Portuguesa e fiquei sabendo que o

    seu... marido? patro? ahn... que mora um profes-sor aqui.

    Ah, claro, o meu marido. Mas ele est na es-cola agora. Quer deixar um telefone pra ele te ligar? S no sei se ele est com tempo de atender alunos ex-tras. Pelo menos sempre reclama que no tem tempo pra nada.

    Ah, sim, mas ele..., quer dizer, no precisa, posso vir outra hora.

    Tudo bem, entendo se no quer deixar seu n-

  • 76 Cassionei Niches Petry

    mero. Mas pega o nmero dele, ento, acho que ele no vai se importar se eu passar. Eu j disse pro tei-moso que estamos precisando de um dinheirinho a mais pra pagar as contas. Vou anotar pra voc.

    Surpreendeu-se com a disposio e a simpatia da mulher e se sentiu culpada por querer roubar seu marido, apesar de ter sido enganada pelo e-mail e pelas postagens dele no blogue em que afirmava que

    estava sozinho. Porm, tinha agora o nmero do tele-fone celular do Fred e ele no poderia mais escapar.

    66. Fazer da sua prpria vida fico. Ficcionalizar

    o real. Eis o meu objetivo como escritor.

  • 77Os culos de Paula

    67.Um dos conselhos que a me de Paula sempre

    dava era para que no corresse atrs dos homens. Macho tudo igual, minha filha. S muda o

    endereo.Hoje pode se dizer que homem tudo igual, s

    muda o e-mail.

    68.Paula ligou para Fred que atendeu prontamente,

    dizendo seu nome verdadeiro. Fred, sou eu, a Paula.Ele permaneceu em silncio por uns instantes.

    Depois perguntou, irritado: Como voc conseguiu meu telefone? Sua mulher me passou. O que voc est dizendo? Como voc falou com

    ela? Fui na sua casa.

  • 78 Cassionei Niches Petry

    Puta que pariu, Paula. Por que fez isso? Queria falar com voc, mas no respondia

    meus e-mails. Talvez porque eu no quisesse mais falar com

    voc. Era s responder dizendo que no me queria

    mais. Seria mais simples e eu ia entender. No bem assim... Como no? o que voc est me dizendo agora. No disse que eu no ia querer mais voc, mas

    sim que talvez no quisesse conversar. diferente. Ai, homem de Deus... Sabe que no sou de Deus. modo de dizer. Poxa, eu s queria entender

    voc. No procura me entender que perda de

    tempo. Nem eu me entendo. Por exemplo, por que mentiu que tinha se se-

    parado? Quando eu tinha falado com voc, realmente

    tnhamos brigado, mas voltamos. Mas no blogue voc escreveu isso tambm. Eu resolvi manter essa fico. Alis, tudo que

    estou publicando l mentira. um exerccio liter-rio que estou realizando.

    Custava ter me dito? Paula, complicado falar por telefone. Poda-

    mos tomar um caf uma hora dessas. Uma hora dessas quando? Combinamos por e-mail?

  • 79Os culos de Paula

    Por que no agora? Ah, sei l, tenho que ver ainda quando posso. Vai responder o e-mail dessa vez? Prometo que sim. Quem est falando uma personagem de fic-

    o ou o Fred? o professor Mrcio mesmo.

    69.Paula buscou o filho na escola e o abraou bem

    forte. Pensava que, se deixasse o marido, poderia fazer o pequeno sofrer, pois era muito apegado ao pai. Afastar os dois seria um ato de egosmo por parte dela, mas no queria deixar sua felicidade mais uma vez escapar.

    Claro que havia a outra famlia ainda. Ver o filho do Fred a fez balanar. Se ele largasse a esposa

    realmente, seu filho talvez pudesse sofrer. Ou seria

    verdade o que ele postara no blogue, que no tinha muita proximidade com o filho? Fico, disse. Ser?

  • 80 Cassionei Niches Petry

    70.Penso sobre a possibilidade que temos de con-

    versar com pessoas do mundo inteiro via internet. til? Intil? No poderamos escrever uma carta, telefonar, enfim? Skype, Orkut, Facebook e Blog so hoje os meios mais rpidos de nos manter em contato com as pessoas, principalmente com quem est dis-tante, sem contar que, no corre-corre dirio, sentar e conversar com um amigo cada vez mais difcil. Participei de um grupo de leituras que se encontrava semanalmente. H anos no apareo mais, pois gosto de ficar em casa no sbado, dia dos encontros. No

    entanto, acabei participando dia desses com o grupo atravs do twitter.

    Alm disso, pela internet mantenho contato com escritores e crticos literrios de outras latitudes. Vou fazendo conexes que me tornem visvel no contexto literrio nacional. Infelizmente, escrever apenas no adianta mais. Devo voltar a participar das redes so-ciais ou ento me suicido de verdade.

  • 81Os culos de Paula

    71. tarde, Paula fazia os servios domsticos en-

    quanto seu filho assistia televiso. Ouviu o telefone

    tocar e correu para atender. Seria Fred? Seu nmero deve ter ficado gravado no celular dele. Era seu ma-rido. Avisava que receberiam a visita de um colega de trabalho com sua esposa. Paula deveria preparar um jantar especial, pois o convidado era pessoa mais im-portante do que ele na empresa e poderia ajud-lo a crescer l dentro. Ela ouvia tudo apenas concordando com resmungos. Antes de desligar, o marido disse:

    V se no vai ficar fazendo cara feia como vem

    acontecendo nas outras vezes. Tem que tratar bem as visitas.

    72.Paula acompanhava Fred nas mesas do centro

    de convivncia e nos bares prximos universidade. Ele tentava formar algo parecido com o Clube da

  • 82 Cassionei Niches Petry

    Serpente de O jogo da amarelinha, do Cortzar. Ela nunca conseguiu ler o livro e por isso Fred a chamava de Maga. No entendia no incio por que, at ele ex-plicar.

    Por causa desses encontros, procurou conhecer os escritores, msicos, pintores e cineastas citados. Talvez tenha aprendido muito mais nas mesas be-bendo do que com a caneta na mo. Aprendeu, porm esqueceu tudo por um bom tempo.

    73.Tinha que usar sempre uma mscara no encon-

    tro entre os amigos do casal, na verdade os amigos do marido. A personagem dona de casa ganhava seu dia de glria ao ser elogiada pela limpeza e pelo bom gosto da decorao. Paula sempre sorria, agradecida. Dessa vez, a mscara ficou guardada em algum arm-rio sempre organizado da residncia e deu lugar aos culos. As amigas estranharam. Sabiam que usava culos, assim como sabiam que ela evitava us-los pela questo esttica.

    Por que no usa lente de contato? uma delas perguntou.

  • 83Os culos de Paula

    Paula respirou fundo e contou at cinco para no ser grosseira com a outra e respondeu:

    Estou bem assim. No me preocupo muito com a aparncia.

    Mas antes voc se preocupava, pois vi muito pouco voc usando culos.

    Eu no usava porque vocs no usavam. S isso.

    T, e por que est mudando de ideia, ento? Posso eu cuidar da minha vida e voc cuidar

    da sua? T bom, no est mais aqui quem falou.Durante o resto da noite, elas evitaram um

    maior contato com Paula, que no se importou, uma vez que desejava ficar mais sozinha. Em meio con-versa chata e msica insuportvel que tocava no rdio, Paula tentava se desligar de tudo, pensar no Fred, no filho que brincava com o amiguinho em

    frente da casa, na mulher do Fred e no filho deles. Seu

    semblante fechado chamou a ateno de um dos ho-mens que perguntou se havia um problema, se podia ajud-la, afinal era amigo do casal h anos.

    Voc pode me ajudar me deixando quieta aqui. Ficaria muito agradecida.

  • 84 Cassionei Niches Petry

    74.Fred denominou o grupo de Clube do Escor-

    pio, referncia bvia ao Cortzar. O nome fazia com que no se perdesse a ideia da circularidade do Oroboro. Voltamos sempre ao mesmo tema, Paula. Vamos ampliando a discusso at que ela volte ao ponto de partida. Nessa circularidade, nos devora-mos uns aos outros. Como canibais, comemos nosso semelhante para obter seus conhecimentos. Tambm inoculamos o veneno do conhecimento em ns mesmos e morremos, para que nasa outro ser humano mais forte intelectualmente. Uma espcie de suicdio.

    A rigor, os demais no tinham o mesmo brilho de Fred. Era o que Paula pensava. Eles que mais se alimentavam das discusses. Quando Fred percebeu isso, o grupo se desfez.

    75.Quando todos foram embora, o marido disse que

  • 85Os culos de Paula

    teria uma conversa muito sria com Paula. Ela sabia que ele iria repreend-la pela atitude, mas j estava disposta a no baixar mais a cabea.

    Voc tem ideia do que fez hoje? Que deu em voc? Me fala.

    No sou obrigada aturar essa gente, muito menos ficar dando sorrisinhos falsos.

    Mas voc nunca foi assim. Eles sempre foram nossos amigos e voc nunca reclamou.

    Nossos no. Seus. Nunca veio uma amiga minha aqui, at porque no tenho nenhuma de ver-dade.

    Ah, mulher, depois desse seu comportamento eles no vo mais vir aqui.

    Bingo! Ganhei. O que vai acontecer se os lin-dos pezinhos deles no pisarem mais aqui? Ah, j sei, voc no vai mais ter quem algum puxando seu saco, isso?

    Pensa no que voc est dizendo, hein. Estou falando alguma mentira? Ora, voc no sabe mesmo como bom preser-

    var os amigos. Amigos? Cai na real, eles s so amigos por

    interesse e mais nada. Se voc no fosse o chefe do setor deles, acha que viriam tantas vezes aqui? Deixa de ser besta.

    Que isso, Paula? No respeita mais seu ma-rido? Alm disso, hoje tinha na nossa festa um cara mais importante do que eu l dentro da empresa.

    Respeito se voc respeitar minha opinio.

  • 86 Cassionei Niches Petry

    Voc est muito diferente. O que houve? Nada. S acordei do mundo de fantasia onde

    eu vivia. Mundo que voc gosta. Pensava que sim. Como eu disse, acordei. Mas o meu dinheiro pra estudar voc quer, no

    ? Demorou pra falar no maldito dinheiro. No se

    preocupa, vou adiar minha volta faculdade, se que vou voltar. Vou procurar um emprego. No vai falar do carro tambm?

    Ah!, pronto, daqui a pouco vai dizer que quer se separar.

    uma boa ideia. Vamos dormir. Deve ser TPM. Sim, TPM. Tudo por uma mudana, pensou Paula. Depois

    tirou seus culos e foi para a cama.

    76.A palavra personagem vem do grego e significa

    mscara, que os gregos utilizavam para representar

  • 87Os culos de Paula

    seus papeis nas peas teatrais. Eles talvez no tives-sem desenvolvido a capacidade de atuar apenas atra-vs de mudanas na fisionomia e, por isso, precisavam

    desse acessrio.Numa narrativa, a personagem representa pes-

    soas da vida real, mas so seres fictcios, no se es-queam disso. Ns tambm criamos personagens no nosso dia a dia. Colocamos mscaras diferentes em vrias ocasies. Agora, por exemplo, eu estou assu-mindo uma personagem na frente de vocs. O pro-fessor que est aqui neste palco improvisado, diante de uma plateia quase nunca atenta, no a mesma pessoa fora dessas quatro paredes. Essa pessoa que aqui no para de falar, geralmente quieto e srio em outros lugares. Aqui, no entanto, preciso pr uma mscara. Mas no vejam, por favor, isso num sentido pejorativo. No estou sendo falso. Se fosse, elogiaria vocs para tentar conquist-los. Vocs mesmos, no en-tanto, usam mscaras diferentes. Agora vocs assu-mem o papel de alunos. Em casa, entra a personagem filho. Se trabalham, a mscara a de um empregado

    que tem que sorrir para o patro chato.Criamos personagens sempre. s vezes, para su-

    portar a realidade, outras para fugir dela.

  • 88 Cassionei Niches Petry

    77.Durante o caf, no conversou com o marido e

    jurou para si mesma que seria assim pelos prximos dias, at que as coisas se resolvessem e ela decidisse o que fazer. Depois que o marido e o filho saram,

    Paula ligou para Fred. Disse que precisava v-lo e conseguiu convenc-lo a se encontrarem ainda pela manh. Como estava de folga, disse ele, no haveria empecilho nenhum, a no ser a escrita do seu livro que sofreria um atraso.

    Paula o buscou em casa. A mulher dele estava trabalhando e o filho, na escola. Comentaram as coin-cidncias e o fato de a vida de ambos serem semelhan-tes em determinados aspectos.

    Talvez por isso o nosso namoro no tenha ido adiante, Paula.

    , voc sempre dizia que polos iguais se repe-lem. Mas no somos assim to parecidos. Intelectual-mente, voc muito superior do que eu.

    Sei fingir muito bem. Seu problema que voc

    parou no tempo. De certa forma sim. E esse carro? do marido ou seu? Ele me deu. Hum, entende-se o motivo de voc ter parado

    no tempo. Chamei voc pra falar sobre ns dois. Voc fala como se estivssemos juntos. No es-

  • 89Os culos de Paula

    tamos. Lembre-se disso. Eu gostaria de voltar com voc e estou disposta

    a largar tudo. Quer dizer, no tudo, menos o meu filho.

    Mas eu no sei se estou, apesar de querer apertar o n que ficou frouxo todo esse tempo. No

    posso reconstruir outra vida. Pelo menos no agora. As coisas que voc anda escrevendo me fazem

    pensar o contrrio. No acredite em tudo o que eu escrevo. , esqueci que voc um escritor ou pelo menos

    deseja ser um. J ouviu falar de autofico?

    Li sobre isso no seu blogue apenas. Pois , a autofico...

    Ah, por favor, Fred, sem aulinha, ok? E vamos para onde? Voc decide.

    78.Fazer 33 anos ouvir a piadinha a idade de

    Cristo. Nessa idade ele se suicidou. Como se suici-dou?, pergunta o leitor. Lgico, no o que sempre

  • 90 Cassionei Niches Petry

    dizem, que ele deu a sua vida para nos salvar dos pecados? Ento? Se ele era filho de Deus, ou melhor,

    era o prprio Deus, tinha o poder para no morrer crucificado e trucidar seus inimigos, como acontece

    em quase todo o Antigo Testamento, a parte mais sangrenta da Bblia. No entanto, no o fez. Ento, foi suicdio, sem dvida.

    79.Viver uma vida de amante e ter um amante.

    Uma sensao estranha, apesar de t-la vivido nos tempos da faculdade sem o saber. Mais uma vez a ideia dele acabou prevalecendo, ela no passando de uma seguidora. Era sua felicidade que buscava, no entanto. Algumas concesses precisavam ser feitas. Entre elas, no brigar com o marido, mas ao mesmo tempo faz-lo perceber que estava incomodada com a vida que levava. Lgico, no entanto, que deveria fazer de tudo para que ele no desconfiasse de nada.

    Mentir. O que pedia para o filho no fazer, ela faria.

    Fred mentia, seu marido talvez mentisse sempre para ela. Ela antes mentia para si prpria. Agora, mentiria para ser feliz.

  • 91Os culos de Paula

    80. Seja feliz, minha filha, isso que importa. Eu

    s fui feliz quando voc nasceu. De resto, s fingia pra

    todos saberem que estava tudo bem. Mas esse fingi-mento at que dava uma ponta de alegria. Sempre disse pra voc, Paula, desde pequena, para no men-tir. Agora que voc maior e eu estou nas ltimas, posso dizer que s vezes temos que mentir para bus-car nem que seja um pouco de felicidade e suportar as coisas ruins da vida. Os anos ensinam isso pra gente.

    No sei se falar sobre uma perso-nagem negra e pobre um bom caminho para meu prximo livro. Poderia mudar e

    no mais escrever sobre a realidade so-cial. Quem sabe uma metafico? No meu

    primeiro livro, j havia metanarrativas, mas foram os contos mais realistas ou de cunho fantstico que chamaram a ateno da crtica. O livro infantojuvenil, sucesso editorial, na verdade um desdobramento de um conto da obra anterior, era fantasia pura. Poderia entrar no clube dos escri-tores que escrevem s sobre literatura e sobre si mesmos, com personagens escri-tores que interagem com escritores, alm de lerem e comentarem sobre outros escri-tores. a chamada literatura de escritores

  • 92 Cassionei Niches Petry

    para escritores, ou seja, aquela que lida por leitores que tambm escrevem. Parte da crtica no gosta desse tipo de escrita, enquanto outra aprova.

    Kafka escreveu que nada que no era literatura lhe interessava. Peguei esse aforismo como lema, ainda mais depois que passei a viver sozinho. No preciso de mais nada, a no ser de comida e gua. De resto, livros e o meu computador para escrever. E caf, muito caf. At dispenso a bebida e o cigarro depois que acabarem. Ler e escrever, ler e escrever. E agora es-crever sobre ler e escrever.

    81.Paula naquela noite beijou o marido e pediu des-

    culpas pelo comportamento que estava tendo. Disse tambm que no ia voltar a estudar. Gostaria, no en-tanto, de ir academia para ficar mais linda para ele.

    Paula disse tudo isso sem tirar seus culos. Num pri-meiro momento, o marido estranhou. Depois, porm,

  • 93Os culos de Paula

    foi se acostumando com a ideia e lhe deixou um di-nheiro para pagar a mensalidade.

    Acho que est tima assim, mas tambm no posso ficar prendendo voc em casa.

    No outro dia, levantou-se mais cedo do que de costume e preparou o caf. No iria ver Fred, que teria aula naquela manh. Por isso tambm no iria academia. Queria aproveitar um pouco para exercitar outra parte do corpo que estava precisando de mais exerccios e procurou algumas indicaes no blogue dele. No queria fazer um papel ruim na sua frente. No gostaria de reconquist-lo apenas com o sexo, mas tambm com cultura.

    82.Cada vez mais prximo dos 33 anos, me per-

    gunto se devo cometer suicdio. No estou sofrendo, tampouco sou depressivo. No tenho dvidas, nem desiluses amorosas. A leitura de Los suicidas, do argentino Antonio Di Benedetto me impressionou so-bremaneira, no apenas pela narrativa, mas tambm pela coincidncia de t-lo lido nesse momento. Sincro-

  • 94 Cassionei Niches Petry

    nicidade, diria Jung. A personagem principal tambm est s vsperas de completar 33 anos, mesma idade em que seu pai cometera suicdio. Teria ele herdado do pai essa sina? A idade dos que decidem morrer. No decidi ainda. No tenho motivos. preciso t-los?

    Um fato recente que no pode ser mencionado nesse dirio virtual vai fazer o rduo servio de elimi-nar minha vida. Pelo menos dar cabo dessa vida. No sei ainda como vou morrer. Mas vou.

    83.Paula via o filho lendo na sala um dos livros de

    uma srie infantojuvenil que ela lera na pr-adoles-cncia. Eram livros que lhe despertaram o interesse pela leitura. Aconteceria o mesmo com o menino? Ela esperava por isso. A roda da vida continua a girar e voltar para o mesmo lugar. Talvez seus netos seguis-sem o mesmo caminho.

    Est g


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