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NARRATIVAS INFANTIS: CONTANDO E RECONTANDO HISTÓRIAS

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira (Universidade de Brasília - UnB)

Resumo

A aquisição de narrativa de crianças pequenas se constitui como um processo que

envolve questões linguísticas, psicológicas e filosóficas. Esta pesquisa opta por trazer

um diálogo entre estas ciências sociais para a compreensão deste processo, pois

entendemos que a disciplinarização dos conteúdos restringe a complexidade do objeto

estudado. A presente pesquisa se norteia a partir do seguinte questionamento: como se

constitui o desenvolvimento da fala nos processos de aquisição de narrativas de crianças

pequenas? A partir desta questão levantada, visamos compreender o processo de

aquisição de narrativas de crianças de uma instituição pública de Educação Infantil,

observar as estratégias escolhidas pelas crianças para a atividade de reconto oral e

analisar as produções orais das crianças na atividade de reconto oral. Na abordagem

teórica discutiremos sobre a os processos de aquisição de linguagem, a relação

pensamento e fala (Vigotski 2012), o processo de desenvolvimento do discurso

narrativo (Perroni 1992) e caracterização do narrador (Benjamin 2012). A abordagem

metodológica utilizada foi Epistemologia Qualitativa de González Rey (2005, 2010).

Esta pesquisa foi realizada em uma instituição pública de Educação Infantil do Distrito

Federal; participaram da pesquisa seis crianças, três meninos e três meninas de uma

turma do 2° período da Educação Infantil. Foram realizados quatro encontros, com o

grupo de crianças para a contação de histórias, recontos orais, dramatizações, registros

pictóricos e atividades lúdicas.

Palavras-chave: narrativas infantis, literatura infantil, reconto oral

Introdução

Ouvir e recontar histórias se constitui como uma prática cultural que a

humanidade desempenha desde a Antiguidade e permanece até os dias atuais. Como

uma atividade humana que tem na centralidade da linguagem, a possibilidade de

comunicação e compartilhamento de fatos, acontecimentos, ideias e experiências. As

histórias narradas oralmente tem um papel importante na constituição social da criança.

A presente pesquisa se norteou a partir do seguinte questionamento: como se

constitui o desenvolvimento da fala nos processos de aquisição de narrativas de crianças

pequenas? A partir desta questão levantada, visamos compreender o processo de

aquisição de narrativas de crianças de uma instituição pública de Educação Infantil;

observar as estratégias escolhidas pelas crianças para a atividade de reconto oral e

analisar as produções orais das crianças na atividade de reconto oral.

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Esta pesquisa foi realizada em uma instituição pública de Educação Infantil do

Distrito Federal. Participaram da pesquisa seis crianças, três meninos e três meninas de

uma turma do 2° período da Educação Infantil, com idade entre cinco e seis anos.

Foram realizados quatro encontros, com o grupo de crianças para a contação de

histórias, recontos orais, dramatizações, registros pictóricos e atividades lúdicas.

Contudo, neste artigo analisaremos apenas a atividade de contação de histórias e reconto

oral das crianças.

A abordagem epistemológica utilizada na pesquisa foi a Epistemologia

Qualitativa de González Rey (2005b, 2010), que apresenta caráter construtivo-

interpretativo. Devido a esta característica, pesquisador e participantes são sujeitos que

constroem o processo da pesquisa em conjunto por meio do diálogo e da compreensão

do caráter subjetivo do envolvimento que ambos possam ter com a pesquisa.

Destacamos outras características da Epistemologia Qualitativa entre elas, a

identificação das zonas de sentido, que explicita o caráter de incompletude da pesquisa,

pois ao término da mesma surgem outras possibilidades para novos estudos e a

legitimação de casos singulares como instância de conhecimentos científicos, que

expressam o valor da singularidade para a compreensão interpretativa do fenômeno

empírico estudado. Assim, nessa abordagem, vão ser diversos os momentos em que o

pesquisador, durante a pesquisa, se envolve em processos de comunicação com o sujeito

estudado. No entanto, assume-se que o envolvimento com o empírico é simultâneo ao

processo de implicação intelectual com reflexões teóricas que retroalimentam esses

diversos momentos empíricos.

Este artigo apresenta uma reflexão sobre as narrativas produzidas pelas crianças

e seu desenvolvimento na constituição individual de cada um. Relembrando que o

desenvolvimento deste processo não se dá de maneira idêntica e universal para todas as

crianças, pois o desenvolvimento ocorre na unidade social-individual de maneira

recursiva, de acordo com a singularidade de cada criança. Neste diálogo, traremos as

contribuições da psicologia histórico-cultural em Vigotski (1932-2012) sobre o

desenvolvimento inicial da fala, a abordagem linguística na aquisição de narrativas em

Perroni (1992) e a reflexão filosófica de Benjamin (1936-2012) sobre o processo de

constituição do narrador.

As primeiras palavras: pensamento e fala

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O pensamento e a fala têm raízes genéticas diferentes, as duas funções se

desenvolvem ao longo de trajetórias diferentes e independentes, Vigotski (2012). O

pensamento se desenvolve inicialmente, sem estar relacionado à fala, ou seja, a fase pré-

linguística enquanto o desenvolvimento da fala passa por uma fase pré-intelectual.

“Com choro ou balbucios, o bebê utiliza seus recursos físicos para expressar emoções,

embora estes sons não apresentem relação direta com a evolução do pensamento”,

(VIGOTSKI, 2012, p.145, tradução nossa), ocorre amplo desenvolvimento da função

social da fala no primeiro ano de vida.

De acordo com Vigotski (2012), por volta dos dois anos de idade, as curvas de

desenvolvimento do pensamento e da fala se fundem, inaugurando uma nova maneira

da criança se comportar no mundo. Este fato se constitui de grande relevância para o

desenvolvimento psicológico da criança, pois nela é despertada uma vaga consciência

do sentido da linguagem e o desejo de dominá-la. Embora, a fala e o pensamento não

sejam ligados por um elo primário, ao longo deste desenvolvimento tem início uma

conexão entre ambos, que se modifica e se transforma.

A criança, neste momento em que a fala começa a servir o intelecto e os

pensamentos se tornam verbais, vivencia o despertar da curiosidade pelo significado das

palavras que resulta na ampliação do vocabulário. Neste período a criança sente a

necessidade de dominar o signo que corresponde ao objeto, que serve para nomeá-lo

para comunicar-se socialmente.

Com a sua entrada no universo das palavras, a criança está em uma nova etapa,

cujo significado das palavras se encontra a unidade do pensamento verbal, elemento

básico da construção teórica de Vigotski. A relação entre pensamento e fala é estreita no

significado das palavras, pois se apresenta como um fenômeno de pensamento à medida

que ganha corpo por meio da fala, e se torna um fenômeno da fala em que está ligada ao

pensamento. Isto é, o pensamento verbal ou fala significativa representa a união da

palavra e pensamento. O significado das palavras está relacionado às experiências

vividas e ao ambiente que está inserido o sujeito, pois está em constante movimento.

Não só as palavras estão em movimento, mas os pensamentos transitam,

estabelecem relações entre as coisas, se movendo, amadurecendo e desenvolvendo.

Vigotski (2012) ao fazer uma análise da interação entre pensamento e palavra, salienta a

necessidade de distinguir os dois planos da fala: interno (semântico) e externo

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(fonético), que formam uma verdadeira unidade, com suas próprias leis de movimento,

relembrando que esta é uma unidade complexa e não homogênea.

O som, separado do pensamento, perderia aquelas propriedades específicas que o fazem

som da fala humana e o distinguem de todos os demais sons existentes na natureza. Por

isso, em um som privado de sentido resta estudar só suas propriedades físicas e

psíquicas, ou seja, não o específico dele, mas o que tem em comum com todos os

demais sons que existem na natureza e consequentemente, este estudo não poderia

explicar porque tal som que possui tais quais propriedades físicas e psíquicas, é um som

da fala humana e que o converte como tal. (VIGOTSKI, 2012, p. 15-16, tradução nossa)

Vigotski (2012) reafirma a unidade dos planos da fala, corroborando com esta

ideia, o autor afirma que pela entoação é possível transmitir o conteúdo interno do

pensamento.

Gênese das narrativas infantis

Perroni (1992) realizou pesquisa cujo estudo longitudinal e observacional do

desenvolvimento linguístico de duas crianças brasileiras de dois a cinco anos de idade.

Com este estudo, Perroni identificou etapas no desenvolvimento do discurso narrativo

em crianças.

A aquisição da linguagem se dá, pela ação solidária de três fatores: a interação

da criança com o mundo físico, com o mundo social, ou com o outro que o representa, e

com objetos linguísticos, isto é, com enunciados efetivamente produzidos, afirma

Perroni (1992). Esta concepção de língua está baseada no princípio dialógico e social da

mesma, onde as interações verbais se constituem como um dos aspectos primordiais.

A autora apresenta o conceito de Labov (apud Perroni, 1992) de narrativa, um

método de recapitular experiências passadas fazendo corresponder uma sequência

verbal de cláusulas à sequência de eventos que efetivamente ocorreram. Nesta

perspectiva, a sequência temporal define se a recapitulação da experiência é uma

narrativa, ou não, pois os fatos relatados devem estar na mesma ordem dos fatos

ocorridos.

Perroni (1992) elenca três critérios linguísticos de identificação do texto

narrativo, sendo: existência da dependência temporal entre um evento x e outro y;

orações que expressam essa dependência temporal constituída essencialmente por

verbos de ação e o emprego do tempo perfeito. Estes critérios estão relacionados às

narrativas de adultos, porém não se aplicam a crianças muito pequenas que ainda não

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narram. Por este motivo, Perroni (1992) utiliza as histórias como elementos norteadores

da pesquisa.

Applebee (apud Perroni, 1992) afirma que contar uma história é um dos muitos

usos da língua em nossa cultura, atividade a que se associam algumas convenções como

abertura com as palavras “Era uma vez..” e o término com “viveram felizes para

sempre”. De acordo com o autor, a criança pequena logo percebe a diferença entre a

história e outras formas de discurso. E inicialmente trata-a como algo que aconteceu no

passado e não como uma construção de ficção, acompanha esta etapa, a imutabilidade

das histórias com a rigidez dos enredos

Crianças entre dois anos e dois anos e meio, ainda não são capazes de construir

sozinhas, textos que se configurem como narrativas. Neste período a criança descreve

ações por ela mesma desencadeadas, por objetos presentes e/ou antecipa atitudes que

executará em seguida, afirma Perroni (1992).

O sistema de expressões de relações temporais no léxico da criança é caracterizado

nessa fase pela presença exclusivamente de agora, ao lado de expressões aspectuais: já,

pronto, outra vez e ainda. Esta é a fase em que a expressão agora é predominantemente

empregada pelas crianças como índice de atualidade, em relação ao momento da

interação, dos eventos/ações objeto de comentário. (PERRONI, 1992, p. 40)

Desde as primeiras tentativas de narração, os interlocutores (adulto e criança)

têm papéis definidos neste processo de interação verbal. O adulto tem papel ativo nesta

fase inicial, dirigindo às crianças perguntas, que respondidas ajudam no surgimento do

discurso narrativo, sua função é ajudar a criança a lembrar sob a forma de discurso, o

que ela pretende contar. Esta atuação do adulto é chamada de eliciação, conceitua

Perroni (1992). Devido ao conteúdo teórico deste conceito, gostaríamos de fazer um

breve comentário, pois entendemos que o adulto é um colaborador neste momento, pois

não entendemos que o “estímulo” dado por ele refletirá imediatamente na “resposta”

dada pela criança, mas o contexto dialógico das interações verbais representa melhor

esta ação.

Outro conceito explicado por Perroni (1992) é a protonarrativa, que por seu

caráter embrionário, ainda não se constitui uma narrativa, porém evidencia a natureza

dialógica. Demonstram um caráter preparatório de um comportamento emergente nos

meses seguintes e são percebidas como estruturas embrionárias do discurso narrativo.

Pois, “surgem, portanto, em resposta a perguntas [...] que o adulto aos poucos vai

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acrescentando e que requerem da criança o preenchimento de elementos dentro de uma

estrutura típica de discurso narrativo.” (PERRONI, 1992, p. 53)

Nesta fase a criança está em contato com dois modos diferentes de acesso à

estrutura do discurso narrativo: a) o jogo de contar, um processo no qual o relato vai

sendo construído a partir de perguntas e respostas; b)histórias contadas pelo adulto, que

ao contrário do jogo, apresenta estrutura rígida. Perroni (1992) alerta que a criança

necessita participar da construção de narrativas dos dois modos, inclusive criando suas

histórias, que não necessitam ser exclusivamente recontos de histórias já conhecidas.

O jogo de contar surge, portanto, em um momento em que o estabelecimento de turnos

e de papéis no diálogo já se deu e funciona como um esquema de interação específico,

cujas regras são importantes para a construção de expectativas, pela criança, da natureza

do discurso. (PERRONI, 1992, p.68)

Conforme, a criança vai progredindo no trabalho de construir narrativas, seu

papel muda de complementar a recíproco, no sentido de sua constituição como locutor e

posteriormente, como sujeito da enunciação, afirma Perroni (1992). Nesta perspectiva, a

criança vivencia estruturas de narrativas diferentes, que a constituirão como

protagonista no processo.

Com o avanço na função de narrador, onde a capacidade de estabelecer pontos de

referência partilháveis com o interlocutor para a ordenação temporal de eventos é

evidenciada, a criança começa a criar personagens na narrativa independentes do

narrador, isto é, que já tem voz, afirma Perroni (1992, p.159). Os papéis dos

interlocutores adulto/criança começam a ser invertidos e a criança assume o “comando”

na narrativa, se mostrando mais ativa. Neste momento do desenvolvimento linguístico,

a criança se reconhece como o narrador e interlocutor, há uma relação mais equilibrada

entre adulto e criança.

Quem quer narrar uma história?

Benjamin (1936-2012) com seu olhar reflexivo sobre a modernidade, afirma que

esta trará a extinção das narrativas, que ao longo do tempo foram se modificando e estão

caminhando para o desaparecimento. Segundo o autor o espaço que antigamente era

ocupado pelas narrativas está sendo ocupado pela informação. Benjamin (2012) percebe

isto no início do século XX, o que então diríamos hoje em pleno século XXI sobre este

assunto? “A cada manhã recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos

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pobres em histórias surpreendentes [...] Em outras palavras: quase nada que acontece é

favorável à narrativa.” (BENJAMIN, 2012, p.219)

Para o autor a experiência vivida oferece os elementos necessários às narrativas,

de sorte que estas vão sendo passadas de boca em boca. E este tipo de narrativa se

constitui como a fonte em que recorreram todos os narradores. Porém, o narrador agrega

a esta narrativa, elementos da sua experiência e da experiência dos ouvintes, como no

ditado popular: “Quem conta um conto aumenta um ponto.” Este movimento na

narrativa, possibilita ao narrador “pintar com cores mais fortes” as partes da história,

que de certo modo, mobiliza a atenção dos ouvintes.

O narrador retira o que conta da própria experiência: da sua própria experiência ou da

relatada por outros. E incorpora por sua vez, às coisas narradas a experiência dos

ouvintes. (BENJAMIN, 2012, p.216)

Como já foi dito anteriormente, o ato de ouvir histórias se constitui como uma

prática cultural desde a antiguidade, por meio delas a humanidade escreveu sua história

ao longo dos séculos. E quanto mais uma história era ouvida, mais começava a fazer

parte da vida daquela pessoa ou comunidade. A repetição de histórias é uma prática

comum entre as crianças pequenas, que quando gostam de determinada história,

solicitam ouvi-la inúmeras vezes. Benjamin (2012) atribui à prática laboral coletiva a

continuidade das narrativas, pois enquanto as pessoas mantinham o corpo ocupado, suas

mentes eram povoadas por inúmeras histórias.

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as

histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece

enquanto ouve uma história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais

profundamente se grava nele o que é ouvido. (BENJAMIN, 2012, p.221)

Como promover nos dias atuais o desenvolvimento desta prática? Como e onde

oferecer este momento coletivo para as nossas crianças ouvirem histórias? Será em casa,

onde a TV, computador e celulares ocupam a centralidade? Será na escola, onde muitas

vezes, nenhuma história é sequer lida para as crianças? Será nos espaços públicos, local

onde as crianças são muitas vezes invisíveis? Estes questionamentos nos ajudam a

pensar sobre a condição da contemporaneidade em criar uma geração cada vez mais

individualista e muda em relação às práticas narrativas. Pois, se constituir como

narrador, parte do princípio de ouvir e ouvir muitas e muitas histórias, que pouco a

pouco vão constituindo este ser, que não domina apenas o código, mas recheia de

experiências suas e/ou dos outros, suas próprias narrativas. “O narrador infunde a sua

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substância mais íntima também naquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom é poder

contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira.” (BENJAMIN, 2012a, p.240)

Episódio da história Chapeuzinho Vermelho e reconto oral das crianças

O encontro iniciou com a contação da história Chapeuzinho Vermelho, as crianças

participaram do momento, prestando atenção na história. Utilizei na contação recursos

vocais como mudança de voz dos personagens e alguns efeitos sonoros como bater na

capa do livro, quando bater na porta. Quando terminou a história surgiu uma discussão

sobre o livro, onde Juliane estabeleceu relação com o livro que havia sido lido no

encontro anterior Agora não, Bernardo i e levantou o questionamento se a avó teria sido

mastigada pelo lobo, que gerou uma discussão, onde as demais crianças disseram que

não. Que ela havia sido engolida inteira pelo lobo. Propus que recontassem a história e

Juliane se prontificou em ser a primeira. Ela contou a história com desenvoltura,

inclusive fazendo as mudanças de vozes de acordo com cada personagem, dando espaço

entre um período e outro e também utilizando tons diferenciados. As demais crianças se

mostraram tímidas e não quiseram fazer o reconto inicialmente, então Juliane propôs

que utilizássemos o livro para que os colegas se lembrassem da história. Guilherme

recontou a história utilizando as imagens que foram passadas por mim. Kamily e Maria

Clara aceitaram fazer o reconto em dupla, onde uma falava um turno e a outra falava o

outro, inclusive no diálogo do Lobo e da Chapeuzinho Vermelho. Diego recontou a

história com apoio do livro, porém suas sentenças não eram completas, omitindo

algumas partes da frase, como o nome dos personagens, narrando apenas a ação

representada pelos personagens. Gabriel recontou a história com desenvoltura, porém

dava curtos espaços de uma sentença para a outra. Após todos recontarem a história

perguntei o que tinha sido mais difícil na atividade e Juliane que foi a primeira a

responder, entendeu a pergunta como qual seria a parte mais difícil da história e

respondeu: “Quando o Lobo come a Vovó.” As demais crianças seguiram a mesma

lógica nas respostas. Então perguntei qual seria a parte mais fácil e eles responderam a

parte que mais gostaram, sempre se remetendo ao castigo do Lobo e ao salvamento da

Vovó. Guilherme se lembrou da versão que o lobo coloca a vovó no armário e disse

que era a que mais gostava, porque não tinha morte. As demais crianças concordaram

com ele, alegando que histórias com morte como esta e a do Bernardo eram tristes.

(NOTAS DO DIÁRIO DE CAMPO, 05/12/2013)

Neste episódio, quando foi iniciada a contação da história Chapeuzinho

Vermelho, as crianças ficaram atentas à história, mesmo sendo uma história já

conhecida por todos ali presentes. À medida que ia contando a história, seus olhares

acompanhavam a ilustração do livro, mas já iam se antecipando às falas dos

personagens. Mesmo assim, dialogando com a história, se mantinham concentradas. O

que faz com que estas crianças se mobilizem para ouvir uma história já conhecida?

Perroni (1992) afirma que neste período do desenvolvimento, as crianças tem

preferência por história com enredos fixos. Mesmo sabendo que o Lobo enganará a

Vovó na história, elas permanecem torcendo para ela não abrir, quando o Lobo bate na

porta da casa.

Justificando o argumento de Perroni (1992) sobre a preferência das crianças,

trazemos a centralidade das emoções neste processo de interação da criança com o

objeto artístico (história), ou seja, neste momento de apreciação da história a criança

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vivencia emoções que parecem biológicas (medo, euforia, ansiedade, alegria) que na

verdade são culturais, pois estão relacionadas a experiência social, Vigotski (2001)

explica a emoção na arte.

A arte introduz cada vez mais a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a

vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas

emoções, paixões, vícios que sem ela teriam permanecido indeterminadas e imóveis.

Seria mais correto dizer que o sentimento não se torna social, ao contrário, torna-se

pessoal, quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem

com isso deixar de continuar social. (VIGOTSKI, 2001, p.315)

A experiência na interação com a história ouvida é singular para cada sujeito

envolvido na atividade, para quem conta e também para cada um dos que ouvem. As

emoções como dissemos anteriormente são centrais neste processo, em que sentidos

atribuídos também são diversos.

No episódio citado, quando Juliane relaciona a história de Chapeuzinho

Vermelho à história do Bernardo, percebendo alguma semelhança no enredo, uma

pessoa (Bernardo/Vovó) devorada por um ser não humano (monstro/Lobo), podemos

afirmar que ela busca na sua vivência enquanto ouvinte das histórias, um novo sentido

dado a história Chapeuzinho Vermelho. Esta relação, denominada de intertextualidade,

utiliza o seu conhecimento de mundo, relacionando textos diferentes. A sua pergunta se

a Vovó havia sido mastigada pelo Lobo, que causou um produtivo debate entre as

crianças, representa este nova relação estabelecida, adicionada ao seu repertório. As

crianças disseram que a Vovó havia sido engolida inteira, pois caso contrário como o

Caçador a tiraria da barriga do Lobo “sã e salva” como diz o texto.

Perroni (1992) afirma que os questionamentos sobre ficção e fatos ocorrem por

volta dos cinco anos de idade, porém destacamos que não compreendemos o

desenvolvimento infantil estruturado de forma tão rígida, mas percebemos na fala das

crianças esta preocupação com a verossimilhança da história. Pois na história do

Bernardo, o monstro o engoliu “pedacinho por pedacinho” e ele não reaparece no final

da história como a Vovó, daí a conclusão que foi engolida inteira, mesmo que na

realidade um lobo não consiga engolir uma pessoa, mas para a lógica interna da história

é plausível.

A atividade do reconto oral individual da história nos permitiu observar e refletir

sobre as estratégias escolhidas pelas crianças e o desenvolvimento do discurso narrativo

de cada uma delas, embora não tenhamos as transcrições das narrativas, utilizaremos as

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notas do diário de campo nesta breve análise. Quando a atividade foi apresentada para

as crianças, houve uma resistência de participação por parte delas, contudo Juliane se

habilita em ser a primeira. Conforme está descrito no relato do episódio citado:

Propus que recontassem a história e Juliane se prontificou em ser a primeira. Ela contou

a história com desenvoltura, inclusive fazendo as mudanças de vozes de acordo com

cada personagem, dando espaço entre um período e outro e também utilizando tons

diferenciados. ( NOTAS DO DIÁRIO DE CAMPO, 05/12/2013)

Juliane teve um ótimo desempenho no reconto oral individual, que pode ter sido

um dos motivos da inibição dos colegas, contudo levantamos também como possíveis

motivos a não utilização deste tipo de atividade no cotidiano escolar, pois exige um

trabalho de recuperação da história (memória), articulação verbal na narrativa e atenção

do grupo para ouvir quem está recontando a história. Compreendemos a atividade de

reconto oral como uma atividade complexa que envolve as funções psíquicas superiores,

alinhado à concepção de unidade entre o pensamento e fala, Vigotski (2012):

Temos encontrado esta unidade que reflete de forma elementar a união do pensamento e

da fala no significado da palavra. O significado da palavra, como temos tentado

esclarecer, constitui a unidade indivisível de ambos processos, sobre o que não pode

dizer que é um fenômeno da fala ou um fenômeno do pensamento. (VIGOTSKI, 2012,

p.426, tradução nossa)

Para incentivar o grupo a participar da atividade, Juliane sugeriu a utilização das

imagens do livro para auxiliar aos demais colegas na narrativa da história Chapeuzinho

Vermelho. Perroni (1992) afirma que por volta dos quatro anos de idade, a criança

assume gradativamente um papel cada vez mais ativo e autônomo na construção de

narrativas, constituindo com o adulto como interlocutor, em situações que tendem a ser

simétricas, com participação da criança e do adulto de maneira equilibrada, ou seja, não

está condicionado à intervenção do adulto para construir sua narrativa.

O apoio da imagem/objeto presente na ação narrativa permitiu que as crianças

elaborassem seu reconto oral, embora o recurso utilizado tenha sido o mesmo, as formas

de narrar foram singulares, como as crianças também são. Conforme o relato do

episódio:

Guilherme recontou a história utilizando as imagens que foram passadas por mim.

Kamily e Maria Clara aceitaram fazer o reconto em dupla, onde uma falava um turno e

a outra falava o outro, inclusive no diálogo do Lobo e da Chapeuzinho Vermelho. A

interação verbal das duas foi muito boa. Diego recontou a história com apoio do livro,

porém suas sentenças não eram completas, omitindo algumas partes da frase, como o

nome dos personagens, narrando apenas a ação. Gabriel recontou a história com

desenvoltura, porém dava curtos espaços de uma sentença para a outra. (NOTAS DO

DIÁRIO DE CAMPO, 05/12/2013)

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Gostaríamos de destacar a atitude de Kamily e Maria Clara que recontaram a

história em parceria. Nesta ação podemos perceber que ambas não se sentiam seguras

em realizar a atividade sozinha e queriam o apoio de outro na narrativa, embora

conhecessem a história muito bem. O reconto oral realizado pelas meninas se parecia

com um jogral, onde cada uma assumia a sua fala na história, inclusive se desprendendo

da ilustração do livro, reafirmando o conhecimento prévio da história. Analisamos a

colaboração entre elas que proporcionou a execução da atividade proposta, como uma

atitude de cooperação de superação da dificuldade inicialmente apresentada na

atividade. Em contrapartida, percebemos no reconto oral de Diego, um forte apoio na

ilustração inclusive restringindo as suas construções verbais, pois as frases eram

compostas apenas por ações, pois para ele os personagens não precisavam ser nomeados

por estarem na imagem apresentada, esta ação nos levanta um questionamento. Será a

imagem um elemento facilitador ou o narrador precisa ter autonomia para narrar

independente da imagem?

Perroni (1992) explica que determinados tipos de livros favorecem o

desenvolvimento do discurso narrativo pelas crianças, enquanto outros tipos até

atrapalham, o tipo descritivos, onde não ocorre uma narrativa, pois a criança apresenta

dificuldade para narrar e criar a narrativa ao mesmo tempo. Porém, quando a criança

utiliza como apoio livros que trazem uma narrativa preexistente, ela “narra” melhor.

Baseados nestas afirmações de Perroni (1992), percebemos que a ideia da pequena

Juliane em utilizar o livro para ajudar os seus colegas a “lembrarem” da história foi

muito original e produtiva para o grupo de crianças na realização da atividade proposta.

Considerações Finais

Os sentidos atribuídos a esta atividade de reconto oral pelas crianças são

singulares, pois cada indivíduo é singular na sua constituição histórica, social e

subjetiva. Podemos ilustrar nossa fala com o caso desta criança e não apenas pelas suas

palavras, mas também pelas atitudes um envolvimento substancial da Juliane enquanto

participante da dinâmica deste grupo, ela assumiu uma postura ativa, crítica, intencional

e criativa neste processo de construção das informações da pesquisa. Ela se inscreveu

neste processo enquanto sujeito que aprende, organizando, apresentando sugestões,

embora em alguns momentos, assumisse a centralidade nas ações do grupo, às vezes

impedindo a atuação das outras crianças durante o processo empírico.

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Page 12: NARRATIVAS INFANTIS: CONTANDO E RECONTANDO … NARRATIVAS INFANTIS... · Palavras-chave: narrativas infantis, literatura infantil, reconto oral Introdução Ouvir e recontar histórias

Com o princípio dialógico e social da língua, as interações verbais se constituem

como aspectos primordiais para o seu desenvolvimento. Isto inclui a prática de ouvir,

contar e/ou recontar histórias, pois na colaboração com o outro há momentos de trocas

(emocionais/ sociais) e que faz em quem vivencia a atribuir sentidos diferenciados à

mesma experiência. Percebemos que o desenvolvimento da fala nos processos de

aquisição de narrativas de crianças pequenas se constitui de modo singular, pois cada

criança é única em suas experiências e na maneira em que significam cada uma de suas

vivências.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e

história da cultura. 8ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e

desafios. São Paulo: Cengage Learning, 2005.

GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de

construção da informação. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

PERRONI, Maria Cecília. O desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo:

Martins Fontes, 1992.

VIGOTSKI, Lev. Obras Escogidas. Volume V, Fundamentos da Defectologia,

Madrid: Visor, 1997.

VIGOTSKI, Lev. Pensamiento y habla.- 1ª ed.-Buenos Aires: Colihue, 2012.

VIGOTSKI, Lev. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

i O livro Agora não, Bernardo de David Mckee, conta a história de um menino que encontrou um

monstro no jardim de sua casa que o devorou. O monstro assume o lugar de Bernardo em casa e ninguém

da família percebe.

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