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Dimensões da GlobalizaçãoO Capital e Suas Contradições

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Projeto Editorial Praxishttp://editorapraxis.cjb.net

“Trabalho e Mundialização do CapitalA Nova Degradação do Trabalho na Era da Globalização”

Giovanni Alves

“Dimensões da GlobalizaçãoO Capital e Suas Contradições”

Giovanni Alves

Série Risco Radical

1 - “O Outro Virtual - Ensaios sobre a Internet”Giovanni Alves, Vinicio Martinez , Marcos Alvarez, Paula Carolei

2 - “Democracia Virtual - O Nascimento do Cidadão Fractal”Vinicio Martinez

3 - “Leviatã - Ensaios de Teoria Política”Marcelo Fernandes de Oliveira

4 - “Trabalho e Globalização - A Crise do Sindicalismo Propositivo”Ariovaldo de Oliveira Santos

Pedidos através do e-mail [email protected]

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Giovanni Alves

Dimensõesda

Globalização O Capital e Suas Contradições

PraxisLondrina

2001

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Copyright © do Autor, 2001

ISBN 85-901933-1-4

Capa e Diagramação: Giovanni Alves

2ª Tiragem

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) InternacionalBibliotecária Responsável: Ilza Almeida de Andrade CRB 9/882

A474d Alves, GiovanniDimensões da globalização : o capital e suas contradições

/ Giovanni Alves. – Londrina : G. A. P. Alves, 2001.220p. ; 21cm

ISBN 85-901933-1-4

1. Globalização. 2. Capital (Economia). 3. Trabalho. I. Título.

CDU 339.9

PraxisFree edition

home-page: http://editorapraxis.cjb.net

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

2001

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Sumário

APRESENTAÇÃO

PARTE 1Dimensões da Globalização

Capítulo 1Introdução

Capítulo 2Globalização Como Ideologia

Capítulo 3Globalização Como Mundialização do Capital

Capítulo 4Globalização Como Processo CivilizatórioHumano-Genérico

Parte 2Sociologia da Globalização

Capítulo 5A Globalização Na Perspectiva dosClássicos da Sociologia

Capítulo 6Weber e a Globalização ComoRacionalização do Mundo

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Capítulo 7Durkheim e a Globalização comoFonte de Solidariedade Social

Capítulo 8Marx e a Globalização comoLógica do Capital

Parte IIIGlobalização e Trabalho

Capítulo 9Toyotismo Como Ideologia Orgânica daProdução Capitalista

Capítulo 10Toyotismo e Neocorporativismo Sindicalno Século XXI

Capítulo 11Dimensões do Proletariado Tardio

Bibliografia

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Apresentação

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Apresentação

O livro Dimensões da Globalização é um resultado teórico-prático de um percurso de reflexão intelectual buscando compreender, numa perspectiva

dialética, um tema maldito: o problema da globalização. É umlivro de ensaios, o que significa que possui ainda um caráteriniciático e inacabado, sugerindo algumas linhas de reflexões queprocuram sair do lugar-comum sobre a discussão da“globalização”. Procuramos organizar o livro em 3 partes – aprimeira, que dá título ao livro : Dimensões da Globalização; asegunda, Sociologia da Globalização e a terceira, Globalizaçãoe Trabalho.

A primeira parte do livro procura desenvolver umainterpretação original do processo de globalização, procurandoapreender seu caráter dialético e amplamente contraditório.Buscamos evitar as unilaterialidades perenes dos apologistas daglobalização e dos seus críticos vorazes. Procuramos ensaiaruma crítica mordaz da globalização como mundialização docapital, mas sem deixar de perceber que, na medida em querepresenta o desenvolvimento amplo e contraditório do capitalismomoderno, a globalização é um processo civilizatório humano-genérico prenhe de promessas de uma nova civilização humano-genérica, profundamente frustradas pelo sistema orgânico docapital.

Portanto, a globalização, é, ao mesmo tempo, a promessa e afrustração de uma realização histórico-social do gênero humano e aprova cabal de que o sistema do capital, com sua sanha incontrolávelnão oferece nenhuma perspectiva de futuro para a humanidade.

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Dimensões da Globalização

A tarefa intelectual suprema, na virado do século XXI, éresgatar, mais do que nunca, a crítica radical do capital. Naverdade, é o capital e sua incontrolável globalização que nosoferece a oportunidade histórica de atualizarmos a sua críticasocial radical numa perspectiva histórico-materialista e dialética.

Na segunda parte, intitulada Sociologia da Globalização,procuramos reunir alguns ensaios que tratam de abordagenssociológicas sobre o tema da “globalização”. Nesse caso,salientamos leituras de um dos sociólogos brasileiros mais prolíficosno tratamento do tema “globalização” – Octávio Ianni.Procuramos resgatar em sua obra, particularmente no livroTeorias da Globalização, a contribuição de Marx e Weber parauma interpretação da globalização. O ensaio sobre Durkheim,um dos autores clássicos da sociologia, pouco utilizado por Ianniem suas reflexões sociológicas sobre o tema “globalização”,procura resgatar alguma contribuição do sociólogo francês parauma interpretação da globalização.

É lógico que, ao tratarmos dos clássicos da sociologia, aodizermos “globalização”, dizemos desenvolvimento docapitalismo moderno. Nesse caso, a globalização aparece comoum momento tardio de desenvolvimento do capitalismo moderno.Na medida em que os clássicos da sociologia tratam dodesenvolvimento do capitalismo moderno, eles têm alguma coisaa nos dizer sobre a globalização, mesmo sabendo que, para nós,em sua particularidade histórico-concreta, a globalização émundialização do capital no sentido dado por Chesnais.

Finalmente, na parte 3, Globalização e Trabalho, reunimosalguns ensaios sobre um objeto de estudo que temos tratado nosúltimos anos (em 1999, publicamos pela Editora Práxis o livroTrabalho e Mundialização do Capital, e em 2000, pela EditoraBoitempo, publicamos o livro O Novo (e Precário) Mundo doTrabalho). Estamos, portanto, em nossa área de especialização.Na verdade, são ensaios publicados em algumas revistas e quetrazem reflexões sobre a nova lógica de organização capitalista

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Apresentação

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(só compreensível a partir da mundialização do capital) e seusimpactos na objetividade e subjetividade do mundo do trabalho.

O primeiro ensaio, “Toyotismo Como Ideologia Orgânica daProdução Capitalista”, saiu publicado na Revista Organizaçõese Democracia, em 2000; o segundo ensaio, “Toyotismo eNeocorporativismo no Sindicalismo do Século XXI” saiu publicadona Revista Outubro, em 2001; o último ensaio, “Dimensões doProletariado Tardio”, saiu publicado na Revista Debate Sindical,em 2000.

Mais uma vez, ressaltamos o caráter ensaístico do livro,totalmente aberto a críticas e sugestões. Não poderíamos deixarde abrir à discussão pública alguns resultados teóricos aindapreliminares de nossa pesquisa sobre as dimensões daglobalização. É um resultado, portanto, de leituras de váriosautores, economistas, sociólogos e politicologos – nacionais eestrangeiros, que tratam de questões pertinentes à nova lógicado capitalismo mundial. Agradecemos, portanto, a todos aquelesque contribuíram, de algum modo, para a nossa reflexão crítica.Procuramos nos apropriar de tais reflexões críticas e constituiruma interpretação dialética da “globalização” que procureresgata-la em sua dimensão contraditória plena.

Marília, 21 de abril de 2001

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“[A integração dos indivíduos conflitantes, através do trabalhoabstrato e da troca], estabelece, pois um vasto sistema comunitárioe de mutua interdependência, uma vida ativa de mortos. Este sistemamove-se daqui para lá, de modo cego e elementar e, tal como umanimal selvagem, exige rigoroso e permanente controle e repressão”

Hegel

“Hoje em dia tudo parece levar em seu seio sua própria contradição.Vemos que as máquinas, dotadas da propriedade maravilhosa dereduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome eo esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertasse convertem por artes de um estranho malefício, em fontes deprivações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço dequalidades morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vezmaior; mas ao mesmo tempo, o homem se transforma em escravo deoutros homens ou da sua própria infâmia.”

Karl Marx

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Dimensões da

Globalização

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Introdução

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1Introdução

É do nosso interesse demonstrar que a globalização é umfenômeno sócio-histórico intrinsecamente contraditório ecomplexo que caracteriza, em nossa perspectiva, uma nova etapade desenvolvimento do capitalismo moderno.

Procuraremos salientar que o fenômeno da globalização éresultado de múltiplas determinações sócio-históricas (eideológicas), isto é, destacaremos as três dimensões daglobalização que não podem ser separadas e que compõem umatotalidade concreta sócio-histórica, completa e integral. São elas:

1. A globalização como ideologia2. A globalização como mundialização do capital3. A globalização como processo civilizatório humano-genérico

Portanto, o fenômeno da globalização tende a constituir novasdeterminações sócio-históricas no (1) plano da ideologia e dapolítica; (2) no plano da economia e da sociedade e (3) no planodo processo civilizatório humano-genérico, vinculado aodesenvolvimento das forças produtivas humanas.

O que significa dizermos que tais dimensões da globalizaçãocompõem uma totalidade histórico-social intrinsecamentecontraditória?

As dimensões da globalização são contraditórias entre si, tendoem vista que, como iremos salientar, a ideologia (e a política)da globalização tende a “ocultar” e legitimar a lógica desigual eexcludente da mundialização do capital e a mundialização

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do capital tende a impulsionar, em si, o processo civilizatóriohumano-genérico, isto é, o desenvolvimento das forçasprodutivas humanas, que são limitadas (ou obstaculizadas)- pelopróprio conteúdo da mundialização (ser a mundialização docapital).

Qualquer leitura (ou análise) do fenômeno da globalizaçãoque não procure apreender o seu sentido dialético – e portanto,contraditório - tende a ser unilateral, não sendo capaz de ver ofenômeno da globalização tanto como algo progressivo, quantoregressivo, tanto como um processo civilizatório, quanto comoum avanço da barbárie, e tanto como a constituição de um “globo”na mesma medida em que tente a contribuir para a sedimentaçãode particularismo locais e regionais.

Conceitos

Seria importante recuperar o significado de alguns conceitostais como “globalitarismo”, “globalismo”, “globalidade” e“glocalização”. São expressões utilizadas por alguns autores nodebate da globalização. De certo modo, procuraremos ver, emcada um dos conceitos acima, as dimensões da globalização queprocuraremos salientar (a globalização como ideologia, aglobalização como mundialização do capital e a globalização comoprocesso civilizatório humano-genérico).Globalitarismo

A idéia de regimes globalitários, utilizada por IgnácioRamonet no seu livro “Geopolítica do caos” (1997), procuraressaltar o próprio sentido ideológico (e político) da globalização.É uma noção que diz respeito, principalmente, a globalização comoideologia. Na verdade, é um termo cunhado para ser utilizadocomo uma contra-ideologia da globalização, ou melhor, contrapor-se (ou justapor-se) à idéia de globalização. Ela explicita overdadeiro conteúdo da globalização como mundialização docapital: o totalitarismo do mercado.

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Introdução

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Portanto, a idéia de globalitarismo expressa uma críticavisceral à globalização como ideologia do império universal doOcidente (Del Roio, 1998). Ela surge para se contrapor (ou expor)a globalização como a ideologia e a política de um novototalitarismo. Não o totalitarismo do Estado, que caracterizouos regimes fascistas dos anos 30, mas um totalitarismo domercado, do “pensamento único”, expressão utilizada paracaracterizar o pensamento neoliberal, que é divulgado pelosaparatos de mídia e pelas políticas levadas a cabo pelos governosliberais (o jornal Le Monde Diplomatique, onde Ramonet éjornalista, é um dos principais órgãos de crítica da globalização).

Vejamos com atenção a idéia de um totalitarismo de mercado,implícita no conceito de regimes globalitários. Diz Ramonet:

Há pouco tempo, denominava-se ‘regimes totalitários’ osque tinham partido único, não admitiam qualquer oposiçãoorganizada e, em nome da razão de Estado, negligenciavamos direitos da pessoa; além disso, neles, o poder políticodirigia soberanamente a totalidade das atividades dasociedade dominada. A esses regimes, característicos dosanos 30, sucede, neste final de século, um outro tipo detotalitarismo, o dos ‘regimes globalitários’. Apoiando-senos dogmas da globalização e do pensamento único, nãoadmitem qualquer outra política econômica, negligenciamos direitos sociais do cidadão em nome da razão competitivae abandonam aos mercados financeiros à direção total dasatividades da sociedade dominada (Ramonet, 1998)

A longa citação serviu para expor, com clareza, a idéia deglobalitarismo como sendo o totalitarismo do mercado quesucede ou se justapõe a um outro tipo de totalitarismo, o deEstado.

Numa época em que se dissemina pelo Ocidente a idéia dedemocracia política, de que todos nós vivemos em regimesdemocráticos, plenamente legitimados pelo sufrágio universal, aidéia de um novo totalitarismo talvez possa soar como algo

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estranho.Mas o totalitarismo da globalização não se dá mais soba direção do Estado, mas sim da economia:

O Estado deixou de ser totalitário, enquanto, na era damundialização, a economia tende cada vez vir a sê-lo(Ramonet, 1998)

Deste modo, para ele, a globalização oculta o totalitarismo daeconomia, o que não é novidade, tendo em vista que é próprio domodo de produção capitalista o primado da economia sobrequaisquer outras esferas da vida social.

Só que, talvez seja isto que Ramonet queira destacar, sob aglobalização, o primado da economia aparece com mais vigor, talcomo um totalitarismo de mercado que neutraliza os própriosavanços da democracia no Ocidente.

A idéia de globalitarismo supõe a debilidade estrutural dosEstados. Sob o regime globalitário, os Estados não têm meios dese opor aos mercados. A globalização liquidou o mercadonacional, que é um dos fundamentos do poder do Estado-nação.

A globalização, sustentada por regimes globalitários, isto é,governos que promulgaram o monetarismo, a desregulamentação,o livre-comércio, o livre fluxo de capitais e as privatizaçõesmaciças, tenderam a diminuir o papel dos poderes públicos.

Veja bem: a globalização é, portanto, resultado, nessaperspectiva, de regimes globalitários, de dirigentes políticos quepermitiram, através de atos políticos, a transferência de decisõescapitais (em matéria de investimento, emprego, saúde, educação,cultura, proteção do meio ambiente) da esfera pública para aesfera privada.

Foram os políticos liberais e conservadores que permitiram aprivatização da coisa pública, contribuindo para que algumasdecisões importantes para a vida social passasem para as mãosda economia privada.

Quando dizemos economia privada, dizemos mercado, que érepresentado (e determinado) pelas empresas, conglomerados e

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Introdução

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corporações transnacionais. A vida social, deste modo, passa aser mais determinada ainda pela esfera privada que não possuenenhum compromisso social, nem preocupação com a qualidadedo emprego, saúde, educação, cultura e meio ambiente, masapenas com a quantidade de riqueza abstrata, ou dinheiro, que éacumulada por tal atividade de negócio.

Ramonet destaca o poder das corporações transnacionais quesão, para ele, as principais beneficiárias dos regimes globalitários.Por exemplo: atualmente, entre as duzentas primeiras economias domundo, mais da metade não são países, mas empresas:

O volume de negócios da General Motors é mais elevado doque o produto nacional bruto (PNB) da Dinamarca; o daFord é mais importante do que o PNB da África do Sul; e oda Toyota supera o PNB da Noruega (Ramonet, 1998)

Ramonet ressalta algo que iremos desenvolver mais adiante,ao tratarmos da globalização como mundialização do capital. Dizele que uma Ford, Toyota ou General Motors, por exemplo,pertencem ao campo da economia real, isto é, produz e trocabens e serviços concretos. Mas, nos últimos trinta anos, os “novossenhores da globalização” são os gestores do mercado financeiro,os fundos de pensão e os fundos comuns de investimentos quedominam os mercados financeiros e que movimentam, por dia,trilhões de dólares. Na verdade são eles que, em linguagem deespecialista, a imprensa econômica denomina “os mercados”:

Do mesmo modo que os grandes bancos ditaram, no séculoXIX, qual deveria ser a atitude de numerosos países, oucomo as empresas multinacionais procederam entre os anos60 e 80, daqui em diante os fundos privados dos mercadosfinanceiros detêm em seu poder o destino de muitos países.E, em certa medida, o destino econômico do mundo.

Ramonet continua destacando (em 1997, portanto, poucoantes da crise asiática):

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Que, amanhã, [os fundos privados dos mercadosfinanceiros] cessem de ter confiança na China (onde osinvestimentos estrangeiros diretos atingiram, em 1994, US$32 bilhões) e, como se fossem peças de dominó, os paísesmais expostos (Hungria, Argentina, Brasil, Turquia, Tailândia,Indonésia...) veriam os capitais se retirar sob o impacto dopânico, provocando sua falência e a falência do sistema(Ramonet, 1998)

Ao apresentarmos a globalização como mundialização docapital iremos nos aprofundar no aspecto da mundializaçãofinanceira, que, pode ser considerada um traço fundamental (efundante) da globalização.

Deste modo, regimes globalitários são regimes políticos que“assasinaram” a política, concebida como gestão da coisa pública,em prol do poder do mercado, dos grupos multinacionais quedominam setores importantes da economia dos Estados do Sul –tais como o Brasil e, inclusive, do Norte.

A globalização e a desregulamentação da economia, levadaa cabo pelos regimes globalitários, favoreceram a emergênciade novos poderes que, com a ajuda das novas tecnologias dainformática e da telemática, transbordam e transgridem,incessantemente, as estruturas estatais.

Para Ramonet, portanto, a idéia de globalitarismo diz respeitoa um regime político que contribui para a dissolução do poder doEstado e da esfera pública (em prol do mercado e da esferaprivada). O que se denomina “mercado” corresponde àsempresas, conglomerados e corporações transnacionais e,principalmente, o mercado financeiro que possui como principalgestor não apenas os bancos, mas os fundos de pensão e osfundos mútuos de investimentos, americanos e japoneses.

A idéia de globalitarismo diz respeito a um regime políticoque incentiva o livre comércio – um dos dogmas neoliberais,sustentados pelas políticas da OMC. Ao dizer livre-comércio,

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queremos dizer o livre fluxo de capitais, de investimentos e debens e serviços (a “trindade” neoliberal) (Cassen,1999).

Ao tratarmos da ideologia (e da política) neoliberal no tópicoda globalização como ideologia, iremos nos aprofundar nessacaracterização do globalitarismo. O que precisa ser ressaltado éque, para os críticos da globalização neoliberal (termocomumente utilizado) o livre-comércio de dinheiro e mercadoriasdissolve não apenas o Estado-nação, mas, como iremos destacarlogo mais, a cultura dos povos.

É claro que a multiplicação incrível das trocas e dos fluxoscomerciais e financeiros que ocorreu nos últimos trinta anos teveo apoio decisivo das revoluções tecnológicas nas comunicaçõese transportes, principalmente a informática e telemática. Tudoisso contribuiu para a interpenetração dos mercados industriais,comerciais e financeiros (o que coloca, segundo Ramonet,problemas para a própria natureza da empresa capitalista global).

Portanto, além do “assassinato da política” e da dissoluçãoda democracia republicana e do Estado-nação em prol dototalitarismo dos mercados, a idéia (e a realidade) da globalizaçãooculta o “assassinato” da diversidade cultural, tendo em vistaque a ideologia da globalização tende a dizer respeito a umprocesso de mercantilização universal que homogeneíza tudo– “o álibi da modernidade serve para dobrar tudo sob o implacávelnível de uma estéril uniformidade” (Ramonet, 1998:47).

Deste modo, sob o globalitarismo tende-se a constituir umacultura global sedimentada pelo livre-comércio. O principalresponsável, se poderíamos dizer assim, pela dissolução culturaldos povos numa world culture é, na perspectiva dos críticosrepublicanos da globalização cultural, o livre-comércio:

Um estilo de vida semelhante se impõe de um extremo aooutro do planeta, divulgado pela mídia e prescrito pelaintoxicação da cultura de massa. De La Paz a Ouagadougou,de Hyoto a São Petersburgo, de Oran a Amsterdam, mesmofilmes, mesmas séries de televisão, mesmas informações,mesmas canções, mesmos slogans publicitários, mesmos

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objetos, mesmas roupas, mesmos carros, mesmo urbanismo,mesma arquitetura, mesmo tipo de apartamentos, muitasvezes, mobiliados e decorados de maneira idêntica...

E destaca o outro sentido do globalitarismo:

Nos quarteirões abastados das grandes cidades do mundo, orequinte da diversidade cede o lugar a fulminante ofensiva dapadronização, da homogeneização, da uniformização. Por todaparte, triunfa a world culture, a cultura global (Ramonet, 1998)

É claro que alguém poderia contra-argumentar que em outrasépocas históricas, como durante o Império Romano, ou ainda,durante os vários impérios do Ocidente, até o século XIX,inclusive sob o império Otomano no Oriente, a disseminação dacultura imperial pelas bordas dominadas era algo comum.

Mas, o que é perceptível com a globalização neoliberal, queassume proporções inéditas e ocorre numa velocidadeimpressionante, é o caráter totalitário da imposição cultural (enão apenas cultural, mas política, tendo em vista que a idéia deglobalitarismo é intrinsecamente política):

Na história da humanidade, nunca práticas características deuma cultura tinham chegado a se impor, de uma forma tão rápida,como modelos universais. Modelos que são também políticose econômicos; a democracia parlamentar e a economia demercado – fórmulas que estão sendo aceitas, quase por todaparte, como atitudes “racionais”, “naturais” – participam, defato, da ocidentalização do mundo (Ramonet, 1998:48)

Na medida em que a globalização tende a reduzir tudo à lógicamercantil, a tornar o mundo (e o pensamento) unidimensional,instaura-se um novo totalitarismo, que, inclusive, inibe opensamento a pensar em alternativas para além do mercado.

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Não é à toa que se proclamou no início da década de 1990 o “fimda história” e até o “fim das utopias”. Tais manifestações ideológicassão expressões do globalitarismo que destila, no plano das práticas epensamentos, a ditadura e tirania do mercado, que aparece comoum deus ex machina, todo-poderoso, único capaz de contribuir parao progresso dos povos rumo à modernidade.

É por ser produto ideológico de regimes globalitários que aidéia de globalização aparece para o senso comum como algo aqual todos nos devemos nos submeter e nos adaptar e nãoimpor resistência ou buscar alternativas. Este é o sentido dodiscurso do globalitarismo que se inscreve nas falas de políticos,empresários, jornalistas e intelectuais dos mais diversos espectrospolítico-ideológicos.

Deste modo, o que apresentamos através da idéia deglobalitarismo é uma vertente da crítica da globalização comoideologia (e principalmente como política). É uma críticarepublicano-democrática radical, muito arraigada na inteligentsiafrancesa de esquerda, que tende a salientar o livre-comércio comoa expressão do mal que atinge a civilização moderna. É o livre-comércio que degrada a coesão social, moral e política dos povosocidentais, tendo em vista que os “regimes globalitários” atentamcontra o Estado-nação, o mundo do trabalho, a ecologia e o sistemacultural-nacional.

Alguém poderia perguntar: o que é, portanto, o globalitarismo?Diremos: o globalitarismo é a visão negativa da globalização, éa globalização como ideologia negativa, como totalitarismo domercado. Mas qual seria a visão positiva da globalização, asua ideologia positiva?

Um termo utilizado para caracterizar a ideologia positivada globalização é globalismo. Ele sintetizaria o que a globalizaçãodiz ser e como ela é abordada pelo pensamento neoliberal.

Nos interessa apresentar aqui, um concepção da idéia deglobalismo apresentada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck. Depois,apresentaremos uma outra visão da idéia de globalismo que étotalmente diversa da apresentada por Beck (a idéia de globalismo

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apresentada pelo sociólogo brasileiro Octávio Ianni). São aspectosdiversos do globalismo – como iremos ver, Beck destila o caráterapologético da idéia de globalismo, o caráter positivo da globalizaçãocomo ideologia; enquanto Ianni nos apresenta o caráter sociológicoe fenomenológico do conceito de globalismo.

Globalismo

A idéia de globalismo, segundo Beck, entre outros, diz respeito àideologia da globalização. Não possui o sentido crítico (e negativo)da noção de globalitarismo. Traduz apenas a idéia de ideologia (oupolítica) da globalização, uma “ideologia positiva” da globalização.

Globalismo possui um significado totalmente diferente dasidéias de globalização ou globalidade. Globalismo diz respeitoa ideologia do império do mercado mundial, a ideologia doneoliberalismo. A idéia de globalismo, segundo Beck, é umaconcepção “ideológica” da globalização e da globalidade que tendea reconhecer a morte da política diante da nova situação domundo global (nesse caso, só cabe a nós nos adaptarmos àglobalização). O mercado mundial bane ou substitui, ele mesmo,a ação política. A política não possue mais local ou sujeito e asua tarefa primordial se perdeu de vista.

O “encanto despolitizado do globalismo”, expressão utilizadapor Beck, tende a ver a globalização e a globalidade como algorestrito ao aspecto econômico, reduzindo sua pluridimensionalidadea uma única dimensão: a econômica.

A globalização e a globalidade são pensadas de forma lineare deixa todas as outras dimensões (relativas à ecologia, às culturas,à política e à sociedade civil) sob o domínio subordinador domercado mundial (Beck, 1999) .

Na verdade, a visão do globalismo liquida uma distinçãofundamental, a distinção entre economia e política. Para Beck, apolítica, sob a primeira modernidade, teve (e ainda tem) umpapel primordial:

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Introdução

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... delimita e estabelece as condições para os espaçosjurídicos, sociais e ecológicos, dos quais a atuação daeconomia depende para ser socializada e tornar-se legítima(Beck, 1999).

Ao dizermos que a política para Beck ainda tem um papelprimordial, precisamos dizer que, com a globalidade e aglobalização, como iremos ver mais adiante, a política precisaser reinventada e reformulada. Antes de mais nada, Beckdistingue dois momentos da modernidade – a primeiramodernidade, que parece ter o seu clímax sob o Estado socialdo pós-guerra, e a segunda modernidade, que surge a partir dacrise capitalista dos anos 70 e que alguns críticos da modernidadeacusam como sendo a pós-modernidade.

Portanto, não é que Beck exclua a política na segundamodernidade, como faz o globalismo, mas ele concebe que ela,tal como se constituiu na primeira modernidade, sob os auspíciosdo Estado nacional e territorial, perdeu seu lugar. Suas respostasàs questões da segunda modernidade, diz ele, tornaram-secontraditórias e inadequadas.

Na segunda modernidade, por outro lado, sob as condiçõesda globalização e da globalidade, impõm-se o imperialismo daeconomia. Beck salienta que a economia de atuação global tendea “derreter” a soberania do Estado nacional e a excluir a políticado quadro categorial do Estado nacional e até mesmo excluir opapel esquemático daquilo que se entende por ação política ounão-política.

O Estado nacional e o sistema político perdem seus recursos.Por exemplo, o recolhimento de impostos e sua autoridade. MasBeck salienta que isto não diz respeito apenas a dimensão econômica:

...uma imensa variedade de lugares conectados entre si cruzasuas fronteiras territoriais, estabelecendo novos círculos

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sociais, redes de comunicação, relações de mercado e formasde convivência (Beck, 1999)

A crise do Estado nacional é uma condição da globalizaçãoe da globalidade. Só que a ideologia do globalismo tende a reduziresta nova situação em que está o mundo (que ele tende acaracterizar como sendo uma sociedade mundial), apenas àdimensão econômica, reduzi-la, portanto, apenas a uma dimensão:a da ótica do mercado mundial. A partir daí, o globalismo reduzas lógicas particulares da globalização da ecologia, da cultura eda sociedade civil, à lógica da economia de mercado. Perde-sede vista a pluridimensionalidade da globalidade.

Por outro lado, a idéia de globalismo assume um outro sentidosociológico na visão de Octávio Ianni. Para ele, globalismo é umconceito sociológico para caracterizar

uma configuração histórico-social no âmbito da qual semovem os indivíduos e as coletividades, ou as nações e asnacionalidades, compreendendo grupos sociais, classessociais, povos, tribos, clãs e etnias, com as suas formassociais de vida e trabalho, com as suas instituições, os seuspadrões e os seus valores (Ianni, 1996)

Portanto, o globalismo é uma configuração histórico-socialabrangente, “surpreendente e determinante”, uma totalidadehistórica e teórica complexa, contraditória, problemática e aberta,uma totalidade heterogênea, simultaneamente integrada efragmentária, “um novo ciclo da história quando esta semovimenta como história universal”, uma

configuração geo-histórica original, dotada depeculiaridades especiais e de movimentos próprios, que sepode denominar de global, globalizante, globalizada ouglobalismo (Ianni, 1997).

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Introdução

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O globalismo inaugura um novo ciclo da história porque, comosalientamos, a história passa a se movimentar como históriauniversal:

No passado, inclusive, nos tempos do Iluminismo e por todoo século XIX, a história universal podia ser vistaprincipalmente como idéia, ficção ou utopia. No século XX,e cada vez mais ao longo desse século, a história universalse revela real, um imesno e impressionante cenário, aindaque como Babel e labirinto (Ianni, 1997)

Apesar de dizer que o globalismo se constitui ao longo doséculo XX, Ianni salienta que ele, o globalismo, subsume históricae teoricamente o imperialismo.

Trata-se de duas configurações histórica e teórica distintas.Podem ser vistas como duas totalidades diferentes, sendoque uma é mais abrangente que a outra. O globalismo podeconter vários imperialismos, assim como distintosregionalismos, muito nacionalismos e uma infinidade delocalismos. Trata-se de uma totalidade mais ampla eabrangente, tanto histórica como lógica (Ianni, 1997).

Para Ianni, o globalismo não se reduz ao neoliberalismo emuito menos se expressa apenas nessa ideologia. O globalismotanto compreende o neoliberalismo como o socialismo. Destemodo , Ianni resgata o globalismo como o resultado sócio-históricodo processo de globalização que modifica mais ou menosradicalmente realidades conhecidas e conceitos estabelecidos.

O globalismo, tal como o mercantilismo, o colonialismo e oimperialismo, é uma história que acompanha o desenvolvimentodesigual e combinado do capitalismo pelo mundo afora, comomodo de produção e processo civilizatório.

Trata-de de uma realidade social, econômica, política e culturalde âmbito transnacional, que em geral modifica o lugar e osignificado do que preexiste: “Tudo que é local, nacional e regional

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Globalização Como Ideologia

recebe o impacto da transnacionalização.” Com o globalismopassa-se a se desenvolver a sociedade global, um “cenário nãosó problemático, mas contraditório” (Ianni, 1997).

Globalidade

Como vimos, a idéia de globalismo para Beck é totalmentenegativa e não pode ser confundida com a globalização eglobalidade. A idéia de globalidade, utilizada por Beck, no seulivro O Que é Globalização, diz respeito a própria condição daglobalização, ou seja, àquilo que denominamos não apenas demundialização do capital, mas de processo civilizatório humano-genérico, um processo sócio-histórico contraditório e avassalador,de instauração de uma nova economia e sociedade modernas .

É claro que Beck amplia o próprio sentido da globalidade,abrangendo não apenas a dimensão da economia global, masprincipalmente as dimensões da cultura, da ecologia, da políticae da sociedade civil. Para Beck, globalidade é a situação do mundosob a segunda modernidade, onde tende a se constituir umasociedade mundial, “o conjunto de relações sociais, que não estãointegradas à política do Estado nacional ou que não sãodeterminadas (ou determináveis) por ela”. Beck diria maisadiante: “a vida e a ação cotidiana ultrapassam as fronteiras doEstado nacional com o auxilio de redes de comunicação interativase interdependentes”(Beck, 1999).

Globalidade é uma situação do mundo em que todas asdescobertas, triunfos e catástrofes afetam a todo o planeta, eque devemos redirecionar e reorganizar nossas vidas e nossasações em torno de um eixo global-local. Se globalidade é anova condição humana, globalização seria

os processos, em cujo andamento os Estados nacionaisvêem a sua soberania, sua identidade, suas redes decomunicação, suas chances de poder e suas orientaçõessofrerem a interferência cruzada de atores transnacionais.

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Introdução

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É um processo irreversível e dialético que

produz conexões e os espaços transnacionais e sociais, querevalorizam culturas locais e põem em cena terceirasculturas...(Beck,1999)

É um processo que possui uma especificidade histórica, oque significa que o que ocorre hoje não é o mesmo o que ocorreuna Europa desde o século XVI. A globalização que está em curso,diz Beck,

... consiste na extensão, na densidade e na estabilidaderecíproca – que ainda está por ser comprovada empiricamente– das redes relacionais regionais globais e sua autodefiniçãodos meios de comunicação de massa, bem como do espaçosocial e das correntes icônicas nos domínios culturais,político, econômico e militar (Beck, 1999).

A constituição de uma sociedade mundial decorre daglobalização, uma sociedade mundial que é “um horizonte que secaracteriza pela multiplicidade e pela não-integração, diversidadesem unidade, sociedade mundial sem Estado mundial e semgoverno mundial”. Pelo visto, Beck tende a opor, de um lado, aidéia de globalismo e de outro, as idéias de globalidade eglobalização. Poderíamos até dizer que, para ele, o globalismo éa própria ideologia do neoliberais (“os desmontadores doOcidente”).

Glocalização

O conceito de glocalização, utilizado por sociólogos, dizrespeito a uma nova forma de ver a globalização, compreendidamais em suas articulações entre o local e o global e não apenasna dimensão global.

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Globalização Como Ideologia

Na verdade, glocalização é um conceito-alternativo à noção deglobalização, tendo em vista que discorda da idéia de globalizaçãocomo um processo de negação do local pelo global (o conceito deglocalização articula as noções de local e global). O local e o globalnão se excluem. Pelo contrário: o local deve ser compreendidocomo um aspecto do global (Robertson, 1999).

De certo modo, a utilização do conceito de glocalização tendea ocorrer nas análises da cultura diante das transformações docapitalismo mundial. Por isso, observa Beck, comentando oconceito de glocalização:

Globalização quer também dizer: a conjunção e o encontrode culturas locais que deverão ainda ser conceitualmenteredefinidas em meio a este clash of localities (Beck, 95)

A importância do conceito de glocalização é promover umarenovação metodológico-pragmática da compreensão do processode globalização apreendido em seus aspectos contingentes edialéticos, contraditórios em sua própria unidade. Deste modo,seriam indissociáveis, por um lado, a generalização e a unificaçãode instituições, simbolos e modos de vida (por exemplo,McDonald’s, blue jeans, democracia, tecnologia de informática,bancos, direitos humanos, etc) e, por outro lado, a redescobertae a valorização, e mesmo a defesa das culturas e das identidadeslocais (islamização, pop alemão e rai norte-africano, o carnavalafricano em Londres ou a salsicha branca do Havaí). Comoobserva Beck, utilizando o exemplo dos direitos humanos,

...estas culturas [locais - G.A.], bem como todas as outras,estão em primeiro lugar representando direitos universais eque, em segundo lugar, são representadas e postas em cenadiferentemente conforme cada contexto (Beck, 96)

Nesse sentido, pode-se falar de paradoxos de culturas glocais,onde mesclam-se como unidades contraditórias universalismo e

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Introdução

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particularismo, conexão e fragmentação, centralização edescentralização, conflito e compensação.

O conceito de glocalização recupera a contraditoriedadeintrínseca à própria globalização, criticando, portanto, umaideologia da globalização que tende a concebe-la meramentecomo um processo sócio-histórico “globalista” e homogêneo.

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Dimensões da Globalização

2A Globalização Como Ideologia

A ideologia da globalização, tal como nós aconhecemos hoje, surgiu (e se impulsionou) apartir da mundialização do capital ocorrida a partir

da década de 1980. É só a partir de uma nova etapa dedesenvolvimento do capitalismo mundial, que a idéia deglobalização, com todos seus aspectos impressionistas, porexemplo, as idéias de “aldeia global” ou de “sociedade global”,tendeu a adquirir um conteúdo sócio-histórico concreto maisdesenvolvido e a constituir uma ideologia orgânica elaborada.

Com o desenvolvimento da mundialização do capital, o quepodemos denominar de ícones impressionistas da globalizaçãodeixaram de ser uma mera projeção ideológica contingente eresidual, para assumir um substrato concreto efetivo.

O que procuraremos ressaltar é que a globalização se constituiuatravés de uma operação ideológica que tendeu a ocultar a suanatureza histórica e política de mundialização do capital.

O nexo essencial da ideologia da globalização é apresentar umprocesso sócio-histórico concreto constituido através da luta declasses, como um processo natural, de uma “segunda natureza”, aqual todos nós, inclusive governos, somos obrigados a nos submeter.

De certo modo, a globalização tende a ser apresentada como umprocesso homogêneo e homogeneizador que conduz ao progressoe ao bem-estar universal, à globalização da democracia e àdesaparição progressiva do Estado-nação.Tais caracteristicasda globalização, dissiminadas através dos aparatos midiáticos do

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sistema orgânico do capital, são meras incrustações do queconsideramos a ideologia da globalização.

Em primeiro lugar, a globalização não é um processo homogêneoe homogeneizador. Pelo contrário, é desigual e combinado, seletivoe excludente, o que significa que ela não conduz ao progresso e aobem-estar universal. Na verdade, tende a acentuar a desigualdade,a exploração e a exclusão universal.

Em segundo lugar, se a globalização tende a dissiminar atravésdo globo uma forma anódina de democracia política, reduzida aseus protocolos jurídico-institucionais restritos, essa forma políticade democracia oculta, sob um poderoso aparato estatal-midiático,a espoliação de direitos sociais e o desmonte do Estado-nação.Sob as condições adversas da pressão social das massas excluídase exploradas, a forma política da democracia global tende aexpressar seu conteúdo autocrático-burguês.

A globalização da democracia segue, pari passu, oaprofundamento da crise de legitimidade (e não apenas degovernabilidade) do Estado capitalismo sob as condições damundialização do capital.

Finalmente, ao contrário do mero desaparecimento do Estado-nação, o que observamos é sua metamorfose politico-institucional,num aparato burocrático-centralizado de dominação (ereprodução) do capital global concentrado. A globalização tendea criar um Estado mínimo para as necessidades das massaspopulares excluidas e exploradas e constituir um Estado máximopara os interesses de reprodução e acumulação do capitalfinanceiro global.

Deve-se falar não meramente de um Estado-nação burguês,principalmente para os países capitalistas subalternos, mas deum sistema mundial inter-estatal capitalista cada vez mais“orgânico” tendo em vista que, com a mundialização do capital,surge um nova elite capitalista desterritorializada - uma burguesiatransnacional comprometida com os interesses do novo sistemamundial do capital financeiro.

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O sistema mundial inter-estatal capitalista, que poderia serapreendido como um rudimentar Estado global do capital financeiro,com seus tentáculos tecnocrático-institucionais (tais como FMI, BancoMundial, OMC, etc), é a expressão político-institucional do queChesnais veio a denominar de oligopólio mundial. Na verdade, aglobalização como mundialização do capital é um construto políticode políticas estatais-nacionais à serviço dos interesses das empresas,conglomerados e corporações transnacionais, a “espinha-dorsal” dooligopólio mundial (Chesnais, 1995).

Além das caracteristicas principais da ideologia da globalização,apresentadas logo acima, é importante salientar alguns de seustraços essenciais:

1. Possui uma série de ícones impressionistas, ligadas aopróprio desenvolvimento do capitalismo e de suas forças produtivas(é o que observamos com as idéias de “aldeia global” ou mesmo de“sociedade global” e “cultura global”) e que marcaram a pré-históriada ideologia da globalização.

2. A ocultação de seu caráter sócio-histórico, o que implicana operação linguistico-conceitual de toda e qualquer ideologia (des-historizar e ocultar o caráter de classe e de luta de classe intrinsecoa todo o processo sócio-histórico moderno).

3. A impressão de um conteúdo economicista/naturalista,que permite apreender a globalização meramente como um resultadoda evolução civilizatória, a qual todos nós devemos nos submeter eapenas nos adaptar.

Ícones impressionistas do novo capitalismo mundial

É possivel dizer que antes do surgimento e desenvolvimento daideologia da globalização propriamente dita, ocorrida em meadosdos anos 80, tendeu a se disseminar sob o capitalismo mundial dopós-guerra, uma série de impressões conceituais que indicavam apossibilidade de constituição de um “um mundo só” ou de um

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globo. Surgem, de certo modo, as idéias de “aldeia global” e mesmode “sociedade global” e “cultura global”:

A partir dos anos 80, o anglicismo globalização domina odiscurso de marketólogos da economia e da política, apesar deque essa ‘invenção’ data do final dos anos 60 (Castro, 1999)

Por exemplo, é de 1968 o livro Guerra e paz na aldeia global,de Marshall McLuhan, um dos profetas da telemática. Os avançosdas transmissões ao vivo pelas redes de TV nos Estados Unidos,tendeu a anunciar para Mcluhan o surgimento de uma “aldeia global”.É a realidade dos novos meios de comunicação, que tendiam a criarpara milhões de espectadores, uma nova realidade virtual, queimpressionou McLuhan a sugerir a idéia de uma”aldeia global”,expressão que veio a se dissiminar e caracterizar uma possibilidadeconcreta posta pelo desenvolvimento da telemática e dastelecomunicações a partir dos anos 70.

Um outro autor que contribuiu para dissiminar mais um íconeimpressionista da globalização, na pré-história da ideologia daglobalização, é o politólogo, diretor do Instituto de Pesquisa sobreo Comunismo, da Universidade de Columbia, conselheiro deSegurança Nacional do Governo Carter e que criou a ComissãoTrilateral: Zbigniew Brzezinski, autor de A revoluçãotecnotrônica (de 1969). É de Brzezinski a utilização das idéiasde sociedade global e cidade global para designar um novotipo de habit humano permeado pelas redes tecnotrônicas (aconjugação de computador, TV e computadores) (Castro, 1999).

O modelo de sociedade global, para Brzezinski, são osEstados Unidos, a principal força propulsora da revolução“tecnotrônica” mundial:

É isso porque, primeiro, são o ponto de partida de ‘65% detodas as comunicações mundiais’; segundo, porque com avenda de produtos das suas indústrias culturais, junto àexportação de ‘tecnologias, de procedimentos e de sistemas

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organizacionais’, os EUA oferecem ao mundo o ‘único modeloglobal de modernidade’ com os correspondentes ‘padrões decomportamento e valores universais (Castro, 1999).

Portanto, como podemos observar, os ícones impressionistasda globalização, que se disseminaram a partir dos anos 60, tenderama ter como substrato concreto imediato, a III Revolução Tecnológica,cujo epicentro são os EUA e que impulsionou o desenvolvimentodas redes de telecomunicações e da telemática. A exuberância domundo sócio-técnico ocorrida no século XX tendeu a criar seusícones impressionistas, além de determinar as possibilidades concretasde desenvolvimento do processo civilizatório humano-genérico.

Entretanto, cabe salientar que a globalização em-si possui comopróprio conteúdo sócio-histórico, o americanismo (o espírito dadominação dos EUA no século XX). É através dele que podemosapreender o conteúdo dos ícones impressionistas (e pré-históricos)da ideologia da globalização propriamente dita.

Foi através da política de hegemonia cultural americana,principalmente com a presença da indústria cultural americanadissiminada atráves das redes teletrônicas e da constituição dasempresas multinacionais globais americanas, que disseminou-sea idéia de uma sociedade global ou de uma cultura global,antes mesmo que a ideologia da globalização propriamente ditaviesse a se constituir.

Além disso, a idéia de uma política global, levada a cabopelo Departamento de Estado americano nas circunstâncias daGuerra Fria contribuiu sobremaneira, em vários aspectos, para aconstrução de uma idéia impressionista (e rudimentar) deglobalização. Não apenas enquanto realização da políticaimperial do EUA no Ocidente através da suas articulações políticas,ideológicas e militares anti-comunistas na América Latina, Áfricae Ásia, mas inclusive no sentido tecnológico, tendo em vista quefoi através do apoio do Departamento de Estado americano queocorreram avanços significativos na telemática e na teletrônica

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(por exemplo, a Internet, que veio a se disseminar sob aglobalização, originou-se de um projeto militar americano) queiriam constituir o substrato tecnológico-material da globalizaçãopropriamnete dita.

Portanto, por um lado, ocorre, a partir dos anos 60, aconstituição de uma economia mundial, através da expansãodas multinacionais globais, não apenas americanas, masjaponesas e européias. Por outro lado, uma política mundialassumia dimensões histórico-concretas através das diversasarticulações militares, políticas e ideológicas anti-comunistas.

Ela mesma, a nova política do capitalismo mundial do pós-guerratendeu a anunciar a sociedade global bem antes, a partir dos anos40, com a constituição, naquela época, dos ícones institucionaisda globalização propriamente dita, tais como ONU, FMI, BancoMundial e mais tarde, OTAN e todos os aparatos de política eeconomia global.

Além disso, cabe salientar os resultados, ainda imaturos, da IIIRevolução Científico e Tecnológica até os anos 60, principalmenteno campo da comunicação e dos transportes, imprescindiveis paraacelerar o fluxo de comércio e de informações no globo (a idéia dealdeia global). Todos essas múltiplas determinações contribuirampara constituir os icones impressionistas de um discurso originárioda globalização.

Até os anos 1980, o anglicismo “globalização” ainda não erautilizado para caracterizar uma série de ícones impressionistasde um globo que se constituiu na política, na economia e na cultura,atingindo os mais diversos países capitalistas (e socialistas) emmaior ou menor proporção, dependendo de sua inserção nomercado mundial. Não se dizia “globalização”, mas se dizia ONU,FMI, Banco Mundial, OTAN, Pacto de Varsóvia, Operacão Condor,aldeia global, sociedade global, multinacionais etc.

Ora, tais ícones impressionistas não são arbitrários, maspossuem como lastro histórico concreto, como salientamos,realidades políticas sócio-históricas e tecnológicas de um

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capitalismo mundial em constituição no pós-II Guerra Mundial.Até os anos de 1980, a ideologia da globalização propriamente

dita não surgia ainda como uma realidade sócio-histórica que seimpunha, tal como ocorre nos nossos dias, tendo em vista que aprópria globalização como mundialização do capital, ainda nãotinha se constituido plenamente.

Até fins dos anos de 1970, vive-se um processo sócio-político deintensas lutas de classes, de percursos ainda sinuosos dereestruturação capitalista, principalmente a reeestruturação produtiva,num bojo de crise da economia capitalistas central.

A idéia de uma “globalização” apenas transparecia atravésde seus ícones impressionistas originários, não tendo aindadominado o discurso da mídia e dos interesses discursivos doOcidente, o que ocorreria com maior vigor nos anos 80.

Como iremos verificar, é só nos anos de 1980 que a globalizaçãocomo mundialização do capital iria assumir um novo sentido sócio-histórico. A ofensiva do capital na produção adquire um carátersistêmico e o avanço das políticas neoliberais nos principais paísescapitalistas indica um novo padrão da acumulação capitalista mundial.

Constituem-se para a prática reprodutiva capitalista uma sériede constrangimentos estruturais, no campo da gestão política daeconomia dos Estados-Nação, criando amplamente as condiçõespara o discurso (e a ideologia orgânica) de uma globalizaçãoinexorável a qual todos - individuos, classes, empresas e governos -têm que se submeter, sob pena de irem à ruina no mercado mundial.

A construção do cenário da globalização, onde o discurso daresignação liberal tendeu a adquirir um maior poder ideológico, éantes de tudo um construto político (a vitória de coligaçõespolíticas conservadoras em fins dos anos de 1970 e no decorrerda década de 1980) e um construto econômico (resultado deuma série de decisões empresariais das multinacionais globais,sedentas em recuperar um novo patamar de acumulaçãocapitalista).

A crise do capital, a partir de meados dos anos de 1970, é umdado objetivo, intrinseco a própria lógica de desenvolvimento

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capitalista no pós-guerra. São determinadas respostas políticas eempresariais à crise do capital que constituiu o ambiente naturalpara o surgimento e desenvolvimento de uma determinada ideologiada globalização, a partir de seus ícones impressionistas quesalientamos acima.

O que procuramos caracterizar como sendo a ideologia daglobalização assume um caráter orgânico, a partir dos anos de1980, porque emerge um complexo sócio-histórico constituidopelas políticas neoliberais, com o mito do mercado auto-regulador e otimizador, e pela reestruturação produtiva, quearticularam através do anglicismo “globalização”, ouglobalization, o sentido da nova ocidentalização do mundo.

A partir daí, todos aqueles ícones impressionstas daglobalização, consituidos, principalmente, no pós-guerra, passarama ter um novo sentido sócio-histórico.

A III Revolução Tecnológica, com o mito do primado datecnologia ou da modernidade “informacional” e o mito da realidadevirtual ou da suposta unificação do tempo e do espaço na aldeiaglobal”, através da telemática ou teletrônica, deu o substratoconcreto originário a tal processo de constituição da ideologia daglobalização propriamente dita.

A Negação da História (e da Luta de Classes)

Apesar de ter uma origem sócio-histórica e ser um resultadoda luta de classes, a globalização como mundialização docapital tende a ocultar suas origens. Na verdade, é umacaracteristica essencial de qualquer construto ideológico ocultarsuas origens sócio-históricas concretas. Não poderia ser diferentecom a ideologia da globalização. É deste modo que ela - a ideologiada globalização - contribui para o desenvolvimento e legitimaçãopolítica do próprio processo sócio-histórico (e polítco) da qual seoriginou.

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Como ideologia, a globalização aparece como resultado daevolução natural da civilização. Como proceso natural einexorável, a globalização só poderia ser assim e seria ociosidadee insensatez lutar contra ela, ou melhor, querer que as coisassejam de outro modo. É por isso que a ideologia da globalizaçãosupõe apenas que devemos nos adaptar e não resistir àmundialização do capital tal como ela é.

Na medida em que a idéia de globalização aparece comouma ideologia, ela é “ideologia orgânica” de um amplo processode reestruturação capitalista. É um poderoso recurso ideológico-linguístico que instrumentaliza (e mistifica) um novo processosócio-histórico instaurado pela mundialização do capital. Comoobservou Batista, o poder mistificador da palavra globalização

se alimenta da percepção de processos reais que dominam aeconomia mundial: progresso das telecomunicações einformática, crescente integração comercial e financeira,internacionalização de muitos processos de produção, etc.(Batista Jr, 1996).

Tais recursos de instrumentalização e mistificação é própriode todo e qualquer construto ideológico-orgânico. Mas, se aideologia da globalização oculta e mistifica (e aindainstrumentaliza) é porque existe um processo sócio-histórico denovo tipo, uma nova dimensão civilizatória mundial que não podeser negado e que está pressuposto como substrato sócio-históricoconcreto.

A globalização não é meramente uma ideologia, apesar de quepossua uma ideologia, ou seja, um arcabouço de crenças e práticaspolíticas (e culturais) inscritas nos discursos da mídia, de políticos eempresários e intelectuais, cujo objetivo latente (ou manifesto) élegitimar o novo regime de acumulação mundial do capital.

Portanto, a ideologia da globalização articula-se, mas nãopode se reduzir, à ideologia neoliberal. Não pode se reduzirporque a ideologia da globalização propriamente dita é muita mais

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ampla e diz respeito a um processo sócio-histórico de maiorenvergadura civilizatória. Diz respeito a uma percepçãoideológica de novos processos civilizatórios inscritos nodesenvolvimento capitalista. Tais processos sócio-históricosobjetivos, é claro, tendem a ser recuperados (e incorporados) poruma ideologia (o neoliberalismo) e sua classe dominante - aburguesia transnacional emergente.

Desde os anos de 1940, as crenças neoliberais existiam nocenário intelectual do establishment, só que, naquela época deexpansão capitalista, o arcabouço ideológico da reproduçãoorgânica do capital era totalmente outro. Em decorrência dacorrelação política da luta de classes no pós-guerra (e a situaçãode Guerra Fria) tendia a predominar a ideologia estatista decariz social-democrata (Anderson, 1994).

Foi preciso a crise capitalista nos anos de 1970, colocandonovas exigências para a reprodução orgânica do capital, e a derrotapolítica (e sindical) do bloco social-democrata, para que o idéarioneoliberal surgisse como a ideologia organica do sistema docapital.

A ideologia neoliberal é a ideologia política hegemônica daglobalização originária, que tenta impor uma nova ordem capitalistamundial centrado no mercado. Na verdade, o neoliberalismo éum discurso, uma crença e uma prática de economia políticado capital que se desenvolve (e se potencializa e se auto-reproduz)nos períodos históricos de maior expansão capitalista mundial. Éa crosta ideológica do próprio projeto expansionista do capitalpelo mundo ou pelo globo.

Entretanto, a ideologia neoliberal não pode ser reduzido, comotemos salientado, à seu conteúdo sócio-histórico, o própriomovimento de expansão e desenvolvimento do capital, que,em outros momentos históricos, se apropriou, para a suareprodução orgânica, do Estado e de outra ideologia orgânica (aideologia estatista de cariz social-democrata).

Outro aspecto a ser salientado é que a ideologia da globalizaçãoexacerba o pensamento positivo destilado sob o capitalismo

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industrial desenvolvido. É o “pensamento unidimensional”,caracterizado por Marcuse (em meados dos anos de 1960), quetende a ocultar a negatividade intrinseca do real, negatividadedecorrente dos interesses antagônicos de classe e que está naorigem das lutas sociais e políticas do século XX.

Entretanto, sua capacidade de sustentação ideológica édeveras débil, pois, o verdadeiro conteúdo da mundialização docapital, tende a exacerbar a desigualdade, a exploração e aexclusão social no globo. Por isso, ocorrem novas determinaçõesda ideologia da globalização e principalmente na ideologianeoliberal, que tende a incorporar um verniz social-democrata. É apressão dos resultados sociais da globalização, que desvela o seuconteúdo real, que cria (e recria) a ideologia da globalização.

O Novo Economicismo

A ideologia da globalização incorpora um novo economicismocomo senso comum. Na medida em que nega o processo sócio-histórico e de luta de classes, constitui um construto de pensamentoe de idéias apropriada pelo neoliberalismo e que se impõe ao sensocomum.

Já discutimos a idéia de globalismo e de globalitarismo comorecursos ligados à ideologia da globalização, seja num aspectopositivo ou negativo. Ao dizermos o novo economicismoqueremos dizer que a mundialização do capital tende a apresentaro mercado como o deus ex-machina que se torna a referênciauniversal dos processos decisórios políticos.

Beck critica o globalismo que reduz a globalização aconcepção de que o mercado mundial bane ou substitui, ele mesmoa ação política. Para ele, como já salientamos, o globalismo tendea ser a expressão da ideologia da globalização na medida em quereduz a globalidade à ideologia do mercado mundial, a ideologiado neoliberalismo:

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O procedimento é monocausal, restrito ao aspecto econômico,e reduz a pluridimensionalidade da globalização a uma únicadimensão – a econômica -, que, por sua vez, é pensada de formalinear e deixa todas as outras dimensões – relativas à ecologia,à cultura e à sociedade civil – sob o dominio subordinador domercado mundial (Beck, 1998)

Mas, o que Beck apresenta como um excrescência éexpressão contraditória daquilo que ele próprio denomina deglobalidade ou globalização. A ideologia da globalização comonovo economicismo se origina do próprio modo de ser essencialda globalização como mundialização do capital. É o capitalque se explicita como sujeito de um processo sócio-histórico amplo,de múltiplas determinações ecológicas, culturais e sociais.

Se predomina o aspecto economômico em detrimento dapluridimensionalidade da globalização (o novo economicismo) éporque a globalização, antes de ser um processo civilizatório, é amundialização do capital. É processo civilizatório,mas é, acimadisso, mundialização do capital.

Por isso, a ideologia da globalização, com seu novo economicismo,tende a ocultar o caráter sócio-histórico e político do processos deglobalização, ligado a interesses de classe e imposto a partir deprocessos de luta política, e expressa a realidade concreta da lógicada globalização como mundialização do capital, que submete asociedade em suas mais diversas instâncias à lógica da rentabilidadeuniversal.

Ao analisarmos a globalização como mundialização do capitaliremos verificar que o novo economicismo que surge com aglobalização expressa tão-somente a própria natureza daglobalização em-si: ser o império universal do capital, representadospelas empresas, conglomerados e corporações transnacionais e pelosfundos de pensão e fundos mútuos de investimentos, centralizadoresde uma imensa massa monetária sedenta de valorização.

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Ao discutirmos o novo economicismo é importante salientarmosque, o economicismo pode ser considerado, em suas diversasexpressões sócio-culturais e ideológicas, a ideologia do século XX.Isso é sintomático da própria natureza do processo de modernizaçãocapitalista. Sob as condições do capitalismo desenvolvido, oeconomicismo penetra não apenas a ideologia hegemônica docapitalismo moderno, com a globalização sendo a sua expressãomais desenvolvida, mas inclusive a ideologia contra-hegemônica daesquerda, que, em algumas percepções analíticas, pode negar osprocessos sócio-históricos e políticos da luta de classses naconstituição do em-si da globalização.

A ideologia do economicismo é o próprio éter da modernizaçãocapitalista, que possui tanto mais eficácia ideológica na medida emque o capitalismo como modo de vida social se desenvolve. É oque Weber salientou como um processo de desencantamento domundo, de redução do mundo humano-social à processos técnicose economicos que tendem a serem fetichizados.

Mas, antes dele, Marx salientou o fetichismo da mercadoriacomo a própria caracteristica da estrutura da sociabilidade capitalista.O que significa que o novo economicismo, expresso pela ideologiada globalização, é a própria expressão imanente do fetichismo dasmercadorias, que se desenvolve cada vez mais na medida em queo próprio capitalismo, não apenas como modo de produção, masprincipalmente como modo de civilização, com suas relações sociais,institucionais, políticas e culturais, se dissimina pelo globo.

Portanto, a crítica do globalismo, ensaiada por Beck, ressaltabastante o caráter de novo economicismo da ideologia da globalização.A crítica do globalitarismo, salientada por Ramonet, ressalta bastanteo caráter natural e totalitário da ideologia da globalização. Taisabordagens criticam uma ideologia constituida e amadurecida nosanos 80.

Mas é importante salientar que, a globalização como processosócio-histórico concreto (como mundialização do capital e, aomesmo tempo, processo civilizatório humano-genérico, conduzido

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pelo capital) “exala” uma ideologia orgânica, que tende a surgire se desenvolver nos anos de 1980. É uma ideologia que possuibases concretas sócio-históricas reais (Gramsci, 1985).

Antes tinhamos apenas ícones impressionistas que apontavampara o que hoje criticamos como globalismo e globalitarismo. Nosanos de 1960, tais ícones impressionistas não se impunham comoideologia orgânica pela própria imaturidade da mundialização docapital. Contém grãos de verdade sem constituir ainda a verdadeque apenas iria se consolidar e se desenvolver a partir dos anos de1980, em virtude de processos sócio-históricos e luta de classes.

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Dimensões da Globalização

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3Globalização Como

Mundialização do Capital

Ao abordarmos a globalização como mun-dialização do capital procuraremos tratá-la comoum processo sócio-histórico concreto que se

desenvolve a partir das últimas décadas do século XX. É umanova etapa de desenvolvimento do capitalismo mundial que surgecom a crise do capital em meados da década de 1970. É nessaépoca que ocorre um complexo de fenomênos sócio-históricosde novo tipo, com a mídia tendendo, mais tarde, a apreende-loscomo a “globalização”. Entretanto, é do nosso interesse investigara lógica essencial de tal fenomêno sócio-histórico, apreendendosuas múltiplas determinações.

Existe uma vastíssima literatura nas ciências sociais que tratada globalização. Na verdade, tornou-se um tema da modaintelectual do Ocidente no fin-du-siècle, uma palavra vadia queprocura traduzir a sensação íntima da profunda mudança sócio-histórica que vivemos, de uma suposta ruptura com um passadoque nos parece distante. Sobre a globalização, ou a pretexto dela,disseminaram-se, principalmente a partir da década de 1990, livros,ensaios e artigos de revistas e jornais em diversos idiomas,principalmente o inglês. Foi a partir dos anos 70 que dissiminou-se uma vasta literatura das ciências sociais procurando discutir anova constelação do capitalismo mundial, buscando descobriras novas significações de um capitalismo criticamente emexpansão (a idéia de crítica é intrinseca a de expansão/desenvolvimento do sistema mundial do capital).

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Em sua maioria, as reflexões sobre a globalização tenderama sucumbir a uma perspectiva impressionista, isto é, meramentedescritiva e muitas vezes não-crítica. Como permanecemvinculadas a um horizonte metodológico positivista, tendem a nãoelaborar o conceito e se rendem à ideologia da globalização,desrespeitando, portanto, seu conteúdo intrinsecamente histórico-dialético.

O nosso intuito é tão-somente indicar alguns elementos parauma teoria dialética da globalização, que reconheça, como seunexo essencial, a contradição sócio-histórica em processo.Estamos nos utilizando de autores do campo histórico-dialéticopara construir uma proposta de investigação da globalização queseja capaz de incorporar as mais diversas contribuições dasciências sociais.

Existe um debate acirrado sobre a globalização. Por um lado,o debate circunscreve-se em torno da questão de saber se aglobalização representa ou não uma nova dimensão sócio-histórica do capitalismo mundial, uma nova época histórico-socialdo processo civilizatório. Por outro lado, discute-se a próprianatureza da globalização, se ela representa uma nova etapa dedesenvolvimento do capitalismo mundial, ou seja, uma “ruptura”com o dinamismo capitalista do passado, como podemoscaracterizar suas conexões essenciais.

Para alguns autores, não haveria nada de novo com aglobalização. Ela apenas reproduziria dinâmicas de expansãocapitalista do passado, tais como as que ocorreram na virada doséculo XIX para o século XX (Hirst e Thompson, 1998; NogueiraBatista Jr, 2000).

Mas não é do nosso interesse abordar as nuances - não apenasteórico-metodológicas, mas inclusive de caráter nacional, dodebate sobre a globalização. Nossa pretensão é tão-somenteapresentar uma breve interpretação ensaística sobre a naturezada globalização que respeite sua legalidade histórico-dialética.

É claro que argumentos, sendo alguns de caráter empírico, contraa idéia da globalização como uma “ruptura” com o dinamismo

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capitalista do passado são sustentáveis. É o que encontramos, porexemplo, em Hirst e Thompson. Entretanto, tais autores tendem, nogeral, a desprezar, de certo modo, primeiro, a natureza essencial dodesenvolvimento capitalismo moderno e, segundo, a importância (esignificado qualitativamente novo) de alguns fenomênos daprodução (e reprodução) do capitalismo mundial a partir da crisecapitalista de meados dos anos 1970 (para uma crítica ponderadade Hirst e Thompson, ver Chesnais, 1997).

Ora, o desenvolvimento capitalista mundial é intrinsecamentedialético, e, portanto, contraditório. É comum presenciarmos nodecorrer do processo de desenvolvimento sócio-histórico docapitalismo, momentos de superação de formas dedesenvolvimento do capital (utilizamos a palavra superação, nosentido da palavra alemã aufhaben, que significa superação/conservação).

Desde o século XVI, o sistema mundial do capital tevediversas formas de desenvolvimento, todas caracterizadas comomodos de expansão do mercado mundial e de disseminaçãocontraditória do modo de produção (e de reprodução) capitalista.Elas articularam um complexo de determinações políticas,culturais e tecnológicas de dominação e poder a serviço dosinteresses de avanço da lógica da modernização. Mercantilismo,colonialismo, imperialismo, neocolonialismo são termos quecaracterizam, desde o século XVI o avanço da expansãocapitalista mundial, sob a hegemonia (e supremacia) de impériose de Estados-nação (Arrighi, 1998).

O que veio a ser denominado de “globalização” é um novomodo de expansão capitalista a partir de um novo regime deacumulação capitalista. A globalização poderia ser consideradao desenvolvimento mais avançado de apresentação do sistemamundial do capital (que passaria a assumir um caráter realmenteorgânico). A partir dessa nova forma de desenvolvimentocapitalista instaurou-se, em meados dos anos de 1970, o quepoderiamos chamar de uma descontinuidade no interior deuma continuidade plena (Alves, 1999).

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É claro que a economia da globalização conserva aindahoje, num sentido ampliado e intensivo, relações, processos eestruturas de produção e troca oriundos da passagem docapitalismo liberal para o capitalismo monopolista. Por isso, algunsargumentos empiricos de Hirst e Thompson, e de outros, podemser sustentáveis. A globalização até poderia ser identificada comoum momento mais avançado do “imperialismo” (termo utilizadopor Lênin para caracterizar, em 1905, a nova etapa do capitalismomonopolista). Mas o conceito de imperialismo não seria maiscapaz de, por si só, expressar as novas significações do sistemaorgânico do capital, apesar de ser uma determinação originária(e essencial) da nova ordem mundial.

Existem novas determinações postas na totalidade concretada economia mundial que nos permitem apreendê-la com novassignificações - uma delas, por exemplo, é a III RevoluçãoTecnológica; uma outra, a nova estrutura do capitalfinanceiro, e ainda, the last but not the least, a derrota e a criseradical da política da social-democracia clássica e do movimenooperário de esquerda (Castells, 2000; Chesnais, 1996; Bihr, 1998).

O que procuramos salientar é que a crise capitalista mundial,a partir de meados dos anos 1970, tendeu a constituir uma novadinâmica de produção capitalista (a discussão sobre a crise docapital pode ser vista em Mandel,1997 e de modo mais acabado,em Brenner, 1998). Subjacente a uma continuidade plena da lógicaexpansionista do capital, que impulsionou processos de expansãoem vários períodos da história do capitalismo moderno (desde oséculo XVI), instaurou-se, mais uma vez, uma descontinuidadeno tocante à dinâmica do sistema mundial do capital.

Mas não é uma mera descontinuidade sócio-histórica, massim um momento de desenvolvimento mais avançado do sistemamundial do capital, qualitativamente novo. É por isso quepoderíamos dizer que presenciamos a constituição real - e nãomeramente formal - de um sistema orgânico do capital.

É deveras perceptivel, principalmente a partir dos anos 1980,a ocorrência de alterações qualitativas, e não meramente

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quantitativas , no sistema mundial do capital. Ao dizermos sistemamundial do capital procuramos caracterizar o capitalismomundial como uma totalidade concreta (Kosik, 1977). Sãomudanças complexas e interrelacionadas nos múltiplos camposda produção e reprodução do ser social capitalista, da ordemprodutiva, tecnológica e cultural, à ordem política, militar e social,que atingem, em maior ou menor proporção, com impactosdiversos e particulares, o conjunto dos países capitalistas, sejameles centrais ou subalternos à “Triade” (EUA, Japão e EuropaOcidental).

Esse determinado complexo de mudanças sócio-históricas,que se desenvolve com vigor nos anos de 1960, e assumiria seuápice a partir da crise capitalista dos anos 1970, instigou, e continuainstigando, o pensamento e a ação sócio-humana. Por exemplo,alguns autores do campo dialético - e inclusive, não-dialético - nosanos 60 procuraram tratar da nova dinâmica capitalista, antevendo,em alguns casos, novas determinações que só assumiriam seudesenvolvimento pleno mais tarde. É o caso de André Gorz, com oconceito de neocapitalismo e Herbert Marcuse, com o debate sobrea sociedade unidimensional e inclusive, os teóricos do pós-industrialismo, como Daniel Bell, entre outros.

Entretanto, o que todos eles não puderam vislumbrar é que anova dinâmica expansionista do capitalismo do pós-guerratenderia a ser conduzida, em termos hegemônicos, com aglobalização dos anos 80, pelo capital financeiro (o queimprimiria uma marca determinada no próprio desenvolvimentodo sistema mundial do capital).

Como procuramos demonstrar, a globalização possui, antes detudo, uma ideologia que oculta seu verdadeiro significado histórico:a mundialização do capital, que significa uma nova estrutura daeconomia (e da política) mundial que dá uma nova dinâmica naprodução (e reprodução) do “sujeito” da modernização (o capital).

Mas, na medida em que compreendemos a globalização comomundialização do capital, somos obrigados a apreende-la comoum processo sócio-histórico intrinsecamente dialético. É dialéticoporque é contraditório e o capital, como salientou Marx, é a própria

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“contradição viva” (Marx, 1985). É por isso devemos considerara globalização não apenas como ideologia ou então comomundialização do capital, mas como um processo civilizatóriohumano-genérico (o que iremos tratar mais adiante).

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A utilização do conceito de mundialização do capital paracaracterizar a globalização vincula-se a percepção analítica deChesnais, desenvolvida no livro A Mundialização do Capital(edição original de 1994) e depois, em A MundializaçãoFinanceira (edição original de 1996).

Como constatamos, são obras delineadas no ápice de umprocesso de desenvolvimento capitalista que assumiu na últimadécada do século XX, o seu mais pleno (e perverso)desenvolvimento. O próprio desenrolar da conjuntura da economiae da política dos anos de 1990, a “década da globalização”, iriaconduzir Chesnais a apurar sua percepção da centralidade plenado capital financeiro, como ele iria reconhecer no livro de 1996:

A interpretação do movimento de conjunto do capitalismomundial proposta por mim em 1994 (ver o último capítulo de“A mundialização do capital”) tomava ainda como ponto departida as operações do capital engajadas na produçãomanufatureira e nos serviços. No referido capítulo,salientava-se o papel das elevadas taxas de juros, assimcomo a capacidade do capital financeiro (entendido aquicomo aquele que se valoriza conservando a forma dinheiro)em imprimir sua marca no conjunto das operações docapitalismo contemporâneo. A esse respeito, o livro coletivosobre a mundialização financeira [A MundializaçãoFinanceira, coordenado por Chesnais, de 1996 - G.A.]apresenta uma mudança, que é mais do que a simplesconsequência do fato de que o referido volume trata damundialização financeira como tal (Chesnais, 1997).

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Portanto, a globalização é, antes de mais nada, uma novaetapa do desenvolvimento do capitalismo mundial, que possuicaracteristicas particulares em relação às etapas sócio-históricasanteriores do desenvolvimento capitalista. Ela se caracteriza,principalmente, pela predominância do capital financeiro noprocesso de acumulação capitalista em detrimento das demaisfrações do capital – a industrial e a comercial. É o que Chesnaisdenomina de “regime de acumulação financeirizada mundial”.

Se antes, sob o fordismo, o regime de regulação e o regimede acumulação era amplamente centrado no setor industrial e noinvestimento em capital produtivo, isto é, o processo deacumulação capitalista ocorria sob a direção hegemônica docapital produtivo de valor, a partir de meados da década de 1970,e principalmente a partir da década seguinte, uma série deacontecimentos no campo da economia e da política docapitalismo mundial, contribuiram para uma mudança de direção:a fração do capital financeiro tornou-se hegemônica.

Para Chesnais, o capital financeiro é aquele que se valorizaconservando a forma dinheiro - uma conceituação clássica decapital financeiro, muito mais próxima da de Marx, apesar deque em nenhum momento Marx utilize a expressão capitalfinanceiro, mas apenas capital a juros ou ainda capital ficticio.

A hegemonia do capital financeiro seria perceptivel atravésda incorporação, pelas demais frações do capital (a fração docapital industrial e a do capital comercial) da lógica do capitalfinanceiro que poderia ser traduzida através de uma expressão- short-termismo (expressão utilizada nos EUA para caracterizaro predomínio das politicas de curto prazo) e que tende apredominar nas decisões de investimentos produtivos:

Imposto pelos mercados financeiros e frequentemente agravadopelo ingresso massivo de fundos de pensão na propriedade docapital, esse horizonte de curto prazo se impõe quase quesistematicamente às custas do emprego, mas também do

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investimento, assim como da pesquisa industrial nos setoresmenos “rentáveis” (Chesnais, 1997: 27).

Horizontes de valorização muito curtos, ditados por imperativosdo mercado financeiro, tendem, portanto, a alterar a próprianatureza do investimento produtivo, que constituiu o core dodesenvolvimento do capitalismo moderno.

Uma anedota, relatada pelo antigo ministro das Finanças doJapão, Toyoo Gyohteno, talvez possa ilustrar os imperativos domercado financeiro que tendem a se incrustrar (e constituir) aprópria lógica do capital industrial. Diz ele:

Há pouco falei com um operador de divisas. Perguntei-lhequais os fatores que levava em conta ao comprar e vender.Ele respondeu: ‘Muitos fatores, a maioria de curtissimo prazo,alguns de médio prazo e outros de longo prazo.’ Achei muitointeressante o fato de que pensasse também a longo prazo equis saber o que ele entendia por isso. Não sem hesitar poruns instantes, disse-me com toda seriedade: “Talvez 10minutos”. É nesse compasso que se move hoje o mercado.(Apud Kurz, 1997:220).

Com a globalização, presenciamos uma verdadeira “ruptura”do sentido de reprodução social, mais do que nunca ameaçadapela lógica parasitária e rentista do capital financeiro:

As características do investimento produtivo, considerado doponto de vista de seu ritmo, seu montante e sua orientaçãosetorial (afora os semicondutores e a informática, são priorizadasas empresas de telecomunicações, o transporte aéreo, asindústrias de mídia, as indústrias de lazer de massa para osaposentados da classe média, etc.) levam a formular a hipótesede que, pela primeira vez na história do capitalismo, a acumulaçãodo capital industrial não está mais orientada, no centro dosistema, para a reprodução ampliada (Chesnais, 1997:27-28).

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Os horizontes de valorização muito curtos construídos pelocapitalismo-cassino (Kurz), tendem a imprimir a sua marca nãoapenas sobre a natureza dos investimentos produtivos, mas sobrea própria sociabilidade capitalista.

Acumulação flexível e mundialização do capital

Em seu livro de 1989, David Harvey constatou a “compressãodo tempo-espaço”, com impactos decisivos nas práticas político-econômicas, no equilibrio do poder de classe, bem como sobre avida social e cultural. Harvey vincula tais mudanças nos usos esignificados do espaço e tempo à transição do fordismo àacumulação flexível.

Inclusive, poderíamos dizer que, para David Harvey, aglobalização seria caracterizada principalmente pela transiçãodo fordismo para a acumulação flexível, um novo regime deacumulação e modo de regulação social e política a ele associado.A globalização seria para ele - e cabe ressaltar que Harvey nãoutiliza em seu livro A Condição Pós-Moderna tal noção - oprocesso de constituição de um novo mundo capitalista apoiadona flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados detrabalho, dos produtos e padrões de consumo:

A acumulação flexível [...] caracteriza-se pelo surgimento desetores de produção inteiramente novos, novas maneiras deserviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxasaltamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica eorganizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudançasdos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setorescomo entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vastomovimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’, bemcomo conjuntos industriais completamente novos em regiõesaté então subdesenvolvidas (tais como a “Terceira Itália”,Flandres, os vários vales e gargantas do silício, para não falarda vasta profusão de atividades dos países recém-industrializados). Ela também envolve um novo movimento quechamarei de “compressão do espaço-tempo” no mundo

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capitalista - os horizontes temporais da tomada de decisõesprivada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação viasatélite e a queda dos custos de transportes possibilitaramcada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaçocada vez mais amplo e variegado (Harvey, 1992: 140).

Como observamos, é uma percepção analítica que,contrastando com a de Chesnais, prende-se à dimensãoprodutiva do sistema mundial do capital. Salienta-se o capitalindustrial como dando a direção de tais processos de flexibilidadee de mobilidade do capital, apesar de Harvey reconheçer que “ocapital industrial, mercantil e imobiliário se integram de tal maneiraàs estruturas e operações financeiras que se torna cada vez maisdifícil dizer onde começam os interesses comerciais e industriaise terminam os interesses estritamente financeiros.” E maisadiante: “A acumulação flexível evidentemente procura o capitalfinanceiro como poder coordenador mais do que o fordismo ofazia.” (Harvey, 1992: 154)

Na verdade, Harvey reconhece que o colapso do fordismo-keynesianismo - como regime de acumulação e modo de regulaçãosocial e político do sistema mundial do capital - sem dúvidasignificou fazer a balança pender para o fortalecimento do capitalfinanceiro, tendo em vista que o abandono das taxas de câmbiofixas e a adoção do sistema de taxa de câmbio flexivel em 1973,com a completa abolição de Bretton Woods (o marco da passagemdo fordismo à acumulação flexivel, segundo ele), significou quetodas as nações-Estados passasem a depender do disciplinamentofinanceiro, adotando medidas institucionais e políticas voltadaspara a abolição dos controles sobre os fluxos de capitais. Osoperadores financeiros privados passaram a desempenhar umpapel decisivo na determinação dos preços relativos das moedas(as taxas de câmbio). Foi o primeiro passo na formação de ummercado financeiro mundializado.

Portanto, surgem algumas interrogações: a predominânciado capital financeiro no seio do sistema orgânico do capital enão meramente um novo regime de acumulação do capital

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industrial (a acumulação flexível), não seria a verdadeiraexplicação para a exacerbada fragmentação, fluidez e caospatente da vida moderna? Não seria o novo regime de acumulaçãomundial financeirizada, o verdadeiro espírito da acumulaçãoflexível e, portanto, da própria globalização ?

Numa breve passagem, ao tratar do capital financeiro comosendo um poder coordenador da acumulação flexível, Harveyprevê (em 1989, portanto pouco depois do crash financeiro de1987), uma maior potencialidade, muito maior do que antes, deformação de crises financeiras e monetárias autônomas eindependentes,

apesar de o sistema financeiro ter mais condições deminimizar os riscos através da diversificação e da rápidatransferência de fundos de empresas, regiões e setores emdecadência para empresas, regiões e setores lucrativos(Harvey, 1992: 155).

E observa:

Boa parte da fluidez, da instabilidade e do frenesi pode seratribuída diretamente ao aumento dessa capacidade de dirigiros fluxos de capital para lá e para cá de maneiras que quaseparecem desprezar as restrições de tempo e de espaço quecostumam ter efeito sobre as atividades materiais deprodução e de consumo. (Harvey, 1992: 155)

O que a década de 1990 iria demonstrar era o poderexacerbado do capital financeiro como o coordenador daacumulação flexivel. O conceito de mundialização financeiracomo sendo o núcleo orgânico da mundialização do capital iriatraduzir tal percepção heurística.

Se uma das caracteristicas do capital em processo é tornar omundo a sua imagem e semelhança, o mundo capitalista que surgecom a globalização como mundialização do capital é um mundocapitalista particularíssimo, imagem e semelhança das

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peculiaridades ontológicas de uma fração do capital que expressacom maior desenvoltura a própria forma de ser do “sujeito’ capital(o capital financeiro).

É claro que a flexibildade é o ser-precisamente-assim docapital em geral. Mas é o capital financeiro que expressa commais desenvoltura - e negatividade - essa flexibilidade do capitalem geral, acentuando, como ressaltou Harvey, “o novo, o fugidio,o efêmero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez dosvalores mais sólidos implantados na vigência do fordismo.”(Harvey, 1992:161).

O Que é o Capital: Um Excurso Onto-Metodológico

Ao dizermos “lógica do capital” não salientamos apenas adimensão da economia, como alguns interpretes liberais podemapreender. Na visão liberal, a cisão entre economia e política (eoutros dimensões do ser social) é que impede de apreender overdadeiro sentido do capital como “sujeito” do processo demodernização.

Ora, o capital é, antes de tudo, uma relação social deprodução (e reprodução) da vida material, complexa e articulada,voltada para a valorização do valor (ou seja, a acumulaçãoperpétua de riqueza abstrata) . É um modus vivendi, o quesignifica considerar a série de dimensões reprodutivas sócio-metabólicas voltadas para sustentar a lógica do “sujeitoautomático”, insaciável, da acumulação de riqueza através daprodução de mercadoria (Marx, 1985).

Depois, o capital é um modo de controle social, capaz deconstituir (e reconstituir), de modo particular, a totalidade socialconcreta, seja a economia, a política, a cultura, etc., na perspectivade uma sustentação orgânica de seu objetivo essencial - aextração de sobretrabalho. Por isso que, ao dizermos capital,pressupomos como sua contraparte orgânica e seu elo íntimo, oEstado político e sua superestrutura jurídico-ideológica)(Mészáros, 1995).

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Ao salientarmos o capital como o nexo orgânico articuladorda sociabilidade moderna, procuramos apreender o capital comouma totalidade concreta e a globalização como expressão dedesenvolvimento tardio e complexo, com novas múltiplasdeterminações, desta “totalidade concreta” que é o capital como“sujeito” da modernização (Kosik, 1977).

É por isso que os processos da globalização só podem serapreendidos como a interconexão essencial da economia eda política (e dizemos mais: da ideologia e da cultura, pois sãoeles que sedimentam a nova totalidade concreta do capitalismomundial). Os movimentos da economia são intrinsecamentepolíticos e os movimentos da política possuem uma dimensãomaterial-objetiva intrinsecamente vinculada à lógica daacumulação do capital. Ou sendo mais rigoroso - não apenas“vinculados”, no sentido de uma “exterioridade”, masverdadeiramente orgânicos. O capital e o Estado político, comoforma coesiva e abrangente que sedimentam as condições davalorização do capital, são elementos profundamenteindissociáveis (uma verdade obnubilada pela ideologia liberal, comsua estadofobia).

Deste modo, ver a globalização como o desenvolvimento dalógica do capital exige apreender o capital como uma totalidadeconcreta, com seus momentos predominantes e subordinados,mas numa relação dialética, onde não podemos reduzirmeramente uma determinação a outra.

É comum, numa análise impressionista da globalização, nãoapreende-la como um sistema orgânico do capital, possuindo,inclusive, em sua forma-Estado político, o componente essencialda própria fenomenologia da globalização. E mais ainda: nãoapreender como “núcleo determinante” do sistema orgânico docapital hoje, o capital financeiro. Muitas vezes perde-se suasconexões essenciais e concretas (“o concreto como síntese demúltiplas determinações”, como diria Marx) e tende-se a dissolve-las num caótico emaranhado de fatos e acontecimentos. Por

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isso que a apreensão do sentido verdadeiro da globalização exige,como condição prévia de uma elaboração heurística rigorosa,uma discussão ontológica (e metodológica), o que a maioriados analistas - sociologos, geográfos, politicológos e economistasse recusam, tendo em vista que são, em sua maioria, presasindolentes do neopositivismo vicejante.

O Conceito de Capital Financeiro

É preciso salientar que o conceito de capital financeiro, o“sujeito” da globalização como mundialização do capital, assumeuma nova densidade ontológica nas últimas décadas do séculoXX (nos primórdios do século XX ele já despontava com algumasdeterminações concretas). Na verdade, ele é atingido pormutações qualitativas, decorrente de alterações quantitativasdo sistema do capital.

Para apreender a particularidade concreta do desenvolvimentodo conceito de capital financeiro, devemos compreende-lo nãoapenas como sendo a fusão do capital industrial e do capitalbancário (tal como apresentado por Hilferding e Lenin), mas comoaquele que se valoriza conservando a forma dinheiro eassume a forma essencial não apenas de capital a juros, mas,principalmente de capital fictício ou ainda de capitalespeculativo parasitário.

Por exemplo, segundo Carcanholo e Nakatami, o capitalespeculativo parasitário, que nós identificamos com o capitalfinanceiro, resultaria da conversão da forma autonomizada docapital a juros quando este ultrapassa os limites do que énecessário para o funcionamento normal do capital industrial.

Numa leitura atenta de Marx, os autores observam que tanto ocapital produtivo - o único capaz de produzir diretamente a mais-valia, quanto o capital comercial e o capital a juros são formasfuncionais autonomizadas do capital industrial. Ao tratar do capitalcomercial e do capital a juros observam que, sem a existência destesdois, a magnitude de valor constituída pelo capital produtivo não seriacapaz de produzir a mais-valia na mesma medida. A divisão de

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tarefas, ao especializar-se cada um em funções específicas, os fazmais “produtivos”, ou melhor, mais eficientes:

O volume total de valor resultante da soma dos três capitaisautonomizados não seria capaz de produzir e se apropriar damesma magnitude de mais-valia se funcionassem sem adivisão de tarefas; se cada uma das empresas tivesse quecumprir todas as funções necessárias ao capital industrial.

E logo a seguir:

Apesar do capital a juros (também o capital comercial) seapropriar de parte da mais-valia sem produzi-la, ele não éparasitário uma vez que contribui para que o capital produtivoo faça. Permite até que o capital, em seu conjunto, seja maiseficiente. O capital a juros se subordina à lógica do capitalindustrial. Durante determinado estágio de desenvolvimentodo capital, o capital produtivo é o dominante, subordinado àsua lógica tanto o capital a juros como o capital comercial.Esse é o estágio da existência e do predomínio do capitalindustrial no qual o pólo dominante é o capital produtivo(Carcanholo e Nakatami, 1999).

Portanto, tanto o capital comercial quanto o capital a juros,em determinado estágio de desenvolvimento capitalista,apareceram como formas funcionais autonomizadas do capitalindustrial. Nessa perspectiva, existe uma relação defuncionalidade entre as formas autonomizadas do capitalindustrial.

Por exemplo, os bancos, portadores institucionais do capitala juros, através da concessão de créditos a outros, particularesou empresas - créditos ou emprestimos a prazos variados -desempenham uma função central para qualquer economia demercado e para a economia capitalista em particular. Não é suficienteproduzir, é preciso vender, e na expectativa de realizar as vendas é

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preciso continuar a produzir. Neste ponto é que os bancosdesempenham seu papel - eles garantem a continuidade das trocasentre as indústrias e lhes permitem aguardar o momento da validaçãosocial da produção pela venda no mercado final.

Quanto ao capital ficticio, conceito utilizado por Marx, ele é,de certo modo, uma derivação do capital a juros. É uma formamais desenvolvida, própria de um desenvolvimento ampliado ( egeral) da forma-mercadoria. O desenvolvimento, a expansão, aexistência generalizada do capital a juros no capitalismodesenvolvido transforma todo tipo de rendimento regular em umareceita que parece provir de um capital a juros.

A formulação de Marx no capítulo XXX do livro III d’OCapital é clara:

A forma do capital produtor de juros faz que toda rendamonetária determinada e regular apareça como juro de umcapital, derive ela ou não de um capital [...] Todavia, essaidéia (a de ser capital) é puramente ilusória, excetuando ocaso em que a fonte...seja diretamente transferível ou assumaforma em que se torne transferível. (Apud Carcanholo eNakatami, 1999)

Uma das formas típicas do capital ficticio é constituido pelostítulos da dívida pública, ou seja, os governos podem venderdireitos de apropriação sobre parcelas de sua receita com impostosfuturos. É claro que se o direito de apropriação de receita ourendimento regular for transferível comercialmente, o capitalcriado dessa maneira - em virtude da propriedade daquele título- aparece nas mãos de seu detentor como seu verdadeiro capital,mas, para a sociedade como um todo, do ponto de vista datotalidade social, não passa de um capital ilusório, de um capitalficticio, com movimento próprio e com certa independência docapital real (apesar do capital ser ficticio, do ponto de vista datotalidade social, possui uma existênca real, com sua lógicainterferindo realmente na trajetória e nas circunstâncias daacumulação e da acumulação de capital real).

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Além dos títulos da dívida pública, uma parcela significativado capital ficticio no capitalismo desenvolvido está constituidopor títulos privados como ações, debêntures e letras de câmbio,papéis que conferem diretos de apropriação sobre parcelas deriqueza real produzida. Por isso, no caso dos títulos privados,dentro de certos limites, seu valor tem uma correspondência real.Pelos menos uma parte do capital ficticio corresponde àmagnitude de capital real, tem um lastro em termos de atividadeprodutiva real ou de ativos físicos.

O problema é que, seu valor tende a crescer ou diminuir porrazões aleatórias (ou especulativas) à atividade produtivareal, existindo ao lado do capital real como outro capital que sesoma a este. De maneira que uma parte do capital ficticio poderealmente ter uma existência puramente ilusória do ponto de vistada totalidade social.

As formas do capital ficticio são múltiplas sob o capitalismotardio. O que, num primeiro momento, pode ser constatados, porexemplo, pelo crescimento do mercado de títulos públicos e títulosprivados tradicionais tais como ações, debêntures, letras decâmbio, etc e, num segundo momento, por outras formas de direitode propriedade, ou seja, um complexo de inovações no mercadode capital ficticio, inclusive, como iremos ver adiante, o mercadodas “marcas” tende a tornar-se um importante capital ficticiopara algumas importantes corporações globais.

Nem todo capital a juros deve ser considerado capitalficticio, isto é, pode ser capital bancário, desempenhando uma funçãoprodutiva na atividade industrial. Nem todo capital ficticio podeser considerado capital a juros tal como explicitamos, isto é, comoaspecto do capital industrial e portanto como uma forma funcionalautonomizada deste. Por exemplo, como destacam Carcanholo eNakatami, o capital ficticio representado pelos títulos da dívida públicanão podem ser considerados como forma funcional do capitalindustrial, ou seja, a rigor, não cumprem uma função útil para acirculação do capital industrial.

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O capital a juros, tal como o capital ficticio, é um capital não-produtivo. Entretanto, o capital a juros cumpre uma função útil eindispensável à circulação do capital industrial na medida, emboraimprodutivo. No caso do capital ficticio, além de ser improdutivo,pode ser considerado parasitário. Não cumpre função necessáriadentro da lógica do capital industrial, sendo sua remuneraçãopuro ônus para este.

Como observam Carcanholo e Nakatami, dentro de certoslimites, o volume do capital ficticio não comprometesubstancialmente a lógica da acumulação do capital industrial ea sua trajetória. Entretanto, uma explosão no volume do capitalficticio, que pode ocorrer sob determinadas condições, tais comoas que constituiram a mundialização do capital, pode alterar alógica do capital industrial

...o crescimento acelerado da dívida pública de váriosEstados nacionais; elevados déficits da balança comercialou das transações correntes; de circunstâncias em que seincrementem substancialmente as taxas de juros ou seproduza instabilidade nos mercados de câmbio fruto dedificuldades no padrão monetário. A questão dodescolamento ou explosão do capital ficticio torna-se umproblema para o capitalismo. (Carcanholo e Nakatami, 1999)

Ocorre o descolamento entre a massa de dinheiro e aprodução real. Nessa perspectiva, o que podemos caracterizarcomo sendo o capital financeiro é o próprio capital ficticioexacerbado, quando ultrapassa em volume os limitessuportados pela reprodução do capital industrial. O capitalfinanceiro, ou o capital especulativo parasitário, é um capital quenão produz mais-valia ou excedente-valor e não favorece nemcontribui para a sua produção. Apesar disso, ele se apropria deexcedente e o exige em magnitude crescente:

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Sua lógica é a apropriação desenfreada da mais-valia, oumelhor, do lucro (o lucro especulativo); realiza assim, oupelo menso pretende fazê-lo, os anseios derivados da próprianatureza íntima do capital: o não compromisso com o valor-de-uso e, apesar disso, a autovalorização. Ele conduz oupretende conduzir a contradição valor/valor-de-uso aoextremo do seu desenvolvimento, isto é, teoricamente àdestruição do valor-de-uso (Carcanholo e Nakatami, 1999)

A globalização como mundialização do capital é, portanto,um processo de desenvolvimento do capitalismo mundial sob adireção do capital financeiro num sentido preciso - o capitalficticio exacerbado, o capital especulativo parasitário,representação contundente, exacerbada (e degradada, naperspectiva da totalidade social) da forma de circulação D-D’(ser capital-dinheiro que se valoriza conservando a formadinheiro).

De certo modo, o capital financeiro, tal como o capital a juros,expressa a qualidade essencial do capital em geral, isto é, “...afinalidade absoluta que determina o movimento [do capital] é ovalor-de-troca e não o valor-de-uso.” (Marx). O motivo queimpulsiona a produção capitalista é fazer dinheiro e não satisfazernecessidades humanas. É o valor de troca e não o valor de uso.O dinheiro é a representação universal do valor de troca e dovalor. É a sua forma autônoma, pálpavel de manifestação. Alógica do capital financeiro, tal como o capital a juros, é a dociclo do capital dinheiro, onde é perceptivel a capacidade dodinheiro fazer frutificar seu próprio valor com independênciarelativa da reprodução social. Marx, por exemplo, dizia ser ocapital a juros, a “mistificação capitalista em sua forma maisbrutal”.

Mas, sob o capital ficticio, o fetichismo do capital-dinheiroassume sua forma estranhada mais desenvolvida. Segundo aperspectiva do ciclo do capital-dinheiro, “o processo de produçãonão passa de elo intermediário inevitável, de mal necessário do

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mister de fazer dinheiro.” (Marx). Sob a mundialização do capital,a vigência do capital ficticio exacerbado aparece como umcontorno estrutural desse “mal necessário” do processo deprodução, dando uma autonomia quase-absoluta ao ciclo docapital-dinheiro.

Por isso, o conceito de capital financeiro decorre de alteraçõesqualitativas do ciclo do capital-dinheiro, decorrentes dealterações quantitativas do próprio sistema orgânico do capitalque explicitaram, com muito maior “luminosidade”, a sua formade ser essencial. Por capital financeiro deve-se entender nãoo capital a juros propriamente dito, mas o capital ficticio,principalmente em sua forma exacerbada, parasitária e rentista.É uma nova determinação do dinheiro como figura autônoma epálpavel do valor em processo (o “sujeito” da modernização):

Por realizar os anseios mais íntimos, mas não confessáveis,do capital e por apresentar-se não dependente da lógica docapital industrial, o capital especulativo parasitáriocontamina todo o capital existente que com ele se relaciona.(Carcanholo e Nakatami, 1999)

Na medida em que se desenvolve, assumindo novas dimensãoquantitativas, o capital ficticio exacerbado tende a imprimir asua marca sobre o próprio processo de produção/acumulação ereprodução capitalista.

O capital produtivo, o capital comercial e o capital a juros,que cumprem funções autonomizadas de capital produtivo, tendema se submeter à lógica do capital ficticio exacerbado, uma lógicacada vez mais especulativa. Sob a globalização comomundialização do capital, a hegemonia da produção (ereprodução) capitalista está nas mãos do capital financeiro. Ocapital industrial tende a introjetar em si a lógica especulativa,convertendo-se em capital financeiro:

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O capital industrial, cuja lógica era a apropriação baseada naprodução de mais-valia, converte-se não em capitalparasitário, mas em capital especulativo. Na verdade,enquanto este é síntese, o capital especulativo parasitário,dentro dele, é a dimensão daquele que se remuneraparasitariamente; é, portanto, seu aspecto parasitário edomina toda a sua lógica (a lógica do capital especulativo,como síntese) (Carcanholo e Nakatami, 1999).

Os representantes diretos do capital financeiro, ou capitalficticio exacerbado, isto é, capital parasitário e especulativo, seriamhoje, os “sujeitos” portadores de uma massa de capital-dinheiro(fundos mútuos de investimentos e de pensão, companhias deseguros e bancos) cuja lógica constituitiva de sua valorização é ado ciclo do capital-dinheiro - D-D’ que incorporam uma dimensãoparasitária especulativa.

Os bancos são os portadores clássicos do capital a juros,cujo negócio, desde eras pré-capitalistas, sempre foi “fazerdinheiro com dinheiro”. Na verdade, eles tendem a desempenharuma função indispensavel na produção capitalista. Entretanto,podem se tornar portadores diretos do capital ficticio quandopassam a deter, por exemplo, a propriedade de títulos da dívidapública e através de atividades altamente especulativas - e nãopropriamente de incentivo à produção - valorizam o capital.

A partir da liberalização e a desregulamentação financeiraocorrida na década de 1980 nos principais países capitalistascentrais (principalmente EUA e Reino Unido), os grandes bancosforam lesados, tendo em vista que passaram a ter umaconcorrencia acirrada de instituições financeiras nao-bancárias(por exemplo, fundos mútuos de investimento e de pensão).Forçados a obter lucros a qualquer preço para manter sua cotaçãona bolsa, muitos passaram a conceder emprestimos arriscados aempresas e países, além de emprestar a fundos especulativosespecializados e sobretudo lançar-se a atividades altamente

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especulativas (contribuindo deste modo para valorizar o capitalficticio).

A promiscuidade entre os bancos e o mercado financeiromundializado, dominado por atividades especulativas (tais comoo mercado de câmbio), contribuiram, de certo modo, para tornarvulnerável (e instável) os sistemas de crédito nacional, instituiçãoindispensáveis para o próprio desenvolvimento da economiacapitalista.

É claro que os grandes bancos comerciais e os bancos deinvestimento, extrairam lucros bastante substanciais nasoperações de mercado de câmbio. Para os bancos mais bemposicionados, as comissões sobre as operações de câmbio sãouma fonte crucial de lucros, além é claro de emprestimosinternacionais geradores de fluxos de rendimentos por meio dejuros elevados a que são concedidos os empréstimos (dirigidosaos “promissores” países capitalistas em desenvolvimento, aosseus sistemas bancários nacionais e às empresas desses mesmospaíses).

Por isso, sob a mundialização do capital, o capital a jurostende cada vez mais a desprezar a sua funcionalidade àsatividades produtivas e a comprometer-se com atividadesaltamente especulativas, vinculadas à lógica do capital ficticioque permeia um mercado financeiro mundializado.

É provável que a crise estrutural de valorização do capital,expressa numa crise de superprodução em alguns setoresindustriais, possa ser a determinação essencial do escarçamentodas frações funcionais autonomizadas do capital industrial e aconsolidação do poder hegemônico do capital financeiro (ou docapital ficticio exacerbado) na produção (e reprodução) docapitalismo tardio.

Sob a globalização como mundialização do capital, asinstituições privadas mais poderosas do mercado financeiromundializado são as instituições financeiras não-bancárias,com enorme poder político e financeiro. São as organizaçõesfinanceiras que não têm responsabilidade de criação de crédito,

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como os bancos, e que se especializam apenas na frutificaçãoda liquidez de uma massa de capital-dinheiro que recolheram econcentraram em suas mãos. É o caso, portanto, das companhiasde seguro, os fundos de previdência privada por capitalização(os fundos de pensão) e os fundos mútuos de investimentos,administradores de carteiras de títulos (Mutual Funds, bancosde investimento ou companhias de seguro).

Por exemplo, uma das instituições centrais do capital financeirosão os fundos de pensão por capitalização. Eles centralizamuma imensa massa de capital-dinheiro resultado acumulado decontribuições sobre salários e benefícios. É claro que a suafinalidade declarada é garantir a esses assalariados, quando seaposentarem, uma pensão regular e estável. Em virtude da criseda previdência pública, os governos neoliberais tendem aincentivar a constituição de fundos de pensão por capitalizaçãoprivada. Na verdade, eles constituem formas institucionais decentralização de poupança.

Entretanto, a partir do momento em que a poupança acumuladaultrapassa certo limite, os fundos passam a figurar entre asinstituições financeiras não-bancárias, tendo a função de fazerfrutificar um montante elevado de capital monetário, preservandoa liquidez e a máxima rentabilidade deste. A lógica dialética dapassagem da quantidade à qualidade, aplicada a uma massade dinheiro é perceptivel. A partir daí, muda a natureza econômicados fundos, tendo em vista que eles deixam de ser a expressãode uma poupança modesta e se tornam instituições centrais docapital financeiro e das “finanças especulativas”, contribuindopara a germinação de um capital ficticio exacerbado.

O capital financeiro, compreendido como capital ficticioexacerbado ou capital parasitário e especulativo, adquiriu umcaráter estruturante da mundialização do capital, a partir dos anos1980, em virtude de um amplo movimento de desregulamentaçãomonetária e financeira (que ainda não se encerrou), levada acabo pelas políticas neoliberais e monetaristas decididas por

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dois importantes países da OCDE: EUA e Reino Unido, com anomeação de Paul Volcker para o Federal Reserve e a ascençãode Margaret Thatcher ao poder).

Num primeiro momento, elas se caracterizam pela rápidaconstituição (e expansão) dos mercados de títulos liberalizadosque vieram atender aos interesses dos governos e dos grandesgrupos que centralizavam poupança. Na verdade, atendeu, emprimeiro lugar, às necessidades de financiamento dos déficitsorçamentários dos governos dos países capitalistasindustrializados. Diante de uma crise orgânica do Estadocapitalista, de origem fiscal, a implantação de um mercado detítulos, com a “mercadorização” dos títulos públicos, ou seja, acolocação de títulos do Tesouro e outros títulos da dívida nosmercados financeiros, permitiu o financiamento dos déficitsorçamentários.

Os mercados de títulos público tornaram-se a “espinha dorsal”dos mercados de títulos internacionais com 30% dos ativosfinanceiros mundiais em busca de rendimentos estáveis e liquido,liquidez assegurada pelos mercados secundários, onde os títulossão negociáveis o tempo todo.

A partir daí, a economia mundial tende a entrar na era dastaxas de juros reais positivas, tendo em vista que era atravésda elevação das taxas de juros reais (ou do jogo com o nível dataxa de câmbio de sua moeda) que os governos poderiam tornaras emissões de títulos mais atraentes para os investidoresfinanceiros (por exemplo, em 1980, através da elevação súbitado preço do dólar os Estados Unidos atrairam rapidamente aliquidez mundial).

Deste modo, a “mercadorização” dos títulos públicos pôsnas mãos do capital financeiro a capacidade de determinar onível de “remuneração” dos empréstimos, isto é, das taxas dejuros a longo prazo. É o que Chesnais salientou como sendo osistema da “ditadura dos credores” como regime de carátermundial,

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a era do credor vitorioso, o regresso do capital especulativoque passou a centralizar uma riqueza equivalente a muitospontos do PNB dos países da OCDE e a muitas dezenas depontos do PNB de certos países em desenvolvimento(Chesnais, 1998).

Mas a “mercadorização” dos títulos públicos, resultado da“securitização” da dívida pública, tendeu a provocar a explosãoda dívida federal, com o serviço da dívida crescendoexponencialmente. O caso dos EUA, o “olho do furação” dafinanceirização internacional, é exemplar: em 1998, segundo oFMI, só a dívida pública norte-americana representa 39% dototal da dívida pública dos países da OCDE. Não é nadadesprezível o impacto da dimensão (em termos absolutos) dadívida norte-americana, com todas as consequências que tempara a estrutura dos fluxos internacionais de capitais e para osníveis de taxas de juros.

Essas reformas constitutivas da mundialização financeira, quetiveram origem nos Estados Unidos e depois no Reino Unido etenderam a se disseminar pelo mundo capitalista nas décadasseguintes, beneficiaram as instituição financeiras de mercado,principalmente as organizações financeiras não-bancárias,possuidores de uma imensa massa de capital que atua quaseexclusivamente na esfera financeira. Como observa Chesnais,diante dos fundos de pensão e dos mutual funds e organismosde aplicação coletiva em valores mobiliários ou OPCVM, osmaiores bancos parecem nanicos (Chesnais, 1999).

Além dos mecanismos institucionais de “securitização” dadívida pública, uma série de determinações ligadas ainda à políticaneoliberal e seus resultados sociais (e tributários) alimentaram eretro-alimentaram o desenvolvimento de uma esfera financeira,parasitária e especulativa, berço de um capital fictício exacerbado.Por exemplo, a diminuição do imposto sobre os rendimentosdo capital e a distribuição desigual de renda. Por um lado,

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ela - a diminuição do impostos sobre os rendimentos do capital,item programático de governos neoconservadores, contribui, decerto modo, para o déficit público, retro-alimentando asecuritização da dívida pública; e por outro lado, ao aprofundara distribuição desigual de renda, tende a transferir e concentraruma poupança que pode ser “investida” em títulos públicos -créditos sobre as receitas fiscais futuras dos Estados ou em ações- promessas ou expectativa de participação nos lucros a seremrealizados pelas empresas. Como resultado final, sempre oincentivo à obtenção de rendimentos financeiros, especulativose parasitários, não associado a uma atividade específica como ado assalariado, do capitalista ou do funcionário público.

Portanto, o capital financeiro, como temos caracterizado comocapital ficticio exacerbado ou capital parasitário e especulativoobteve, nos últimos trinta anos, uma série de incentivos estruturaisque impulsionaram a mundialização financeira que tornou-se o“núcleo orgânico” da expansão capitalista do final do século XX(a globalização).

A fenomenologia do capital financeiro

Após a caracterização do capital financeiro, podemos nosinterrogar: quais os dados empíricos que nos permite supor quese constituiu, e se constitui, um regime de acumulaçãofinanceirizada mundial, principalmente nas últimas décadas doséculo XX?

Em primeiro lugar, a instabilidade crônica da economiacapitalista, caracterizada pela oscilação e “exuberância irracional”do mercado financeiro.

Em segundo lugar, o ritmo de crescimento muito baixos daeconomia capitalista mundial, próximos da estagnação, tanto nocentro quanto na periferia do sistema mundial do capital (o queexplica os indices mediocres das taxas de investimento produtivosnos países da OCDE, a maior parte dos fluxos de investimentos

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de capital que cresceu, de modo exuberante, na década de 1990,não agregam capacidade produtiva).

Em terceiro lugar, o crescimento do desemprego de massa,acompanhado de um alinhamento tanto dos niveis salariais comoda “flexibilidade” das condições de contratação e de trabalhocom aqueles dos países capitalistas em que a força de trabalho ésuperexplorada.

Em quarto lugar, a ampliação da desigualdade entre (e no interior)dos países capitalistas e das suas regiões, seja desigualdade de rendae das condições de existência. Por exemplo, a “desconecção forçada”de regiões do continente africano dos fluxos de investimentocapitalistas atestam as mutações qualitativas ocorridas na estruturado sistema mundial do capital.

Em quinto lugar, as políticas monetaristas ortodoxas de carizneoliberais levadas a cabo pelos Bancos Centrais da OCDE ecapitalistas “emergentes” (a política de juros altos e a obsessãopelo combate à inflação).

Em sexto lugar, a cultura da pós-modernidade e o culto dafluidez, contingência e individualismo, próprias de uma ordemcapitalista exacerbada pelo fetichismo da mercadoria.

Na verdade, tais acontecimentos são expressões contingentesdo advento da mundalização do capital e caracterizam, de certomodo, o núcleo essencial do processo de globalização.

A vinculação entre a financeirização dos mecanismos deprodução e reprodução do capitalismo mundial e os váriosaspectos da vida social e política capitalista são flagrantes.

Por um lado, podemos salientar, com respeito a dimensãoorganizacional do empreendimento capitalista, a constituição dassociedades holdings com cariz financeirizado; e , por outro lado,com respeito a dimensão da programática política capitalista notocante a gestão da macroececonomia do sistema do capital, aspolíticas neoliberais de cunho monetaristas. Em ambos os casossão perceptiveis a marca da direção hegemônica do capitalfinanceiro.

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- A organização em “holding” e a “empresa-rede”

É perceptivel que, quase sem exceção, o grande grupoindustrial é uma sociedade holding, que se distingue da grandemassa de empresas capitalistas, por serem grupos financeirosde domínio industrial, mas com diversificações nos serviçosfinanceiros, bem como com uma atividade cada vez maisimportante como operadores dos mercados de câmbio e dosmercados em que se negociam as formas mais notáveis de capitalfícticio, particularmente dos “produtos derivados”.

Segundo a OCDE, uma firma constitui uma holding quandosua função consiste em deter investimentos ou créditos de outrasfirmas, no mesmo ou num terceiro país. Ela é considerada comosociedade financeira e, em certos países, pode empregar apenasum pequeno número de pessoas, o necessário para manter oslivros em dia. Frequentemente, a escolha geográfica da sede dasholdings depende das vantagens fiscais oferecidas pelos paísesreceptores (Chesnais, 1995:56).

A organização em holding permite que o grupo industrialpossua um banco de grupo, além de confiar a responsabilidadedas operações financeiras ao seu Departamento Financeiro. Porisso, torna mais fácil seu acesso às finanças globalizadas,participando o capital industrial da tendência ao fortalecimentodas posições rentistas do capitalismo contemporâneo.

Mas, a organização em holding não possui apenas umafuncionalidade estrutural com respeito à lógica especulativadas finanças globalizadas, mas, possui, outrossim, umafuncionalidade estrutural com respeito à lógica da apropriaçãoparasitária de mais-valia criada através das redes de produçãode mercadorias. Vejamos como.

Uma das características do capitalismo tardio desenvolvidoé a amplitude e intensidade do processo de concentração ecentralização do capital e a constituição predominante de umaestrutura de oferta oligopólica (que reúne o pequeno círculo dos

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“melhores”). É perceptivel, principalmente a partir das últimasdécadas do século XX, o acirramento dos processo de aquisição-fusão através do investimento externo direto que não implica,algumas vezes, em crescimento positivo do capital social,contribuindo apenas para deter a baixa da taxa de lucroabsorvendo outras firmas, agregando suas partes do mercado àsque elas já détem, integrando eventualmente alguns elementosde sua capacidade de produção e de investigação técnica, masdesmantelando a maior parte.

Portanto, a organização em holding tornou-se adequada a umaforma de grande empresa capitalista caracterizada por múltiplasparticipações acionárias minoritárias e sobretudo com numerososconvênios de subcontratação e de cooperação interempresarial comsócios de poder econômico amiúde muito desigual, na maioria doscasos, o subcontrato industrial tem o caráter de uma “quase-integração”, que obriga o subcontratista e seus assalariados a suportara maior parte dos riscos de mercado).

Surge um tipo de grande firma capitalista designada pelaexpressão empresa em rede - “multinacionais de novo estilo”,cujas fronteiras são deveras permeáveis, não apenas no tocantea natureza da atividade industrial e ou de serviços, masprincipalmente no tocante a fronteiras entre lucro e a renda naformação dos lucros de exploração dos grupos.

Na verdade, em virtude tão-somente do poder econômicoresultante do seu tamanho e de seu poder de mercado, o grandegrupo industrial, organizado em holding, tende a se apropriar,através de um direito de propriedade de cariz rentista, da mais-valia criada coletivamente no seio de um conjunto de empresastrabalhando em rede:

Os direitos de propriedade apresentam muitas formas. Emprincipio, títulos de qualquer tipo podem ser comprados evendidos. Os governos podem vender direitos deapropriação sobre parcelas de sua receita com impostosfuturos. Os títulos de propriedade sobre mercadorias podem

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ser vendidos sem que elas mudem realmente de mãos ou,como acontece nos mercados futuros, antes mesmo daprodução real delas. Os títulos de propriedade sobre a terra,sobre os edíficios e sobre os recursos naturais (direito deperfuração de campos petrolíferos, de exploração de minerais,etc.) também podem ser vendidos e comprados. Sob ocapitalismo, existem, segundo parece, tantos tipos demercados de capital fictício quanto diferentes formas depropriedade.” (Harvey, 1982 Apud Carcanholo e Nakatani).

Ora, a apropriação da mais-valia criada coletivamente no seiode um conjunto de empresas trabalhando em rede, pelo grupoindustrial organizado em holding, não deixa de ser, de certo modo,mais uma forma de intrusão paradoxal da lógica do capitalespeculativo na estrutura do capital industrial.

Existe um tendência dominante de grupos industriaisassumirem, de vez, seu caráter rentista, se apropriando de parcelasda mais-valia criada no seio da rede de subcontratação em virtudede deterem o direito de propriedade da marca. É, com certeza,um flagrante da mundialização financeira.

A ironia da mundialização financeira, como iremos ver maisadiante, é que um regime de acumulação predominantementefinanceirizado, portanto, especulativo, parasitário e rentista, tenhaainda como ideologia orgânica da organização e da produçãocapitalista, o toyotismo, uma ideologia produtivista (tal como otaylorismo-fordismo).

As políticas neoliberais

A adoção de políticas neoconservadoras de cariz liberal apartir de fins da década de 1970, como uma resposta à crise daseconomias capitalistas centrais e fracasso das políticas clássicasda macro-economia keynesiana, contribuiram para odesenvolvimento da mundialização do capital e a constituição,

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em seu núcleo orgânico, de uma tendência à financeirizaçãodos processos de produção, acumulação e reprodução capitalistas.

Antes da crise do capital em meados da década de 1970,percebia-se a constituição - ainda pontual - de uma economia demercado financeiro mundializado e de um capital financeirorobusto e ávido de valorização fictícia.

Por exemplo, desde metade dos anos 60, no auge do fordismo,o mercado de eurodoláres prefigurava um mercado mundial dodinheiro e do crédito, totalmente livre do controle público, ummercado de dinheiro sem Estado anunciando as possibilidadesda mundialização financeira.

O mercado financeiro do eurodólar beneficiava as corporaçõesamericanas e os bancos internacionais, interessados em romperas amarras das nações-Estados e suas regulamentações fiscaise financeiras. Tornou-se uma imensa concentração de capitaisque conservavam a forma dinheiro e procuravam obter lucrossem sair da esfera financeira (ele se expandiu de 50 bilhões dedólares em 1973 para quase 2 trilhões em 1987, aproximando-se,segundo Harvey, do montante de agregados monetários existentenos Estados Unidos). O capital-dinheiro que se achava depositadojuntos aos bancos internacionais constituia-se, principalmente, doslucros industriais das corporações americanas realizados naEuropa Ocidental e não repatriados (Chesnais, 1999; Harvey,1992).

No decorrer da década de 1970, com a crise do fordismo ediante da crise orgânica do Estado capitalista, principalmenteem sua dimensão fiscal, a linha de menor esforço do capital,conduzida pelo seu pólo hegemônico, os Estados Unidos, foi adotarpolíticas de desconstrução das formas de regulação sociale da economia fordista-keynesiana.

O passo decisivo foi o rompimento unilateral dos EstadosUnidos dos acordos de Bretton Woods, em 1973, com o abandonodas taxas de câmbio fixas e a adoção do sistema de taxas decâmbio flutuantes, que passaram a dar aos operadores financeiros

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privados um maior poder na determinação dos preços relativosdas moedas (a taxa de câmbio).

No cenário de meados dos anos 70, o desenlance da crisecapitalista mundial ocorreu com a crise do petróleo, em 1974,um fato contingente que detonou o decrescimento do ciclodepressivo da economia capitalista central (entre 1974 e 1975tivemos a primeira recessão generalizada da economia capitalistainternacional desde a Segunda Guerra Mundial) (Mandel, 1997).

A inconsistência e fracasso sucessivo das políticaskeynesianas clássicas diante da crise da economia capitalista,caracterizada pela inflação crescente e instabilidade do ciclo daeconomia, e a derrota política do movimento operário, contribuirampara a chegada ao poder de partidos neoconservadores (foi oaconteceu no Reino Unido, com a vitória eleitoral de Thatcher, em1979, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos em 1980). As políticaskeynesianas tinham se mostrado inflacionárias à medida que asdespesas públicas cresciam e a capacidade fiscal estagnava.

As determinações estruturais da série de políticas neoliberaisque sedimentaram a economia de mercado financeiromundializado, a partir de meados dos anos 70, são, por um lado,a crise orgânica do Estado capitalista, cuja dimensão fiscal édecisiva, e por outro lado, como determinação essencial, a criseestrutural do capital, posta como crise de superprodução.

Tais determinações estruturais dizem respeito a crise dosistema orgânico do capital, que articula seus mecanismos decontrole social e político, sendo portanto, as determinações onto-genéticas da globalização como mundialização do capital.

A crise orgânica do Estado capitalista, principalmente emsua dimensão fiscal, contribuiu para a instituição de mecanismosde financiamento da dívida pública que tenderam a exacerbar apredominância do capital financeiro.

Como salientamos acima, ao titularizar a dívida pública, osgovernos capitalistas não apenas aproveitaram a oportunidadehistórica de um mercado financeiro desenvolvido e de uma massade capital-dinheiro à disposição para uma valorização fictícia,

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como exacerbaram essa própria macroestrutura financeira,rentista e parasitária mundial. Os governos neoliberais adotaramum conjunto amplo de medidas destinadas a liberalizar edesregulamentar os mercados de títulos públicos para, a partirdaí, aplicar os bônus do Tesouro e outros papeis da dívida públicapor adjudicação (Chesnais, 1998).

Portanto, a securitização dos títulos da dívida públicacontribuiu para a constituição do núcleo orgânico damundialização do capital (a mundialização financeira), dandorespaldo a formação das instituições de base de um mercadofinanceiro mundializado.

Foi no decorrer da década de 1980, principalmente com o bigbang, isto é, a desregulamentação dos mercados financeiros e aliberalização dos fluxos de capital desregulamentação dosmercados financeiros e a liberalização dos fluxos de capital daCity de Londres e Wall Street em Nova York, seguidas dasmúltiplas inovações financeiras, que se constituiram asdeterminações para a predominância do capital financeiro,surgindo a mundialização do capital ou a globalização propriamentedita.

Ocorreu, de fato, a sedimentação do poder político de umaoligarquia financeira internacional, cada vez mais voltada para oempreendimentismo com papéis, portanto, mais interessada emobter lucros estritamente financeiros sem dar importância àprodução real. As políticas neoliberais ortodoxas, tenderam acompor, portanto, um cenário político bastante subalterno àsinjunções da massa de capital-dinheiro sedenta de uma valorizaçãofictícia.

Por um lado, portanto, a crise orgânica do Estado capitalista,avassalado por uma crise fiscal crônica, conduzindo àsubordinação orgânica do poder capitalista às novas formas definanciamento da dívida pública.

Por outro lado, uma crise estrutural de superprodução demercadorias que conduziu a que os lucros retidos tivessem umavalorização ficticia na esfera financeira. Na verdade, a

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financeirização do capital industrial e da própria riquezacapitalista, é um sintoma da crise estrutural de valorização docapital em sua dimensão tardia.

Um movimento de políticas neoliberais que originou-se no“núcleo orgânico” do sistema do capital em fins da década de1970, no Reino Unido e EUA, atingindo a Europa Ocidental e osdemais países da OCDE, tendeu a se disseminar pelas “bordas”do sistema mundial do capital na década de 1990, atingindo aAmérica Latina e Leste Europeu.

Em fins da década de 1980, a política do Consenso deWashington, elaborada pelos think-tanks da globalização e dahegemonia americanista, surge como um programa capaz derecuperar a expansão capitalista em importantes mercados paraum mundo capitalista à sombra da superprodução endêmica demercadorias. São mercados potenciais de aquisitividadecapitalista, pois permanecem ainda, até fins dos anos 80, assoladospela instabilidade estrutural da economia e da política. A hiper-inflação e as margens restritas de legitimidade democrática, paraos interesses das elites das finanças globais, criavam um ambientepolítica nada propicio para a macroestrutura financeira dominanteno “centro orgânico” do sistema do capital.

Para o bloco de poder do capital financeiro global era urgenteum plano de reconstrução capitalista nos moldes do Consensode Washington. Ele é posto como política de expansão capitalistapara a América Latina e Leste Europeu (inclusive Rússia, a ex-URSS) - o primeiro, buscando se recuperar da crise da dívidaexterna, que paralisou as economias latino-americanas nos anos80, e o segundo, tentando se reconstruir, agora numa perspectivade mercado, sua economia degradada pelo débacle daseconomias socialistas de Estado.

A investida final, a verdadeira terceira onda da globalização comomundialização do capital, é a inclusão da China socialista no novosistema financeiro e comercial. A sua dimensão continental e suaimensa população promete ser a “última fronteira” para a expansãodo mercado capitalista no século XXI.

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Estamos diante de um processo político complexo que avança,não apenas por meio de um poderoso arsenal ideológico-mídiático(o próprio termo globalização é parte dele, como vimos nacapítulo 1 - globalização como ideologia), criando um “pensamentoúnico”, um rol de políticas da nova macro-economia liberal postascomo única alternativa à crise estrutural do sistema do capital,mas através de um processo politico concreto, com a construçãopaulatina de um arcabouço político e institucional quase-consensual a uma economia de mercado financeirio mundializado.

No círculo do poder capitalista do “núcleo orgânico” dosistema do capital desde meados da década de 1970, buscou-seuma maior articulação política (e geopolítica), além de gestõesda macroeconomia, entre os principais países capitalistas. AComissão Trilateral, o G-7, ou ainda, o Fórum Econômico deDavos, “clubes de países ricos”, totalmente sob a hegemonialiberal, tentam conduzir um mundo capitalista instável e volátil.Apresentam-se como gestores da macroeconomia financeiramundializada dominante.

Entretanto, apesar da coordenação macroeconômica efinanceira desenvolvida, não conseguiram prever (e evitar) ocrash financeiro de 1987 (ou outras crises financeiras que iriamse repetir na década de 1990: México, Ásia, Rússia e Brasil)demonstrando o caráter de instabilidade sistêmica de uma ordemdo capital à mercê do capital especulativo e rentista.

A construção da hegemonia neoliberal ortodoxa é lenta, maspersistente até fins dos anos 1980. Na década seguinte, derrotasde governos conservadores, nos EUA, Reino Unido, Alemanhae França apontam para impasses do “pensamento único”, queindicam a busca de um novo consenso capitalista (uma “TerceiraVia”?), preocupado com as bases de sua legitimidade política edemocrática. É o que trataremos, mais adiante, nas mutações daglobalização.

Portanto, o sistema orgânico do capital, cuja aparênciaessencial é dada pela globalização como mundialização do

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capital, teria como seu núcleo orgânico, a mundializaçãofinanceira e a hegemonia e supremacia do capital financeiro. É apartir daí que se desenvolve uma série de novos fenomênosprodutivos (o toyotismo e o que Harvey iria denominar de“acumulação flexível”), culturais e ideológicos (a “pós-modernidade”), tecnológicos (o que Castells iria denominarsociedade em rede que incorpora, em sua forma material, a fluideze a virtualidade plena intrinseca à forma-dinheiro) e políticos (osneoliberalismos e a nova social-democracia) e geopolíticos (osblocos de comércio regional, tais como NAFTA e ALCA, dentreoutros), além de fenomênos de necrose social, resultados sociais (eculturais) de um sistema do capital sob a hegemonia do capitalespeculativo e parasitário - o narcotráfico e a precarização/exclusãosocial (o vínculo entre narcotráfico, lavagem de dinheiro e os circuitosfinanceiros globais são deveras unívocos).

Na verdade, o sentido da mundialização do capital como sendouma nova etapa da acumulação capitalista mundial sob apredominancia do capital financeiro possui implicações radicais.Ela tende a significar um aprofundamento do fetichismo damercadoria e das próprias relações sociais. Como o dinheiro é amercadoria-mor e sob a globalização ele passa a ser, mais doque nunca, o único referente da sociabilidade humana, o fetichismotende a ser mais dilacerante.

A plenitude da lógica do capital

Ao dizermos globalização como mundialização do capitalprecisamos salientar o adjetivo “do capital”. É uma mundializaçãodo capital, o que implica uma série de significações essenciais,ou seja, é uma globalização desigual, excludente e seletiva.

O desenvolvimento da globalização tende a exacerbar aspróprias caracteristicas da sociabilidade capitalista - exploração,desigualdade e exclusão social, dando-lhes novas formas sociaise institucionais.

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Além disso, a globalização é seletiva, o que significa que elaatinge apenas regiões e países capitalistas que possuem umasuposta capacidade aquisitiva, ou seja, um mercado capaz deremunerar o capital-dinheiro. Os investimentos buscam áreas derentabalidade líquida e segura, além de serem excludentes eintrinsecamente desiguais (despreza-se áreas imensas, regiões econtinentes, que não oferecem garantias de rentabilidade para amassa de dinheiro em circulação) e combinada em seusresultados sociais, políticos e culturais.

Por isso, o termo “globalização” oculta algo, isto é, o seupróprio caráter seletivo, sua própria natureza de mundializaçãodo capital. Na verdade, como temos salientado, o capital é incapazde realizar o globo, apesar das promessas de realização humano-genéricas.

Portanto, a rigor, a globalização é mundialização do capital enão propriamente mundialização do homem (apesar de quepossamos constatar, por exemplo um incremento dos fluxosmigratórios mundiais). De certo modo, no processo demodernização tardio, o “sujeito” é o capital, um “sujeito” semsubjetividade, e o homem é tão-somente o predicado do processo.Por isso, mesmo tais fluxos migratórios assumem ascaracteristicas de fluxos de mercadorias ou de forças de trabalhosedentas de inserção no processo de valorização do capital.

A globalização tende a exacerbar a lógica do capital comosujeito de uma modernização que dissemina, numa escalaampliada, a desigualdade estrutural e a segmentação dotrabalho (cuja lastro originário é a expropiação dos produtoresde seus meios de produção de sua vida material e a divisão técnicae social do trabalho), a nova exploração e precariedade donovo mundo do trabalho (de caráter intensivo e nem tantoextensivo, em virtude dos avanços na produtividade do trabalho)e a exclusão social (em virtude do desemprego estrutural e dacorrosão da esfera do trabalho).

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Deste modo, desigualdade, exploração e exclusão ampliadasé a nova tríade do sistema orgânico do capital que surge apartir da “globalização”.

A desigualdade estrutural e segmentação do mundo dotrabalho

Com a globalização, exacerba-se os processos decentralização e concentração do capital, tanto no plano regional,nacional e internacional. A onda de fusões e aquisições de capitaisexpressa o desenvolvimento de uma nova desigualdade estruturalentre os senhores do mundo - por um lado, o oligopólio mundiale por outro lado, os servos recolonizados (os novos paísesindustrializados que apesar de serem expressão dodesenvolvimento capitalista mundial, constituindo um mercadointerno e uma estrutura de negócios sustentável, mantém-sesubalterno à nova ordem do capitalismo central, como é o caso,por exemplo, do Brasil) e os condenados da terra (regiões,países, classes e individuos expropriados das caracteristicas danova ordem competitiva mundial).

O próprio incremento da produtividade do capital, em virtudeda III Revolução Tecnológica, sob as condições da ordem políticaneoliberal, tende não só a aumentar a capacidade relativa (eabsoluta) de produção de riqueza, mas, na mesma medida, a suaconcentração nas mãos do oligopólio mundial. Já se observouque a nova economia mundial – a da mundialização do capital –tende a aumentar o grau de oligopolização, apesar do crescimentoquantitativo de empresas globais (Chesnais, 1995).

Mas o crescimento da desigualdade não atinge apenas arelação social estrutural do capital, caracterizada entre proletáriose capitalistas, mas atinge o próprio mundo do trabalho. Aprofunda-se a segmentação intra-classe social, principalmente na classe-que-vive-do-trabalho (Antunes, 1999). O discurso da “nova

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economia” e seus requisitos básicos de competitividade eprodutividade tende a reforçar no interior do mundo do trabalho,a segmentação relativa entre, por um lado, os possuidores dasnovas competências profissionais e, por outro lado, osexpropriados de seu saber e de sua capacidade fisica e espiritualde continuarem sendo força de trabalho efetiva: são ostrabalhadores desempregados estruturais e os que não temacessos à nova ordem sistêmica do capital.

É esse movimento acelerado de polarização intra-classetrabalhadora, no tocante a sua habilidades e competênciasprofissionais, que exige de cada homem e mulher trabalhadora, apreocupação recorrente de uma constante atualização,treinamento e requalificação da sua força de trabalho, sob penade não terem a mera possibilidade de uma inserção produtivana nova ordem da globalização.

Mesmo entre o contingente massivo daqueles que vivem davenda da força de trabalho simples, preenchendo a “borda” decadeias industriais, a segmentação profissional e a precariedadecomplexa e fragmentária é a sua principal caracteristica (porexemplo, o setor de serviços, que abrange um universo heteroclitode atividades produtivas que dão suporte à nova indústria). Onovo (e precário) mundo do trabalho é, portanto, imerso numasérie de novas clivagens de ordem profissional, de gênero e porfaixa etária, além de origem étnica (Alves, 2000).

Portanto, a globalização deve ser vista como a produção (ereprodução ampliada) de uma desigualdade estrutural (e de umasegmentação do pólo do trabalho) que atinge classes e indíviduosno interior dessa classe social, além de regiões e continentesinteiros.

A nova exploração e precariedade do mundo do trabalho

A capacidade de exploração da força do trabalho pelo capitalelevou-se à enésima potência em virtude da III Revolução

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Tecnológica. A extração de mais-trabalho assumiu proporçõesinéditas na história do capitalismo moderno, uitilizando novastecnologias microeletrônicas na produção. A nova base técnicado capital permitiu que a exacerbação da exploração da força detrabalho não implicasse, em alguns ramos da indústria e dosserviços, em degradação das condições materiais (e civilizatórias)de trabalho. Pelo contrário, o capital, apoiado na extração damais-valia relativa, demonstrou, no decorrer do século XX, a suacapacidade de criar “grilhões de ouro” para uma parcela daclasse dos trabalhadores assalariados.

Mesmo estando submetidos às injunções da condição detrabalhadores assalariados e portanto, escravos das contingênciasde mercado (o que explica que nem o empregado mais altamentequalificado e melhor remunerado está estável em seu posto detrabalho), tais homens e mulheres da nova produção capitalistatendem a não se auto-identificarem como proletários (a rigor,não são proletários, apesar de serem trabalhadores assalariados,pois sua força de trabalho tornou-se complexa, garantindo a elesuma habilidade vendável que eles identificam como um ativo aser negociado no mercado). É o caso dos técnicos, cientistas eengenheiros inseridos, direto ou indiretamente, na produção demercadorias de maior valor agregado. Na verdade, eles tendema incorporarem um “viés” subjetivo de uma nova pequeno-burguesia, apesar de pertencerem objetivamente à classe dostrabalhadores assalariados, pois não deixam de ser exploradose possuirem uma precariedade estrutural.

Entretanto, cabe salientar que, a nova exploração da força detrabalho, de uma força de trabalho altamente qualificada eremunerada, não apenas na indústria mas em setores dos serviçosque produzem mercadorias com maior valor agregado, convive,muitas vezes, lado a lado, numa mesma unidade produtiva, comuma universo de exploração e precariedade, que articula, comdesenvoltura, a extração de mais-valia absoluta e mais-valiarelativa (por exemplo, o interior de uma montadora de automovéispode ser perceptivel a presença de trabalhadores assalariados

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com variados estatutos salariais, desde um trabalhadorterceirizado, responsável pela vigilancia ou limpeza, até um técnicoou engenheiro de uma empresa subcontratada, passando por umoperário “polivalente” da linha de montagem).

A exploração da força de trabalho, aquela que cria valor,assumiu caracteristicas múltiplas de acordo com a divisão sociale técnica do trabalho, indo desde a preservação (e o retorno) deformas arcaicas de exploração da força de trabalho, típicos docapitalismo industrial da I Revolução Industrial (onde o traçomarcante era a precariedade explícita), até a exploração da forçade trabalho mais qualificada e escolarizada nas novas indústrias(que preserva ainda como traço estrutural sua condição precária).

A exploração da força de trabalho é acompanhada por umnovo léxico da administração da produção capitalista centradona noção de flexibilidade, um eufemismo para caracterizar anova exploração e precariedade da classe trabalhadora. Mas elaé uma realidade material - a flexibilidade atinge os mais diversosaspectos do processo de produção e de trabalho capitalista.

A representação organizacional da nova forma de exploraçãoda força de trabalho é dada pelo toyotismo (mais adiante, naParte 3 deste livro, iremos desenvolver a análise do toyotismo). Eleé a ideologia orgânica da produção capitalista que sintetiza em seusdispositivos centrais a lógica da flexibilidade, que incorpora novasformas hegemônicas, de consentimento e de captura dasubjetividade, imprescindivel para a nova base técnica utilizada epara os novos padrões de concorencia capitalista. Ainda de acordocom a lógica do toyotismo, o mercado de trabalho tende a assumiruma feição estrutural nova, com um centro e uma ampla periferia(o que observamos, no tópico acima, quando tratamos da novasegmentação do mundo do trabalho).

Portanto, é perceptivel o contraste entre as teses queproclamam a “perda da centralidade do trabalho” nas supostas“sociedades pós-industriais” (tão proclamadas na década de 1980)e a realidade do mundo capitalista da “globalização”. O mundo

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do trabalho, objeto da exploração e da exclusão, não apenaspreserva a sua centralidade ontológica na ordem do capital, mastornou-se complexo, fragmentário, altamente segmentado em seusvários aspectos sociológicos, políticos e psicoculturais.

E dizemos mais: um novo (e precário) mundo do trabalhoestranhado, tendo em vista que os produtores, os agentes diretos(e indiretos) do trabalho material e imaterial, continuamtotalmente “alienados” do produto de suas próprias mãos, mesmoassumindo, sob o toyotismo, o controle operacional do processoprodutivo (sugerindo portanto uma “ruptura” com os dispositivosfordistas-tayloristas).

Ora, mesmo sob o toyotismo, a “ideologia orgânica” daorganização da produção de mercadorias na época daglobalização, os operários e empregados são “alienados” dasdecisões fundamentais do processo de produção - o que produzire para quem produzir, assumindo apenas as decisõesoperacionais meramente instrumentais no local de trabalho (comofazer). E muitas vezes, na maioria dos processos produtivos, aalienação do como fazer permanece, com os empregados eoperários subordinados aos dispositivos tayloristas e fordistas.

Na verdade, o capital e seu staff executivo, preservam adivisão social do trabalho e sua prerrogativas decisórias no tocanteà lógica da alocação (e controle) da riqueza produzida.É por issoque o incremento da produtividade elevou e potencializou aexploração da força de trabalho, a produção exacerbada deriqueza social, sem o acompanhamento proporcional de saláriosreais da classe trabalhadora (o exemplo da economia maisdinâmica, os EUA é exemplar). É por isso que clamar contra adesigualdade social e de renda, que tende a se acirrar sob amundialização do capital e com a III Revolução Tecnológica semcriticar, e ir contra, o controle capitalista da produção deriqueza social é não atingir o cerne das coisas. É meramente“atirar pedra na lua”.

O crescimento do desemprego estrutural aponta para osurgimento de algo novo, um patamar de desemprego elevadoque não regride com o crescimento da economia. Deste modo, o

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jobless growth, o crescimento sem emprego, indica odesenvolvimento de uma nova fonte de exclusão, não apenasnos países capitalistas centrais, mas nos novos paises capitalistasindustrializados (Alves, 1999).

Entretanto, o termo exclusão social tende a parecerinadequado para caracterizar a incapacidade do sistema orgânicodo capital absorver parcelas da população proletária que nuncaforam “incluidos” no circuito produtivo (jovens, que são umcomponente importante do desemprego massivo). Além disso, anoção de “exclusão social”, utilizada com abuso tanto quanto otermo “globalização”, que só adquire maior precisão conceitualse vista como sendo a mundialização do capital, tende a ocultaro cerne essencial do sistema orgânico do capital: a exploração.

Ao se clamar contra a exclusão social sem abolir - ou fazerreferência - à exploração, tende-se apenas a ocultar a lógicado capital e pressupor que é possivel “incluir” uma massa dedespossuidos estruturais sem abolir as relações sociais capitalistasde produção.

Dimensões da mundialização do capital

A mundialização do capital possui um “núcleo orgânico” queé constituído pela mundialização financeira. É o que temossalientado como sendo a “verdade” da globalização. É o queChesnais procurou salientar nos livros supracitados e que amaioria das apreensões sociológicas tendem a desconsiderar.

Apesar do capital financeiro (ou seja, o capital especulativo erentista) imprimir sua marca sobre a lógica da acumulação docapital como um todo, contribuindo para a incorporaçãosubstancial, pelo capital industrial, de sua própria forma de ser,existe, pari passu à constituição do regime de acumulaçãofinanceirizada, o desenvolvimento de uma mundialização daprodução (e do comércio) capitalista, caracterizada pelocrescimento do investimento externo direto (IED), o

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investimento produtivo no exterior, a transnacionalizaçãoprodutiva, pelo crescimento das empresas, conglomerados eempresas transnacionais, pela expansão do mercado mundial,através do intercâmbio comercial.

A mundialização do capital em sua dimensão produtiva (oucorporativa) pode ser observada através dos dados decrescimento do IED, o responsável pela constituição dasinterdependências entre países capitalistas:

O IED suplantou o comércio exterior como vetor principal noprocesso de internacionalização; seu papel é tão importante nosserviços como no setor de manufaturas. O IED caracteriza-sepor alto grau de concentração dentro dos países adiantados,especialmente os da Tríade (ao longo da década de 80, os IEDse concentrou, em mais de 80 %, dentro da área da OCDE).Esse acerto de alvo se fez às custas dos países emdesenvolvimento (Chesnais, 1995:33).

O significado do IED é deveras importante pois ele expressauma forma de expansão do capital que contém um componenteestratégico, evidente na decisão de investimento da companhia.Ao contrário do comércio exterior, o horizonte do IED ésensivelmente mais amplo, como também as motivaçõessubjacentes são muito mais ricas. Diz Bourguinat:

A idéia de penetração, seja para depois esvaziar os concorrenteslocais, seja para ‘sugar’ as tecnologias locais, faz parte desseaspecto ‘estratégico’ do investimento direto e, geralmente, estáinserido num processo complexo de tentar antecipar as ações ereações dos concorrentes. (Apud Chesnais, 1995:55)

O uso do termo “sugar” (siphonner) remete, segundoChesnais, a existência, no contexto do capitalismo tardio altamenteoligopolizado, de mecanismos de apropriação e decentralização, pelas companhias mais fortes, de ativos ouriquezas produzidos por agentes econômicos (além dosassalariados, claro); no caso, pequenas empresas industriais,comerciais ou de pesquisa.

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O crescimento do IED, que é o nexo essencial damundialização produtiva, é impulsionado, portanto, por umaexacerbação da concorrência capitalista no mercado mundial(cada vez mais concentrado na OCDE e em algumas “bordas”industrializadas), da ânsia de um processo de valorização emescala planetária num contexto de crise de superprodução, daconstituição de canais complexos e interligados (em rede) deapropriação de valor.

Na verdade, o IED aparece como um multiplicador deinfluência, que nasce das participações em cascata, permitindo,por exemplo, à companhia central, organizada em holding,controlar uma empresa com uma participação muito reduzida.

Além disso, a partir do IED, tende a ocorrer a integração horizontale vertical das bases industriais nacionais separadas e distintas. Ograu de interpenetração entre os capitais de diferentesnacionalidades aumentou (o que nos permite dizer que a idéia do“imperialismo” assume cada vez mais um conteúdo transnacional).

O investimento internacional cruzado e as fusões-aquisições transfronteiras engendram, segundo Chesnais,“estruturas de oferta altamente concentradas a nível mundial”, oque propiciou o surgimento de oligopólios mundiais num númerocrescente de indústrias (constituido sobretudo por grupos americanos,japoneses e europeus que delimitam entre si um espaço privilegiadode concorrência e de cooperação)(Chesnais, 1995).

As corporações transnacionais, os grupos industriarorganizados como “empresas-rede”, beneficiam-se tanto daliberalização do comércio (levada a cabo pelas políticas neoliberaise pelos protocolos da OMC), quanto da adoção de novastecnologias e do recurso a novas formas de gerenciamento daprodução (o toyotismo).

As novas formas de gerenciamento e controle, valendo-se decomplexas modalidades de terceirização, visam a ajudar os grandesgrupos a reconciliar a centralização do capital e a descentralizaçãodas operações, explorando as possibilidades proporcionadas pelatele-informática e pela automatização (Chesnais, 1995)

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Portanto, a globalização tende a significar mais poder para ascorporações transnacionais, poder para criar o globo à suaimagem e semelhança.

No caso da mundialização do capital em sua dimensãocomercial é bastante perceptivel através da forma dominante docomércio exterior, o intercâmbio intra-setorial, ou seja, ointercâmbio intra-grupo, no quadro dos mercados privados dasmultinacionais, bem como por suprimentos internacionais,organizados pelos grupos, em insumos e produtos acabados.

Os resultados concretos, principalmente no plano geográfico- e geopolítico- é a instauração exacerbada de processos deintegrações regionais e continentais, tais como a UniãoEuropéia, o NAFTA e o Mercosul (e o ALCA - Acordo de LivreComércio das Américas). Tais acordos de integração regionaltendem a assumir - com a exceção particular da União Européia- um perfil de meros acordos comerciais à serviço dos interessesestratégicos das corporações transnacionais e de seu sistema depoder político dominante (no caso da ALCA, a supremaciapotencial dos EUA é bastante visivel).

As implicações disso sobre os Estados-nação subalternos éflagrante - sua diluição como estruturas estatais efetivas e soberanas,totalmente subsumidas, de modo real, e não apenas de modo formal,à “estatalidade dominante” (no caso da ALCA, os EUA).

O globo torna-se cada vez mais, o globo do capital e da“produção pela produção”. Com a ascensão de um capital muitoconcentrado, que conserva a forma monetária, a lógica de uma“produção pela produção” tende a ser imbuida de uma dimensãofinanceira, acentuando, portanto, os aspectos financeiros dosgrupos industriais e imprimindo uma lógica financeira ao capitalinvestido no setor de manufaturas e serviços.

Deste modo, a mundialização financeira, que sedimenta o“núcleo orgânico” da reprodução do capital na virada para oséculo XXI, tende a incluir e determinar as dimensões damundialização do capital, tais como a transnacionalizaçãoprodutiva e a mundialização comercial.

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É claro que a transnacionalização produtiva é anterior àmundialização do capital propriamente dita, ou seja, àmundialização financeira. Entretanto, com o avanço da novastecnologias de comunicação e transporte, no pós-guerra, elaassume novas dimensões, amplitude e intensidade. Torna-se maisintegrada e interdependente entre os capitais de diferentesnacionalidades. É por isso que os grupos industriais sereorganizam como empresas-rede, incorporando uma nova lógicade organização da produção capitalista (o toyotismo, que iremostratar mais adiante) e incorporando novas tecnologias telemáticase informáticas. O que procuramos salientar é que essas novamorfologia do capital industrial investido no setor demanufaturas e serviços, com a mundialização do capital, édeterminada pela lógica do capital financeiro.

Os agentes orgânicos e suportes institucionais e político-militar do novo capitalismo mundial

Podemos dizer que a globalização como mundialização docapital é a mundialização financeira criando (e recriando) formasexacerbadas de desenvolvimento do capital industrial -mundialização da produção e do comércio de mercadorias. Sãoelementos indissociáveis do desenvolvimento incontrolável do“sujeito’ capital como um todo.

Por outro lado, os “agentes supremos” e beneficiários plenose diretos do sistema orgânico do capital, expressos namundialização do capital seriam, os grandes fundos monetáriosde investimentos, companhias de seguro e bancos e por outrolado, as multinacionais globais, as empresas, conglomerados ecorporações transnacionais da produção e distribuiçãoconcentrada de mercadorias.

Além disso, os suportes institucionais e ideológicos, propulsoresda mundialização do capital, são as tecnoburocracias mundiaismultilaterais - Fundo Monetário Internacional (FMI), BancoMundial, Organização Mundial do Comércio (OMC) e inclusiveONU, que tentam regulamentar e dar um substrato político-

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ideológico à globalização. Como suporte político-ideológico emilitar à globalização, temos a OTAN e as Forças Armadas dosEUA, a representação política do “Império universal” e seuparceiros e aliados.

É claro que não estamos diante de um bloco homogêneo,mas de um condominio de interesses que possuem, entretanto,divergências não-antagônicas e que concorrem entre si, porhegemonia no bloco de poder do capital.

A hegemonia americanista e as mutações da globalização

A mundialização do capital disseminou-se sob a hegemoniaamericanista, pois coube aos EUA ser a representação políticado desenvolvimento capitalista mundial, principalmente sob amundialização do capital, com o débacle da URSS.

O século XX, o mais sangrento da história, com 200 milhõesde mortos, tornou-se um “século americanista”. Foi por meio daarticulação político-militar transnacional sob a hegemoniaamericana e envolvendo outros países capitalistas (o G-8) que“construiu-se” a mundializaçào do capital.

Cabe salientar que não estamos diante de um conspiraçãoimperialista, como uma leitura de esquerda vulgar e ortodoxa,mas de um processo político e cultural complexo, de expansionismosistêmico (e irrefreável) de um “sujeito automático”, o capital esuas personificações fetichizadas, que expõe, em maior ou menorproporção, suas contradições sociais e históricas latentes emanifestas.

A armação do capital como “sujeito” da modernização tardia,articula, em suas relações internacionais, a partir do centrocapitalista dominante, os mais diversoso países capitalistas e“socialistas de mercado”, que cultivam pretensões hegemonicasregionais, articulando inclusive obstáculos à globalização neoliberal(como é o caso da China) e negociando novas modos de inserçãono processo de mundialização do capital.

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No plano cultural, como uma determinação ineliminável doprocesso de reprodução social da mundialização do capital, temosa mídia global, os conglomerados de mídia que contribuem parao construto ideológico da globalização. Criou-se, a partir daí, odiscurso (e a ideologia) da globalização.

É claro que a mundialização do capital inclui em seudesenvolvimento histórico mundial uma mundialização da políticae de seus movimentos e ideologias, além de uma mundializaçãoda cultura. O avanço das multinacionais globais, que exportamnão apenas capital, mas relações sociais, culturais e institucionais.

Tão importante quanto a constatação de que cresceu aexportação de produtos simbólicos pelas corporações globais é aapreensão do modo como tais mercadorias culturais está sendoincorporado pelos consumidores locais. Por isso alguns autores,observando a globalização cultural procuram utilizar o termo“glocalização” e não meramente “globalização”, posto que, nocaso da cultura (o que pode ocorrer, em menor proporção, comoutras esferas da sociabilidade), a dimensão local é deverasdeterminante.

A globalização como mundialização do capital possui, desdeos anos 1980, formas hegemônicas, delineadas pelas políticasinternacionais dissiminadas pelos organismos multilateriais, doConsenso de Washington ao Consenso de Berlim, além deuma diversidade de modos de inserção.

Do neoliberalismo à governaça progressista (ou suposta“Terceira Via”), o capitalismo mundial tende a constituirarcabouços políticos intrinsecamente liberais, alguns inclusive,totalmente híbridos, de cariz social-democrata e mais amplosque sustentam o sistema orgânica do capital predominante; semdeixar de considerar que o sistema orgânico do capital, comoressalta muito bem Mészáros, não se confunde apenas com suasrepresentações capitalistas predominantes, mas inclusive comseu elos pós-capitalistas alternativos à via neoliberal e social-democrata (a China, por exemplo) (Mészáros, 1995).

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Por isso, o que pode parecer uma “ruptura” ou débacle daglobalização, como alguns discursos podem pressupor, é tão-somente, o indicio de uma mutação da globalização, que procuracriar uma nova forma social e política capaz de reproduzir alógica predatórioa e autoritária do capital financeiro. Um capitalfinanceiro, que vale a pena ressaltar, tende a incrementar eacelerar o sentido de regressão civilizatória intrinseco à lógicade desenvolvimento sócio-histórico do próprio capital.

Existem, é claro movimentos sociais que pleiteam uma rupturacom a globalização. São movimentos anti-capitalistas que, se nãose atinge o lastro estrutural de reprodução da ordem do capital, apropriedade privada e sua contraparte orgânica, o Estadopolítico, tenderão a encenar tão-somente mutações daglobalização.

A globalização, isto é, a reprodução orgânica do sistema docapital mundial, sob a hegemonia finnaceira, pode ter, certamente,continuidade sob outras formas político-institucionaisadministráveis, conduzindo e aprofundando as contradiçõessocietais e a dilapadição paulatina de um sentido civilizatório queo desenvolvimento sócio-histórico do capital ainda possa ter.

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4Globalização Como

Processo CivilizatórioHumano-Genérico

A globalização é um momento tardio de desenvol-vimento do capitalismo moderno em sua dimen-são imperialista. É a mundialização do capital, do

“sujeito” capital em geral, como agente histórico damodernização universal. Ela possui, em seu sentido originário,uma ideologia e uma política que se desenvolve a partir do processoda mundialização do capital.

É impossível separar a ideologia e a política da globalizaçãode seu movimento sócio-histórico como mundialização do capital,até porque é deste modo que ela organiza processos hegemônicosde construção das bases político-institucionais e culturais quepropiciam o poder e a dominação ampliada do capital.

Enquanto ideologia, a globalização tende a ser um construto deidéias que ocultam/distorcem a apreensão do movimento do capitalcomo desenvolvimento de instauração/conservação/extensão/intensificação da desigualdade, exploração e exclusão societária.

Entretanto, por ser expressão tardia do desenvolvimentocapitalista, a globalização traz em seu bojo, as contradiçõescandentes do capital. Por isso que, se por um lado, a globalizaçãoé intrinsecamente mundialização do capital, por outro lado,tende a ser processo civilizatório humano-genérico. Ela tendea contribuir, de certo modo, para o desenvolvimento da integração/desintegração, objetivação/subjetivação do gênero humano em-si e para-si.

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É por ser intrinsecamente contraditória, isto é, representartambém processo civilizatório humano-genérico, que aglobalização como mundialização do capital é capaz de (re)criaros homens e mulheres como agentes sócio-históricos detransformação social.

É tal contradição sublime, intrínseca à globalização, quepossibilita, apesar do cerco planetário do capital em geral, osmovimentos sociais e suas utopias de um outro mundo possível.E não apenas isso. É tal contradição entre mundialização docapital e processo civilizatório humano-genérico que cria comoseu efeito ideológico particular, as explicitações espectrais deum “admirável mundo novo”.

Portanto, a globalização como desenvolvimento tardio docapital, é a síntese contraditória (e concreta) da históriamoderna. Por um lado, cria/recria, de modo inédito (e inaudito) ogênero humano em-si, instituindo a idéia de “um mundo só”, quetende a aproximar, cada vez mais, homens e mulheres, atravésdas novas tecnologias telemáticas e informáticas, além de contriburpara o desenvolvimento das forças produtivas e da criação da riquezasocial. Deste modo, na perspectiva do gênero humano em-si, elapossui um sentido progressista para o todo social. É a sua dimensãode processo civilizatório humano-genérico.

Por outro lado, a globalização, na medida em que éefetivamente mundialização do capital, ameaça a própriasobrevivência de bilhões de indivíduos, homens e mulheres emtodo o globo (“um mundo só” excludente, seletivo e desigual),além de criar, através da supremacia do mercado, as condiçõesobjetivas/subjetivas para desintegração/fragmentação dosindivíduos humanos em particularismos sócio-culturais e políticosdiversos que tendem a negar os próprios avanços do processocivilizatório (a degradação e “privatização” dos espaços públicostende a impedir a criação de uma consciência humano-genéricodas individualidades modernas).

É em virtude da mundialização do capital ser a posição quase-absoluta de supremacia do capital financeiro, na sua determinação

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parasitária e rentista, que tende a ocorrer a potenciação do sentidode reversão civilizatória da lógica do capital.

Cabe salientar que a instauração do sistema do capitalcontribuiu, desde muito tempo, para o desenvolvimento dacivilização humana sócio-genérica. Entretanto, o capital emprocesso sempre possuiu, e hoje mais do que nunca, um sentidode reversão civilizatória intrinseca à insaciabilidade da buscada riqueza abstrata.

Na verdade, a globalização exalta, por um lado, comopossibilidade concreta, um novo elemento da individualidadehumana (os “indivíduos histórico-mundiais”, utilizando umaexpressão de Marx), na mesma medida em que exacerba a lógicae os valores do individualismo de mercado que degradam efrustram a promessa de uma genericidade humana.

Além disso, a ciência e tecnologia, resultados dodesenvolvimento das forças produtivas da modernizaçãocapitalista, apesar de contribuírem para o recuo das barreirasnaturais, com o homem dominando, por exemplo, tempo e espaçoe os próprios segredos do “código da vida” (o Projeto Genoma),contribuem, por outro lado, para o desenvolvimento das forçasdestrutivas da ecologia sócio-humana e natural: a crise ecológicapropriamente dita e a exploração/exclusão humana. Por exemplo,o crescimento do desemprego estrutural, o incremento do controleda força de trabalho e a intensificação da exploração capitalista.

O que procuraramos destacar é que a globalização éintrinsecamente contraditória em virtude dela serfundamentalmente desenvolvimento tardio do capital, isto é,expansividade tardia (e irrefreável) do “sujeito” da modernização- o capital, a “contradição viva” (Marx).

É do nosso interesse apresentar, após a caracterização daglobalização como mundialização do capital, as determinaçõesantropológico-sociológicas que instauram a globalização comoprocesso civilizatório humano-genérico e que propiciam osmúltiplos nexos contraditórios do desenvolvimento tardio do

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capitalismo moderno, criando, a partir daí, as possibilidadesconcretas de sua superação sócio-histórica.

Uma dupla determinação antropológico-sociológica daglobalização

A globalização pressupõe o homem como ente natural euniversal

O capitalismo moderno se desenvolveu não apenas explorandoa força de trabalho e instaurando desigualdades e miséria social,mas colocando o homem diante de si mesmo, como um sergenérico, natural, histórico e universal.

Por exemplo, no alvorecer do capitalismo industrial, talpercepção tornou-se bastante intensa. É o que observamos aolermos o Manifesto Comunista de 1848, de Karl Marx e FriedrichEngels. Naquele texto clássico, um verdadeiro ManifestoModernista (Berman, 1981), seus autores revolucionáriosvislumbraram, pela primeira vez, a idéia de uma globalização comoprocesso civilizatório humano-genérico. O mercado mundial e aprodução universal de mercadorias tendiam a criar “indivíduoshistórico-mundiais”, expressão utilizada por Marx e Engels n’AIdeologia Alemã, com necessidades radicais capazes desubverter o próprio sistema do capital (Marx, 1983).

Ora, o processo sócio-histórico de desenvolvimento docapitalismo mundial, ou seja, do sistema mundial de produção ecirculação de mercadorias, é intrinsecamente contraditório, poisdesenvolve, como invólucro social do ser humano-genérico, oestranhamento universal (Entfremdung).

Por estranhamento universal podemos entender, como Marx(em “A Ideologia Alemã), “uma força estranha situada fora deles[dos indivíduos], cuja origem e destino ignoram, que não podemmais dominar” e que representa tão-somente o poder da própriacooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho

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(por exemplo, o mercado), mas que aparece a estes indivíduoscomo “independente do querer e do agir dos homens e que, naverdade, dirige este querer e agir.” (Marx e Engels, 1987)

A rigor, podemos afirmar que este estranhamento universalé provocado pelo capital como modo de controle do metabolismosocial da produção e reprodução humana, ou seja, da própriacooperação social que não é voluntária, mas natural (Mészáros,1999).

O homem se afirma como ser genérico [Gattungswesen]tão-somente através da construção de um “mundo objetual”. Éatravés do processo de objetivação/exteriorização, do trabalho,que o homem se faz homem. O desenvolvimento ampliado deum “mundo objetual” cria, pelo menos, a possibilidade concretade uma consciência em-si do homem como ser genérico. É atravésdele, do desenvolvimento do mundo objetual, que o homem tendea adquirir a consciência de seu ser genérico, cuja atividade vitalé o trabalho.

A categoria do trabalho assume sua plenitude sob ascondições do desenvolvimento tardio da sociedade burguesa. Elatorna-se mais concreta, ou seja, aparece como trabalho sansphrase, “trabalho em geral”, tendo em vista que a sociedadeburguesa tende a ampliar (e tornar mais complexa) as mediaçõesda vida social, através do desenvolvimento multíplice da atividademediadora da produção da vida material, das novas tecnologias,dos objetos, meios de trabalho ou ferramentas que o homem situaentre si e o objeto de suas necessidades:

A indiferença em relação a uma espécie determinada detrabalho pressupõe a existência efetiva de uma totalidademuito desenvolvida de espécies de trabalho, onde jánenhuma delas predomina sobre todas as outras. Assim, asabstrações mais gerais só surgem como tais, nodesenvolvimento concreto mais rico, onde o que é comum amuitos aparece como comum a todos. Desaparece, então, a

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possibilidade de se poder pensar em uma forma particular[...] A indiferença em relação a uma forma determinada detrabalho corresponde a uma forma de sociedade[Gesellschaftsform] onde os indivíduos passam facilmentede um trabalho para outro, tornando-se-lhes fortuita e,portanto indiferente, a espécie determinada de trabalho. Otrabalho, aqui, não está somente na categoria, tornou-se umarealidade efetiva [Wirklichkeit], como meio de criação da riquezaem geral e deixou de ser uma determinação vinculada ao queos indivíduos têm de peculiar.” (Marx, 1997: 635)

Ora, sob a mundialização do capital como momento tardio dedesenvolvimento do capitalismo moderno, é perceptível a plenarealização do objeto de trabalho. O desenvolvimento capitalistaatravés do desenvolvimento ampliado das forças produtivascomprovou ser o desenvolvimento universal e intenso do mundoobjetual, o que Marx iria dizer que “a riqueza das sociedadesem que domina o modo de produção capitalista aparece comouma ‘imensa coleção de mercadorias’”(Marx, 1996: 165).

É claro que a atividade humana do trabalho nas condiçõesdo modo de produção capitalista é uma atividade estranhada[Entfremdung]. Mas é também, na mesma medida, atividadeobjetivada, ou ainda objetivação [Entäusserung] e, portanto,apropriação dos objetos pelos sujeitos, homens e mulheres, e comosubordinação dos objetos às finalidades subjetivas, transformaçãodos objetos em resultados e recipientes da atividade subjetiva(apesar de que tais finalidades subjetivas apareçam comoestranhadas por serem atividades subjetivas do capital).

Na medida em que “é precisamente ao trabalhar o mundoobjetivo que o homem, primeiro, se prova de maneira efetivacomo um ser genérico”, ou ainda, “o objeto do trabalho é aobjetivação da vida genérica do homem” (Marx,1984:157), odesenvolvimento tardio da sociedade burguesa, ou seja, aglobalização, tende a possuir, de certo modo, um conteúdocivilizatório, pois ela representa o desenvolvimento tardio do

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mundo objetual, o resultado pleno do processo de trabalho queé processo de valorização, e que origina constantemente objetosnovos e que tende sempre a alterar intensamente o mundocircundante dos homens e mulheres.

É o que tem ocorrido nos últimos duzentos anos de capitalismoindustrial, que criou e ampliou o mundo sensorial-objetual,produto histórico da indústria, “...resultado de toda uma série degerações, cada uma das quais se ergueu sobre os ombros daanterior, desenvolvendo e ampliando a indústria e o comércio emodificando sua ordem social de acordo com as necessidadesalteradas.” (Marx, 1987).

A constituição ampliada de um mundo objetual , de objetosartificiais, tangíveis e intangíveis, que aparecem como “umaimensa coleção de mercadorias”, possui uma significaçãoontológica.

Ora, objetos artificiais possuem uma função particularqualitativamente diversa das coisas naturais, ou seja, todo objetonatural tal como, por exemplo, uma pedra ou uma árvore, podeser utilizado de vários modos de acordo com situações concretas.Entretanto, os produtos do trabalho possuem uma utilizaçãoparticular e concreta no interior da matriz da vida social. Sãovalores de uso cuja utilização usual tem uma quase-corporificação como norma na própria forma física dos objetosde trabalho (Markus, 1973).

Enquanto portadores, ou suportes, objetuais das normas, osprodutos do trabalho não são apenas objetos de uso, mas tambémvalores de uso (inclusive, precisam ser valores de uso antes deserem valores de troca). Por isso, na medida, em que sedesenvolve o mundo objetual, os indivíduos têm que desenvolverem si mesmos, em alguma medida, as qualidades humanasparticulares que permitem o uso “adequado” dos objetosde trabalho, ou seja, têm que se apropriar efetivamente dosprodutos do trabalho. O que impica o desenvolvimento daquiloque Lukács iria denominar de novos tipos de posição teleológica,as posições teleológicas secundárias, tais como a ideologia,

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qualitativamente diferentes da posição teleológica primáriavoltada para a transformação da natureza) (Lukács, 1988).

Por isso, ao contrário da natureza, a esfera social, em suasmanifestações elementares, aparece permeada de normas sociais.De certo modo, eis o fundamento ontológico do desenvolvimentocomplexo de um campo lingüístico-comunicativo ampliado sobas condições de desenvolvimento tardio da sociedade burguesa.

É tal constatação ontológica do ser social que permiteapreender que o processo de desenvolvimento capitalista não éapenas processo de estranhamento, mas processo deobjetivação do ser humano-genérico, que ocorre intensivamenteatravés do desenvolvimento de sua capacidade de produção do“mundo objetual”. Como observa, Marx,

O que realmente se ‘amontoa’, mas não como massa morta, massim como algo vivo, é a habilidade do trabalhador, o grau dedesenvolvimento do trabalho (de todos os modos...o estágiode desenvolvimento da força produtiva do trabalho alcançadoem cada caso e do que, em cada caso se parte, não existe sócomo disposição, capacidade de trabalho, mas também, e aomesmo tempo, nos órgãos objetuais que esse trabalho temprocurado e que se renova cotidianamente). Este é o verdadeiro‘prius’ que constitue o ponto de partida, e este ‘prius’ éresultado de um decurso evolutivo. (Apud Markus, 1973)

Além disso, o processo de desenvolvimento capitalista, a partirda atividade do trabalho, tende a criar necessidades sociaiscompletamente novas, necessidades sociais tanto por sua origem,quanto por seu conteúdo. Inclusive, necessidades radicais quepor sua própria natureza, ultrapassam as possibilidades produtivase sociais dadas pelo sistema do capital (Heller, 1981). O que nosleva a pensar o caráter contraditório do próprio desenvolvimentoda produção capitalista, expressa pela contradição essencial entreas forças produtivas conquistadas e as condições e relaçõessociais existentes.

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Portanto, na medida em que a globalização é, antes de tudo, odesenvolvimento tardio da sociedade burguesa, ela tende a ser omomento mais desenvolvido do processo civilizatório humano-genérico, destilando necessidades individuais de caráter histórico-social e necessidades radicais (como por exemplo, o intercâmbiocom os semelhantes, necessidades estéticas e espirituais ampliadas).

O desenvolvimento capitalista tende a criar, na medida emque é também processo civilizatório humano-genérico, umarelação entre o homem e seu meio sócio-histórico cada vez maiscomplexa e diversa, abundante de aspectos sócio-individuais emenos determinada pelas necessidades biológicas. O que podeser compreendido como a redução dos limites naturais, quepermanecem, apesar disso, como pressupostos negadosinelimináveis.

A idéia da globalização como processo humano-genéricodecorre da concepção de que a categoria do trabalho comoatividade vital consciente constitui o ser do homem. É atravésdo trabalho que o homem se desenvolve não apenas como entenatural universal, mas como ente social e universal ,constituindo um mundo objetual ampliado, permeado de normase de novas necessidades individuais e de caráter histórico-social(além das necessidades radicais), desenvolvendo, portanto,complexas mediações entre ele e seu meio sócio-históricoconcreto, reduzindo os limites das barreiras naturais:

O homem é essencialmente um ser natural universal, tantono sentido de que é potencialmente capaz de transformar emobjeto de sua necessidade ou de sua atividade, todos osfenômenos da natureza, quanto no sentido de que assumeem si e irradia de si todas as ‘forças essenciais’ da natureza,isto é, capaz de adaptar crescentemente sua atividade àtotalidade das leis naturais e, por conseguinte, de alterarcom penetração cada vez maior seu próprio entorno emexpansão progressiva (Markus, 1973:19)

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Deste modo, ao tratarmos a globalização como processocivilizatório humano-genérico, lidamos com uma determinaçãohistórico-ontológica intrínseca ao próprio desenvolvimentocapitalista. Ora, se a globalização é um forma concreta e tardiado desenvolvimento capitalista, ela não poderia deixar deexpressar, de um modo particular, tais determinações histórico-ontológicas.

Ao tratarmos da globalização como mundialização do capital,procuramos salientar o verdadeiro processo de produção (ereprodução) do estranhamento universal sob a forma particularda predominância do capital financeiro. De certo modo,salientamos a posição da mundialização do capital como “sujeito”de uma modernização tardia.

Mas as contradições dilacerantes do processo dedesenvolvimento capitalista, com seus movimentos sociais enecessidades humano-genéricas ampliadas, apontam para umapressuposição, uma pressuposição negada, no sentido dialético,deste próprio processo. Ou seja, a globalização não é tão-somenteum processo histórico-universal do capital posto como “sujeito”do processo capitalista, mas é, na mesma medida,universalização do homem como ente natural e social.

Portanto, o processo de universalização do homem, intrínsecoao desenvolvimento da sociedade burguesa, possui um duploaspecto: é naturalização do homem, isto é, metamorfose dohomem de um ente natural limitado a um ente natural cada vezmais universal e, por outro lado, humanização da natureza, ouseja, transformação da natureza pela atividade humana,transformação que faz com que os objetos em torno do homemse convertam em objetivações das forças da natureza humana.

De algum modo, a globalização como desenvolvimentocapitalista tardio não deixa de ser expressão destas determinaçõesontológicas da evolução humano-genérica. É por isso que ela éum processo civilizatório humano-genérico.

É a apreensão da globalização como processo civilizatóriohumano-genérico que coloca as bases objetivo-estruturantes da

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própria possibilidade da utopia sócio-histórico. Ora, talconcepção da globalização como processo civilizatório humano-genérico só é possível a partir de uma concepção do trabalhocomo processo de auto-produção do homem, de sua auto-criaçãona história: “O trabalho é o fogo vivo, configurador, a caducidadedas coisas, sua temporalidade, enquanto que é sua formação pelotempo vivo.” (Marx, 1987: 306) Ou ainda: “...toda denominadahistória universal não é mais que a produção do homem pelotrabalho humano, o devir da natureza em homem.” (Marx, 1988).

A globalização pressupõe o homem como ente social ecomunitário

Ao dizermos que o homem é um ser genérico, dizemos queele é efetivamente um ente social e comunitário. É tal apreensãoessencial da natureza humana, apenas pressuposta sob o sistemado capital, que pode explicar, em nossos dias, a resistência radicaldo homem a processos de dessocialização do ser social intrínsecosà mundialização do capital, uma resistência radical que se dá,como iremos ver adiante, através de associações e movimentosanti-globalização.

Ao dizermos que o homem é um ser genérico, isto é, umente social e comunitário, estamos dizendo que ele só pode serhomem, na medida em que se relaciona com os demais homense em conseqüência dessa relação com os demais homens.

Na verdade, a concepção do homem como átomo metafísicoe seu pressuposto, a idéia da possibilidade de uma existênciahumana fora ou independentemente da comunidade social, éuma ilusão filosófico-ideológica produzida pelos indivíduos quevivem em condições (e relações) coisificadas da produçãomercantil.

O individuo humano-concreto é um produto histórico-social esó é individuo humano na medida em que se apropria dascapacidades sociais, das formas de conduta sociais, das idéias e

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normas originadas e produzidas pelos indivíduos que o precederamou que coexistem com ele, e as assimila (mais ou menosuniversalmente) à sua vida e a sua atividade individual. Destemodo, o individuo humano-concreto é um produto, em si mesmo,histórico-social:

A atividade social e o espírito social não existem de modoalgum só na forma de atividade imediatamente comum eespírito imediatamente comum...Quando atuo cientificamente,etc., atividade que só posso executar em atividade imediatacom outros, sou ativo socialmente porque assim sou comohomem. Não apenas o material de minha atividade me é dadocomo produto social - igual a linguagem utilizada pelopensador - mas meu próprio existir é atividade social...Oindíviduo é o ser social. Por isso sua manifestação vital -embora não se apresente na forma imediata de umamanifestação comunitária, realizada junto com outros - émanifestação e confirmação da vida social. A vida individuale a vida genérica do homem não são diferentes, por maisque, necessariamente, o modo de existência da vida individualé um modo mais ou menos particular ou geral da vidagenérica, e a vida genérica, vida individual mais ou menosparticular ou geral (o grifo é nosso). (Marx, 1988)

Por isso que a idéia de globalização como processo civilizatóriohumano-genérico se expressa, de certo modo, pelo menos comopossibilidade concreta, através do desenvolvimento das redesde comunicação mundial, da constituição da Internet comoresultado do desenvolvimento das novas tecnologias telemáticase informáticas. A Internet é a própria metafóra do indivíduo comoser social-comunitário (apesar da sua perversão mercantil, ouseja, sua utilização suprema para o e-commerce).

Por trás do “dilúvio de Outros” (Lévy), proporcionada pelodesenvolvimento das tecnologias telemáticas, presenciamos, defato, a globalização como processo civilizatório humano-genérico.

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Mas não apenas isso. Presenciamos a validação ontológica dotrabalho enquanto atuação humana particular. Ele, o trabalho, éo próprio modelo ontológico do desenvolvimento do homemcomo ente social e comunitário.

Por um lado, o trabalho não é possível senão como atividadecoletiva, realizando-se esse caráter coletivo diretamente ouatravés de múltiplas mediações sociais. Nos primórdios da história,enquanto as forças produtivas sociais dos indivíduos, tanto nosentido objetivo-coisal, quanto no sentido subjetivo, estãorelativamente pouco desenvolvidas, enquanto enfrentam umanatureza pouco alterada, o trabalho é de caráter imediatamentecoletivo, é trabalho de um grupo ou então trabalho determinado econdicionado pelo pertencimento dos indivíduos a uma comunidade“espontânea” (Marx diria nos Grundrisse: “A comunidade mesmaaparece como a primeira grande força produtiva”).

É com o desenvolvimento das forças produtivas que seriapossível a produção autônoma dos indivíduos isolados, uma produçãonão regulada por vínculos comunitários imediatos. Mas essedesenvolvimento mesmo não é possível senão através de uma divisãodo trabalho e do intercâmbio social, em virtude dos homensproduzirem uns para os outros, pelo fato de que seus produtos secomplementam reciprocamente.

Por isso. a abolição/superação [Aufhebung] do caráterimediatamente coletivo da atividade produtiva só é possível atravésda socialização [Vergesellschaftung] de seu conteúdo e de suadeterminação interna:

O homem não se singulariza como indivíduo senão atravésdo processo histórico. Originariamente aparece como sergenérico, um ser tribal, um animal gregário, e de modoalgum como “animal urbano” [em grego no original] nosentido político. O intercambio mesmo é um meio fundamentalda singularização do homem como indivíduo. O intercâmbiotorna supérfluo seu caráter gregário e o dissolve. Isto ocorrena medida em que a situação se transformou de tal modo

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que o homem singularizado como indivíduo, já se relacionasó consigo mesmo, mas os meios necessários para pôr-secomo homem singular se converteram em atividade geral ecomum (Marx,1987:457)

Deste modo, é em virtude da globalização comodesenvolvimento tardio do capitalismo, em sua etapa demundialização do capital, pressupor, de qualquer modo, umdesenvolvimento ampliado (e intenso) do intercâmbio social , quepodemos admitir, como uma de suas dimensões inelimináveis, aglobalização como processo civilizatório humano-genérico, ouseja, a construção intensa da singularidade humano-genérica(apesar dos processos de dessocialização intrínsecos àmundialização do capital).

Ora, a idéia de globalização implica, de certo modo, aintensificação da coletividade humano-social. O individuo só podeapropriar-se das forças materiais e espirituais historicamenteproduzidas através da coletividade humana, do intercâmbio socialcom outros homens e mulheres. É um traço particular do processosócio-histórico e que só tendeu a se acelerar com o capitalismoindustrial no século XX.

A posição do campo linguístico-comunicativo como novadeterminação do processo civilizatório humano-genérico.

Em virtude da aceleração sócio-histórica do desenvolvimentocapitalista e da construção ampliada de um mundo objetual e,por conseguinte, do processo civilizatório humano-genérico quelhe é intrínseco, se desenvolve, de forma ampliada, como umanova determinação ontológica do ser do homem e sob a base dedesenvolvimento material do trabalho, um campo linguístico-comunicativo. Ele coloca, cada vez mais, a linguagem e ainteração intersubjetiva, inclusive (e principalmente) no interior

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de relações sociais antagônicas entre o capital e o trabalho, comoo nexo ineliminável do processo civilizatório humano-genérico.

É a partir do desenvolvimento ampliado do campo lingüístico-comunicativo que surgiram, por exemplo, a esfera pública etudo aquilo que procuramos relacionar a ela, tais como, porexemplo, as doutrinas políticas de democracia social, além dapredominância, como importante superestrutura ideológica, asfilosofias hermenêuticas e da linguagem, com suas diversasfiliações (Wittgenstein, Heiddegger, Gadamer, etc), que tantomarcaram o século XX.

É claro que o desenvolvimento do campo lingüístico-comunicativo antecede a globalização propriamente dita, tendoem vista que está ligado ao próprio desenvolvimento docapitalismo moderno (e das lutas sociais no interior do sistemado capital). Mas, com a globalização, ela tende a ampliar-semais ainda e assumir novas formas sócio-históricas. E, a partirda mundialização do capital, os limites de desenvolvimento (e atéde regressão e distorção político-ideológica) do campo lingüístico-comunicativo são bastante perceptíveis.

Podemos dizer que seria impossível a reprodução social docapitalismo tardio sem a esfera pública e sem os rudimentos deum Estado social-democrata (Welfare State), apesar da vontadepolítica da burguesia (com sua ideologia neoliberal). Ela surge eassume múltiplas formas sócio-históricas determinadas sob ocapitalismo tardio, em decorrência não apenas das própriasnecessidades estruturais da reprodução do sistema orgânico docapital, mas das necessidades civilizatórias dos indivíduossócio-históricos que a própria burguesia tem que reconhecer(sob a pressão social da luta de classes).

Por exemplo, mesmo sob a onda neoliberal dos anos de 1980,alguns pilares do Welfare State permaneceram quase intactos.Seu desmanche poderia atingir a legitimidade social e política dosistema orgânico do capital, inviabilizando sua reproduçãosistêmica. Na verdade, sob a onda neoliberal ocorreram reformas

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do Estado social-democrata que não aboliram de vez, mas deramum novo formato institucional, seletivo e excludente, à demandacivilizatória, aprofundando, deste modo, no limite, a contradiçãointrínseca à própria ordem do capital.

É importante salientar que o problema da legitimidade ou, nosentido gramsciano, da hegemonia “latu sensu, tornou-sedecisivo, mais do que nunca, para a reprodução do sistemaorgânico do capital tendo em vista o próprio desenvolvimentoampliado do campo linguístico-comunicativo, que seria, no planoontológico, o fundamento real do desenvolvimento dos meios decomunicação e de transportes na modernidade capitalista.Entretanto, o problema da legitimidade tende a apresentar, cadavez mais, a sua irresolubilidade nas condições da globalizaçãocomo mundialização do capital.

Portanto, na perspectiva de uma crítica da economia política,poderíamos dizer que o paradoxo e uma das principaiscontradições do sistema orgânico do capital, é que odesenvolvimento ampliado (e a expansão contínua) do valor detroca não significa que ele tenda a “suprimir” a importância e opróprio fundamento - do valor de uso, mas pelo contrário, ocorreo próprio desenvolvimento rico e multilateral do valor de uso quetende, inclusive, a entrar em contradição com o valor de trocaem expansão.

Esta é a dialética ineliminável do sistema produtor demercadorias, que reproduz, como sua própria condição ontológica,a contradição entre o desenvolvimento das forças humanasprodutivas e das próprias necessidades humanas sócio-históricas,que exigem sempre novos valores de uso, nem todospertinentes à demanda civilizatória, é claro, para satisfazernecessidades humano-genéricas criadas no processo dedesenvolvimento histórico, e as relações sociais de produçãocapitalista, baseadas no valor de troca e no valor (que quandonão realiza tais demandas civilizatórias, as distorce ou limita seudesenvolvimento social e histórico).

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Além disso, a constituição ontológica de um campo lingüístico-comunicativo ampliado como demanda civilizatória vai se exprimir,no plano do pensamento filosófico, na constituição de filosofiashermenêuticas e da linguagem. Não é à toa que a filosofia doséculo XX é caracterizada pela reflexão linguistico-comunicativaque, em suas formas mistificadas tende a ocultar (e inclusivenegar) a centralidade ontológica da categoria do trabalho.

Por exemplo, Habermas tende a salientar a passagem de umparadigma do trabalho para o paradigma da interação.Apesar de ser verdadeira a percepção em Habermas do valorfundamental de uma esfera intersubjetiva nas condições dedesenvolvimento do capitalismo moderno, ou seja, a constituiçãode uma esfera pública que esteja baseada na interaçãointersubjetiva e na linguagem como uma condição inelimináveldo processo civilizatório, é totalmente equivocado considerarque o campo linguistico-comunicativo (e da interaçãointersubjetiva) seja o verdadeiro fundamento da sociabilidadehumana, negando, portanto, a esfera do trabalho como a baseontológica estruturante do próprio desenvolvimento do campolinguístico-comunicativo.

O que ocorre é que, com o desenvolvimento tardio docapitalismo moderno, o campo linguístico-comunicativo tende asobredeterminar, inclusive como complexo problemático das“posições teleológicas secundárias” (Lukács), a própria atividadehumana cujo modelo ontológico é dado pela categoria do trabalho.

A esfera do trabalho tende a ser cada vez maissobredeterminada pelo campo linguístico-comunicativo, o quepode ser percebido, por exemplo, na centralidade estratégica dabusca do consentimento pró-ativo do trabalhador assalariado nanova ideologia orgânica da produção capitalista, o toyotismo.Éstamos diante de um resultado do processo civilizatório humano-genérico que é apropriado pelo capital. Entretanto, cabesalientar que a posição do campo linguistico-comunicativo nãosuprime, mas apenas sobredetermina, a centralidade ontológicado trabalho como fundamento da sociabilidade humana.

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O desenvolvimento do campo linguistico-comunicativo, istoé, da esfera pública como matriz originária do Estado social-democrata e das políticas sociais e das ideologias da democraciae da cidadania como valor universal, e o próprio desenvolvimentodo complexo ideológico-político da filosofia hermenêutica e dalinguagem, tendem a assumir, em nossos dias, uma dimensãomistificadora e paradoxal em virtude de seu desenvolvimentoocorrer no interior do sistema orgânico do capital.

Se o campo linguistico-comunicativo tende a sobredeterminar aesfera do trabalho como base ontológica do próprio desenvolvimentodas mediações linguistico-comunicativa, as determinações materiais(e sociais) do sistema orgânico do capital tendem, na mesma medida,a sobredeterminar, até com maior intensidade, o campo linguistico-comunicativo, explicitando seus limites de desenvolvimento nointerior das relações sociais capitalistas.

Por isso, com a globalização como mundialização do capital tornam-se perceptíveis os paradoxos (e limites) do campo linguístico-comunicativo nas condições sócio-históricas postas pelo capital como“sujeito” da modernização.

Por exemplo, limites (e paradoxos) da democracia como valoruniversal, uma tese política que se origina nas condições de umdesenvolvimento civilizatório tardio e que tende a cair em verdadeirasantinomias políticas diante da limitações estruturais postas pelo sistemaorgânico do capital à democracia radical e universal; e limites edistorções das filosofias hermenêuticas e da linguagem , que tendema ocultar a base material e as próprias relações de intercâmbiomaterial e espiritual, que determinam e condicionam, o campolinguistico-comunicativo, conduzindo, portanto, a construtos filosóficosidealistas.

Tais paradoxos do campo linguístico-comunicativa tendem aser os verdadeiros paradoxos do processo civilizatório humano-genérico nas condições da mundialização do capital.

Por um lado, a globalização tende a exacerbar, em si, aqualidade ontológica do homem como ente social comunitário e,portanto, linguistico-comunicativo. Entretanto, por outro lado,tende a constituir, a subversão da esfera lingüístico-comunicativa,

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limitando e degradando seu desenvolvimento civilizatório. Oexemplo-mor é a impossibilidade social, e não-técnica, daconstituição de uma verdadeira democracia radical e universalatravés da utilização da Internet. Pelo contrário, ela, a Internet,tende a tornar-se a imagem e semelhança da própria sociedadeburguesa: seletiva, excludente e banalizada pelo consumismovolátil. O paradigma da rede é a metáfora (e a promessa) daplena realização política e social do homem como ente social ecomunitário, totalmente frustrado pela lógica do capital.

Individuo e sociedade na era da globalização

O desenvolvimento tardio do capitalismo mundial tende arevelar um aspecto importantes da relação do individuo com asociedade. Primeiro, o “individuo histórico-mundial”, constituídoem-si (e não para-si) com a intensificação dos intercâmbiossociais e com a própria constituição da sociedade em “rede”,tende a depender cada vez mais, apesar da sua singularidadehumano-genérica, de outros indivíduos para desenvolver suaprópria individualidade singular (ora, a própria idéia de “rede” éa materialização estrutural do desenvolvimento tardio dasingularidade humano-genérica).

Na verdade, a vida social tende a produzir novas necessidadesindividuais, principalmente necessidade de contato humano,apesar de que, nas condições estranhadas da sociedade burguesaocorram limites estruturais para o desenvolvimento pleno dasocialização de homens e mulheres, o que salientamos quandotratamos dos limites e paroxismo de desenvolvimento do campolingüístico-comunicativo, principalmente de uma verdadeira esferapública no interior do sistema orgânico do capital.

Depois, o individuo tende, cada vez mais, a se imiscuir e tersobre si a herança das gerações passadas. Foi Marx queobservou, e não apenas ele, mas Comte também chegou aobservar, que: “A tradição de todas as gerações mortas oprimecomo um pesadelo o cérebro dos vivos.” (Marx, 1986:17).

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Entretanto, nas condições do sistema orgânico do capital, ocrescimento do mundo objetual tende a impor a homens emulheres novas condições de sociabilidade que possuem comoprincipal característica o perpetuo trato com normas e dispositivoslinguisticos-comunicacionais que lidam com um passado “que sedesmancha no ar”, mas que tende a ser sempre reiterado (“comoum pesadelo”, na asserção de Marx):

...o desenvolvimento do individuo está condicionado pelodesenvolvimento de todos os demais com os quais seencontra em relação direta ou indireta, e que as distintasgerações de indivíduos que entram em relação umas com asoutras têm uma determinada conexão entre elas, que osindivíduos posteriores estão condicionados em suaexistência fisica por seus predecessores, assumem as forçasprodutivas e as formas de intercâmbio acumuladas por estese permanecem assim determinados em suas próprias relaçõesrecíprocas. Na verdade, está claro que ocorre uma evoluçãoe que a história de um individuo singular não pode ser, demodo algum, desvencilhada da história de todos osindivíduos precedentes e coetáneos, mas sim, estádeterminada por esta. (Marx, 1985)

Essas determinações ontológicas. o lastro das geraçõespassadas e a interdependência dos indivíduos sociais, queadquirem maior plenitude nas condições de um capitalismo tardio,não podem ser vistas apenas como um obstáculo que atrofia ereprime as inclinações (e aspirações) “autênticas” do individuosingular.

Pelo contrário, elas tendem a ser as condições autênticas parao pleno desenvolvimento da sua individualidade concreta. Comotemos salientado, é através das capacidades herdadas e dasnecessidades e formas de intercâmbio social dadas através desuas relações com outros indivíduos (a práxis social), que oindividuo singular irá se apropriar do ser humano do individuo eda individualidade concreta particularmente humana.

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Dimensões da Globalização

Ao tratarmos do homem como ente natural e universal,dizemos que a atividade do trabalho constitui o ser do homem.Mas o homem é um ser genérico na medida em que é um entecomunitário ou social.

A socialidade do homem não se reduz a esfera de produçãoou do trabalho como atividade sócio-humana propriamente dita,principalmente sob um capitalismo tardio, onde as mediaçõessociais tornaram-se mais complexas, e onde se constituíram, nocurso da evolução histórica, esferas, de certa forma, específicasde atividade social, dotadas de uma independência relativa, comoa distribuição e o intercâmbio social, a estatalidade com suasinstituições históricas, etc., e a própria esfera linguístico-comunicativa.

A socialidade é um traço essencial do individuo singularinteiro, penetrando em todas as suas formas de atividade vital.Entretanto, contra aqueles que afirmam a perda da centralidadeontológica da categoria do trabalho, seu descentramentosociológico apenas expõe a constituição de mediações complexasautônomas originárias do próprio desenvolvimento da atividadedo trabalho material.

É através da história como atividade de produção ereprodução da vida social, que o homem torna-se um ente naturale universal e mais ainda, um ente social e universal. É aintensa ampliação da produção material que torna o homem umente social universal, na medida em que ela, a produção material,adquire caráter social, não apenas em sua forma abstrata, mastambém através de seu conteúdo concreto.

Porque os indivíduos começam a produzir uns para os outros,seus produtos se complementam reciprocamente, seu trabalhose converte “às suas costas”, é claro, em componente integrantede um trabalho social total e os produtos se convertem emprodutos comuns do trabalhador coletivo.

Ora, a idéia de globalização como processo civilizatóriohumano-genérico pressupõe um estágio histórico tardio do modo

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de produção (e reprodução) capitalista, onde os indivíduossingulares, tornados indivíduos histórico-mundiais em si pelodesenvolvimento sócio-histórico do capital, trabalham (e vivem)de uma forma ou de outra, uns para os outros. É o momentomais desenvolvido de uma divisão social do trabalho que se realizanuma perspectiva global.

É cada vez mais perceptível que a atividade do individuo sefaz objetivamente dependente da atividade de um âmbito deindivíduos singulares, homens e mulheres, cada vez mais amplos.Qualquer idéia impressionista da globalização tende a incorporartal percepção.

Por outro lado, cabe salientar que, com a globalização comoprocesso civilizatório humano-genérico, se constituem, para osindivíduos singulares, as condições sócio-históricas mais elementares,pelo menos no campo das possibilidades concretas, para que elespossam se apropriar (e utilizar) das experiências civilizatórias do“globo”, acumulada pela humanidade inteira:

Só com o desenvolvimento universal das forçasprodutivas...passa a existir um intercâmbio universal entreos homens...o que passa a existir finalmente indivíduoshistórico-universais, empiricamente universais, no lugar doslocais.(Marx, 1987:4)

Essa ampliação do intercâmbio humano-social produz ascondições de autonomia do homem singular e as condições dedesdobramento da interioridade humana e da individualidadehumana real. Mesmo nas condições da globalização comomundialização do capital, tende a ocorrer a posição de taisdemandas civilizatórias. É claro, condicionadas e determinadaspelo capital.

Entretanto, eis a raiz da contradição essencial da evoluçãohistórica, pois o desenvolvimento da esfera do “estranhamento”ocorre, pari passu, à constituição de um intercâmbio humano-

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social cada vez mais universal, que tende a dissolver as pequenascomunidades sociais isoladas e autárquicas.

A universalização e a individualização singular do homemsão um processo unitário, apesar dessa unidade se realizar apenasatravés de contradições e contraposições, como temos salientado.Por exemplo, a universalização poderia ser considerada, na era daglobalização, como a unidade da individualização e dadespersonalização (Markus, 1971).

Além disso, a universalização prática dos homens tambémé universalização espiritual (e “humanização ampliada dossentidos”), isto é, a tendência do conhecimento humanotranspor todas as barreiras concretas, não apenas no sentidoextensional (uma simples ampliação quantitativa dosconhecimentos), mas um processo de universalização daconsciência humana que tende a alterar a consciência mesmae inclusive o caráter da atividade consciente em sua relaçãocom o sujeito e em sua relação com o objeto.

Salientamos que a globalização pressupõe o homem comoente natural e universal e ente social e comunitário. Ao utilizarmoso termo “pressupõe”, nos apropriamos de uma sintaxe dialéticaque distingue posição de pressuposição (no plano da exposiçãológica - e ontológica - do conceito).

Em virtude da globalização ser mundialização do capital, istoé, ser expressão da posição do capital como “sujeito” do processode modernização (inclusive o “sujeito” capital sob a formapredominantemente financeira), os atributos da globalização comoprocesso civilizatório humano-genérico só podem estarpressupostos, o que não significa que não significa que nãotenham uma efetividade sócio-histórica.

É por tais pressupostos ontológicos da globalização teremuma efetividadade sócio-histórica que (1) a contradição do sistemaorgânico do capital é um dado concreto da evolução histórica daglobalização e (2) a utopia da emancipação humana preservaseu valor histórico-ontológico, contra aqueles que anunciam o“esgotamento das energias utopicas” (Habermas).

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Mundialização do Capital como Ocaso Civilizatório?

Seria a globalização como mundialização do capital ummomento de ocaso civilizatório, onde todos aqueles pressupostosconcretos da evolução histórica, intrínsecos ao desenvolvimentocapitalista, seriam subvertidos pela constituição de um sistemaorgânico do capital que tenderia a inverter a lógica produtiva?

Por exemplo, Chesnais salienta que, com a mundialização docapital, a “lógica produtiva” não seria mais dominante, mas sim a“lógica especulativo-parasitária”. Pela primeira vez na história areprodução social ampliada estaria ameaçada pelo grau deparasitarismo que o capitalismo mundial mostrou ser capaz degerar (Chesnais, 1995).

Na virada do século XX, o conceito de imperialismo em Lênine Trostsky pressuponha também a percepção de uma etapasuperior de “apodrecimento” do capitalismo mundial, um“capitalismo agonizante” ou ainda um “capitalismo de transição”,o que significaria que o desenvolvimento do capitalismointernacional só tenderia, segundo os autores bolcheviques, aaprofundar a barbárie, perdendo, definitivamente qualquerelemento civilizatório propriamente dito. A passagem para ocapitalismo monopolista implicaria numa mudança estrutural doprocesso de socialização capitalista.

Na verdade, o imperialismo seria uma fase superior dedesenvolvimento do capitalismo mundial que repousaria nadegradação acelerada das condições de vida das massasoprimidas. Por isso, acreditava-se, nos primórdios do século XX,que diante do esgotamento absoluto das energias civilizatóriasdo capitalismo, estariam sendo colocadas as premissas objetivasirremediáveis da revolução proletária.

Ora, o que sugerimos é que a idéia de um esgotamentoabsoluto das energias civilizatórias do desenvolvimentocapitalista não é correta. Ela tenderia a desprezar a própriadialética da evolução sócio-histórica. O que procuramos mostraré que, mesmo nas condições do capitalismo mundial tardio, ocorre

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o desenvolvimento das energias civilizatórias. Cabe ressaltar,limitado, é claro, cada vez mais, pelo sistema orgânico do capital.

O que precisa ser salientado é o caráter contraditório dodesenvolvimento do sistema orgânico do capital, o que quer dizerque o capitalismo mundial desenvolve, cada vez mais, numaproporção ampliada, diríamos, planetária: a barbárie e acivilização, pelo menos como possibilidade concreta.

Na passagem para o capitalismo monopolista, na virada doséculo XX, o que ocorre é uma superação das possibilidadescivilizatórias colocadas pelo desenvolvimento anterior. O conceitode imperialismo, apresentado por Lênin, por exemplo, procurouexpressar a nova forma de ser do sistema mundial do capital.

O mesmo ocorre, hoje, na virada do século XXI, com aglobalização como mundialização do capital. Com ela ocorre umanova superação das possibilidades civilizatórias colocadas pelaetapa pretérita da evolução sócio-histórica. Só que a idéia de“superação” (Aufhebung) - no sentido de negação/conservaçãodos elementos civilizatórios intrínsecos à evolução sócio-históricado capitalismo, serve para tornar claro o acirramento dascontradições e contraposições do sistema orgânico do capital.

É o conteúdo intrinsecamente contraditório do sistema orgânicodo capital que precisa ressaltado mais do que nunca, pois é apartir daí que poderemos vislumbrar a negação da negação,pelo menos como possibilidade concreta. “Hoje em dia tudoparece levar no seu seio a sua própria contradição”, diria Marx(ele proferiu tal frase no discurso de aniversário do jornal cartistaThe People’s Paper em 1857).

O que significa que a globalização como processocivilizatório humano-genérico é tão-somente a unidade crítica,ampliada e contraditória, entre o estranhamento universal queatinge o individuo inteiro em suas relações sociais mais complexas,em decorrência do sistema orgânico do capital e a explicitaçãoespectral do homem como ente natural, consciente, social euniversal, isto é, ser humano-genérico.

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O conceito de explicitação espectral, que ora apresentamos,pode servir para caracterizar a objetivação, mesmo quemistificada, das capacidades humano-genéricas mais plenas edas possibilidades concretas de realização do “ser humano”. Apromessa de emancipação é apenas um espectro sob o sistemaorgânico do capital. O espectro é uma realidade virtual mistificadae mistificadora, obnubilando suas próprias condições deirrealização estrutural.

A idéia da globalização como processo civilizatório humano-genérico conduz à percepção da evolução histórica não apenascomo progresso técnico, mas também como progresso“antropológico”, como persistente ampliação e aprofundamentodas capacidades, necessidades e formas de intercâmbio econhecimentos desenvolvidos pelo conjunto da sociedade.

É claro que é deveras provocador afirmar que a “civilizaçãoda globalização”, do “bazar cultural mundializado” e do “centrocomercial mundializado” (global shopping mall), com sua culturada insignificância, possa representar progresso “antropológico”.

Entretanto, o que queremos salientar é que (1) tal percepçãoda “banalização civilizatória” que ocorre na era da ‘globalização”(e que decorre das próprias condições de reprodução cultural eideológica do capitalismo tardio) é verdadeira do ponto de vistado individuo social, mas é falsa do ponto de vista do todo social

Na verdade, (2) ela traduz a exacerbação intrínseca à“globalização”, das contradições do sistema orgânico do capital:a contradição entre o desenvolvimento humano-génerico, dadopelo recuo das barreiras naturais e pela constituição de um campode possibilidades concretas à emancipação do homem daescassez, representada pelo desenvolvimento das forçasprodutivas humanas, e o desenvolvimento dos individuosdeterminados e condicionados pela sociedade de classes e peloestranhamento intrínseco às relações sociais capitalistas.

Do ponto de vista do todo social, a evolução histórica comoum todo, aparece como um processo progressivo deuniversalização e liberação do homem. Entretanto, até agora, o

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progresso global da história não possui o mesmo sentido para osindivíduos singulares, tendo em vista que a evolução históricanão se traduziu na produção plena de indivíduos cada vez maisuniversais e mais livres, embora, mais do que nunca, ocorra apossibilidade concreta de “indivíduos histórico-mundiais”, postos,entretanto, como meros entes espectrais.

É claro que, mesmo nas condições do sistema do capital, seproduziu, sob a base de um desenvolvimento social ascendente,períodos históricos mais ou menos breves, nas quais algumas camadassociais, mais ou menos numerosas de indivíduos singulares, dispunhamde possibilidades de desenvolvimento humano relativamentemultilateral e harmoniosa. Mas se tomarmos como exemplo, nãoseus indivíduos representativos, mas seus indivíduos médios, oque observamos é o contrário (Markus, 1973).

Portanto, do ponto de vista dos indivíduos singulares não existeum critério unitário e unívoco para captar a história como evoluçãohumano-genérica. O que observamos na época da “globalização”é um abismo completo (e absoluto) entre a evolução individuale a evolução social-global.

Deste modo, do lado dos indivíduos singulares é impossívelcaracterizar o processo histórico atribuindo-lhe uma direção única edeterminada. Essa impossibilidade decorre das próprias contradiçõestendenciais do processo civilizatório do sistema do capital.

Portanto, do ponto de vista dos indivíduos típicos que se sucedemna história, a história transcorre até agora, não como um processoprogressivo ou como um processo regressivo, em virtude de quenão podemos descreve-la como um processo unitário.

O que significa que a universalização do gênero humanonão tem porque implicar a produção histórica de indivíduos cadavez mais universais. Pelo contrário, sob o sistema orgânico docapital o que observamos são indivíduos cada vez mais unilaterais,mais limitados e mais “abstratos”, apesar de que - e eis a sublimecontradição ! - mais do que nunca, tenha se constituído um campo

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de possibilidades concretas para o surgimento de “indivíduoshistórico-mundiais” (Marx).

Na perspectiva do todo social, a globalização e aspossibilidades concretas abertas no campo tecnológico, e inclusiveantropológico, tendem a significar um processo progressivo deuniversalização e liberação do homem.

É a base sócio-material de desenvolvimento do sistema docapital que permite que sejam possibilidades concretas e nãomeramente fantasias utópicas, a idéia de indivíduos histórico-mundiais. São tais condições materiais que constituem o lastroreal dos espectros humano-genéricos subjacentes às promessasirrealizadas, e portanto, meramente ideologias, de uma novacivilização do tempo livre, etc.

Ao invés da idéia de um “ocaso civilizatório”, que poderia sermeramente uma idéia metafísica, pois tenderia a negarabsolutamente a própria evolução histórica. o que tenderia asignificar, em última instância, o fim da história, é preferível umaapreensão dialética que saliente as contradições (econtraposições) irremediáveis e candentes do sistemaorgânico do capital.

Globalização “em-si” e Globalização “para-si”

Alguns autores utilizam a expressão globalização pelo altoe globalização dos debaixo, principalmente no que se refere anecessidade de constituir novos movimentos sociais globais(Brecher e Costello, 1994)).

Na verdade, é o que constatamos, principalmente a partir dacrise da globalização nos últimos anos da década de 1990,com o surgimento de novíssimos movimentos sociais,perceptíveis a partir das manifestações populares em Seattle(1998) e culminados no I Fórum Social Mundial em Porto Alegre,em 2001. Eles sugerem uma globalização dos debaixo.

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Mas colocamos uma nova determinação : a globalizaçãoem-si é o que temos analisado até o momento como sendo amundialização (e a ideologia) do capital, onde os homens emulheres aparecem como meros predicatos de um processosócio-histórico cujo verdadeiro “sujeito” é o capital, em sua esferade produção e reprodução do valor abstrato (o dinheiro). É aglobalização como “coisa” que se impõe a todos nós e queaparece como uma segunda natureza - quase-phísis - ondenão vislumbramos as teias políticas e ideológicas tecidas pelaluta de classes.

Mas a globalização, apesar de ser um processo em-si, pois édesenvolvimento sócio-histórico material-objetivo, coloca aspossibilidades concretas de um processo para-si, instigado atémesmo pela própria base material (e tecnológica) desenvolvidapelo sistema orgânico do capital (por exemplo, é indiscutível opapel da Internet na “globalização dos debaixo”):

A humanidade não se coloca nunca problemas que não poderesolver, pois, ao mirá-lo de perto, ver-se-á que o problemamesmo só surge no lugar onde as condições materiais pararesolvê-lo já existem ou ao menos estão em vias de aparecer.(Marx, 1985).

A expressão da associação, dos movimentos e da consciênciade contestação, num sentido global, mesmo que, num planocontingente, seja corporativista e particularista, aponta para osurgimento de “espectros” de indivíduos histórico-mundiais. Sãorudimentos de uma globalização para si, como resultadonecessário de um processo intrinsecamente contraditório dosistema orgânico do capital.

A globalização em-si cria novos problemas civilizatórios, deconteúdo transnacional e que se põe numa outra dimensão sócio-histórica. Eles são postos pelo desenvolvimento do capitalismomundial e exigem, para o seu enfrentamento real, a constituiçãoirremediável de novas estruturas associativas, políticas e culturais

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de nível global, integrativas e não substitutivas. O que significaque a sociedade nacional-estatal tende apenas a ser sobre-determinada - e não meramente anulada - pelos desenvolvimentosde uma sociedade burguesa transnacional.

As novas tecnoburocracias transnacionais e seus antípodas,as associações (ONG’s) e movimentos de contestação, seconstituíram para dar uma resposta histórica efetiva (e eficaz) àsnovas provocações do capital.

Inclusive, algumas associações (ONG’s) de cariz anti-globalizaçãopodem expressar o surgimento (e o conteúdo) de necessidades sociais(e individuais) qualitativamente novas, até mesmo necessidadesradicais, de intercâmbio humano-genérico no interior de um sistemaorgânico do capital permeado de processos de dessocialização ecaracterizado por uma lógica da produção destrutiva (Mészáros,1996).

Por exemplo, movimentos agrários de contestação à OMC esua política de liberalização comercial, que atenta contracomunidades de pequenos produtores rurais (tais como a UniãoCampesina) e o Movimento dos Sem-Terra (MST), constituídopor excluídos da nova ordem global do capital, possuem umsignificado histórico que transcende suas referencias de classeoriginárias. Não são meramente movimentos camponesesclássicos, apesar de suas demandas corporativas expresseminteresses particulares de pequenos agricultores e excluídos daterra.

Na verdade, eles expressam a associação de homens emulheres imersos na lógica destrutiva do sistema orgânica docapital. Eles resistem (e se contrapõem) conscientemente ou não,à lógica estrutural da globalização como mundialização do capitalque dessocializa e ressocializa ininterruptamente homens emulheres.

Portanto, a globalização como mundialização do capital implicana constituição de movimentos – e organizações – sociais globaisque levam, como bandeiras de luta, uma série de demandascivilizatórias cujo enfrentamento histórico e político efetivo

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transcendem o campo nacional ou até mesmo regional (porexemplo, o problema ecológico, que remete, em última instância,à própria lógica da produção destrutiva do capital).

É claro que, muitas vezes, o enfrentamento político de taisdemandas sociais globais podem até incorporar a formaassociativa adequada: a trasnacionalização das articulaçõessociais.

Entretanto, em geral, permanecem aquém de um conteúdopolítico efetivo para enfrentar tais problemas civilizatóriosdecorrentes do sistema orgânico do capital.

Muitas de tais associações globais, criadas no bojo daglobalização em-si, com o avanço da consciência humano-genérica, dos espectros de indivíduos histórico-mundiais tendema não compreender a necessidade radical de atingir a lógicadestrutiva do sistema orgânico do capital, permanecendo,apesar de sua abrangência (e do discurso) global, imersos noparticularismo corporativista (pode-se, portanto, ser plenamentecorporativismo, apesar de ser “global”).

Ao perderem o ponto de vista da utopia social do trabalhocomo pólo estrutural antagônico do capital, tanto no campo político,com o abandono da organização sindical e política alternativa donovo (e precário) mundo do trabalho, tanto no campoepistemológico, com a recusa da crítica da economia política,rendem-se à própria aparência necessária do sistema produtorde mercadoria.

Além do avanço da associação e da consciência global contrauma multiplicidade de problemas sociais (e ecológicos) dos maisdiversos tipos, decorrentes do desenvolvimento intensivo e nãomeramente extensivo do sistema do capital, inclusive comoprocesso civilizatório e não apenas como modo de produção (ecirculação) de mercadorias, a globalização coloca apossibilidade concreta de demanda social por uma cidadaniaglobal, o que envolveria (re)pensar/negar o próprio conceito decidadania.. Ou seja, uma cidadania global que articule, através

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de uma rede de direitos de um amplo espectro civilizatório, oavanço de associações transnacionais do mundo humano-genéricovoltado para o controle social (e para além) do capital.

Ora, a possibilidade concreta de uma cidadania global, parase contrapor como elo resistente à exacerbação do sistemaorgânico do capital, se contrasta com a diluição real do estatutoda cidadania nacional, através das políticas neoliberais de amploespectro. Talvez essa possa ser mais uma contradiçãoirremediável da globalização como desenvolvimento tardio docapitalismo moderno.

Na verdade, tais elementos, as associações e os movimentossociais globais e a perspectiva de construção de uma cidadaniaglobal como resultado de uma globalização para-si e não apenasem-si, podem ser considerados aspectos (ou explicitaçõesespectrais) da globalização como processo civilizatório humano-genérico e de todos os seus pressupostos negados pelo sistemaorgânico do capital.

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Sociologia da

Globalização

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A Globalização na Perspectiva da Sociologia

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5A Globalização Na Perspectiva dos

Clássicos da Sociologia

Em sua obra Teorias da Globalização, publicadaem 1995, Octávio Ianni procurou recuperar, decerto modo, a perspectiva dos clássicos da sociologia

para tratar da globalização. Não apenas isso, é claro, pois a obracontém impressões de outras vertentes teóricas da sociologiamoderna.

A trilogia sociológica e ensaística, de Octávio Ianni, publicadasna década de 1990 - A Sociedade Global, Teorias daGlobalização e A Era do Globalismo - é uma provocaçãointeressante, pois contém um potencial heurístico capaz de capturar,em seus múltiplos aspectos, o que ele denominou de era doglobalismo (em 2001, Ianni acabou de publicar Enigmas daModernidade-Mundo). Além, é claro, de procurar instauraruma problemática sociológica no limite do próprio estatutosociológico clássico, que surgiu vinculado a uma perspectivanacional, principalmente em Durkheim e Weber.

É do nosso intuito, a partir da leitura de Ianni, demonstrarcomo algumas idéias sociológicas presentes nas obras de MaxWeber, Karl Marx e Émile Durkheim podem ser utilizadas parauma interpretação da globalização. Cabe salientar que, nessecaso, a idéia de globalização adquire o sentido essencial e maisgeral de desenvolvimento do capitalismo moderno, nãosignificando, portanto, a rigor, o que temos tratado até agora, ouseja, globalização como mundialização do capital, isto é, uma

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etapa sócio-histórica concreta do desenvolvimento do capitalismomundial caracterizada pela predominância do capital financeiro.

Numa perspectiva dialética, pode-se dizer que a globalização,em seu sentido mais geral, tende a significar desenvolvimentodo capitalismo moderno, tal como tratado pelos clássicos dasociologia; e em seu sentido mais particular, mundialização docapital, um momento tardio desse desenvolvimento do capitalismomoderno. Cabe salientar que a idéia de globalização comoprocesso civilizatório humano-genérico vincula-se àsdeterminações mais gerais da globalização como desenvolvimentodo capitalismo moderno.

Na seção intitulada Sociologia da Globalização, nosutilizamos amplamente, inclusive com longas transcrições, do livroTeorias da Globalização, de Octávio Ianni, para constituir umasíntese do potencial heurística contido nas obras de Weber eMarx para interpretar e compreender a globalização.

De certo modo, corremos o risco de incorporar alguns viesesanalíticos de Ianni, ou modos peculiares de apreender as obrasde Marx e principalmente de Weber. É o caso da sua peculiarapreensão da contribuição sociológica de Max Weber, claramenteimbuída de um olhar marxista de cariz frankfurtiano. Por exemplo,Ianni utiliza as categorias de valor de uso e valor de troca paraapresenta-las como algo que é intrínseca à própria lógica daracionalização do mundo, tratada por Weber. O que demonstra,portanto, que a leitura de Weber, realizada por Ianni, incorporaum marxismo de linhagem ocidental, próximo de um Lukács deHistória e Consciência de Classe. Mais do que uma meracontaminação marxista da leitura de Weber, o que Ianni nosapresenta é a demonstração de que existem pontos de contatocomplementares na obra de Marx e Weber, com Marx servindo,de certo modo, para interpretar Weber.

Por outro lado, o ensaio sobre Durkheim que apresentamos,é independente dos demais (os que tratam de Weber e o de Marx),apesar de prosseguir a mesma problemática: a globalização naperspectiva dos clássicos da sociologia.

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A Globalização na Perspectiva da Sociologia

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É curioso que em sua reflexões sociológicas sobre aglobalização, utilizando os clássicos da sociologia, Ianni não tenhadesenvolvido, com maior amplitude, a contribuição durkheiminiana.Na verdade, a presença de Durkheim numa diagnóstico daglobalização apresentada por Ianni é bastante tímida. Atravésdo ensaio que apresentamos, procuramos mostrar que Durkheimé mais atual que possamos imaginar.

Os ensaios sobre Marx e Weber, que ora apresentamos, sãoanotações de um curso de extensão universitária intitulado O Queé Globalização, ministrado na UNESP/Campus de Marília em 1997e o ensaio sobre Durkheim decorre de uma palestra proferida namesma época.

Depois de tais esclarecimentos, resta-nos perguntar - após acaracterização das dimensões da globalização, em que medida élegítimo buscar uma contribuição dos clássicos da sociologia (KarlMarx, Max Weber e Émile Durkheim) para uma interpretaçãoda globalização?

Em primeiro lugar, como caracterizamos na Parte I, aglobalização é uma ideologia, além de ser, é claro, um processosócio-histórico concreto, a mundialização do capital. O quesignifica que não podemos reduzi-la meramente a outrosmomentos da expansão capitalista.

Mas a globalização, por ser mundialização do capital e destilaruma ideologia, é um processo civilizatório humano-genérico,com um sentido essencial intrinseco à própria lógica dedesenvolvimento do capitalismo moderno.

Deste modo, a globalização possui um sentido originário, ouseja, é um momento sócio-histórico de desenvolvimento docapitalismo moderno. E o desenvolvimento do capitalismomoderno tornou-se objeto privilegiado de reflexão dos clássicosda sociologia no século XIX e na passagem para o século XX.

Por isso é que podemos dizer que, a perspectiva da globalizaçãoque tais clássicos da sociologia nos apresentam, inclusive Marx,com seu o olhar mais aguçado sobre a natureza do capitalismomoderno, é a globalização não como mundialização do capital,

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como temos tratado na parte I, mas uma dimensão pressupostaoriginária da globalização como expansividade do capitalismomoderno, ou seja, a globalização como o desenvolvimentotardio do capitalismo moderno, de um processo demodernização cujos nexos originários (e ontogenéticos) puderamser apreendidos, seja em sua dimensão essencial, através de KarlMarx, seja em sua dimensão contingente, através dos clássicosda sociologia propriamente dita: Émile Durkheim e Max Weber.

Tanto Weber quanto Durkheim são autores clássicos porqueconseguiram apreender, apesar de seus limites heurísticos emetodológicos, a natureza plena do desenvolvimento, ou seja, daprodução/reprodução da sociabilidade do capitalismo moderno.

Em seus múltiplos aspectos contingentes, Weber e Durheim,enquanto sociólogos, souberam traduzir os problemas da sociedadeburguesa. E não apenas isso. Apesar de seus horizontesmetodológicos limitados, conseguiram apreender os problemase dilemas do desenvolvimento da sociabilidade burguesa. Naverdade, comprometeram-se com eles. Esta é a riqueza (emiséria) dos clássicos da sociologia, excetuando-se Karl Marx,que, a rigor, não poderia ser considerado um mero clássico dasociologia, tendo em vista o caráter conservador, e quasereacionário, da disciplina autônoma “sociologia”, na perspectivamarxista.

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Max Weber e a Globalização

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6Weber e a Globalização Como

Racionalização do Mundo

Para a sociologia de Weber, o processo de desenvol-vimento do capitalismo moderno pode serapreendido como um processo de racionalização do

mundo. Deste modo, pode-se dizer que, para Weber, aglobalização, em seu sentido originário, poderia ser consideradauma etapa superior da racionalização do mundo, de um vasto ecomplexo processo de racionalização e intelectualização, cujo produtoe condição é dado pelo próprio desenvolvimento das ciências e datecnologia. É um processo de racionalização que nos atinge há milharesde anos e que penetra as mais diversas esferas da vida social, emmaior ou menor proporção, o que implica considera-lo um processocomplexo e totalmente heterogêneo.

Em seu livro Teorias da Globalização, Octávio Ianni abordaa globalização como racionalização do mundo, incorporandocontribuições de Weber, com sugestões analíticas de Marx. Destemodo, o processo de racionalização do mundo é apreendido comoum processo de subordinação do principio da qualidade peloprincipio da quantidade. O mesmo principio que funda aracionalidade da empresa e do mercado, da cidade e do Estado,aos poucos impregna todos os círculos da vida social,compreendendo o partido político e o sindicato, a mídia e a escola,a Igreja e a família.

Ainda que o principio de qualidade jamais seja suprimido, eleperde prerrogativas na maioria dos espaços públicos, e tende a

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Dimensões da Globalização

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perdê-las também em espaços privados. Ou ainda, o principio daqualidade subjacente ao ascetismo presente na origem do espíritodo capitalismo (como salientou Weber), progressivamente foisendo substituído pelo principio da quantidade. A mesma dinâmicadeflagrada com a ética protestante, com a profissão comorealização da vocação, ou com a atividade econômica disciplinadae produtiva como missão, essa mesma dinâmica engendra asubstituição da qualidade pela quantidade.

Isto significa que, na perspectiva de Weber, a matriz origináriado capitalismo, sintetizada na ética protestante, na profissão comovocação e no ascetismo como negação do hedonismo,progressivamente rotiniza-se, seculariza-se e dissolve-se no jogodas forças sociais presentes e crescentes no mercado. Assim,aos poucos, o consumismo que é um traço característico da erado globalismo, se constitui em outra esfera de dinamização dasações, relações, instituições e organizações sociais, em escalalocal, nacional, regional e mundial (Ianni, 1996).

Além disso, a partir de Weber, o processo de racionalizaçãodo mundo pode ser apreendido a partir de seu conceito deracionalidade, que está na base de seu pensamento. Tudo que ésocial, em qualquer época e lugar, pode ser analisado em termos deformas e gradações de racionalidade das ações sociais de indivíduos,grupos ou coletividades. Os conceitos típico-ideais de ação socialtradicional e ação social afetiva adquirem maior clareza quandoem contraponto com os conceitos de ação racional com relação avalores e ação racional com relação a fins.

Em outro nível, o conceito de dominação racional legal ajudaa clarificar os de dominação tradicional e dominaçãocarismática. É a partir de tais conceitos típico-ideais que Weberprocura caracterizar e explicar o desenvolvimento daracionalidade específica e peculiar que distingue a civilizaçãoocidental moderna de todas as outras. E a mesma racionalidadeque singulariza a civilização ocidental transforma-se em parâmetrode análise de todas as outras civilizações ou formações sociaisdiferentes da ocidental (Weber, 1999).

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Aliás, o próprio Ocidente e o capitalismo moderno é analisadoa partir desse parâmetro. É como se muito do que se situa noOcidente só aos poucos se tornasse racional, organizado segundoas características da dominação racional. Simultaneamente, écomo se muito do que é tradicional, carismático, patrimonial ouoriental só aos poucos se deixasse penetrar por característicasda dominação racional legal.

O que implica em dizer que a globalização poderia sercompreendida a partir de Weber, segundo a ótica aguçada deOctávio Ianni, não apenas como o desenvolvimento daracionalização que gerado no Ocidente (e no Norte) se espalhapelo Oriente, e pelo Sul, mas como o próprio desenvolvimentoda racionalidade penetrando o próprio Ocidente.

Ainda que na mesma sociedade subsistam distintos tipos dedominação, tais como o carismático e o tradicional, entre outros,quando a dominação racional começa a predominar, ela tende ainfluenciar, recobrir, tensionar, modificar, recriar ou mesmodissolver outras modalidades de organização das atividadesprodutivas e da vida social (Ianni, 1996)

Globalização, Direito Racional e Racionalidade Social

Com o desenvolvimento do capitalismo moderno, desenvolve-se e generaliza-se em escala mundial, o direito racional, pelacodificação jurídica das responsabilidades, normas eprocedimentos, estipulando os parâmetros das ações e relações,das instituições e organizações.

Para Weber, o direito racional é o coroamento do processode racionalização inerente ao desenvolvimento docapitalismo como processo civilizatório. Ele é o parâmetrouniversal das atividades, ações, relações, instituições eorganizações, envolvendo indivíduos e coletividades, nações enacionalidades.

A partir dos princípios de liberdade e igualdade de proprietários,formalizados no contrato, institucionalizam-se, generalizam-se e

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cristalizam-se as condições e possibilidades formais deintercâmbio, negociação e parlamentação, controvérsia, prêmioe punição. O direito se constitui em uma espécie de parâmetrouniversal da sociabilidade característica da ordemcapitalista. Na era da globalização, ou do capitalismo modernoamplamente desenvolvido, tal parâmetro tenderia apenas adisseminar-se.

Em todas as esferas da vida social, da empresa ao Estado, domercado à cidade, da escola à igreja, em todas essas e outrasesferas da vida social está presente o parâmetro constituído pelasdisposições jurídicas que ordenam e disciplinam as ações erelações de uns e outros em moldes racionais (Ianni, 1996).

Mas, o que é o capitalismo para Weber?É um vasto e complexo processo social, econômico, político e

cultural que implica no desenvolvimento de formas racionais deorganização das atividades sociais em geral, compreendendo aspoliticas, as econômicas, as jurídicas, as religiosas, as educacionaise outras.

O desenvolvimento do capitalismo moderno, numa perspectivaweberiana, salientada por Ianni, é caracterizado, portanto, comoa racionalização das ações e relações, das instituições eorganizações, conduzindo à modificação das práticas eideais, padrões e valores sócio-culturais, transformando oimaginário e as atividades de uns e de outros.

Na medida em que se forma, consolida e expande, ocapitalismo moderno pode infuenciar, criar, tensionar e modificar;recobrir e/ou mesmo dissolver outras formas de organizaçõesdas atividades produtivas e da vida sócio-cultural. Fazerpredominar amplamente a dominação racional nas outrassociedades, nações, nacionalidades, tribos, comunidades ou povos,em diferentes gradações, segundo padrão inaugurado com omoderno capitalismo europeu e progressivamente mundial. Éclaro, sem deixar de apresentar-se em múltiplas combinaçõescom a dominação tradicional e a dominação carismática, poispara Weber a realidade social é sempre complexa, múltipla,

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caótica e infinita.Este poderia ser, portanto, o verdadeiro sentido da

globalização, segundo Weber:

O que o capitalismo criou, em definitivo, foi a empresaduradoura e racional, a contabilidade racional, a técnicaracional, o direito racional; a tudo isto haveria queacrescentar a ideologia racional, a racionalização da vida, aética racional em economia (Weber, 1999)

É essa capacidade permeadora totalmente incontrolável docapitalismo que a globalização tendeu a explicitar na virada parao século XXI.

O Capitalismo como Processo Civilizatório

Ocorre que o capitalismo, como produto e condição da amplae generalizada racionalização do mundo, logo se impõe ousobrepõe às mais diversas formas de organização da vida social.Tanto pode conviver como absorver, tanto modificar, como recriar,as mais diferentes modalidades de organização social do trabalhoe da produção.

As formações sócio-culturais de tribos e clãs, nações enacionalidades, províncias e regiões, muitas vezes sedimentadas porséculos de histórias, tradições e mitos, tudo pode ser alterado, abalado,mutilado ou recriado pelas relações, processos e estruturas queconstituem a organização e a dinâmica do capitalismo como processocivilizatório. Ianni observa, citando Weber:

Existe capitalismo onde quer que se realize a satisfação denecessidades de um grupo humano com caráter lucrativo epor meio de empresas, qualquer que seja a necessidade deque se trate. Em especial, dizemos que uma exploraçãoracionalmente capitalista é uma exploração com contabilidadede capital, é uma ordem administrativa por meio da

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contabilidade moderna, com base no balanço, exigênciaformulada pela primeira vez no ano de 1698 pelo teóricoholandês Simon Stevin. Naturalmente uma economiaindividual pode orientar-se de modo diferente da capitalista;parte da satisfação de suas necessidades pode ser capitalistae parte não-capitalista, ou seja, de organização artesanal ousenhorial. (...) A premissa mais geral para a existência docapitalismo moderno é a contabilidade racional do capitalcomo norma para todas as grandes empresas lucrativas quese ocupam da satisfação das necessidades cotidianas. Aspremissas dessas empresas, por sua vez, são as seguintes:1) apropriação dos bens materiais de produção (a terra,aparelhos, instrumentos, máquinas, etc.) como propriedadede livre disposição por parte de empresas lucrativasautônomas; 2) a liberdade mercantil, ou seja, a liberdade demercado em face de toda limitação irracional de intercâmbio;3) técnica racional, ou seja, contabilizável ao máximo e, emconseqüência, mecanizada; 4) direito racional, ou seja, direitocalculável. Para que a exploração econômica capitalista seprocesse racionalmente precisa confiar em que a justiça e aadministração seguirão determinadas normas; 5) trabalholivre ou seja, que existam pessoas, não só em seu aspectojurídico mas também no econômico, obrigadas a venderlivremente sua atividade em um mercado; 6) comercializaçãoda economia, sob cuja denominação compreende-se o usogeral de títulos de valor, para os direitos de participação nasempresas e igualmente para os direitos patrimoniais. Emresumo, a possibilidade de uma orientação exclusiva, no quese refere à satisfação das necessidades no sentido mercantile da rentabilidade (Weber, 1999)

Deste modo, o que pode ser salientado é que devido à força,complexidade, a abrangência e expansividade do capitalismocomo processo civilizatório, as mais diversas formas deorganização das atividades produtivas e da vida social tendem aser recobertas, subordinadas, modificadas ou dissolvidas por esseprocesso incontrolável do capital.

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Ou ainda, o padrão de sociabilidade envolvido no processo deracionalização das ações, relações, instituições, organizações eformações sociais podem influenciar, tensionar, modificar, recobrirou mesmo dissolver os padrões de sociabilidade não-capitalistas,tais como o carismático e o tradicional. O que se apresentacomo dominante é o padrão de sociabilidade capitalista.

A Globalização Como Expansividade do Capitalismo

Este processo de expansividade capitalista, que assume seuápice em nossos dias, com a globalização, é intrinseco ao própriocapitalismo moderno, que inaugura uma época excepcionalmentesingular da história européia e mundial.

O próprio Weber debruçou-se sobre a singularidade docapitalismo ocidental com respeito a outras civilizações históricas.Apesar de ser uma singularidade européia, o capitalismo passa ainfluenciar outras partes do mundo. Mas do que isso, desde oinício há nele algo de mundializado. Portanto, o que pareciacaracterístico e peculiar do Ocidente, logo se revela compatívele até mesmo próspero no Oriente; parecendo-lhe característicodo hemisfério norte, também expande-se pelo hemisfério sul (Ianni,1994).

Desde o mercantilismo, o colonialismo e o imperialismo, vastosprocessos por meio dos quais se tecem laços, comunicações,redes, geo-economias e geopoliticas desenhando o mapa domundo, sempre compreendendo culturas e civilizações tambémmuito diferentes entre si e das ocidentais, desde esses vastosprocessos todo o mundo foi sendo permeado por padrões, valores,instituições e organizações mais ou menos característicos docapitalismo (Ianni, 1994).

Desde modo, segundo Weber, o capitalismo pode ser visto,como salienta Ianni, como

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um processo civilizatório gerado no Ocidente, masespalhando-se pelo Oriente, originário do norte, masdifundindo-se pelo sul, marcadamente ocidental, masprogressivamente mundial (Ianni, 1994).

Portanto, a globalização poderia ser, na perspectiva de Weber,a realização plena do capitalismo ocidental e seu processocivilizatório. É nessa perspectiva que a globalização (comoapreendeu Ianni a partir das leituras de Weber), pode ser vistacomo um novo surto de mundialização da racionalidadeprópria da racionalização capitalista ocidental.

A Peculiaridade da Globalização: As Tecno-EstruturasMundiais

Mas existe algo que é próprio e peculiar do novo processocivilizatório que surge com a mundialização em curso: a suaracionalidade adquire uma categoria global. É umaracionalidade global, com dinamismo próprio, que incute nassociedades nacionais, como observa Ianni, algo de novo, distinto,próprio da sociedade global (Ianni, 1992).

Como expressão dessa globalização temos a tecnocraciainternacional, transnacional ou mundial. Há empresas, corporaçõese conglomerados, bem como agências multilaterais, desde a ONUao FMI e à OIT ou ainda OMC, que expressam muito bem osprimórdios e os horizontes da racionalização possível, almejada,realizada ou em curso em escala global.

Na verdade, tais tecno-estruturas mundiais tenderam a sedisseminar pelo globo no pós-II Guerra Mundial. Para Ianni,elas representariam uma caracteristica essencial da globalização.Por isso, ele tende a situar a globalização como sendo a etapahistórica do capitalismo mundial após 1945. É a partir daíque se formam, generalizam e predominam as tecno-estruturasdestinadas a diagnosticar, planejar e implementar diretrizes geraise decisões especiais. Elas podem ser vistas coma organizações

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sistêmicas; expressando muito do que é a racionalidadeinstrumental ou técnica predominante do capitalismo.

As tecno-estruturas reúnem profissionais sofisticados de todasas qualificações, do economista ao matemático, do sociólogo aopublicitário, de modo a pensar as condições sociais, políticas,culturais e econômicas para a seleção e implementação deinvestimentos, operações publicitárias, inauguração de temas,preparação da opinião pública, em conformidade com decisõesque podem interessar a governos, corporações, igrejas, lobbings,correntes de opinião pública e outras instituições e organizações.Elas promovem os think-tanks, produções de equipes deintelectuais dedicados, em geral de modo exclusivo e sistemático,à realização de estudos, diagnósticos e prognósticos relativosaos mais distintos problemas locais, nacionais, regionais e mundiais(Ianni, 1996).

Globalização como Etapa Superior do Desencantamentodo Mundo”

A partir de Weber, seguindo a leitura de Ianni, podemosapreender a globalização como um sintoma da burocratizaçãodo mundo, onde tudo está marcado pela calculabilidade,contabilidade, ordenamento jurídico, racionalidade, eficácia,produtividade, lucratividade. Tudo se burocratiza segundo umpadrão burocrático, racional e legal - o mercado, a empresa, acidade, o Estado e o direito, as atividades intelectuais.

Deste modo, a globalização, em seu sentido originário, seriaum avanço da racionalização (e burocratização) do mundo, dovasto complexo processo de racionalização do mundo, do padrãode racionalidade do moderno capitalismo. Segundo Ianni, aínascem e desenvolvem-se a empresa, o mercado, o planejamento,a administração, a contabilidade, as técnicas de produção econtrole, a divisão do trabalho social, o taylorismo, o fayolismo, ofordismo, o toyotismo, a flexibilização, a produtividade, a

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lucratividade e a acumulação, tudo isso articulado nos moldes daracionalidade capitalista.

O que era um processo circunscrito a alguns países da Europa,e transplantado para os Estados Unidos, logo se revela mais oumenos generalizado e, às vezes, avassalador, em escala mundial.

O processo de racionalização pode ser apreendido como algoque submete o indivíduo, singular e coletivamente, aos produtosde sua própria criação. Apesar disso, preserva-se, reproduz-se edesenvolve-se, locus de outros tipos de racionalidades de cariztradicional ou carismática, que resistem, se poderíamos dizerassim, à racionalização ocidental.

Ocorre a inversão de meios e fins: o que era produto, meioou instrumento transforma-se em finalidade, objetivo porexcelência. Aqui, mais uma vez, Ianni incorpora numa leituraweberiana, de modo criativo, a ótica marxista da “alienação”.Assim ocorreu com o ascetismo da ética protestante queimpulsionou o espírito do capitalismo e que, depois, é aprisionadopela sua própria criação. O mesmo poderia ser dito daglobalização enquanto processo de racionalização, que comoum estágio avançado de desencantamento do mundo, aprisiona,de repente, o indivíduo e a coletividade na gaiola de ferro queeles próprios construíram:

Pois quando o ascetismo foi levado para fora dos mosteirose transferido para a vida profissional, passando a influenciara moralidade secular, fê-lo contribuindo poderosamente paraa formação da moderna ordem econômica e técnica ligada àprodução em série através da máquina, que atualmentedetermina de maneira violenta o estilo de vida de todoindivíduo nascido sob esse sistema, e não apenas daquelesdiretamente atingidos pela aquisição econômica, e, quemsabe, o determinará até que a última tonelada de combustíveltiver sido gasta. De acordo com a opinião de Baxter,preocupações pelos bens materiais somente poderiam vestiros ombros do santo como um tênue manto, do qual a toda

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hora se pudesse despir. O destino iria fazer com que o mantose transformasse numa prisão de ferro. Desde que oascetismo começou a remodelar o mundo e a nele sedesenvolver, os bens materiais foram assumindo umacrescente, e, finalmente, uma inexorável força sobre oshomens, como nunca antes na História. Hoje em dia – oudefinitivamente, quem sabe - seu espírito religioso safou-se daprisão. O capitalismo vencedor, apoiado numa base. mecânica,não carece mais de seu abrigo... Ninguém sabe ainda a quemcaberá no futuro viver nessa prisão, ou se, no fim dessetremendo desenvolvimento, não surgirão profetas inteiramentenovos, ou um vigoroso renascimento de velhos pensamentose idéias, ou ainda se nenhuma dessas duas - a eventualidade deuma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsivaespécie de autojustificação. Nesse caso, os “últimos homens”desse desenvolvimento cultural poderiam ser designados comoespecialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidadesque imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antesalcançado (Weber, 1987 )

Todos os círculos da vida social, desde a empresa à escola,do mercado ao Estado, da igreja à familia, são progressivamenteorganizados e dinamizados pelas tecnologias da racionalização,compreendendo recursos das ciências naturais e sociais, dacibernética à psicologia.

Mas isso não significa que os indivíduos hoje em dia possuamum maior conhecimento das suas condições de vida. Para Weber,um índio americano ou um hotentote possui maior conhecimentodas suas condições de vida do que nós. Apenas significa quepoderíamos ter esse conhecimento maior e geral das condiçõesde vida se quiséssemos.

Na perspectiva de Weber, vivemos em um mundo complexoe caótico, com o nosso cotidiano cercados de criações dasciências e tecnologias, desenvolvidas por especialistas nas maisdiversas áreas das ciências sociais e naturais. Diz ele:”...a ciência

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entrou numa fase de especialização antes desconhecida quecontinuará.” Ao tratar do processo de racionalização eintelectualização que o Ocidente vive há milhares de anos, Weber,em sua palestra intitulada “A Ciência Como Vocação” (1919),disse o seguinte:

...A menos que seja um físico, quem anda num bonde nãotem idéia de como o carro se movimenta. E não precisa saber.Basta-lhe poder ‘contar’ com o comportamento do bonde eorientar a sua conduta de acordo com essa expectativa; masnada sabe sobre o que é necessário para produzir o bondeou movimentá-lo. O selvagem tem um conhecimentoincomparavelmente maior sobre suas ferramentas. Quandogastamos dinheiro hoje tenho certeza que, até mesmo sehouver colegas de Economia Politica neste auditório, cadaum deles terá uma diferente resposta pronta para a pergunta:como é possível comprar alguma coisa com dinheiro - porvezes mais, por vezes menos? O selvagem sabe o que fazpara conseguir sua alimentação diária e que instituições lheservem nessa empresa. A crescente intelectualização eracionalização não indicam, portanto, um conhecimento maiore geral das condições sob os quais vivemos. Significa maisalguma coisa, ou seja, o conhecimento ou a crença em que,se quiséssemos, poderíamos ter esse conhecimento aqualquer momento. Significa principalmente, portanto, quenão há forças misteriosas, incalculáveis, mas que podemos,em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Istosignifica que o mundo foi desencantado. Já não precisamosrecorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aosespíritos, como fazia o selvagem, para quem esses poderesmisteriosos existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizamo serviço. Isto, acima de tudo, é o que significa aintelectualização (Max Weber, 1988)

O desencantamento do mundo, como observa Corriot-Thelene, é produto do processo de intelectualização. A

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intelectualização é um outro nome para a racionalização,considerada no plano das imagens do mundo.

Um mundo intelectualizado é um mundo no qual reina aconvicção de que tudo o que é e que advém neste mundo estáregido pelas leis que a ciência pode conhecer e a técnica científicadominar; em que não há nada, em outras palavras, que não sejaprevisível. É mundo de eventos previsíveis e calculáveis. É ummundo sem magia, sem dúvida, pois exclui toda intervenção dosupra-sensível na ordem das coisas naturais e humanas; mas étambém, Weber insiste nisso, um mundo desprovido de sentido.

O desencantamento do mundo não é apenas, portanto, a negaçãoda interferência do sobrenatural sobre este mundo, mas também aausência do sentido do mundo e do devir (o que é incompatívelcom os postulados das religiões em geral, singularmente das religiõesportadoras de uma ética) (Corriot-Thelene, 1990).

O desencantamento do mundo não pode ser tomado porresultado da ética puritana, como era o caso em A éticaprotestante... (de Weber): ainda que orientada na direção destemundo, a ética puritana era ainda um caminho de salvação, epara isso dependente de uma teodicéia, ou seja, de uma declaraçãodo sentido do mundo, ainda que fosse sob o modo dadesvalorização (Corriot-Thelene, 1990)

Pode-se mesmo afirmar que é com o protestantismo quecomeça a criação do mundo moderno, “desencantado” naacepção segunda do termo, pois a racionalização das condutasde vida que induziu, segundo a interpretação weberiana, a difusãodo protestantismo acarretou a formação de estruturas cujascoerções quase mecânicas terminaram por tornar supérflua aética de onde elas procediam:

O puritano queria ser um homem atarefado [ein Berufsmensch]- e nós somos forçados a sê-lo. (Weber, 1987)

Apenas quando a lógica da economia capitalista produziu, delamesmo, os comportamentos que ela requer para se perpetuar, éque o desencantamento pode ser considerado cumprido.

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Na perspectiva de Weber, o capitalismo moderno e, porconseguinte, seu desenvolvimento exacerbado, tenderiam, comcerteza, a intensificar e generalizar o estranhamento, umaexpressão que, vale ressaltar, não é de Weber, mas de Marx eque pode traduzir muito bem a sensação que se apossa de cadaum de nós quando nos deparamos com um maiordesconhecimento das nossas ferramentas cotidianas, tendo emvista que a complexidade do mundo social é diretamenteproporcional à nossa ignorância sobre os mecanismos do processosocio-histórico planetário que nos atinge.

E por outro lado, eleva a um novo patamar, odesencantamento do mundo, tendo em vista que possuímosconsciência de que, o que move o desenvolvimento tardio docapitalismo moderno, não são forças misteriosas e incalculáveis,mas resultados de cálculos e decisões de indivíduos.

É sob a globalização que se exacerba a nossa percepção deque podemos dominar todos as coisas pelo cálculoe pelas novastecnologias que reduzem, cada vez mais, os limites naturais,inclusive o espaço e o tempo, partes intrínsecas dos nossos limitesnaturais.

Na perspectiva de Weber, a globalização comodesenvolvimento tardio do capitalismo moderno, não poderia serconsiderada nem algo bom, nem algo mal, pois isso implicariaem juízos de valor. É provável que Weber a considerasse apenascomo um patamar superior da ocidentalização do mundo, dealgo que se realiza ad infinitum, quase como um destino, dealguma coisa que, tal como o progresso científico e tecnológico,na realidade jamais chega, e jamais pode chegar a um fim.

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7Durkheim e a Globalização como

Fonte de Solidariedade Social

Durkheim nos apresentou em sua obra A divisãodo trabalho social, de 1893, a divisão do traba-lho como fonte de solidariedade social. Ele

caracterizou, por outro lado, a anomia, como sendo algodecorrente de um período de rápidas transformações da economiae da sociedade, em virtude do próprio desenvolvimento da divisãodo trabalho social. Em virtude disso, indicou a necessidade deregulamentações mais complexas, salientando o papel do Estado-nação e do governo.

Mas, para Durkheim, com o tempo tenderia a se formar taisregulamentações sociais, capazes de instaurar e realizar a naturezada própria divisão do trabalho mais desenvolvida: a solidariedadeorgânica. Deste modo, para ele, a anomia seria temporária eum fenômeno excepcional nas sociedades mais complexas. Nasua perspectiva, está implícito um otimismo com odesenvolvimento das sociedades modernas.

Se Durkheim criticou o otimismo dos utilitaristas e doseconomistas diante da mão invisível do mercado, de certo modo,ele próprio acreditava que o desenvolvimento da divisão do trabalhosocial tenderia a incrementar a solidariedade social. Para isso,depositou seu otimismo nas instâncias da regulamentaçãojuridico-moral da sociedade, como uma mera manifestação danatureza da própria divisão do trabalho mais desenvolvida.

A ênfase de Durkheim no consenso social caracteriza um pontode vista corporativo que, de certo modo, iria predominar nas

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sociedades capitalistas desenvolvidas européias, no pós-guerra, comas experiências de Estado social e que hoje, encontram-se em crisediante da globalização.

Globalização Como Fonte de Solidariedade ?

Na ótica de Durkheim, a globalização poderia ser consideradaexpressão de um desenvolvimento ampliado do capitalismo moderno,que tenderia a impulsionar a divisão do trabalho social compreendidacomo sendo a especialização ligada à produtividade do trabalho.

Ela, a divisão do trabalho enquanto especialização, é, nalinguagem dos economistas, o resultado de um esforço inteligentedo homem para tirar o maior produto e o maior proveito dos fatoresde produção, incluindo seu próprio trabalho. Sob a globalização,assistimos a exacerbação da lógica da especialização numa escalaplanetária:

Em uma economia global, nem o capital, nem o trabalho, nem asmatérias-primas constituem, em si, o fator econômicodeterminante. O importante é a melhor relação entre esses trêsfatores. Para estabelecê-la, a ‘firma global’ não leva emconsideração as fronteiras nem as regulamentações, massomente a exploração inteligente que pode fazer da informação,organização do trabalho e revolução da gestão (Romanet, 1998)

Entretanto, Durkheim reconheceu que a busca pelos produtoresda mais alta produtividade através da especialização mais inteligentenão basta para assegurar uma divisão do trabalho viável. A divisãodo trabalho e a concorrência criam problemas à medida que osresolvem. A divisão do trabalho supõe uma alocação prévia dosrecursos e uma divisão ulterior do produto, das quais não são e nãopodem ser de antemão calculados e desejados todos os aspectos econseqüências. Diz ele:

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Se, normalmente, a divisão do trabalho produz a solidariedadesocial, pode acontecer contudo que ela tenha resultadoscompletamente diferentes, ou mesmo opostos (Durkheim,1985:145)

Deste modo, num primeiro momento, Durkheim critica o viésotimista que os evolucionistas e os utilitaristas atribuíram a mãoinvisível do mercado (Smith e Spencer). Apesar disso, como iremosver, ele não deixa de incorporar um certo otimismo diante da direçãonatural da divisão do trabalho.

Para Durkheim, a “direção natural” da divisão do trabalho é asolidariedade social, mas algo a faz desviar-se da sua direçãonatural. Esse algo é a anomia, o desregramento. Para ele, a divisãodo trabalho, mesmo acompanhada de uma especialização dastarefas, no nível da alocação dos recursos e de uma elevação daprodutividade no que concerne ao produto, é também e antes detudo, um fato de organização, ou seja, utilizando a acepção deDurkheim, um fenômeno de solidariedade. Ela não é umfenômeno natural, mas propriamente social; além disso, essefenômeno não é espontâneo, mas, por assim dizer,sistematicamente organizado e coordenado.

Durkheim enfatiza a coordenação das tarefas, principalmentesob a solidariedade orgânica, correspondente a nossa época,onde a diferenciação das atividades produtivas ocorre de acordocom critérios de eficácia e de competência. Ocorre, segundo ele,uma mudança marcante e incessante na hierarquia do status, queexige um enorme desenvolvimento das funções de coordenação,que se tornam cada vez mais metódicas e conscientes. Por exemplo,Durkheim salienta a preponderância do direito cooperativo sobreo direito repressivo como uma manifestação da solidariedadeorgânica que caracteriza as sociedades complexas.

Como as diferenças resultantes da especialização provocamo aumento da freqüência e da intensidade das trocas entre osprodutores, com os riscos de conflitos inerentes a esses contatose a essas trocas, a divisão do trabalho deve ser colocada sob a

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vigilância de autoridades dotadas de uma visão mais abrangente doprocesso de produção do que cada um dos produtores. ParaDurkheim essa função de coordenação e de reflexão é tantomais importante quanto mais diferenciadas forem as tarefasprodutivas.

A série de citações abaixo demonstram a importância dosmeios de coordenação para o desenvolvimento da solidariedadesocial em sociedades mais complexas:

À medida que as diferenças se tornam mais numerosas, acoesão torna-se mais instável e tem necessidade de serconsolidada por outros meios (Durkheim, 1985b:157)

..essa falta de regulamentação não permite a harmonia regulardas funções (Durkheim, 1985b:160)

Se a divisão do trabalho não produz solidariedade, é porqueas relações dos órgãos não são regulamentadas, é porqueestão num estado de anomia (Durkheim, 1985b:162)

A divisão do trabalho é para Durkheim não somenteespecialização das aptidões e das competências; é tambémcoordenação das tarefas. O que supõe como necessidade dareprodução social de uma maior organização e maior coordenaçãodas trocas. Alguns diriam: uma nova “regulação”, termo utilizadopor uma escola de economistas franceses.

Ora, o que é a globalização senão o desenvolvimento ampliadodo capitalismo moderno, com a agudizarão da divisão do trabalhosocial numa escala planetária, cujos resultados perversos, naperspectiva de Durkheim, seriam decorrentes de uma anomiauniversal (Durkheim não utiliza tal expressão) ?

Na ótica durkheiminiana, a especialização, o aumento dafreqüência e da intensidade das trocas não é acompanhado, namesma medida, de uma maior organização e coordenação porparte das autoridades do processo produtivo. Por isso, ela tendea gerar uma série de fenômenos anormais ou patológicos.

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A falência do Estado social-democrata (Welfare State). queconseguiu nas últimas décadas do século XX, constituir uma coesãosocial relativa, instaurando a solidariedade orgânica a partir deuma série de regulamentações sociais e jurídicas, tendeu a conduziro mundo capitalista a um novo período social e históricocaracterizado pela desregulamentação, pelo predominio da lógicaprivatista em detrimento do espaço público, onde a crise dos valoresagudiza, cada vez mais, a capacidade do sistema social recompor-see, quem sabe, de reproduzir-se (utilizando uma analogia organicista).

O mérito de Durkheim foi salientar a importância das normase valores para a reprodução de organismos sociais complexos,como são as sociedades capitalistas modernas, principalmentena era da globalização, onde é maior a integração e intensidadedas trocas e da produção.

Na medida em que processos sociais vinculados a divisão dotrabalho social em escala planetária conduzem o mundo capitalista auma série de transformações muito rápidas, criando uma situaçãode anomia, a inexistência de um Estado mundial, de um governoglobal como impulsionador da coesão social, receptáculo de valoresda solidariedade orgânica, tenderia a complicar, ainda mais, acapacidade de resolver a situação de anomia, intrinseca a próprianatureza das transformações rápidas proporcionadas pelodesenvolvimento da divisão do trabalho social.

O que percebemos, hoje, é que, o que era considerado porDurkheim como excepcional, tende a torna-se crônico. A saída, comcerteza, na perspectiva durkheiminiana, seria uma novaregulamentação mundial, através da constituição de organismosde coordenação global, rudimentos ainda pouco eficazes de umgoverno e de autoridades mundiais, capazes de exercer uma vigilânciamais abrangente do processo do “globalismo” (utilizando a expressãode Ianni).

Deste modo, para Durkheim, seria a natureza da divisão dotrabalho social, cada vez mais complexa, que poderia explicar,por exemplo, o surgimento de órgãos de coordenação multilaterais,tais como o G-8 ou ainda, a OMC, o FMI e o Banco Mundial.

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Com certeza, Durkheim seria um crítico da globalização tal comoocorre em nossos dias, na medida em que ela se desenvolve semuma coordenação global, propiciando, portanto, uma situação deanomia. Mas ele não seria um crítico da globalização em si, namedida que iria reconhecer nela uma positividade: odesenvolvimento de novas formas de solidariedade, inevitável noatual estágio da divisão do trabalho.

Globalização e a Anomia Universal

A anomia é uma entidade observável apenas através demanifestações diversas. É um fenômenos de desregramento quepossui significações múltiplas. Ela se vincula aos malogros do sistemade divisão do trabalho que caracterizam as sociedades industriais.Para Durkheim, a anomia seria um conceito que poderia explicar,por si só, a série de resultados perversos da globalização, não podendo,ser identificada meramente com o conceito de alienação, utilizadopelos marxistas, tendo em vista que a alienação decorreria de algoque iria além dela mesma: a propriedade privada).

Para Durkheim, os seguintes fenômenos sociais sãomanifestações da anomia. É claro que podem haver outras formasde anomia, “mas aquelas que vamos falar – disse ele - são asmais gerais e as mais graves” (Durkheim, 1985):

1. As “rupturas parciais da solidariedade orgânica” são aspropiciadas pelas crises industriais e comerciais, tais como asfalências, que testemunham que certas funções não estãoajustadas umas às outras. Por exemplo, elas poderiam servinculadas às crises capitalistas, à própria instabilidade sistêmicada economia moderna sob a direção hegemônica do capitalfinanceiro. Na ótica de Durkheim poderiamos apreender que tendea ocorrer hoje, uma série de “disfuncionalidades” entre a economianacional e a economia global. O surgimento de um mercadomundial cada vez mais integrado pelo livre comércio, tenderia aincrementar, ainda mais, o que Durkheim denominou de “rupturasparciais” da solidariedade orgânica.

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2. O “antagonismo entre o trabalho e o capital” ocorreprincipalmente na medida em que a especialização se desenvolveno mundo do trabalho, constituindo a grande indústria (cabe salientarque para Durkheim a alienação, no sentido marxista, seria apenasuma manifestação e uma conseqüência da anomia). Para ele, apequena indústria - e vamos pensar hoje nas oficinas “pós-fordistas”-é mais suscetível de cultivar uma solidariedade orgânica, com aunidade e a concertação proliferando entre capital e trabalho, sendoa grande indústria propicia a desenvolver o antagonismo entre trabalhoe capital. Na medida em que prolifera a grande indústria e seu espaçode atuação, indo além dos mercados locais e nacionais, tende a tornarmais agudo o antagonismo entre capital e trabalho. Diz ele: “é apenasna grande indústria que estes conflitos se encontram em estadoagudo.”(Durkheim, 1985:149). Ao salientar a agudeza do antagonismoentre capital e trabalho na grande industria , Durkheim prenunciarauma das principais causas da crise do fordismo, salientadas pelos“regulacionistas” franceses, a organização taylorista-fordista dotrabalho, baseada na especialização radical do trabalho (Lipietz, 1985;Boyer, 1985).

3. A especialização sempre crescente da pesquisa científicaacarreta um efeito de atomização, decorrente do próprio processode especialização das ciências. Contra a atomização dasespecialidades da ciência, Durkheim sugere que é necessário“encarregar uma ciência nova de a reconstituir”. Diz ele,“aquiloque o governo é, face à sociedade no seu todo, a filosofia devesê-lo face às ciências.”

A situação de anomia, salientadas por Durkheim, não decorrede uma natureza da divisão do trabalho mais complexa, que, paraele, é fato de solidariedade social. O que poderia nos levar aperceber que, para ele, a globalização, compreendida como umaetapa superior da divisão do trabalho social, tenderia a nãoconduzir, por sua própria natureza, a tais resultados sociaisperversos.

A perversidade da globalização no campo social, na ótica deDurkheim, poderiam ser situações excepcionais. Tais perversidade

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sociais que ela produziria seriam decorrentes da falta deregulamentação, isto é, da anomia (para Durkheim, a ausênciade normas explica a anormalidade):

A divisão do trabalho não produz estas conseqüências emvirtude de uma necessidade da sua natureza, mas apenas emcircunstâncias excepcionais e anormais (Durkheim,1985:166)

A imagem da sociedade-organismo é que incontestavelmentetransparece na noção durkheiminiana de solidariedade orgânica. Porisso, ele considera os fenomênos de perversidade social, decorrentes dodesenvolvimento do capitalismo moderno, como anormais e excepcionaise não como a verdadeira situação normal das sociedades modernas.Disse ele: “...como todos os fatos biológicos, ela apresenta formaspatológicas, que é necessário analisar” (Durkeim, 1985:145)

Na obra O suicidio, de 1897, a noção de anomia é imersanum conjunto de dicotomias conceituais que esclarecem novosaspectos do conceito, aplicável a época em que vivemos. Porexemplo: ele contrapõe egoísmo x altruísmo e ainda anomia efatalismo. Na obra de 1893, ele já criticava a especialização“egoísta”, que cria a anomia:

...que o indivíduo não se feche aí estreitamente, mas semantenha em relação constante com as funçõesvizinhas..(Durkheim, 1985b:167)

Ou ainda:

...o indivíduo curvado sobre a sua tarefa, isola-se na sua atividadeparticular; deixa de sentir os colaboradores que trabalham ao seulado na mesma obra que ele, deixa absolutamente de ter idéia destaobra comum (Durkheim, 1985b:150).

Tais desdobramentos conceituais da anomia, principalmente nocampo da relação do indivíduo com a sociedade e seu grupo social,

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poderiam apreender uma série de aspectos do “desregramento” nãopostos na obra pretérita A divisão do trabalho social.

É importante a percepção analítica de Durkheim (ainda baseada naimagem de uma sociedade-organismo) de que a complexificação dossistemas sociais ocasiona uma individualização crescente dos membrosda sociedade, o que propicia efeitos crescentes de “desregramento”,considerado por ele como situações excepcionais:

A diversidade das funções é útil e necessária; mas, tal comoa unidade, que não é menos indispensável, não surge delasespontaneamente, o cuidado de a realizar e de a manter deveráconstituir, no organismo social, uma função específica,representada por um órgão independente. Este órgão é oEstado ou o Governo (Durkheim, 1985:151)

Entretanto, Durkheim não defende um governo forte, queimponha de cima para baixo a regulamentação que propicie aunidade e o consenso entre as partes da sociedade. Diz ele que,

O que faz a unidade das sociedades organizadas, como detodo o organismo, é o consensus espontâneo das partes, éessa solidariedade interna, que não é só tão indispensávelcomo a ação reguladora dos centros superiores, mas que étambém sua condição necessária, porque eles apenas atraduzem num outra linguagem e, por assim dizer, a consagram[...] As partes devem ser já solidárias uma das outras paraque o todo tome consciência de si e reaja como tal.” (ogrifo é nosso) (Durkheim, 1985:153)

A complexificação social é que produz a solidariedadeorgânica. Na visão dos utilitaristas, como é o caso de Spencer, asolidariedade orgânica seria exclusivamente contratual, seria livrede toda a regulamentação. Entretanto, para Durkheim, talsolidariedade seria instável: “O que manifesta a extensão da açãosocial é a extensão do aparelho jurídico”. É necessário, portanto,uma regulamentação complexa, um aparelho jurídico.

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Durkheim ansiava por uma sociedade em que os indivíduosfossem guiados por um sistema de valores e normas, isto é, poruma moral, que os encorajasse e os convidasse a se satisfazeremcom sua posição no sistema de divisão do trabalho. Ele assimilasociedade e organização, sociedade e organismo: “O papel dasolidariedade não é suprimir a concorrência, mas modera-la.”. Emais adiante salienta que

...estas perturbações são naturalmente tanto mais freqüentesquanto mais especializadas forem as funções; porque quantomais complexa é uma organização mais se faz sentir anecessidade de uma regulamentação complexa (Durkheim,1985b:161)

Durkheim acreditava que o estado de anomia seria temporário.Decorre de uma fase do desenvolvimento social caracterizado porrápidas mudanças. Por exemplo, ele pergunta: de onde provém oestado de anomia ? Durkheim responde:

Uma vez que um corpo de normas é a forma definida que tomamcom o tempo as relações que se estabelecem espontaneamenteentre as funções sociais, pode-se dizer a priori que o estado deanomia é impossível em toda a parte em que os órgãos solidáriosestão em contacto suficiente e suficientemente prolongado(Durkheim, 1985)

Por isso, na medida em que as partes contíguas perceberem,em cada circunstância, a necessidade que têm uma das outras, eviverem, através da troca, um sentimento vivo e contínuo de suamútua dependência, elas irão consolidar, com o tempo, a solidariedade,prevendo e fixando as condições do equilíbrio do organismo. Naperspectiva de Durkheim, portanto, com o tempo, os conflitostendem a se equilibrar.

A situação de anomia é bastante perceptível na época históricade Durkheim. Lembremos que ele viveu a época de passagem

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do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, umaetapa do desenvolvimento capitalismo moderno caracterizada pelo“imperialismo” (a virada para o século XX). Ele pertence a umaépoca de transformações rápidas na vida social e na economiainternacional, nas empresas e na própria ciência.

Na ótica de Duirkheim poderíamos dizer que a divisão dotrabalho, e por que não dizer, a globalização que ocorre hojetrazendo em seu bojo uma série de resultados sociais perversos,deve seus resultados a rapidez das transformações capitalistas,sendo que, com o tempo, ela ira tender a alcançar uma condiçãode equilíbrio que desvendaria seu verdadeiro sentido e finalidade:ser uma fonte de solidariedade e não apenas, como oseconomistas muitas vezes salientam, um meio de aumentar orendimento das forças sociais.

A seguinte longa transcrição de Durkheim é importante paramostrar como as transformações do mercado, segundo ele,atingem a empresa e a relação capital e trabalho e possuemimplicações na própria ciência social e moral. São implicações naeconomia, no mundo do trabalho e na própria atividade científica:

...à medida que o tipo organizado se desenvolve, a fusão dosdiversos segmentos uns nos outros implica a dos mercadosnum mercado único, que abraça aproximadamente toda asociedade. Este estende-se mesmo para além dela e tende atorna-se universal, porque as fronteiras que separam os povosesbatem-se ao mesmo tempo que as que separam ossegmentos de cada um deles. Daí resulta que cada indústriaproduz para consumidores que estão dispersos sobre toda asuperfície do País, ou mesmo do mundo inteiro. O contatonão é portanto já suficiente. O produtor não pode abarcar omercado com olhar, nem mesmo com o pensamento; nãopode já representar-lhe os limites, uma vez que ele é, porassim dizer, ilimitado. Por conseqüência, a produção carecede freio e de regra; ela apenas pode tatear ao acaso e, nodecurso destas tentativas, é inevitável que a medida seja

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ultrapassada quer num sentido quer no outro. Daí essas crisesque perturbam periodicamente as funções econômicas. Oaumento dessas crises locais e restritas, que são as falências,é verdadeiramente um efeito desta mesma causa.À medida que o mercado se estende, a grande indústria surge.Ora, ela tem por efeito transformar as relações dos patrões edos operários. Uma maior fadiga do sistema nervoso, junta àinfluência contagiosa das grandes aglomerações aumenta asnecessidades destes últimos. O trabalho mecânico substitui odo homem; o trabalho na manufatura, o da pequena oficina. Ooperário está arregimentado fora da família todo o dia; vivecada vez mais afastado daquele que o emprega, etc. Estascondições novas da vida industrial reclamam naturalmente umaorganização nova; mas, como estas transformações se realizamcom uma extrema rapidez, os interesses em conflito não tiveramainda tempo para se equilibrar.Finalmente, o que explica que as ciências morais e sociaisestejam no estado que dissemos é que foram as últimas aentrar no círculo das ciências positivas. Com efeito, há poucomais de um século que este novo campo de fenômenos seabriu à investigação cientifica. Os cientistas instalaram-se,num ou noutro lado, segundo os seus gostos naturais.Dispersos sobre esta vasta superfície, permaneceram até opresente demasiado afastados uns dos outros para sentirtodos os laços que os unem. Mas, porque levarão as suaspesquisas sempre mais longe dos seus pontos de partida,acabarão necessariamente por atingir-se e, por conseguinte,por tomar consciência da sua solidariedade. A unidade daciência formar-se-á assim por si mesma; não pela unidadeabstrata duma fórmula, de resto demasiado exígua pelainfinidade de coisas que ela deve abarcar, mas pela unidadeviva de um todo orgânico. Para que a ciência seja una, não énecessário que ela caiba inteira no horizonte de uma e mesmaconsciência – o que de resto, é impossível – mas basta quetodos aqueles que a cultivam sintam que colaboram numamesma obra. (o grifo é nosso)(Durkheim, 1985b:63-165)

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As partes grifadas por nós salientam portanto dois aspectosimportantes do pensamento durkheiminiano:

1. A anomia é decorrência de rápidas transformações sociais eportanto, possuem um caráter de excepcionalidade, o que leva acrer que, com o tempo, os interesses em conflito tenderão a seequilibrar.

2. O equilíbrio social, salientado por Durkheim, tende a ocorrer,na medida em que surgirem, no decorrer do próprio desenvolvimentosocial, regulamentações mais complexas, por parte do Estado-naçãoe dos governos que apenas manifestariam um consenso espontâneodas partes, que não poderia ser imposto pelos centros superiores.O que quer dizer que, Durkheim cultiva um viés otimista sobre osdesdobramentos da divisão do trabalho social e, por conseguinte, doque poderíamos considerar, hoje, a globalização.

Surge uma questão crucial: não haveria em Durkheim umavalorização exacerbada e idealizada do aparelho jurídico, doDireito, como cimento ideológico e regulador da coesão social,contra o movimento do capital ? E mais do que isso: uma crençainabalável na capacidade reguladora do Estado-nação sobre odesenvolvimento irremediável da modernização capitalista (oEstado-nação posto como o referencial heurístico da sociologiaclássica) ?

Com certeza, Durkheim teve a importante percepção de umaspecto da sociabilidade na etapa moderna do capitalismo: o Direitocomo sendo a expressão-mor da ideologia que coordena e regula areprodução social, principalmente numa época onde o movimentodo capital,sob a etapa da mundialização financeira, possui duasdimensões paradoxais: por um lado, o capital financeiro tem um medopânico das regulamentações públicas que poderiam se opor a esselivre movimento de financeirização (por exemplo, uma “taxa Tobin”)e, por outro lado, os investidores institucionais - e os governos - têmum temor visceral das instabilidades sociais provocadas pelomovimento exacerbado do capital financeiro.

Algo a ser destacado é que Durkheim salientava que a novaregulamentação social capaz de superar as anomias da

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modernidade deveria nascer do “consenso espontâneo entre aspartes”, ao invés de serem impostos por um Estado onisciente,verdadeiro Leviatã, tal como surge hoje, no receituário neoliberal.Na verdade, Durkheim é um dos precursores ideológicos dospactos tripartites de cariz neocorporativo tal como propostopela social-democracia moderna.

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8Marx e a Globalização Como

Lógica do Capital

Utilizando algumas caracterizações gerais salien-tadas por Octávio Ianni na obra Teorias daGlobalização, procuraremos apresentar as

implicações e impressões da globalização comodesenvolvimento ampliado do capitalismo moderno, naperspectiva de Marx.

Na perspectiva de Octávio Ianni, a globalização pode sercompreendida como uma nova condição e possibilidade dereprodução do capital surgida principalmente após a SegundaGuerra Mundial, quando começaram a predominar os movimentose as formas de reprodução do capital em escala internacionais.

A princípio, por capital se entende um signo do capitalismo,o emblema dos grupos e classes dominantes em escala nacional,regional e mundial. Isto é, o capital de que se fala aqui é umacategoria social complexa, baseada na produção de mercadoriae lucro, ou mais-valia, o que supõe todo o tempo a compra daforça de trabalho; e sempre envolvendo instituições, padrõessócio-culturais de vários tipos, em especial os jurídico-políticosque constituem as relações de produção (Ianni, 1996).

Ora, aos poucos, as formas singulares e particulares do capitalno âmbito nacional e setorial, subordinaram-se às formas decapital em geral, conforme seus movimentos e suas formas dereprodução em âmbito internacional.

Utilizando os termos da dialética materialista, verificou-se umametamorfose que é não apenas quantitativa, mas qualitativa,

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de tal maneira que o capital adquiriu novas condições epossibilidades de reprodução.

A internacionalização do capital se tornará mais intensa egeneralizada, ou propriamente mundial, com o fim da Guerra Fria,em fins dos anos de 1980, com a desagregação do bloco soviético eas mudanças de políticas econômicas nas nações de regime socialista.A partir desse momento, as economias das nações do ex-mundosocialista transformam-se em fronteiras de negócios, inversões,associações de capital, transferências de tecnologias e outrasoperações, expressando a intensificação e a generalização dosmovimentos e das formas de reprodução do capital em escala mundial.

Mas, é no período da Guerra Fria, de 1946-1989, que ocorreuum desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismo pelomundo. O que parecia ser uma espécie de virtualidade docapitalismo como modo de produção mundial, tornou-se cadavez mais uma realidade do século XX (Ianni, 1996).

As Categorias Marxianas no Desvelamento da Globalização

Utilizando a obra de Marx, Ianni procurou interpretar váriosaspectos da globalização: Empresas Transnacionais, Crise doEstado-Nação, Fábrica Global, Shopping Center Global,Penetração do Capital nas Economias Socialistas eInternacionalização da Questão Social.

Ianni nos apresenta as bases materialistas da novainternacionalização do capital, da globalização, utilizando para isso odesenrolar da série de categorias marxistas (modo de produção,relações de produção, forças produtivas, reprodução ampliada docapital, concentração e centralização do capital, alienação).

É possível destacar alguns pontos-chaves capazes de dar umsentido concreto à problemática posta pela internacionalizaçãodo capital e que salientamos logo acima.

O ponto principal a ser destacado é que, para Marx, ocapitalismo é um processo civilizatório mundial, um processode amplas proporções complexo e contraditório, mais ou menosinexorável, avassalador, simultaneamente social, econômico,

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político e cultural, que, ultrapassando fronteiras geográficas,históricas, culturais e sociais, influencia feudos e cidades, naçõese nacionalidades, culturas e civilizações.

Configura-se como um modo de produção que nasce,desenvolve-se e generaliza-se, atravessando as crises, realizando-se por ciclos de curta, média e longa durações, e transformando-se continuamente. É um todo complexo, desigual, contraditório edinâmico, uma totalidade aberta ou propriamente histórica. Estásempre em movimento, no sentido de que transforma e expande,entra em crise e retoma sua expansão, de maneira errática masprogressiva, com frequência inexorável (Ianni, 1995).

Ainda que se preservem economias de subsistência,artesanatos, patrimonialismos, tribos, clãs, nacionalidades enações, entre outras formas de organização da vida e do trabalho,ainda assim o processo capitalista influencia, tensiona, modifica,dissolve ou recria todas e quaisquer formas com as quais entraem contato. Exerce influência moderada ou avassaladora,dependendo do Estado com o qual se defronta (Ianni, 1995:136).

Na medida em que se torna dominante, o modo capitalista deprodução lança luz e sombra, formas e movimentos, cores e sons,sobre muito do que encontra pela frente. No curso da história daglobalização do capitalismo, muito do que se encontra pelocaminho se altera, tensiona, modifica, anula, mutila, recria outransfigura:

A burguesia não pode existir sem revolucionarcontinuamente os instrumentos de produção e, porconseguinte, as relações de produção, portanto todo oconjunto das relações sociais...o contínuo revolucionar daprodução, o abalo constante de todas as condições sociais,a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesade todas as precedentes. Todas as relações fixas ecristalizadas, com seu séquito de crenças e opiniões tornadasveneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novasenvelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é

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sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado éprofanado, e os homens são finalinente obrigados a encararcom sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suasrelações recíprocas. A necessidade de mercados cada vezmais extensos para seus produtos impele a burguesia paratodo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda parte,instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda parte.Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deuum caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todosos países. Para grande pesar dos reacionários, retirou debaixo dos pés da indústria o terreno nacional. As antigasindústrias nacionais foram destruídas e continuam a serdestruídas a cada dia. São suplantadas por novas indústrias,cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte paratodas as nações civilizadas; indústrias que não mais empregammatérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes dasmais remotas regiões, e cujos produtos são consumidos nãosomente no próprio país, mas em todas as partes do mundo. Emlugar das velhas necessidades, satisfeitas pela produçãonacional, surgem necessidades novas, que para seremsatisfeitas exigem os produtos das terras e dos climas maisdistantes. Em lugar da antiga auto-suficiência e do antigoisolamento local e nacional, desenvolve-se em todas as direçõesum intercâmbio universal, uma universal interdependência dasnações. E isso tanto na produção material quanto na intelectual.Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se patrimôniocomum A unilaterialidade e a estreiteza nacionais tornam-secada vez mais impossíveis, e das numerosas literatura nacionale local formam-se uma literatura mundial (Marx e Engels, 1985)

O capitalismo é um processo civilizatório que “invade todoo globo”, envolve o “intercâmbio universal” e cria as bases de“um novo mundo”, influenciando, destruindo ou recriando outrasformas sociais de trabalho e vida, outras formas culturais ecivilizatórias:

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O período burguês da história está chamado a assentar asbases materiais de um novo mundo; a desenvolver, de umlado, intercâmbio universal, baseado na dependência mútuado gênero humano, e os meios para realizar esse intercâmbio;e, de outro, desenvolver as forças produtivas do homem etransformar a produção material num domínio científico sobreas forças da natureza. A indústria e o comércio burguesesvão criando essas condições de um novo mundo do mesmomodo que as revoluções geológicas criavam a superfície daTerra (Marx, 1981)

A Dialética da Globalização

No capitalismo, as forças produtivas, compreendidas semprecomo forças sociais, encontram-se todo o tempo em interaçãodialética. As forças produtivas básicas, tais como o capital, atecnologia, a força de trabalho, a divisão do trabalho social, omercado e o planejamento, entre outras, entram em contínua eampla conjugação, desenvolvendo-se de forma intensiva eextensiva, ultrapassando fronteiras geográficas e históricas,regimes políticos e modos de vida, culturas e civilizações.

É a expressão do capital como modo de socialização e decontrole sócio-metabólico ampliado, caracterizado pelaexpansividade, intensiva e extensiva, e pela incontrolabilidade(Mészáros, 1995).

A concorrência entre os capitais, a busca de novos processosprodutivos, a conquista de outros mercados e a procura de lucrosprovocam a dinamização das forças produtivas e da forma pelaqual elas se combinam e aplicam nos mais diversos setores deprodução, nas mais diferentes nações e regiões do mundo.

Estão em marcha os processos de concentração do capital,o que implica na contínua reinversão dos ganhos no mesmo ouem outros empreendimentos, e os de centralização do capital,o que implica na contínua absorção de outros capitais, próximose distantes, pelo mais ativo, dinâmico ou inovador.

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À medida que se liberam e agilizam as forças produtivas,juntamente com as relações de produção demarcando ascondições de liberdade e da igualdade dos proprietários de capitale força de trabalho, organizadas em forma contratual, intensifica-se e generaliza-se a reprodução ampliada do capital:

[No capitalismo], da mesma forma que o método de produçãoe os meios de produção são constantemente ampliados,revolucionados, assim também a divisão do trabalhonecessariamente provoca maior divisão do trabalho, oemprego de maquinaria provoca maior emprego demaquinaria, o emprego de trabalho em ampla escala provocao emprego de trabalho em escala ainda mais ampla. Esta é alei que continuamente empurra a produção capitalista alémdos seus velhos limites e compele o capital a mobilizarsempre mais forças produtivas de trabalho, pela mesma razãoque ele já as mobilizou anteriormente. [...] Portanto, secompreendermos esta agitação fabril como ela opera nomercado mundial como um todo, estaremos em condiçõesde compreender como o crescimento, a acumulação e aconcentração do capital trazem consigo uma cada vez maiorrenovação das velhas máquinas e uma constante aplicaçãode novas máquinas: processo que segue ininterruptamente,com uma velocidade febril e em escala cada vez máisgigantesca (Marx,1980)

O dinamismo da reprodução ampliada do capital, que seu caráterprogressivo, influencia contínua e reiteradamente as mais diferentesformas de organização social e técnica do trabalho e da produção:

Em todas as formas de sociedade existe uma determinadaprodução que confere a todas as outras sua correspondenteposição e influência; uma produção cujas relações conferema todas as outras a posição e a influência. É uma iluminação

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geral, em que se banham todas as cores, e que modifica asparticularidades destas (Ianni, 1995:141)

A dinâmica da reprodução ampliada realiza-se pela contínuaconcentração do capital, ou reinversão do excedente, isto é, da mais-valia, e pela contínua centralização ou absorção de outros capitaispelo mais ativo, forte ou inovador. Esses são processos que tornamo capitalismo uma realidade histórica e geográfica, atravessandofronteiras, mares e oceanos.

Ainda que desenvolvendo-se de maneira desigual, combinada econtraditória, o capitalismo expande-se pelas mais diferentes naçõese nacionalidades, bem como culturas e civilizações, dinamizado pelosprocessos de concentração e centralização, concretizando suaglobalização.

Ianni observa que o que se anunciava nos primeiros temposdo capitalismo, revela-se claro no século XIX e mais ou menosavassalador no XX.

Ao longo da história, desde o século XVI ao XX, e jáprenunciando o século XXI, multiplicam-se as empresas,corporações e conglomerados, compreendendo monopólios,trustes, cartéis, multinacionais e transnacionais. Sãoempreendimentos que estão sempre ultrapassando fronteirasgeográficas e históricas, atravessando mares e oceanos,instalando-se em continentes, ilhas e arquipélagos.

Assim, se é verdade que o mercantilismo, o colonialismo e oimperialismo tinham raízes no nacionalismo e ajudaram a difundiro modelo de Estado-nação pelo mundo afora, é também verdadeque quebraram fronteiras de tribos, clãs, povos, nacionalidades,culturas e civilizações.

Nesse sentido é que o capitalismo entra decisivamente nodesenho (e redesenho) do mapa do mundo, criando nações ecolônias, metrópoles e impérios, geoeconomias e geopoliticas,ocidentes e orientes:

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Enquanto que o capital, por um lado, deve tender a destruirtoda barreira espacial oposta ao comércio, isto é, aointercâmbio, e a conquistar toda a Terra como um mercado,por outro lado tende a anular o espaço por meio do tempo,isto é, reduzir a um mínimo o tempo tomado pelo movimentode um lugar a outro. Quanto mais desenvolvido o capital,quanto mais extenso é portanto o mercado em que circula,mercado que constitui a trajetória espacial de sua circulação,tanto mais tende simultaneamente a estender o mercado e auma maior anulação do espaço, através do tempo. [...]Aparece aqui a tendência universal do capital, o que odiferencia de todas as formas anteriores de produção (o grifoé nosso) (Marx, 1985)

A dinâmica da reprodução ampliada do capital, envolvendoconcentração e centralização, produz e reproduz odesenvolvimento desigual e combinado, em escala nacional,regional e mundial.

Na medida em que essa dinâmica se realiza, provocanecessariamente a reiteração de algo estruturalmente semelhante àacumulação originária, como uma espécie de “revolução” queperiodicamente transforma ou moderniza as mais diversas formassociais e técnicas de organização do trabalho e da produção.

Isto significa que, como salienta Ianni, a acumulação origináriapode ser vista como um processo simultaneamente genético eestrutural, inerente ao capitalismo, desenvolvendo-se todo o tempo,em todas as partes.

A dinâmica desse modo de produção cria e recria, contínua ereiteradamente, as forças produtivas e as relações de produção, sejapelo desenvolvimento extensivo como pelo intensivo. É um processoque se desenvolve e reitera ao longo da história:

O divórcio entre o produto do trabalho e o próprio trabalho,entre as condições objetivas de trabalho e a força subjetivade trabalho é, pois, como sabemos, a premissa real dada, oponto de partida do processo capitalista de produção. [...] O

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processo capitalista de produção reproduz, portanto, peloseu próprio mecanismo, o divórcio entre a força de trabalhoe as condições de trabalho, reproduzindo e eternizandodesta maneira as condições de exploração do trabalhador.Obriga constantemente o trabalhador a vender a sua forçade trabalho para viver e permite constantemente ao capitalistacomprá-la para enriquecer-se. [...] O regime do capitalpressupõe o divórcio entre os trabalhadores e a propriedadedas condições de realização de seu trabalho. Quando já semove por seus próprios pés, a produção capitalista não sómantém esse divórcio como o reproduz e acentua em umaescala cada vez maior. Portanto, o processo que engendra ocapitalismo somente pode ser um: o processo de dissociaçãoentre o trabalhador e a propriedade sobre as condições detrabalho, processo que, de um lado converte em capital osmeios sociais de vida e de produção, e por outro converteos produtores diretos em trabalhadores assalariados. Achamada acumulação originária não é, portanto, mais do queo processo histórico de dissociação entre o produtor e osmeios de trabalho (o grifo é nosso) (Marx, 1996)

Portanto, o que já se revelava uma característica fundamentalda gênese do capitalismo europeu no século XVI, a acumulaçãooriginária, revela-se uma característica também fundamental dosdesenvolvimentos do capitalismo global no século XX, continua arealizar-se e generalizar-se reiteradamente o divórcio entre a forçade trabalho, ou seja, o trabalhador, e as condições de trabalho, ouseja, a propriedade dos meios de produção (Ianni, 1995).

Ciência e Técnica Enquanto Forças Produtivas

As metamorfoses da ciência e da técnica em força produtivacorrespondem a um desenvolvimento fundamental do modo deprodução capitalista. São metamorfoses que multiplicamamplamente as condições e as possibilidades de produção ampliadado capital, intensificando o caráter “civilizatório” deste:

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Se o processo produtivo torna-se esfera de aplicação daciência , então...a ciência torna-se um fator , uma função, doprocesso produtivo. Cada descoberta converte-se na basede novos inventos, ou de um novo aperfeiçoamento dasformas de produção. O modo capitalista de produção colocadesde o início as ciências naturais a serviço imediato doprocesso de produção, ao passo que o desenvolvimento daprodução oferece, em troca, os instrumentos para a conquistateórica da natureza. A ciência alcança o reconhecimento deser um meio de produzir riqueza, um meio de enriquecimento.Desta maneira, os processos produtivos apresentam-se pelaprimeira vez como problemas práticos, que somente podemser resolvidos cientificamente. A experiência e a observação(e as necessidades do próprio processo produtivo) alcançamagora, pela primeira vez, um nível que permite e tornaindispensável o emprego da ciência...O desenvolvimento dasciências naturais (que também formam a base de qualquerconhecimento), como o de qualquer noção (que se refira aoprocesso produtivo) realizam-se, por sua vez, com base naprodução capitalista que, pela primeira vez, oferece em amplamedida às ciências os meios materiais de pesquisa,observação e experimentação. Os homens de ciência, namedida em que as ciências são utilizadas pelo capital comomeio de enriquecimento e, portanto, convertem-se elasmesmas em meios de enriquecimento, inclusive para oshomens que se ocupam do desenvolvimento da ciência,competem entre si nos intentos de encontrar uma aplicaçãoprática da ciência.” (Marx, 1982)

As metamorfoses da ciência em técnica e da técnica em forçaprodutiva adquirem ritmos crescentes e surpreendentes no séculoXX. E na segunda metade desse século, com os desenvolvimentosdas ciências naturais e sociais, e suas transformações emtécnicas, tudo isso agilizado e generalizado pelas conquistas daeletrônica e da informática, impõe outros surtos de potenciaçãoda força produtiva do trabalho, em todos os setores da

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economia, em âmbito nacional, regional e mundial. Esta pode serconsiderada uma das características mais notáveis da globalizaçãodo capitalismo (Ianni, 1995).

As metamorfoses da ciência em técnica e da técnica emforça produtiva permitem intensificar a reprodução do capitale, simultaneamente, contribuir para a concentração e acentralização do capital.

Como essas metamorfoses realizam-se sob o controle dascorporações transnacionais, muitas vezes apoiadas e estimuladaspor governos nacionais e organizações multilaterais, as maravilhasda ciência e da técnica do trabalho não se traduzem e nãopoderiam se traduzir em diretrizes ou realizações destinadas areduzir ou eliminar desigualdades sociais, econômicas, políticase culturais (Ianni, 1995):

Hoje em dia, tudo parece levar no seu seio a própriacontradição. Vemos que as máquinas, dotadas dapropriedade maravilhosa de reduzir e tornar mais frutífero otrabalho humano, provocam a fome e o esgotamento dotrabalhador. As fontes de riqueza récem-descobertas seconvertem, por artes de um estranho malefício, em fontes deprivações. Os triunfos da arte parecem adquirir ao preço dequalidades morais. O domínio do homem sobre a natureza écada vez maior; mas, ao mesmo tempo, o homem setransforma em escravo de outros homens ou da sua própriainfâmia. Até a pura luz da ciência parece só poder brilharsobre o fundo tenebroso da ignorância. Todos os nossosinventos e progressos parecem dotar de vida intelectual asforças materiais, enquanto reduzem a vida humana ao nívelde uma força bruta. Esse antagonismo entre a indústriamoderna e a ciência, de um lado, e a miséria e a decadência,de outro, este antagonismo entre as forças produtivas e asrelações sociais da nossa época é um fato palpável,esmagador e incontrovertivel. (Marx, 1985)

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Sob o Comando do Capital Em Geral

Essa dinâmica é comandada pelo capital, pelos que detêm apropriedade e os movimentos do capital, em âmbito nacional emundial. Ainda que o capital não possa nunca atuar de maneiraindependente e, além disso, dependa em essência da capacidadeda força de trabalho produzir valor, é inegável que pode determinaras direções e os ritmos da reprodução ampliada.

Para que se realize a sua reprodução ampliada, o capitaldesenvolve-se, desdobra-se e articula-se em distintas formas deorganização do trabalho e da produção. Adquire configuraçõessingulares, particulares e gerais, reciprocamente referidas edeterminadas, mas cada vez mais sob a influência do capital emgeral, abstrato e real (Ianni,1995)

No âmbito da economia global, desenvolve-se ainda mais a formado capital, uma espécie de síntese e matriz do singular e do particular,todos reciprocamente referidos, mas determinados pelo geral.

Nesse sentido é que a globalização como mundialização docapital pode ser vista como produto e condição do capital emgeral (sob a hegemonia do capital financeiro) no qual se realizam emultiplicam todas as outras formas de capital.

O que Marx observava como algo incipiente em seu tempo,na medida em que se desenvolve o capitalismo, revela-secrescentemente efetivo e generalizado. O capital, sob formasnovas e renovadas, desenvolveu-se e fortaleceu-se assinalandoa sua lógica pelos quatro cantos do mundo. No fim do século XXadquire características propriamente globais.

Alienação

São várias as formas de alienação que se desenvolvem emultiplicam com o capitalismo, visto como processo civilizatório.Na medida em que transforma continuamente as condiçõessociais de vida nos países em que ele já se encontra enraizado, e

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revoluciona as condições sociais de vida em tribos, clãs,nacionalidades e nações nos quais não haviam chegado ouencontrava-se pouco desenvolvido, o modo de produção capitalistaprovoca a emergência de outras forma de sociabilidade:

Algumas formas de sociabilidade são realmente inovadoras,libertadoras ou deslumbrantes. Abrem novas possibilidadesde emancipação individual e coletiva, permitindo outrasformas de criação também individuais e coletivas. Florescemidéias filosóficas, científicas e artísticas, ao mesmo tempoem que se criam distintas condições sociais deindividualização, mobilidade social, organização demovimentos sociais e correntes de opinião pública. Tambémos movimentos artísticos podem dispor de outras condiçõesde emergência, desenvolvimento e generalização. Amultiplicação dos meios de comunicação e as possibilidadesde circulação das coisas, gentes e idéias, em âmbitosnacional, regional e mundial, abrem outros horizontes paraindivíduos e coletividades (Ianni, 1995).

Octávio Ianni observa que, paralelamente à emergência deformas de sociabilidades inovadoras, liberadoras ou mesmodeslumbrantes, desenvolvem-se também as que limitam, inibemou propriamente alienam. Elas podem ser totalmente novas,ou acrescentam-se às preexistentes, podendo recriá-las ouagravá-las. Nestes casos, intensificam as limitações ou mesmoas mutilações que atingem indivíduos e coletividades, ou mesmonações e nacionalidades.

Sob vários aspectos, como observa Ianni, é possível dizer queo capitalismo desacorrentou Prometeu do castigo que lhe haviaimposto Zeus, por ensinar aos homens o segredo do fogo, paraque pudessem emancipar-se das forças da natureza. Mas tambémé possível dizer que Prometeu escapou da tutela de Zeus e foicolocado sob a tutela do Capital. O mistério da metáfora nãofoi desfeito, desenvolveu-se, foi refeito (Ianni, 1995)

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À Título de Conclusão: A Reconstrução da Sociologia naEra do Globalismo

Poderíamos considerarmos a sociologia como o registro dosícones da modernidade, capaz de elaborar e re-elaborar seusprincípios explicativos, que são múltiplos, mas que podem sercomplementares (como demonstrou com habilidade inaudita,Octávio Ianni).

Mas os limites da sociologia são seus próprios méritos: ser aautoconsciência empírica do nosso tempo, a fenomenologiada mundanidade, inversa absoluta da homônima hegeliana.

Por isso, o intento de Octávio Ianni é reconstruir, indicar, maispropor que resolver ou desenvolver, mais problematizar queconcluir. É a partir daí que podemos explicar o caráter múltiplo,diverso, de seus ensaios que retratam, a partir da tradiçãosociológica, os vários aspectos da globalização, não apenas emseus ícones, mas em seus princípios explicativos, que se cruzam,se sobrepõem e se complementam para compor a riqueza deuma nova realidade histórica, mas também sociológica que surge.

Ao recitarmos algumas passagens longas da obra de Ianniprocuramos salientar duas tradições clássicas do pensamento dasociologia clássica incorporadas por ele para compor um retratoou registro do nosso tempo, da era do globalismo.

Lendo Marx, pode-se dizer que a globalização surge com odomínio do capital em geral, do capital financeiro, do débacle dosocialismo real, do domínio das empresas, conglomerados ecorporações transnacionais e não apenas isso, mas do predomíniodas instituições e tecno-estruturas transnacionais, da cultura global,shopping center global, que se impõe sobre as culturas regionaise nacionais. O sentido da globalização, como apreendemos apartir da leitura de Marx, através de Ianni, é contraditório comoo próprio capital, emancipa e escraviza.

Lendo Weber, diremos isso e outras coisas, quando vemos aglobalização que surge do processo de racionalização, daburocratização universal, do desencantamento do mundo. É claro

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que há outras perspectivas explicativas, mas destacamos as maisricas e promissoras, onde diremos, Marx mais que Weber e Durkheim.

Mas o maior problema é encontrar o lugar da sociologia naera do globalismo, numa perspectiva que vai além do paradigmanacional, do Estado-nação, onde se originou e se desenvolveu astradições sociológicas clássicas.

Como pensar o ser social na época da desterritorialização,não apenas do mercado mundial, mas do capital em geral, daracionalização universal, do desencantamento planetário ?

É nesse momento que a sociologia, para ter o seu lugar, precisair além de si mesmo, de ser mero registro empírico damodernidade esgotada com a globalização.

Se procuramos resgatar a reflexão sobre a globalização coma visão sociológica é porque a consideramos essencial,principalmente como um convite à reflexão criativa, disruptivae corajosa de ir além de si mesma.

Mas procuramos destacar um modo de conceber a globalizaçãona perspectiva dialético-materialista, pelo seu potencial heurísticode dizer algo mais que a sociologia poderia nos propor.

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Globalização e

Trabalho

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9Toyotismo Como

Ideologia Orgânicada Produção Capitalista

O objetivo deste ensaio é tentar apresentar uma breve caracterização do toyotismo, que conside- ramos como sendo a ideologia orgânica da

produção capitalista sob a mundialização do capital.Ao dizermos ideologia orgânica procuramos salientar a

amplitude de valores e regras de organização da produção quesustentam uma série de protocolos organizacionais. Taisprotocolos organizacionais do toyotismo que aparecem sobas mais diversas formas, atingem os empreendimentoscapitalistas, seja na área da indústria, seja na área de serviços(inclusive, por analogia, na administração pública), tentandoarticular, no plano da organização subjetiva da produçãocapitalista latu sensu, um novo regime de acumulação centradono principio da flexibilidade, que consideramos a categoriadominante da acumulação capitalista num cenário de criseestrutural.

Na verdade, todo empreendimento capitalista é coagido pelaconcorrência a adotar procedimentos organizacionais oriundosda matriz ideológico-valorativa do toyotismo. Eles se articulame se mesclam com dispositivos tayloristas-fordistas, mesmo nãoparticipando da criação de valor, organizações de serviços e deadministração pública incorporam, por analogia, tais valores doneoprodutivismo toyotista.

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Na década de 1990, o impulso ideológico do toyotismo atingiuo empreendimentismo capitalista no Brasil, no bojo do complexode reestruturação capitalista e do ajuste neoliberal propiciadopelos governos Collor e pelo governo Cardoso. A abertura daeconomia, o acirramento da concorrencia e a proliferação dosvalores de mercado contribuíram sobremaneira para a adoçãoda nova forma de gestão da exploração da força de trabalho.

Noutros momentos procuramos desenvolver a reflexão sobreo significado do toyotismo, mais iremos nos concentrar aqui emelaborar uma rápida caracterização que procure ir além daconcepção restrita de toyotismo, procurando recuperar suagênese histórica e seu significado ontológico para a novaetapa de desenvolvimento do capitalismo mundial (Alves, 1999).

O toyotismo é regido pelo principio da flexibilidade, quearticula um nexo essencial, o nexo do envolvimento subjetivodo trabalho, que implica na captura da subjetividade do trabalhopelo capital e os nexos contingentes da produção fluída e daprodução difusa (Bihr, 1999).

O cerne do toyotismo é a busca do engajamento estimuladoda força de trabalho, principalmente do trabalhador central, oassalariado “estável”, para que ele possa operar uma série dedispositivos organizacionais que sustentam a produção fluída edifusa.

Como exemplo do toyotismo, percebemos os mais diversostipos de Programas de Gerenciamento pela Qualidade Total, pelabusca da produção just-in-time e pela utilização do kan-ban,pelas novas formas de pagamento e de remuneração flexivel, eprincipalmente pela difusão da terceirização. Tais dispositivosorganizacionais contingentes são múltiplos, tornando-se, inclusive,senso-comum nos manuais da nova administração das empresas.

Mas o que cabe resgatar são seus dispositivos materiais debusca do envolvimento subjetivo da força de trabalho e da buscarecorrente de uma produção difusa, através da terceirização, ede uma produção fluida, recorrendo, nesse caso, em últimainstância, a utilização de novas tecnologias microeletrônicas.

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Portanto, seja na indústria, onde tal sistema de gerenciamentoda produção capitalista se originou, seja, por analogia, nos bancose serviços em geral, o toyotismo se tornou um senso comum daprodução do capital, mesclado, é claro, com formas tayloristas-fordistas. Estamos diante, portanto, de um conceito com maiordensidade ontológica do que imaginam sociólogos ou engenheirosde produção, muitos deles voltados para a mera análise empirista.

A gênese do toyotismo

A partir da mundialização do capital, o que veio a serdenominado de toyotismo assumiu a posição de objetivaçãouniversal da categoria da flexibilidade, tornando-se um valoruniversal para o capital em processo.

É claro que a projeção universal do toyotismo, a partir dosanos 80, vincula-se ao sucesso da indústria manufatureira japonesana concorrência internacional. Durante os anos setenta e oitenta,diversas técnicas foram importadas do Japão, em diversas ondas,com diferentes ênfases, para diversos países e setores.

A primeira onda foi a dos CCQ’s e, quase que em paralelo, a doKanban / JIT. Posteriormente, diversos outros elementos foramadicionados, como TQC (Total Quality Control), Kaizen, técnicados 5S’s, TPM (Total Productive Maintenance) e outras(Zilbovicius, 1999).

Entretanto, o novo método de gestão da produção, impulsionado,em sua gênese sócio-histórica, pelo sistema Toyota, conseguiuassumir um valor universal para o capital em processo, tendoem vista as próprias exigências do capitalismo mundial, das novascondições de concorrência e de valorização do capital surgidas apartir da crise capitalista dos anos 70.

Isso significa dizer que o toyotismo não pode mais ser reduzidoàs condições históricas de sua gênese, tornando-se adequado,sob a mundialização do capital, não apenas à nova base técnicado capitalismo, com a presença de novas tecnologiasmicroeletrônicas na produção, o que exige um novo tipo de

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envolvimento subjetivo da força de trabalho, e, portanto, umanova subordinação formal-intelectual do trabalho ao capital, masa nova estrutura da concorrência capitalista no cenário de crisede superprodução, onde está colocada a perspectiva de“mercados restritos”.

Mas, o valor ontológcio do toyotismo não se vincula apenas àsua morfologia intrinseca adequada a mercados restritos, mas aser ele, o toyotismo, o resultado de um processo de luta de classes.

O toyotismo é a expressão plena de uma ofensiva do capital naprodução. Ele é um dispositivo organzacional e ideológica quebusca debilitar (e anular), ou “negar” , o caráter antagônicodo trabalho no seio da produção do capital.

Por isso, muitas vezes, a sociologia do trabalho deixa de salientarque a construção do toyotismo é decorrente, ou é resultado sócio-histórico, de um processo de intensa luta de classes, onde ocorreramimportantes derrotas operárias, que tornaram possível a introduçãode uma nova organização social da produção.

Por exemplo, a instauração do sindicalismo por empresa,surgido nos anos 50 no Japão, tornou-se uma das pré-condiçõesdo próprio desenvolvimento do toyotismo. Na verdade, é possívelconsiderar, como uma das condições institucionais docomprometimento operário, a instauração de um sindicalismode envolvimento, pró-ativo, que procure colaborar com o capitalna busca de soluções para os problemas da produção demercadorias.

O sucesso do sistema Toyota vincula-se, numa perspectivahistórica, às grandes derrotas da classe operária, à própriadecapitação e neutralização do seu intelectual orgânicos no planoprodutivo: o sindicato industrial, de classe, transformado num sindicatode empresa, corporativo e interlocutor exclusivo do capital.

Este processo de neutralização político-ideológica da classeoperária no espaço da produção é tão importante para o sucesso dotoyotismo que, no país capitalista de origem, o Japão, uma daspassagens essenciais que asseguram a promoção dos dirigentese a formação das elites da empresa Toyota é a atividade sindical.

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O que queremos salientar, portanto, é que, ao surgir como omomento predominante do complexo de reestruturação sob amundialização do capital, o toyotismo passou a incorporar umanova significação, para além das particularidades de sua gênesesócio-histórico (e cultural), vinculado com o capitalismo japonês.

Deste modo, ao utilizarmos o conceito de toyotismo, queremosdar-lhe uma significação particular, delimitando alguns de seusaspectos essenciais. São tais aspectos essenciais do toyotismo,seus protocolos organizacionais e institucionais, voltados pararealizar uma nova captura da subjetividade operária pelalógica do capital, que possuem um valor heurístico, capaz deesclarecer seu verdadeiro significado nas novas condições damundialização do capital.

A Lógica do Toyotismo

O que consideramos como sendo o toyotismo pode ser tomadocomo a mais radical e interessante experiência de organizaçãosocial da produção de mercadorias sob a era da mundializaçãodo capital. Ela é adequada, por um lado, às necessidades daacumulação do capital na época da crise de superprodução,e, por outro lado, é adequada à nova base técnica da produçãocapitalista, sendo capaz de desenvolver suas plenaspotencialidades de flexibilidade e de manipulação da subjetividadeoperária.

Os princípios organizacionais do toyotismo tenderam, nodecorrer dos anos 80, a serem adotados por várias corporaçõestransnacionais nos EUA, Europa e Ásia ou ainda América Latina,principalmente no setor industrial (ou até nos serviços). É claroque, nesse caso, eles, os princípios organizacionais se adaptaramàs particularidades concretas da produção de mercadorias,surgindo como o momento predominante do complexo dereestruturação produtiva.

Ao assumir um valor universal, o toyotismo passou a mesclar-se, em maior ou menor proporção, a suas objetivações nacionais

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e setoriais, com outras vias de racionalização do trabalho,capazes de dar maior eficácia à lógica da flexibilidade. É porisso que a instauração do toyotismo articula, em seu processo,uma continuidade/descontinuidade com o taylorismo/fordismo, avia predominante de racionalização pretérita do trabalho.

O aspecto original do toyotismo é articular a continuidade daracionalização do trabalho, intrínseca ao taylorismo e fordismo,com as novas necessidades da acumulação capitalista. É uma“ruptura” no interior de uma continuidade plena. Por isso, “emboraconsciente das diferenças e de suas contribuições específicas,Taichi Ohno [o “criador” do toyotismo – G.A] preferiu insistirantes sobre as continuidades que sobre as rupturas” [com relaçãoa Taylor e Ford] (Coriat, 1993).

Além disso, o próprio autor do rótulo pelo qual ficou conhecidoo toyotismo: lean production, ou Produção Enxuta,posteriormente consagrado mundialmente através do estudo doMIT (Womack et al., 1990), Krafcik, observou que “muitos dosprincípios de Ford em suas formas mais puras são ainda válidose formam a própria base do que conhecemos agora como ToyotaProduction System...Fordismo original com um sabor japonês.”(Krafcik Apud Zilbovicius, 1997).

Tanto o taylorismo/fordismo, como, de certo modo, o toyotismo,trazem, em si, o “espírito profundo” da Segunda RevoluçãoIndustrial (a utilização “científica da matéria viva, o trabalho vivo”.Todos eles, em maior ou menor proporção, estariam preocupadoscom o controle do elemento subjetivo no processo de produçãocapitalista.

Apesar de o toyotismo pertencer à mesma lógica deracionalização do trabalho, o que implica considerá-lo umacontinuidade com respeito ao taylorismo/fordismo, ele tenderia,nesse caso, a surgir como um controle do elemento subjetivoda produção capitalista que estaria posto no interior de umanova subsunção real do trabalho ao capital; o que seria umadescontinuidade com relação ao taylorismo/fordismo. É o que

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Fausto denominou subordinação formal-intelectual ou espiritualdo trabalho ao capital)(Fausto, 1989).

Por isso, é a introdução da nova maquinaria, vinculada à IIIRevolução Tecnológica e Científica, o novo salto da subsunçãoreal do trabalho ao capital, que exige, como pressuposto formalineliminável, os princípios do toyotismo, onde a captura dasubjetividade operária é uma das pré-condições do própriodesenvolvimento da nova materialidade do capital. “É como se aforma material exigisse uma posição adequada na forma”, diriaFausto.

As novas tecnologias microeletrônicas na produção, capazesde promover um novo salto na produtividade do trabalho,exigiriam, portanto, como pressuposto formal, o novoenvolvimento do trabalho vivo na produção capitalista.

Entretanto, como o próprio Ohno (e Krafcik) reconheceram,é mais importante insistir sobre as continuidades que sobre asrupturas do toyotismo com respeito ao taylorismo/fordismo. Decerto modo, o toyotismo conseguiu superar, no sentido dialético(superar/conservando), alguns aspectos predominantes da gestãoda produção capitalista sob a grande indústria no século XX,inspirados no taylorismo e fordismo, que instauraram aparcelização e repetividade do trabalho.

Mas, por trás da intensificação do ritmo do trabalho que existeno toyotismo, em virtude da “maximização da taxa de ocupaçãodas ferramentas e dos homens” (Coriat), persiste ainda uma novarepetitividade do trabalho.

É claro que existe uma ampliação do ciclo do trabalho emvirtude da “desespecialização”. Só que, ampliar o ciclo do trabalhonão significa desenvolver o processo de requalificação dotrabalho. A “desespecialização”, ou polivalência operária, nãoquer dizer que eles tenham se convertido em operáriosqualificados, mas representam, como salientou Aglietta, “oextremo da desqualificação, ou seja, seus trabalhos foramdespojados de qualquer conteúdo concreto.” (Aglietta, 1978)

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Deste modo, a uniformização que o toyotismo realiza é apenasa expressão organizacional da coletivização do trabalho, sob aforma de trabalho abstrato, que permite a ampliação das tarefas.O trabalho ampliado, dos operários “pluri-especialistas”, resultatão vazio, e tão reduzido à pura duração, como o trabalhofragmentado (Aglietta, 1978).

Portanto, tal como o taylorismo e o fordismo, o objetivosupremo do toyotismo ou da “Produção Enxuta” continua sendoincrementar a acumulação do capital, através do incremento daprodutividade do trabalho, o que o vincula à lógica produtivistada grande indústria, que dominou o século XX.

O toyotismo pertence, tal como o taylorismo e fordismo, aoprocesso geral de racionalização do trabalho e, portanto, de suaintensificação instaurado pela grande indústria.

Por outro lado, cabe ao toyotismo articular, na nova etapa damundialização do capital, uma operação de novo tipo decaptura da subjetividade da força de trabalho, uma novaforma organizacional capaz de aprofundar e dar uma novaqualidade à subsunção real do trabalho ao capital inscritas nanova forma material do capitalismo da III Revolução Científicae Tecnológica.

Surge então a pergunta: por que o toyotismo pode serconsiderado um valor universal para a produção de mercadoriassob as condições da mundialização do capital ?

Ora, em primeiro lugar, as suas condições ontológicasoriginárias, determinaram suas próprias possibilidades deuniversalização. É preciso salientar, mais uma vez, que otoyotismo é instaurado, originariamente, pela lógica do “mercadorestrito”, surgindo sob a égide do capitalismo japonês dos anos50, caracterizado por um mercado interno débil.

Por isso, tornou-se adequado, em sua forma de ser, àscondições do capitalismo mundial dos anos 80, caracterizado poruma crise de superprodução, que coloca novas normas deconcorrência. Foi o desenvolvimento (da crise) capitalista que

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constituiu, portanto, os novos padrões de gestão da produção demercadoria, tal como o toyotismo, e não o contrário.

Em segundo lugar, a constituição do toyotismo tornou-seadequada à nova base técnica da produção de mercadorias,vinculada à III Revolução Industrial, que exige uma novasubjetividade da força de trabalho – pelo menos dos trabalhadorescentrais à produção de mercadorias. As novas tecnologias debase microeletrônica, em virtude de sua complexidade e altocustos, exigem uma nova disposição subjetiva dos operários emcooperar com a produção.

Ora, é o toyotismo que irá propiciar, com um maior poderideológico, no campo organizacional, os apelos à administraçãoparticipativa, salientando o sindicalismo de participação e osCCQ’s (Círculos de Controle de Qualidade); reconstituindo, paraisso, a linha de montagem e instaurando uma nova forma degestão da força de trabalho.

A centralidade ontológica do envolvimento subjetivo daforça de trabalho

O valor universal do toyotismo como momento predominantedo complexo de reestruturação produtiva e como nova ofensivado capital na produção é instaurar, no plano da produção demercadorias, uma nova hegemonia do capital, articulando, demodo original, coerção capitalista e consentimento dostrabalhadores.

De certo modo, o taylorismo/fordismo, sob as condições deracionalização propiciadas pelo desenvolvimento histórico noséculo XX, principalmente nos EUA, tornou-se, a partir dos anos20, o pioneiro na articulação entre coerção capitalista econsentimento operário. Com ele, procurou-se operar, de modopleno, a subsunção real da subjetividade da força de trabalhoà lógica do capital, a articulação hábil da “força” (destruiçãodo sindicalismo de base territorial) com a “persuasão” (altossalários, benefícios sociais diversos, propaganda ideológica epolítica habilíssima”). Como diria Gramsci, com o fordismo, “a

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hegemonia vem da fábrica” (Gramsci, 1985: 381). De certo modo,o toyotismo dá continuidade à lógica de racionalização do trabalhona perspectiva da hegemonia do capital na produção.

Entretanto, no taylorismo e no fordismo, a “integralização”da subsunção da subjetividade da força de trabalho à lógica docapital, a “racionalização total”, ainda era meramente formal ou“formal-material”, como poderia dizer Fausto, já que, comosalientou Gramsci, na linha de montagem, as operações produtivasreduziam-se ao “aspecto físico maquinal” (Gramsci, 1985:382).

O fordismo ainda era, de certo modo, uma racionalizaçãoinconclusa, pois, apesar de instaurar uma sociedade“racionalizada”, não conseguiu incorporar à racionalidadecapitalista na produção as variáveis psicológicas docomportamento dos trabalhadores, que o toyotismo procuradesenvolver através dos mecanismos de comprometimento dostrabalhadores assalariados, que aprimoram o controle docapital na dimensão subjetiva.

O toyotismo não possui a pretensão de instaurar umasociedade racionalizada, mas apenas uma fábricaracionalizada. É a partir do processo de produção intra-fábricae na relação entre empresas, que ele procura reconstituir ahegemonia do capital, instaurando, de modo pleno, a subsunçãoreal da subjetividade da força de trabalho pela lógica do capital.Ele procura, mais do que nunca, reconstituir algo que erafundamental na manufatura: o “velho nexo psicofísico do trabalhoprofissional qualificado – a participação ativa da inteligência, dafantasia, da iniciativa do trabalho” (Gramsci, 1984:397).

Portanto, o toyotismo restringe o nexo da hegemonia do capitalà produção, recompondo, a partir daí, a articulação entreconsentimento operário e controle do trabalho. É por isso que,mais do que nunca, salienta-se a centralidade estratégica de seusprotocolos organizacionais e institucionais. É apenas sobre elesque se articulam a hegemonia do capital na produção.

Este é, com certeza, o “calcanhar de Aquiles” do toyotismo,na medida em que, ao reduzir o nexo da hegemonia do capital

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apenas à esfera intra-fabril ou entre empresas, não o ampliandopara além da cadeia produtiva central, para o corpo social total,o toyotismo permanece limitado em sua perspectiva política,principalmente se o compararmos ao arranjo fordista.

Por isso, sob o toyotismo, agudiza-se a contradição entreracionalidade intra-empresa e irracionalidade social. É naépoca do toyotismo que explicita-se a racionalidade destrutivado sistema do capital (Mészáros, 1995).

Sob o toyotismo, a competição entre os operários é intrínsecoà idéia de trabalho em equipe. Os supervisores e os líderes deequipe desempenham papéis centrais no trabalho em equipe.No caso do Japão, os líderes da equipe de trabalho ou do teamsão, ao mesmo tempo, avaliadores e representantes dos sindicatos.Permanece ainda, de certo modo, uma supervisão rígida, masincorporada, integrada, vale salientar, à subjetividade contingenteda força de trabalho.

Em virtude do incentivo à concorrência entre os operários,cada um tende a se tornar supervisor do outro. “Somos todoschefes”, é o lema do “trabalho em equipe” sob o toyotismo. Eis,portanto, o resultado da captura da subjetividade da força detrabalho pela lógica do capital, que tende a se tornar “maisconsensual, mais envolvente, mais participativa: em verdade, maismanipulatória”. Surge um “estranhamento pós-fordista”, sob otoyotismo, que possui uma densidade manipulatória maior do queem outros períodos do capitalismo monopolista (Antunes, 1999).

Não é apenas o fazer e o saber operário que são capturadospela lógica do capital, mas a sua disposição intelectual-afetivaque é constituída para cooperar com a lógica da valorização. Otrabalhador é encorajado a pensar “pró-ativamente”, a encontrarsoluções antes que os problemas aconteçam (o que tende aincentivar, no plano sindical, por exemplo, estratégiasneocorporativas de cariz propositivo). Cria-se, deste modo, umambiente de desafio contínuo, onde o capital não dispensa, comofez o fordismo, o “espírito do trabalhador.

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Aliás, não é que sob o fordismo, o operário na linha demontagem convencional não pensasse. Pelo contrário, comosalientou Gramsci, sob o fordismo

...o operário continua ‘infelizmente’ homem e, inclusive [...]durante o trabalho, pensa demais ou, pelo menos, tem muitomais possibilidade de pensar, principalmente depois de tersuperado a crise de adaptação. Ele não só pensa, mas o fatode que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, quandocompreende que se pretende transformá-lo num goriladomesticado, pode levá –lo a um curso de pensamentospouco conformistas”. (Gramsci, 1984:404)

Com certeza, Ford tinha consciência de que operários nãoeram “gorilas domesticados”. Só que procurava resolver o dilemada organização capitalista através de iniciativas educativas extra-fábrica. O toyotismo, pelo contrário, através da recomposição dalinha produtiva, com seus vários protocolos organizacionais einstitucionais, procura capturar a subjetividade da força de trabalho,integrando suas iniciativas afetivas-intelectuais nos objetivos daprodução de mercadorias. É por isso que, por exemplo, a auto-ativaçãocentrada sobre a polivalência, um dos nexos contingentes do toyotismo,é uma iniciativa educativa do capital, é, entre outros, um mecanismode integração e controle do trabalho à nova lógica do complexoprodutor de mercadorias.

Se no fordismo tínhamos uma integração mecânica, notoyotismo temos uma integração orgânica, o que pressupõe,portanto, um novo perfil de trabalhador central (Ravelli,1995:190).

Mas o que é integração orgânica para o capital, de certomodo, é expressão de uma fragmentação sistêmica para otrabalho assalariado, em sua consciência contingente e em seusestatutos salariais.

Apesar disso, o capital continua dependendo da destrezamanual e da subjetividade do coletivo humano, como elementos

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determinantes do complexo de produção de mercadorias.Enquanto persistir a presença do trabalho vivo no interior daprodução de mercadorias, o capital possuirá, como atributo desi mesmo, a necessidade persistente de instaurar mecanismosde integração (e controle) do trabalho, de administração deempresas, mantendo viva a “tensão produtiva”.

Além, é claro, de procurar dispersar os inelimináveis momentosde antagonismo (e contradição) entre as necessidades do capital eas necessidades do trabalho assalariado, intrínsecos à própriaobjetivação da relação social que instaurou o processo de valorização.

É claro que as contrapartidas do capital sob o toyotismo sãode natureza histórica. Existe um vinculo ineliminável entre otoyotismo e a luta de classes. A série de contrapartidas dotoyotismo destinadas à captura da subjetividade operária, capazesde permitir o pleno desenvolvimento dos nexos contingentes dotoyotismo, podem assumir diversas particularidades sócio-históricas (e culturais).

Na verdade, elas se alteram, acompanhando odesenvolvimento do capitalismo e da própria luta de classes. Éo que podemos constatar hoje, por exemplo, com a debilitaçãorelativa de algumas condições sócio-institucionais que garantiram,no passado, sob o período de crescimento do capitalismo japonês,a moldura do toyotismo original. Diante crise do capitalismo noJapão nos anos 90, os mercados internos das empresas, oemprego vitalício e o salário por antiguidade, por exemplo,estão sendo revistos pelas corporações transnacionais sediadasno Japão.

A generalização universal do toyotismo, sob a forma da leanproduction, implica adequá-lo, em suas contrapartidas para otrabalho assalariado, às novas realidades sócio-históricas daconcorrência capitalista mundial.

Diante da debilitação estrutural do mundo do trabalho, a partirdos anos 80, em decorrência da lógica da modernização capitalista,as contrapartidas sociais clássicas do toyotismo tenderam a ser

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precarizadas, revistas ou abolidas pelo capital, com suas condiçõesinstitucionais originárias, tal como se constituíram no seu paíscapitalista de origem – o Japão, sendo negadas em virtude deseu próprio desenvolvimento mundial.

O que tende a predominar é meramente o estímulo individualatravés da concessão de bônus salariais, debilitando algunsprotocolos institucionais clássicos, como o emprego vitalício.

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10Toyotismo e NeocorporativismoNo Sindicalismo do Século XXI

Uma série de analistas sociais constatam o avanço,no Brasil dos anos 1990, de uma nova posturasindical de cariz neocorporativo. Ela seria

caracterizada pela mudança do padrão de ação sindical da CUT,que tenderia a privilegiar não mais a confrontação, tal comoocorreu no decorrer dos anos 80, mas a negociação ou a“cooperação conflitiva”. Diz Rodrigues:

De uma atuação mais confrontacionista evolui-se para umaatividade que poderíamos chamar de cooperação conflitiva,em que o conflito é explicitado mas, ainda assim, há umapreocupação com a cooperação (Rodrigues, 1995:125).

Teríamos o predomínio de um sindicalismo caracterizado pornovo corporativismo de participação:

Essa transformação político-ideológica do novo sindicalismopode ser sinteticamente caracterizada como a transição deum sindicalismo de ‘massa e confronto’ para um sindicalismomarcado pelo ‘neocorporativismo.’ (Boito, 1994:23).

Estamos diante, portanto, de uma significativa metamorfosepolítica-ideológica da CUT nos anos 90, que se caracterizariapor uma política sindical de cariz concertativo permeada por umalógica corporativa setorial. O maior exemplo do sindicalismo

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neocorporativo dos anos 90 foi a experiência da câmara setorial daindústria automotiva (1992-1994), considerada, segundo váriosautores, um modelo de novas relações entre capital e trabalhoassalariado no Brasil, (Arbix, 1995; Frederico, 1994; Oliveira, 1993).

Na verdade, é um novo modelo social-democrata centradonum mesocorporativismo constituído através de fóruns tripartitessetoriais. Seriam considerados novos modelos de elaboração eimplementação de política pública ou de “gestão econômica”capazes de apontar a saída para a crise brasileira (Arbix, 1995).

O sindicalismo neocorporativo, diante do novo complexo dereestruturação produtiva e da ofensiva neoliberal que atinge omundo capitalista no Brasil dos anos 90, tendeu a privilegiar a“influência propositiva” (Alves, 2000), isto é, a concertação socialou ainda as “estratégias de enfrentamento propositivo” queprivilegiam a negociação e a participação dos trabalhadoresassalariados no processo decisório da reestruturação produtivasetorial ou por empresa, buscando, no mundo da produção, umaconvergência de interesses entre capital e trabalho assalariado,capaz de instaurar uma relação tipo ganha-ganha entre capitale trabalho assalariado (Salerno, 1993).

Ou ainda, uma relação permeada por um neopragmatismosocial-democrata, onde admite-se que o capital tendeu a ganharmais, só que o trabalho perdeu, só que perderia mais se nãoimplementasse tais acordos neocorporativos (Arbix, 1995).

A nova praxis sindical neocorporativa e propositiva tende aavançar nas negociações por empresas, favorecendo asrealidades mais avançadas e privilegiando a organização sindicalvinculada aos locais de trabalho. O objetivo de implementar acapacidade organizativa é apenas para aumentar o poder debarganha nas negociações setoriais e por empresa, num sentidopró-ativo e sem uma postura classista e antagônica para com ocapital. O sindicalismo propositivo é, portanto, uma outradenominação da nova praxis sindical neocorporativa quecaracterizou a CUT nos anos 90 (Leite, 1997).

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Após uma breve caracterização deste novo fenômeno político(e ideológico) do sindicalismo da CUT nos anos 90 baseado numsindicalismo neocorporativo com sua lógica concertativa, é donosso interesse tentar apresentar seus fundamentos histórico-ontológicos.

Vamos procurar não reduzir seus determinantes causaismeramente aos processos político-organizacional (e ideológicos).Pelo contrário, é do nosso interesse apresentar um outro tipo deanalise que recupere as múltiplas determinações concretas dapraxis sindical neocorporativa de cariz concertativo, salientandoprincipalmente seus vínculos histórico-ontológicos com odesenvolvimento de um novo padrão de acumulação capitalistaque impulsiona um complexo de reestruturação produtiva cujaprincipal característica é o aprofundamento da fragmentação declasse no bojo de um novo e precário mundo do trabalho (Alves,1999).

Consideramos que o fundamento ontológico do sindicalismoneocorporativo é a própria natureza do novo complexo dereestruturação produtiva que atinge o mundo do trabalho sob amundialização do capital. Para nós, o novo complexo dereestruturação produtiva, intrínseco à mundialização do capital,possui como seu momento predominante, o toyotismo, a novaprática e ideologia do espirito capitalista na produção, cujo traçoprincipal é a elevação da fragmentação da classe e aconstituição de dispositivos de novo tipo voltados para a capturada subjetividade da força de trabalho.

Portanto, iremos tentar reconstituir e apreender o porquêdaquilo que Tapia considerou como sendo a “afinidade eletiva”entre a reestruturação produtiva e a lógica corporativasetorial (Tapia, 1994:76), expresso na nova praxis neocorporativade cariz concertativo que caracterizou o sindicalismo brasileirono curso dos anos 90.

Tal processo sócio-histórico objetivo que dá o substratomaterial das novas práticas políticas (e ideológicas) caracterizanão apenas o sindicalismo neocorporativo, incorporado pela política

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sindical da CUT nos anos 90, mas principalmente o novo arranjocorporativista social-democrata que traduzem as novasdeterminações da reprodução sistêmica do capital mundial.

Privilegia-se um novo tipo de política sindical social-democrataque tende a articular arranjos mesocorporativistas postos comouma defensividade de novo tipo do trabalho diante da ofensivado capital na produção (o novo complexo de reestruturaçãoprodutiva) e na política (o neoliberalismo).

A partir daí, desenvolve-se todo um novo modo de organização,elaboração e implementação de política (e ideologia) sindical,uma praxis sindical neocorporativa de cariz setorial.

A nova social-democracia como o lastro político (eideológico) do sindicalismo neocorporativo

É um pressuposto político do corpo analítico da sociologia eeconomia do trabalho no Brasil e das estratégias sindicaishegemônicas na CUT nos anos 90, a necessidade de transposiçãoda experiência social-democratas para o Brasil. Nessaperspectiva, o corporativismo societal (Schmitter) seria umasaída para a crise brasileira e para a crise do novo sindicalismodiante da nova ofensiva do capital na produção (a reestruturaçãoprodutiva) e na política (o neoliberalismo).

O corporativismo societal seria alternativa aocorporativismo estatal que tem caracterizado as estruturas derepresentação de interesses no Brasil desde a era Vargas.

Entretanto, a partir de meados dos anos 80, a social-democraciatende a assumir um novo formato político-ideológico, incorporandoas novas necessidades de reprodução sistêmica do capital. É talnovo modelo da social-democracia, que prega não mais umcorporativismo societal, mas um corporativismo setorial,redescobrindo o meso e o micro e não mais o macro, que dá olastro político e ideológico do sindicalismo neocorporativo queinfluencia a estratégia da CUT dos anos 90, apesar, é claro, do

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imaginário social-democrata permanecer vinculado às ilaçõesclássicas da social-democracia.

A partir de meados dos anos 80, o desenvolvimento damundialização do capital, a crise do Estado e um novo padrão deacumulação capitalista tenderá a promover importantesmetamorfoses no arranjo corporativo social-democrata.

De um corporativismo societal, salientado por Schmitter,tende a desenvolver-se, portanto, um corporativismo setorial.Lehmbruch e principalmente Regini salientam a concertação.Vários autores constatam a tendência de declínio das práticasde concertação social-democrata, com o esvaziamento dasesferas de macrocorporativismo e uma redefinição das condiçõesde negociação entre o capital e o trabalho no nível meso e micro(Tapias e Araújo).

O predomínio do “mesocorporativismo” tende inclusive aalterar a percepção analítica de sociais-democratas que passama perceber arranjos corporatistas nos Estados Unidos (Arbix,1995). Ao invés de perceber um avanço do capital e, portanto,de perda política da social-democracia e de sua perspetivaclassista, a redução do arranjo corporativista é visto como umvalor positivo.

É a partir de meados da década de 1980, que o discurso e aprática social-democrata na Europa e, mais tarde, no Brasil tendea incorporar tais novas percepções políticas e ideológicas dareprodução sistêmica do capital.

Observa-se a tendência de descentralização das negociaçõescoletivas, a erosão da regulação social-democrata clássicacentralizada e nacional e o seu deslocamento para a empresa,que passa a ser o novo centro de gravidade político e ideológicado arranjo corporatista social-democrata.

Na verdade, a crise do Estado e da economia capitalista, e omomento predominante do complexo de reestruturaçãoprodutiva (o toyotismo), tendem a contribuir para o deslocamentopolítico e ideológico do arranjo neocorporativo social-democrata

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clássico, da sua redução para os limites do setor ou ainda dagrande empresa.

De certo modo, é tal reformatação do arranjo neocorporativosocial-democrata que ocorre nos anos de 1980, sob o influxo damundialização do capital, que vai legitimar, no plano político eideológico, a vinculação concreta entre o sindicalismoneocorporativo e a lógica corporativa setorial posta (e imposta)pelo toyotismo.

A praxis sindical neocorporativa vai traduzir, no plano“egoístico-corporativo”, o novo momento da política social-democrata. Alteram-se as perspectivas e signos da práticasindical, ocorrendo uma transformação da ação sindical,salientada por vários autores. No caso da CUT, o exploradorpassa a ser parceiro e a classe dá lugar a atores sociais(Rodrigues, 1990).

Portanto, o paradigma corporativo social-democrata clássicodo pós-guerra, que servia, até certo ponto de modelo para a CUTnos anos de 1980, tende a se deteriorar e o novo padrão deacumulação o reconstitui sob uma nova forma institucional maisadequado à lógica do momento predominante do complexo dereestruturação produtiva - o toyotismo.

A nova social-democracia tende a incorporar novas demandasdo padrão de acumulação mundial, inclusive com uma novaconcepção do Estado. Mais do que nunca urge para a social-democracia reconstituir o compromisso da coesão social,redimensionando sua legitimidade social e política.

Ao redimensionar o paradigma corporativo, a social-democracia tende a incorporar o novo espírito de reproduçãosistêmica do capital. Pode-se até considerar o novo arranjo políticoe ideológico da social-democracia como um “corporativismoenxuto” – um lean corporativism em contraposição a um strongcorporativism, que caracterizava o corporativismo societalclássico.

Pelo seu formato político e ideológico, o “corporativismoenxuto” é mais adequado à prática organizacional e ideológica

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do toyotismo universal, levado a cabo pelas corporaçõestransnacionais. É a partir dele que se desenvolvem, sob as maisdiversas formas, as novas práticas organizacionais e tecnológicasdo capital.

Portanto, é tal (re)arranjo político-ideológico da social-democracia no centro capitalista que tende a dar o espírito e anecessidade da concertação social restrita, tal como se desenvolveno Brasil nos anos 90, um país capitalista em avançado estádiode integração à nova lógica do capital transnacional.

É claro que, se, por um lado, o sindicalismo neocorporativotende a refletir as imensas dificuldades objetivas da ação sindicaldiante do novo complexo de reestruturação produtiva e da políticaneoliberal no Brasil dos anos 90; por outro lado ele expressa, arendição subjetiva, ou seja, político-ideológica, de importanteslideranças da classe trabalhadora organizada diante da lógica docapital. Incapazes de articular uma nova contra-hegemonia eresistência à voracidade do capital, eles tendem a render-se àperspectiva ideológica do pólo antagônico.

O novo padrão de ação sindical, sustentado na lógicacorporativa setorial é, portanto, a própria síntese propositiva dacaptura da subjetividade do trabalho tal como pressupõe e impõeos dispositivos organizacionais e ideológicos do toyotismo. Esteé um dos importantes elemento da crise do sindicalismo moderno(Alves, 2000).

Antunes iria caracterizar o novo corporativismo que atingeo conjunto do movimento sindical, em inúmeros países, neste finaldo século XX, como “um neocorporativismo societal, excludente,parcializador e que preserva e acentua o caráter fragmentadoda classe-que-vive-do-trabalho.” (Antunes, 1997:82)

A transformação complexa da social-democracia européia,que sempre exerceu influência em parcelas hegemônicas na CUT,ocorre sob o influxo da ideologia neoliberal que impulsiona e éimpulsionada pela mundialização do capital. É importante salientarque a mundialização do capital é, antes de tudo, o momento detransformação da produção e da política, da política da produção

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e da produção da política. Estamos diante de um processo sócio-histórico de amplo espectro, com rebatimentos políticos eideológicos, como resposta à crise estrutural da valorização docapital.

Na medida em que a crise do capital é posta e impulsiona-seo o neoliberalismo como a ideologia da globalização, a própriasocial-democracia como a ideologia do capitalismo organizado, éobrigada a encontrar um novo ponto de equilibrio político eideológico.

Toyotismo como o modelo ontológico da produçãosistêmica do capital

A partir da mundialização do capital, nos anos 80, o toyotismotornou-se, através do discurso da lean production, a ideologiauniversal da produção sistêmica do capital (Womack, Jones eRoos, 1992). Seus princípios e dispositivos ideológicos eorganizacionais passaram a permear uma série de discursosvoltados para a administração de empresas. Surgiram umcomplexo de variações populares do toyotismo, tais comobenchmarking, reengenharia, gerenciamento pela qualidadetotal, etc (Babson, 1995).

O toyotismo tornou-se a ideologia orgânica da produçãocapitalista com uma série de variações concretas, decorrentesde suas particularizações setoriais, regionais e nacionais. A partirdaí, ele tendeu a se articular e a mesclar-se com dimensõespretéritas da produção capitalista, tais como o taylorismo efordismo.

A nossa caracterização do toyotismo procura ir além de umamera identificação com o modelo japonês. Como salientamos,ao desenvolver-se e assumir uma dimensão universal, as novaspráticas gerenciais e empregaticias, tais como o just-in-time/Kan-ban, controle de qualidade total e engajamento estimulado,levado a cabo pelas corporações japonesas, assumiram uma novasignificação para o capital, não mais se vinculando às suas

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particularidades concretas originárias. Elas surgem como umanova via original de racionalização do trabalho, centrada na leanproduction, adequadas a uma nova etapa do capitalismo mundial,onde, a rigor, a distinção entre Oriente e Ocidente perde a suasignificação central para a lógica da valorização (Alves, 1999).

Procuramos ver o toyotismo como sendo principalmente umanova articulação de dispositivos organizacionais da produçãocapitalista, com poderosa carga ideológica, cujo objetivo primordialé a captura da subjetividade da força de trabalho, o que odiferencia, em termos qualitativos, do fordismo e do taylorismo.

Ao utilizarmos o conceito de toyotismo procuramosrepresentar um modelo que possui, de modo ineliminável, umacrosta ideológica necessária. Como qualquer outros conceitos-modelo, tais como fordismo ou keynesianismo, o de toyotismo sóse constituiu como modelo ontológico da produção capitalistana era da mundialização do capital quando assumiu umaconcretude universal.

O toyotismo sintetizou, sem esgotar, o fenômeno de uma novalógica da produção sistêmica do capital. Passou a representarnos traços essenciais, as exigências necessárias da produçãocapitalista a partir da III Revolução Tecnológica e Científica.

A construção do toyotismo como um modelo ontológico daprodução capitalista ocorreu a partir de uma prática gerencial,a prática de um staff administrativo e intelectual, com uma nítidapretensão ideológica. Na medida em que consubstanciou-se comolean production, na última metade dos anos 80, o toyotismoalcançou a sua dimensão ideológica plena:

A lean production é...um construto que aspira – e nessecaso, é bem sucedido – à condição de modelo; seusinventores têm o objetivo estrito de conferir legitimidade aum conjunto de técnicas e proporcionar, assim, sua difusãoem um mundo que depende de mais elementos, além deresultados, para incorporar determinados elementos à suaprática (Zilbovicius, 1997:310) .

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O sentido lógico (e ontológico) do toyotismo é dado pelo próprioconteúdo sócio-histórico da nova etapa de desenvolvimentocapitalista denominada mundialização do capital ou “regimede acumulação mundializada predominantemente financeira”(Chesnais, 1999).

As determinações histórico-ontológicas do novo regime deacumulação é que irão constituir o lastro necessário do toyotismocomo o momento predominante da produção sistêmica docapital. Ele surge como o arcabouço ideológico e organizacionalda nova produção capitalista flexível.

Em primeiro lugar, a nova etapa de desenvolvimento capitalistaa partir dos anos 70 é caracterizada por uma estrutura devalorização intrinsecamente instável, uma instabilidade sistêmicadecorrente de uma crise crônica de superprodução (Brenner,1999) que impulsiona e é impulsionada pela financeirização(Chesnais, 1999).

É tal característica da estrutura de valorização que instaura anecessidade histórico-ontológica, para o capital, de um regime deacumulação flexível, que tende a mudar a estrutura de espaço-tempoda reprodução sistêmica do capital.

A instabilidade sistêmica e a fluidez do mercado mundial exigeflexibilidade das condições sociais de produção. Flexibilidade, porconseguinte, tende a torna-se um principio basilar do toyotismo, quesurge como o momento predominante dos regimes de acumulaçãoflexível.

Mas, por outro lado, fluidez/flexibilidade tende a significarinsegurança de expectativas, risco redobrado. O que exige abusca desesperada de um novo consentimento capitalista nocampo da produção, mais intensivo e menos extensivo.

Por isso, no complexo da produção, convulsionado pelas novastecnologias e pelo acirramento da concorrência intercapitalista,expressão da crise crônica de superprodução, a captura asubjetividade do trabalhador assalariado, é posta como umanecessidade imperativa das novas condições de produção

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capitalista. O campo da produção tornou-se alvo de um intensoexercício ideológico e organizacional voltado para a captura dasubjetividade da força de trabalho. Exige-se que o trabalhadorassalariado seja colaborador ativo do capital no campo daprodução, tenha uma série de novas qualificações técnicas (eemocionais) que o tornem apto a exercer a polivalência e amultifuncionalidade. A extrapolação disso para o campo daeducação profissional é o surgimento, na retórica pedagógica, dos“modelos de competência” e da “empregabilidade”.

Na verdade, deve o trabalhador tornar-se não apenas déspotade si mesmo, mas déspota de outros trabalhadores, pois o novoambiente de trabalho toyotista é capaz de desenvolver aindividualidade dos trabalhadores e com ela o sentimento deliberdade, a independência e o auto controle, ao mesmo tempoque instaura, em toda a sua plenitude, a concorrência e a emulaçãoentre os próprios trabalhadores, apesar da retórica do “trabalhoem equipe”.

É claro que, estamos diante de um processo dialético, ondeentre o taylorismo-fordismo e o toyotismo não existempropriamente “rupturas”, mas superação/conservação, sendo otoyotismo uma descontinuidade no interior de umacontinuidade plena de racionalização do trabalho pelo capitalque percorre todo o século XX.

O nexo essencial da acumulação flexível, não reside emdispositivos tecnológicos, mas sim em dispositivos organizacionais,assentados em substratos tecnológicos, voltados para um novopatamar de subsunção real do trabalho assalariado ao capital.Algo que Ruy Fausto percebeu como sendo uma “subordinaçãoformal-intelectual - ou espiritual - do trabalho ao capital”(Fausto,1993).

Surge, a partir daí, como uma nova exigência do regime deacumulação flexível, novas formas de controle capitalista naprodução, uma esfera da produção convulsionada pela criseestrutural de valorização. Urge, portanto, instaurar o quepoderíamos denominar de controle convergente em

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contraposição ao controle antagônico do capital sobre o trabalho,predominante sob o fordismo-taylorismo. Entretanto, valesalientar, o toyotismo como dispositivo organizacional e ideológicoda grande indústria, prepara o desenvolvimento da própria pós-grande indústria (Fausto, 1993), criando seu arcabouçoespiritual-formal.

Por um lado, o toyotismo irá sintetizar, num complexo dedispositivos organizacionais e ideológicos, a necessidade radicalda produção capitalista em instaurar uma nova hegemonia docapital na produção, integrando, através da captura dasubjetividade da força de trabalho, o pólo antagônico do capital.

Mas, por outro lado, o toyotismo tende a incorporar, em si,através de seus próprios dispositivos organizacionais, avulnerabilidade sistêmica intrínseca ao novo regime deacumulação mundial.

Krafcik diria que o toyotismo é um sistema de produção“fragile”, o que pode ser percebido, por exemplo, através daintrodução do sistema just-in-time, que torna muito maisvulnerável a produção capitalista diante de uma greve detrabalhadores (Krafcik and MacDuffie, 1989).

A nova revolução tecnológica, que ocorre a partir dos anos70, irá propiciar, ao toyotismo, uma oportunidade para reestruturarcustos através de uma nova organização do espaço-tempo. Ocapital irá aproveitar os recursos da informática e da telemáticapara dissolver os obstáculos politicos-institucionais postos pelotrabalho organizado nas décadas passadas.

A proliferação da terceirização e da subcontrataçãointernacional irão expressar um tipo de flexibilidade orgânica,síntese de uma ânsia de otimizar custos. Surge um novo tipo deempreendimento capitalista. Dissemina-se a empresa-rede(network firm).

A empresa-rede é a materialização organizacional do espiritodo toyotismo, onde a descentralização da produção ou afragmentação sistêmica (Alves, 1998), é capaz não apenas depropiciar a otimização de custos através de uma reconstituição

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da hierarquia capitalista, mas, de promover, através dafragmentação da classe, um novo patamar de controle daprodução pelo capital. A dissolução dos coletivos operários atestaa descentralização como uma ofensiva do capital na produção.O enxugamento do centro e a dispersão da periferia incorporaa lógica secular do divide et impera.

Se o toyotismo possui como sua alma ideológica, a capturada subjetividade da força de trabalho pelo capital, ou asedimentação de uma implicação convergente entre capital etrabalho assalariado, é porque ele tende a incorporar a cascaideológica da mundialização do capital, ou seja, a ideologia daglobalização, que passa a idéia da homogeneização (econvergência) universal, onde as classes e as nações se curvamaos imperativos da produtividade e da competitividade.

O controle convergente que ocorre dentro da grande empresatoyotista, é expressão, portanto, daquilo que ocorre no tecidosocial através da ideologia convergente da globalização, onde oantagonismo de classe tende a ser, mais do que nunca, negado.

O toyotismo como fundamento ontológico do sindicalismoneocorporativo

Salientamos que o toyotismo expressa a necessidade radicalde uma nova hegemonia do capital na produção. Por isso acentralidade da cooperação ativa e de um postura pró-ativa dotrabalhador assalariado no campo da produção.

Além disso, a “acumulação flexível”, que surge na época dacrise estrutural de superprodução, tendeu a promover umacontração do espaço-tempo do metabolismo sistêmico do capital,reduzindo e restringindo o campo hegemônico do capital em seulocus de valorização, a grande empresa. A partir daí, tende asurgir arranjos neocorporativos de novo tipo, correspondentesao novo espaço-tempo do circuito de valorização capitalista.

Em virtude de sua vulnerabilidade sistêmica, o toyotismotende a recortar o campo de atuação das classes (decorrente, é

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claro, da própria fragmentação sistêmica da produçãodesenvolvida por ele). Ele promove, num novo patamar, afragmentação ou diluição das classes, principalmente, da(consciência de) classe dos trabalhadores assalariados.

A lógica da captura da subjetividade da força de trabalho,decorrente da diluição radical da consciência de classe, éimpulsionada através dos novos arranjos de negociação,circunscrito a grande empresa, reduzidos ao nível meso ou micro.

Mas se o despotismo esclarecido do capital tende a ganharintensidade no locus da produção, através de um novoconsentimento do trabalho, por outro lado ele perde emlegitimidade social, precarizando sua hegemonia política nasociedade.

Por isso, a volatilidade da hegemonia capitalista nas condiçõesde uma reprodução sistêmica centrada na lógica do toyotismo.O “risco” torna-se intrínseco à reprodução da ordemmetabólica do capital (Giddens e Beck, 1994), tanto quanto acrise de legitimidade. Nesse caso, a racionalidade intra-firma secontrasta com a irracionalidade societária, expressão maior da“produção destrutiva” capitalista (Mészaros, 1996).

Diante disso, não interessa para o capital, o sindicato compolítica social-democrata no sentido clássico, tendo em vistaque a percepção social-democrata clássica do espaço-tempo daprodução (e reprodução) sistêmica do capital não correspondeàquela nova realidade posta pela reprodução sistêmica do capitalna era da mundialização.

O que é exigido é um tipo de sindicalismo de empresa, compolítica de atuação restrita e setorial; um sindicalismo que preserveum controle sócio-burocrático sobre os trabalhadores, exercendoo papel de regulador das expectativas capitalistas e das demandascorporativas dos trabalhadores.

Mas exige, antes de tudo, um sindicalismo pró-ativo epropositivo diante das novas estratégias do capital na produção.Por isso, a idéia de concertação social que incorpora o espíritoda colaboração ativa entre capital e trabalho e da participação

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Toyotismo e Sindicalismo

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dos próprios trabalhadores assalariados, visto sob a perspectivado trabalhador individual e parcelar e não do trabalhadorcoletivo, na implementação das estratégias produtivas.

Ao mudar o centro de gravidade político e ideológico daimplicação corporativa para a grande empresa, a nova social-democracia apreendeu o avanço do poder das corporaçõestransnacionais nos anos 80, sob a mundialização do capital, e porconseguinte, a nova necessidade sistêmica da acumulaçãocapitalista flexível, com seu momento predominante, o toyotismo.

É tal deslocamento sócio-ontológico que contribuiu para aconstituição, no plano político-ideológico, dos novos arranjosneocorporativos, baseados nesse novo espaço-tempo da estruturade acumulação de capital. São tais novos arranjos corporativosque deram o lastro político-ideológico para o sindicalismoneocorporativo de participação que passou a predominar na CUT

Por exemplo, no Brasil dos anos 90, mesmo o sindicalismocorporativo tende a se curvar à lógica da grande empresa, comas comissões de fábrica quase atuando como sindicatos deempresa. É a partir dela que os capitalistas, imbuídos dos princípiosdo toyotismo, tendem a incentivar os acordos sindicais, tornando-se ela, a empresa, o referencial central para a ação sindical.

Diante de um cenário de crise capitalista, de ofensiva docapital na produção e na política, o sindicalismo neocorporativo,baseado na lógica corporativa setorial, com sua ideologia e aprática da concertação social restrita e dos fóruns tripartitessetoriais, tendem a ser expressão de um novo defensivismo dotrabalho, que quando assume a dimensão de uma ideologia políticaestruturada, através do staff administrativo de partidos ousindicatos, tende a promover uma rendição subjetiva da classe àlógica do capital, sendo um dos componentes da crise dosindicalismo no Brasil.

Dissemos ideologia política estruturada porque se acondição de defensividade é intrínseca à pratica sindical toutcourt, tal como a negociação, a redução taticista da praxis sindical

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à mera resistência, ou melhor, a um jogo de influênciapropositiva, considerado como uma nova defensividade dotrabalho diante do capital reestruturado, possui um significativoconteúdo ideológico, de poderosa afinidade eletiva com o espíritodo toyotismo.

Na medida em que ela, a prática sindical imbuída da ideologiapolítica do sindicalismo neocorporativo, tende a negar e asegmentar a dimensão da luta e da perspectiva política de classe,reduzindo o sindicalismo à prática da influência propositiva, doconsenso e da parceria, mesmo conflituosa, entre capital e trabalho,ela promove na política sindical, um redimensionamento ideológicoque só interessa à classe capitalista.

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Proletariado Tardio

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11Dimensões do

Proletariado Tardio

Acrise do capital não anula a expansão ereprodução da modernização tardia, que sedesenvolveu, nos últimos trinta anos, através de ciclos

de recessão e recuperação desiguais e não-sustentáveis dasprincipais economias capitalistas.

Sob a crise do capital é perceptivel a exacerbação damodernização e de sua própria “negação”, o que demonstra queo sistema do capital contém uma contradição, que se manifestaem tendências e fenomênos contraditórios, tais como a afirmaçãoe negação do trabalho.

A pletora de capitais, o avanço da indústria no globo,indústria no sentido amplo, não se restringindo apenas à produçãomaterial, mas principalmente à produção imaterial, e a expansãoda base produtiva do capital pelas mais diversas áreas da atividadehumana, incluindo os serviços e os novos negócios que surgiramcom a “globalização”, recriam, sobretudo nas fronteiras damodernização, nos países do Ásia, da América Latina e do LesteEuropeu, um novo e precário mundo do trabalho, no bojo de umareestruturação produtiva que impulsiona a produção e acumulaçãodo capital e um novo patamar de exploração da força de trabalho.

Na economia capitalista mais desenvolvida do sistema mundialdo capital, a economia dos EUA, que teve um crescimentoexuberante na década de 90 é perceptivel que, para homens emulheres, o tempo de vida está se tornando, cada vez mais, tempode trabalho e, por conseguinte, objeto de exploração do capital.

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O que demonstra que é cada vez mais bizantino e meramenteideológico, a afirmação da perda da centralidade do trabalho, deque vivemos numa “sociedade pós-industrial” ou que caminhamospara uma “sociedade do tempo livre”.

Ao utilizarmos a expressão novo (e precário) mundo dotrabalho salientamos, por um lado, o novo caráter do trabalhoindustrial e dos serviços, decorrente da incorporação de novastecnologias microleterônicas na produção, e por outro lado, oacerbamento da fragmentação da esfera do trabalho, aconstituição tendencial de uma sociedade do trabalho dual,caracterizada pelos proletários “estáveis” e pelos proletários“instáveis” (Alves, 2000)

Além disso, o novo e precário mundo do trabalho é constituídopor um contingente imenso de uma superpopulação proletáriaexcedente e excluida, que pertence irremediavelmente, mesmocomo estigma da negatividade, à esfera do trabalho estranhado, postacomo determinação reflexiva do capital.

Os trabalhadores desempregados são proletários que vivem aradicalidade da despossessão instaurada pelo sistema do capital,apesar de ser uma radicalidade estéril, pois a partir da sua exclusãoda ordem do capital são incapazes de articular um movimento paraalém do capital).

Os desempregados afirmam a sociedade do trabalho, mesmosendo a expressão da negação do trabalho. Mais uma vez, só alógica dialética é capaz de apreender o modo de ser da categoriados proletários desempregados.

Os Espectros do Capital

A partir da crise do capital é que o processo de devassamentodo mundo social pela lógica da mercadoria e do dinheiro tende ase ampliar e a aprofundar-se, assumindo um caráter desigual ecombinado. As contradições e os paradoxos intrinsecos à próprialógica do capital constituem, mais do que nunca, a sociabilidademoderna.

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Proletariado Tardio

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É a partir do avanço do capital, posto, por um lado, comoprocesso de exploração e de bárbarie e, por outro lado, comoprocesso civilizatório e posição das possibilidades concretasdo gênero humano que aparecem os espectros que encantamalguns analistas sociais incautos, tais como o espectro dasociedade do tempo livre e seus sucedâneos.

Os espectros da pós-modernidade, ou suas explicitaçõesespectrais dizem respeito à sociedade tecnológica, posto quea racionalidade tecnológica está arraigada na lógica do capitalem seu desenvolvimento tardio.

Das percepções otimistas de liberais como Gates ouNegroponte, ideológos vulgares do tecnologismo afluente, àpercepção pessimista de sociólogos como Baudrillard e Virilio, atecnologia é não apenas um fetiche, mas um imenso espectrodas possibilidades irrealizadas da ordem do capital.

Aqueles que acreditam que seja possivel constituir umasociedade do tempo livre ou aqueles que acreditam que vivemosnuma sociedade pós-industrial, onde a categoria trabalho nãoteria mais a centralidade, vislumbram tão-somente espectrosproduzidas pelo capital. São “miragens” ideológicas oriundas dofetiche do capital, do avanço da III Revolução Tecnológica e dasprossibilidades objetivas criadas pelo próprio desenvolvimentocapitalista mas obstaculizadas pelas relações sociais de produçãocapitalista.

Tais explicitações espectrais do capital ocultam um novo eprecário mundo do trabalho, pleno, intenso e complexo,profundamente fragmentário e contraditório, mas cada vez maispartícipe de uma só condição de estranhamento, de sujeição àlógica da exploração e da mercantilização uniuversal, submetidoà rede complexa de nódulos de valorização sob a direção dascorporações industriais.

O capital faz o mundo à sua imagem e semelhança. É doglobo do capital que surge com mais plenitude um proletariadouniversal, objeto de exploração e estranhamento. É apenas nascondições da plena valorização do capital, da era da globalização,

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como salientam alguns, que a verdadeira afirmação do trabalhoaparece, no plano contingencial, como a negação do trabalho.

É um processo dialético onde a negação do trabalho, transpostano plano objetivo pelo desemprego estrutural e no planoideológico-subjetivo, pela negação da centralidade do trabalho epela perda do seu antagonismo de classe (o trabalho assalariadoé meramente um parceiro do capital, como salientam as políticassindicais neocorporativas), expressam, na realidade, a plenaafirmação do trabalho como determinação reflexiva do “sujeito”da modernização tardia.

As Faces do Proletariado Tardio

O desemprego é um problema universal, da maior importanciapara a classe do trabalhadores assalariados, tendo em vista quedebilita a coesão social, como salientam preocupados os ideológosda ordem capitalista ou ainda debilita o próprio movimento sindicale operário.

Entretanto, tão importante quanto o problema do desempregodeve ser o problema da ampliação e da organização de classe doneoproletariado tardio, do contingente imenso de homens emulheres explorados pelo capital, locis de criação de valor parao sistema do capital. É deles que deve vir a promessa daemancipação do trabalho.

É uma tarefa urgente de partidos e sindicatos comprometidoscom o socialismo analisar as dimensões do proletariado tardio,desvendar sua estrutura interna e discutir a organização politicae cultural do novo e precário do mundo do trabalho.

O proletariado tardio é caracterizado, principalmente, pelostrabalhadores assalariados instáveis e precários, não atingidospelos sindicatos e partidos.

Cabe salientar que, nos últimos cincoenta anos, sindicatos epartidos preocuparam-se em organizar os trabalhadoresassalariados “estáveis” e “privilegiados”, que constituiam umimenso núcleo do mundo do trabalho. Mas a partir da ofensiva

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do capital na produção, que atinge o Brasil nos anos de 1990, onúcleo amplo da classe dos trabalhadores assalariados implodiu.O capital tendeu a instaurar a produção dispersa, uma dascaracteristicas da nova ideologia orgânica da prdoução capitalista(o toyotismo).

No Brasil, os sindicatos sempre tiveram imensas dificuldadesnão apenas para organizar o núcleo moderno do mundo dotrabalho, mas principalmente para atingir os contingentesassalariados precarizados. Com a ampliação da borda precarizadado mundo do trabalho, resultado da implosão do “núcleo” modernodos assalariados, sindicatos e partidos tenderam a perder seueixo organizativo.

No decorrer da década de 1990, alguns sindicatos tenderama optar pela política neocorporativa de cariz concertativo,voltando-se apenas para seu pequeno contingente de assalariadossindicalizados, um “base sindical” cada vez mais restrito do mundodo trabalho, tais como, por exemplo, as categoria de metalúrgicose bancários.

Os sindicatos reagiram às avessas, aceitando a lógica dafragmentação do proletariado, dissolvendo a perspectiva doantagonismo de classe, um dos corolários principais para realizaros interesses históricos da classe trabalhadora (o socialismo).

Portanto, diante da ofensiva do capital na produção sob a eraneoliberal, explicitou-se não apenas os limites estruturais dosindicalismo corporativo, mas a pobreza política e ideológica dosindicalismo brasileiro. Eis apenas uma das determinações dacrise do sindicalismo no País.

Na verdade, o novo (e precário) mundo do trabalho é cadavez mais vertical, heteroclito, vasto e desigual, exigindo dasestruturas organizativas sindicais e partidárias, corporativas,burocratizadas e verticalizadas, uma imensa capacidade derecriação. Mais do que nunca urge articular novas questões sociaisque atingem a classe. É uma tarefa que a luta de classes deverácolocar para o avanço do movimento social do trabalho.

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Além da questão organizativa, surge a questão política eideológica. Mais do que nunca, a luta pela consciência de classeé o momento essencial da luta de classes. No século XXI, sob obojo do toyotismo, cujo principal nexo é a captura dasubjetividade da força de trabalho pela lógica do capital,cabe à intelectualidade orgânica da classe dos trabalhadoresassalariados recuperar a perspectiva da classe, do antagonismouniversal entre capital e trabalho, sob pena de sucumbirmos àbarbárie vigente da nova ordem do capital.

Portanto, cabe articular o momento da resistência e omomento da estratégia socialista. É o que denominamos deresistência estratégica, capaz de, por um lado, resistir à voracidadedo capital, criando obstáculos à degradação do trabalho, e poroutro lado, preservar e avançar na perspectiva anti-capitaista,criando condições políticas e, principalmente geopolíticas, para aconstrução de um movimento social ampliado de cariz socialista.

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Giovanni Alves
Note
Como Citar: ALVES, Giovanni. Dimensões da Globalização, Editora Praxis: Londrina, 2001

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