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1. FUNDAMENTOS

EPISTEMOLÓGICOS DA

MEDICINALuiz Salvador de Miranda Sá Jr.

Não é correto fundamentar a Arte Médica sobre uma (só) hipótese. Sem dúvida, este é o caminho mais cômodo. Tudo se

simplifica quando se admite uma só causa fundamental para a enfermidade ou a morte - e sempre a mesma para todos -

representando-se esta causa mediante um fator ou dois, sejam estes o calor e o frio, o úmido e o seco ou outra coisa qualquer.

Porém, desta maneira, destrói-se o princípio e o método em virtude do qual, em pouco tempo, se realizaram muitas

descobertas maravilhosas. E também se descobrirá o que falta, caso o investigador capaz e conhecedor do que já foi feito, inicie

aí novas investigações. Por isto, devemos aprofundar nossos conhecimentos, de maneira que os erros nos afastem muito

pouco, em qualquer direção, do caminho reto ... Creio que ainda é muito longo o caminho a percorrer antes de alcançar uma

ciência que nos possa dizer, até os menores detalhes, o que é o homem e para que veio ao mundo.

HIPÓCRATES, de Cós.

Prólogo Hipócrates já reconhecia a futilidade de buscar uma única explicação para todas as

enfermidades como tantos faziam e fazem ainda. Como acontece a todos os objetos

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das ciências, a doenças precisam ser explicadas. O que seus contemporâneos

praticavam e que muitos autores atuais insistem em repetir, alheios aos ensinamentos

dos mais antigos.

Principal ou exatamente, talvez, porque eram mais antigos, ou a despeito de serem os mais antigos?

A psiquiatria revive hoje um atraso epistemológico de dois séculos, na medida em que

se aferra à descrição para diagnosticar a aparência das enfermidades e tratar os

enfermos que apresentem aqueles sintomas unicamente a partir dessas informações.

Este texto pretende fazer uma introdução ao estudo da Iatrofilosofia do ponto de vista

de seu autor, a filosofia da Medicina, especialmente como uma teoria do conhecimento

médico, a gnosiologia ou epistemologia médica (especificamente naquilo que se refere

ao aspecto científico do conhecimento médico). E fazer tudo isto a partir da medicina

hipocrática e seu desenvolvimento até os dias atuais

INTRODUÇÃO

A Medicina existe como profissão multimilenarmente organizada na sociedade e

incumbida por ela de diagnosticar as enfermidades e atender às necessidades de

cuidado das pessoas doentes e que evoluiu para atender a muitas outras demandas

sanitárias dos indivíduos e comunidades das quais emergem necessidades

relacionadas com a saúde e a enfermidade de sua componentes. Como toda profissão

sanitária, a Medicina contém três dimensões essenciais: uma dimensão científica, uma

dimensão econômica e outra, ética, solidária e humanitária, que neste caso, deve

constituir sua faceta dominante.

Iniciada como atividade mágica e supersticiosa, muito antes de que se pudesse

entender as enfermidades e os enfermos como condições naturais, a Medicina foi uma

raiz vigorosa da ciência, tendo sido uma das principais fontes do conhecimento

científico e uma de sua aplicações mais importantes. Desde sua origem no passado

muito remoto, bem antes que o surgimento da escrita indicasse o início dos tempos

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históricos, a Medicina mantém estreita relação com o conhecimento da natureza,

conhecimento que mais tarde veio ser chamado de saber científico, tendo conservado

essa relação ao longo de toda história da humanidade e das civilizações que os

homens construíram. Por isso, não seria ocioso afirmar que ela foi um dos ramos mais

precoces da ciência e tem sido um dos seus capítulos mais importantes ao longo de

seu desenvolvimento.

Destarte, quando se pretende rever as raízes fundamentais da Medicina, é bastante

natural que se inicie este estudo pela revisão de sua fundamentação científica, o que

se pretende fazer neste trabalho, ainda que superficialmente. Trata-se aqui do que será

o conhecimento, especialmente o conhecimento científico e de como a Medicina se

caracteriza como uma atividade de base científica e ética. Isto é, uma prática social

humana assentada sempre que possível no conhecimento científico e norteada por

exigência morais inafastáveis. Isto porque, desde que os humanos elaboraram

qualquer forma de conhecimento que mereceram a adjetivação de científica os médicos

estavam entre os que a edificaram e aperfeiçoaram. Assim como não se pode deixar

de considerar sua contribuição para a ética, notadamente da ética profissional.

Igualmente, quem quer que pretenda fazer um estudo abrangente da evolução das

ciências, especialmente do conhecimento científico da natureza e do Homem, terá que

dedicar espaço e tempo aos avanços científicos e técnicos da Medicina, em cada

momento do desenvolvimento da sociedade humana. Porque não é possível estudar o

surgimento e o avanço da Medicina ao longo da evolução da civilização, senão como

um processo permanente e permanentemente inacabado de criar e incorporar ciência e

tecnologia à antiquíssima arte de curar, à atividade humana voltada para o diagnóstico

das enfermidades e o tratamento dos enfermos. Nem parece viável pretender estudar

as ciência ou o desenvolvimento das profissões tecnocientíficas ignorando a Medicina.

E mais ainda quando se tratar das profissões de saúde.

Analogamente, parece inviável estudar o conhecimento medico como se fosse

qualitativamente superior ao restante do conhecimento científico ou filosófico, por que

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não é. É apenas diferente. Como a medicina é diferente das demais profissões da área

da saúde. O conhecimento médico é uma modalidade particular do conhecimento

científico e, por isto, depende muito do conhecimento filosófico, não apenas da

metodologia e da ética, como muitos teimam em fazer, mas também da ontologia, da

gnosiologia, da lógica. Não se deve esquecer que as ciências da natureza, inclusive as

ciências médicas, nasceram sob a designação de Filosofia da Natureza de onde

cresceram ao estado atual.

Este trabalho é um esforço para mostrar essas conexões, ao menos no que elas

tenham de mais elementar.

Medicina: Arte e Ciência

Este estudo se inicia pela avaliação do antigo costume definir a Medicina como ciência

e arte de curar. O que, nesse caso, deve ser precedido do procedimento de definir o

exato significado de cada um destes termos, ciência e arte (o que se há de fazer

adiante). Ao longo da História, a Medicina foi tida como elaboração teórica sofisticada,

uma práxis técnica complexa e uma atividade social importante; tanto como

desempenho individual, quanto como construto sociocultural presente desde muito

precocemente da História da Humanidade. Desde sua origem, quando se separou do

sacerdócio na Grécia Clássica, a Medicina tem sido uma atividade individual que exige

disposição especial e longo preparo técnico de seus agentes, os médicos, e uma

entidade social complexa, impossível de ser reduzida a uma única dimensão que a

contenha completamente. Ademais, exige controle cuidadoso de sua pratica.

Desde sua origem como atividade racional e socialmente útil, tal como aconteceu a

todas as ocupações promovidas a profissões, a Medicina mostra-se dotada,

simultaneamente, de três dimensões inseparáveis:

- uma dimensão socioeconômica (modalidade de trabalho social, ocupação

privilegiada, profissão, que os gregos antes chamavam teknê e os romanos, ars, arte);

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- uma dimensão técnico-científica (um tipo superior de conhecimento confiável, uma

habilidade especial na aplicação de uma técnica); e

- uma dimensão intersubjetiva (uma relação dessimétrica de dois sujeitos, uma

interação particular de serviço e ajuda de duas pessoas, uma que necessita cuidados e

outra, apta, capacitada e habilitada para cuidá-la).

Tais planos existenciais do trabalho médico representam mais que só três tipos de

papéis que os médicos devem representar em seu labor. Até hoje, a Medicina integra

elementos de todas essas três dimensões inseparáveis, que constituem as linhas-

mestras de sua estrutura. Cada ato médico sintetiza proporções diversas de cada uma

dessas dimensões. Entretanto, deve-se frisar que ela não é inteiramente redutível a

qualquer uma delas. Nem deve ter supervalorizada sua dimensão técnica ou a

mercantil.

Tradicionalmente, ao menos na Medicina ocidental, empresta-se maior importância à

dimensão intersubjetiva da relação do médico com o paciente; à relação interpessoal de

confiança, serviço e de ajuda entre alguém que necessita de ajuda e alguém que está

tecnicamente capacitado e socialmente habilitado para ajudar. De fato, não deve ser

considerado correto reduzir a Medicina à sua dimensão científica ou superdimensionar

essa sua vertente econômica em relação às outras duas, pois isso se denomina

tecnicismo ou mercantilismo. O que destruirá o núcleo humanitário essencial da

atividade médica.

Todos (ou quase todos) os médicos se ofendem se forem chamados de mercantilistas

(ainda que o sejam de fato). Ao mesmo tempo que, qualquer médico cuja atividade se

mostre superlativamente cientificista, reage toda vez que for chamado assim

(principalmente em público), ainda que o sejam também. No entanto, nenhum se

ofende se for denominado humanista, ainda que não mereça tal designação.

A Medicina é uma atividade econômica, na medida em que se materializa na produção

de serviço médicos no mercado de serviços oferecidos à população e esta dimensão

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seja importante para seus praticantes, que não podem prescindir delas. Mas não pode

nem deve ser caracterizada como uma relação de consumo, como desejam algumas

tendências jurídico-políticas claramente mercantilistas ou antimédicas.

Situação análoga, como acontece com os tecnicistas e os burocratistas (médicos que

supervalorizem as exigência formais do atendimento, em detrimento das necessidades

das pessoas e constituem grave ameaça à assistência médica, tanto na atividade

individual quanto na assistência pública. Há quem atribua aos médicos essas

tendências tecnicista e mercantilista na sociedade atua como influência cultural e

ideológica utilitarista e pragmatista da sociedade norteamericana por sua hegemonia

econômica e cultural.

Na cultura norte americana atual, a condição mais importante para que profissional, mesmo médico, ser considerado um vencedor é ganhar muito dinheiro. O que é uma interpretação muito limitada e alienadora da existência humana.

É fato que boa parte da atividade médica ser denominada pela tecnologia, aplicação de

conhecimento científico e sua sujeição as fabricantes e comerciantes desses recursos.

Mas, muito do que se pratica no dia a dia do exercício da Medicina resulta de saber

adquirido de forma empírico-espontânea pela observação assistemática, sem que se

lhe possa reconhecer qualquer base científica. Resulta de aprendizado que teria

surgido como produto da intuição, resultado da inspiração de um momento ou da

observação mais ou menos casual e, nem por isto, deixa de ser útil, quando a ciência

não responde à necessidade de um paciente. Contudo, desde que se consiga obter

solução cientificamente verificada que substitua aquela, essa substituição deve ser

realizada. Não há justificativa para o emprego médico de técnica não comprovada se

houver outra, devidamente verificada que a substitua.

Há muito se sabe que o resultado de muitos dos procedimentos profissionais médicos

dependem muito mais da qualidade da relação inter-humana médico-paciente do que

da atividade comprovada do remédio usado. Mas não se deve ignorar a importância

crescente de seu componente científico na prática da Medicina. Desde o

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Renascimento, considera-se que seus procedimentos devem estar fundamentados

cientificamente. Senão sempre, porque as ciências não dão resposta para todos os

problemas dos enfermos, mas ao menos sempre que isto for possível. Não obstante,

em todo mundo, existe uma clara consciência de que o médico não deve usar um

procedimento profissional destituído de comprovação científica quando houver uma

medida cientificamente comprovada que possa substituí-lo por maior que seja o desejo

do doente usá-lo.

Paralelamente ao processo de cientificidade, ao longo do tempo a atividade médica

incorpora cada vez mais informações científicas e com elas fundamenta cada vez mais

seus procedimentos técnicos. Assim consolida-se como profissão (que vem a ser uma

prática socioeconômica e cultural socialmente prestigiada porque considerada como

ética, útil e científica). A despeito de ser uma profissão especial e, talvez, por causa

disto, a Medicina necessita conservar as exigências socioculturais, socioeconômicas e

científicas básicas.

Um pouco além, mostrar-se-á a diferença entre uma profissão e uma ocupação.

Adiante, também se há de verificar que as exigências de cientificidade e de eticidade

diferenciam essencialmente as profissões das demais ocupações, sem abandonar sua

dimensão humana, principalmente no que respeita à ética da relação médico-paciente

(interação humana entre quem sofre com uma enfermidade com quem pode ajudá-lo).

Nunca houve controvérsia com relação a essa múltipla identidade da Medicina como

atividade humana ética, técnica e econômica embora isto seja objeto de muitas super-

simplificações indevidas como os reducionismos, perniciosos pois tentam super-

simplificar uma realidade extremamente complexa.

Entretanto, na assistência médica a ética deve preponderar sempre, mais que em

qualquer outra profissão, por conta de sua responsabilidade.

Denomina-se redução ao procedimento metodológico de reduzir uma totalidade complexa a um de seus elementos capaz de representar a totalidade. O reducionismo consiste na absolutização ou no abuso da redução.

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Neste sentido, talvez como expressão de ideologias cientificistas, corporativistas e

anticientíficas, há quem lhes negue o caráter de arte ou, ao contrário, travesti-la como

exclusiva construção e aplicação da ciência, ou seja, de pura tecnologia). A revolução

científica e técnica que caracteriza nossos dias trouxe inusitado prestígio para a

ciência, para os cientistas e para tudo que for científico. Este terá sido, talvez, mais um

motivo para o desejo de hipertrofia da dimensão científica da Medicina contemporânea.

Um dos resultados (ou motivos) desta deformidade reducionista terá sido a excessiva

tecnificação da atividade médica e um certo comprometimento da qualidade da relação

médico-paciente como interação humana como resultado das distorções da sociedade

global.

O preço de conquistar uma atividade médica assentada na ciência e na técnica, que

resulta da produção de conhecimentos médicos cada vez mais cientificamente

elaborados, não pode ser o abandono da relação médico-paciente em seu pilar ético,

pois esta é uma característica essencial da Medicina. Um médico não precisa escolher

entre a dimensão humana e a técnico-científica, deve sintetizá-las. Da mesma maneira

que não se deve tentar escolher entre a pessoa e o cientista no processo formativo do

profissional. Há que se preferir uma síntese de ambos. Por causa disto, o que deve

caracterizar essencialmente o paciente para o médico, não deve ser sua representação

do papel de cidadão, de usuário de serviço, ou de cliente do profissional, mas sua

condição de enfermo, de pessoa enferma. Analogamente, o preço de se libertar de

uma psiquiatria descerebrada pode ser cair numa psiquiatria sem atividade mental

superior. Quando estes dois antípodas, absolutamente são suficientes para abarcar

toda sua extensão e complexidade, nem seja preciso escolher entre estes dois

extremos.

A atividade mental superior refere os últimos traços da evolução: a afetividade superior (os sentimentos), a volição superior (a técnica) e a sociabilidade.

O conhecimento é característica essencial e importante necessidade humana. Os

homens aprenderam, desde muito cedo, que têm mais possibilidades de sobreviver e

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desfrutar melhor qualidade de vida se conhecerem mais sobre si mesmo e sobre as

coisas que os cercam e das quais dependem. Ser capaz de prever alguns

acontecimentos pode ser uma garantia de superioridade na luta pela vida. Explicar as

coisas, sejam objetos, fenômenos ou processos da natureza, da sociedade ou do

homem mesmo, pode ser uma grande vantagem nos processos de adaptação. O

conhecimento é necessidade humana que garante sobrevivência, adaptação e

qualidade da vida. Muito cedo, os humanos descobriram que isto tem a ver com a

produção de recursos materiais. Primeiro, de bens de consumo direto (alimentos,

sobretudo), depois de outros bens e, finalmente, de serviços. A atividade científica tem

se mostrado como valioso instrumento para produzir conhecimentos confiáveis e

válidos e, com isso, contribuir para atender muitas necessidades humanas.

Esta foi a matriz cognitiva do que aconteceu no terreno da Medicina. Quando os seres

humanos descobriram que a dor, o sofrimento, as perturbações funcionais e as mortes

não tinham todos uma mesma origem ou um mesmo mecanismo, nem respondiam a

um mesmo remédio. Isto os levou a abandonar as crenças sobrenaturais buscar

conhecimentos sobre as causas e os mecanismos das enfermidades e incapacidades e

a procurar descobrir os remédios úteis para seus infortúnios, relacionando-os com suas

moléstias. Contudo, independente de sua utilidade prática, o conhecimento também

existe como uma necessidade subjetiva originada na curiosidade, uma carência

determinada psicossocialmente que impele os seres humanos em sua direção.

Para isto, alguns membros das sociedades primitivas foram se especializando neste

mister. Com a realização das primeiras atividades médicas, surgiram os médicos e

apareceu a Medicina, num processo denominado divisão do trabalho social. O cuidado

com os enfermos e feridos ultrapassa oa limites da necessidade individual e passam a

existir como necessidade social.

No mundo antigo, o termo Arte detinha sentido bastante mais amplo do que aquele

que tem hoje. Por aquela época, ainda se denominava arte à atividade humana que se

desenvolvesse como um tipo de habilidade dependente apenas de planejamento

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teórico e exercício (a tekne dos gregos) ainda que muito influenciada por um pendor

natural e dependente do conhecimento que a fundamentasse. Neste sentido, arte

também pode ser o conhecimento adquirido pela prática refletida e vivenciada

sistematicamente, a habilidade acientífica e o saber-fazer adquirido e aperfeiçoado pelo

exercício repetido e pensado. A arte do artífice, que os gregos chamaram teknê. Essa

técnica, na medida em que se transformou em aplicação do conhecimento científico,

adquiriu nova identidade qualitativamente nova, a tecnologia.

A relação médico-paciente encarna esta dimensão de Arte da prática da Medicina. A

arte do mestre artesão ou do artífice, como diz atualmente. Tal como as antes

denominadas as artes úteis e artes mecânicas (hoje chamadas ofícios) em

contraposição às artes do espírito, artes intelectuais (como a Medicina, atualmente

denominadas profissões) e que se diferenciavam das belas artes (música, artes

plásticas). O que nos leva a distinguir a arte do artista, da arte do artesão, da arte do

artíficr, da arte do arteiro.

Deve-se ter cuidado em diferenciar cada uma destas diferentes áreas das Artes para não se fazer confusão. Até o Renascimento, ao menos de certa maneira, as Artes se contrapunham às ciências, que, naquele momento, já eram tidas como conhecimentos obtidos com a maior fidedignidade e validade possíveis em cada estágio da cultura (confundindo-se com os conhecimentos científicos, como se vê logo adiante), mas que se reduzia à elaboração mental. Depois, as artes e as ciências tornaram-se cada vez mais distantes. A exceção foi a arte médica que cada vez mais se aproximou da ciência, na medida em que a ciência incorporou o método experimental, a práxis científica por excelência.

Na cultura latina atual, muitos adversários da Medicina (sejam adeptos da anticiência,

competidores profissionais ou quaisquer outros contrapostos a ela) se empenham em

negar-lhe qualquer caráter científico; para eles, a Medicina seria só Arte (do artista ou

do artífice). Mesmo no interior da Medicina, muitos dos médicos mais dogmáticos e

cientificistas insistem em negar sua dimensão de Arte e afirmam-na como uma prática

unicamente científica; uma atividade exclusivamente técnica (ideologia que se encontra

na base do processo de tecnificação da Medicina. Ambos incorrem em erro por paixão;

a Medicina é, simultaneamente, arte e ciência, técnica e ética; embora, com o passar

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do tempo, talvez seja cada vez mais ciência e menos arte, mais técnica que encontro

humano moral e de ajuda. Mas essa é uma deformidade a ser corrigida. Não obstante,

a Medicina jamais deixará de ser a ciência do diagnóstico, a arte da ajuda ética e a

técnica da terapêutica. Uma das consequências desta triplicidade da essência da

Medicina é a necessária existência de três tipos de entidades para representar a

categoria, cada uma delas dirigida especialmente para uma destas dimensões. Em

primeiro lugar, as. associações médicas com propósitos científicos e voltadas para o

desenvolvimento técnico; os sindicatos médicos, entidades corporativas de defesa dos

médicos (sobretudo assalariados); e os conselhos regionais e federal, agências da

sociedade para normatizar e fiscalizar o exercício profissional.

Ciência e Conhecimento Médico

Todos os que se preparam para desempenhar atividades científicas, não apenas na

Medicina ou na área das atividades técnicas e científicas da de saúde, mas em

qualquer outro trabalho social que deva ser cientificamente embasado, devem se

preocupar em conhecer a situação de suas profissões como atividades científicas, a

dimensão técnica e científica de sua profissões. Isto é, os médicos necessitam

conhecer seu status ante a ciência e o grau de cientificidade contida no estudo de seu

objeto.

Por causa dessa necessidade, devem preocupar-se em determinar o grau de

cientificidade de suas atividades profissionais e de seus conhecimentos técnicos.

Precisam, por exemplo, ser capazes de avaliar uma publicação do ponto de vista

científico e reconhecer o grau de cientificidade de uma comunicação técnica,

independentemente de sua origem, porque não basta que um trabalho seja publicado

por um cientista renomado ou por um centro científico importante para ser científico.

Isto porque, fração importante da autoridade social de uma prática profissional decorre

de sua cientificidade e de sua ética.

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A história registrada mostra que a Medicina terá sido uma das primeiras sementes e

sementeiras da ciência desde sua origem perdida no passado remoto. Desde o

alvorecer da civilização, foi uma das primeiras atividades científicas 1cultivadas pelo

homem, ainda na Mesopotâmia e no velho Egito, bem antes de surgir a Medicina

grega leiga, quando a prática médica ainda era considerada mais uma função mágico-

sobrenatural, exercida por xamãs, feiticeiros e, depois, pelos sacerdotes. Por volta do

século V a.C., surgiu na Grécia como atividade leiga e foi denominada Medicina

Racional para se diferenciar do curandeirismo, da feitiçaria e outras superstições então

vigentes (reunidas sob a designação de Medicina Religiosa ou Medicina Supersticiosa).

Ainda na Antiguidade, nessa época alvorecer do conhecimento superior, apareceu a

chamada filosofia natural porque filosofava sobre os objetos e acontecimentos da

natureza. Conhecimento que hoje, com a evolução, alberga as atuais ciências naturais,

a história da Medicina se confunde com a história da atividade denominada ciência e

do desenvolvimento científico, sem que tenha deixado de ser uma atividade sócio-

econômica, uma ocupação mais destacada que as demais no mercado de trabalho e

uma atividade social que exigia mais controle ético que as demais.

Mais tarde, a filosofia social originou as ciências sociais que se associaram às ciências humanas e formaram uma grande área da ciência..

Durante séculos a Medicina foi considerada uma ciência específica, uma ciência

chamada Medicina (que se referia ao que hoje se denomina Medicina Clínica ou Clínica

Medica. Contudo, seu objeto se ampliou de tal maneira, seu conhecimento se

avolumou tanto, multiplicaram-se tanto suas técnicas que foi necessário subdividi-la em

diversas ciências: as ciências médicas (como a anatomia macroscópica, microscópica

e imaginológica; a bioquímica, a imunologia, a parasitologia, a fisiologia, a farmacologia

e outras).

1 FAndery, M.A. et alli, Para Compreender a Ciência, Ed. Espaço e Tempo/EDUC, Rio, 1988, pp. 34 e seguintes

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Além disto o estudo da Medicina fez surgir muitas outras disciplina correlatas em outras

áreas do conhecimento (economia médica, sociologia médica, estatística médica,

geografia médica, antropologia médica, psicologia médica e muitas outras).

A cirurgia, um ofício técnico, foi incorporada à Medicina depois do reconhecimento

científico de suas práticas, mas principalmente, depois do aparecimento da anestesia

A Medicina é a mais antiga das atividades científicas e sociais sanitárias e porque dela ou através dela, se originaram todas ou quase todas as outras disciplinas e profissões da saúde que lhe são limítrofes ou correlatas. Por isto, importa conhecer a estreita ligação que existe entre a filosofia do conhecimento e a ciência, especialmente o status científico das ciências médicas, enquanto aplicações do conhecimento científico na Medicina. Neste estudo, objetiva-se principalmente aos estudantes que se iniciam no estudo da ciência; sobretudo, no estudo das ciências da saúde, procurando fazer ver o conhecimento médico como um tipo especial de conhecimento científico, além de uma atividade humana baseada na experiência como base do desenvolvimento cognitivos e social.

Desde seu aparecimento na cultura ocidental, na Grécia Clássica, a Medicina

hipocrática já era conhecida e reconhecida como Medicina racional. Racional com o

mesmo significado que naquela é[oca se poderia adjetivar como científica. Racional

(atualmente científica) para se diferenciar do tratamento religioso e da atividade

curativa praticada pelos curandeiros e sacerdotes; desde esta época tinha um duplo

status de ciência e de uma ocupação especial que redundava em um status

privilegiado com algumas regalias como modalidade especial de trabalho social. Desde

a mesma época, se lhe atribui a identidade de técnica (que os romanos chamaram de

ars = arte).

Neste sentido mais restrito, com que os dois termos são muito empregados, não é possível identificar qualquer diferença entre técnica (de teknê, o termo grego) de arte (de ars, expressão latina). Só muito mais tarde as artes se identificaram tais como a belas artes atuais (um ramo especial do grupo principal) e as artes úteis, que passaram a ser chamadas ofícios ao mesmo tempo que as artes liberais, que eram consideradas superiores, porque mais intelectualizadas, passaram a ser chamadas profissões. Processo que reforçou a diferenciação e a hierarquização de valor do trabalho manual e do trabalho

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intelectual, que se originara da Antiguidade e se reforçara muito na Idade Média..

O conhecimento médico reúne as informações (descritivas e explicativas) sobre as

enfermidades, seus procedimentos diagnosticadores, terapêuticos e reabilitadores dos

enfermos. Estes conhecimentos podem se referir a fenômenos naturais (que existem

na natureza de maneira independente da vontade de alguém) ou podem se referir a

conceitos elaborados por alguém, mas sempre se incorporam à consciência como

conteúdos subjetivos, com acontece com os fenômenos histórico-sociais estudados

nas ciências humanas e sociais.

Historicamente, a Medicina pode ser considerada como anterior aos médicos. Muito

antes de existirem médicos, eram os xamãs, os feiticeiros, os sacerdotes e outros

curandeiros, haveria quem cuidasse dos doentes e tentasse restabelecer sua saúde.

Nesses casos, podiam ser chamados médicos, mais ou menos metaforicamente. Com

relação a isto, há uma curiosidade que merece ser divulgada: sabe-se que alguns

povos antigos não tinham médicos, mas todas as culturas de todas as sociedades

sempre tiveram algum tipo de Medicina. Nas épocas mais primitivas, quando não havia

médicos, como aconteceu na Babilônia, ou quando algum outro agente social a

praticava (os sacerdotes, por exemplo) ou quando todos da comunidade assumiam o

tratamento dos enfermos, muitas vezes em cerimônias públicas (foram as primeira

assembléias terapêuticas), isto aconteceu ali até que os feiticeiros, xamãs ou

sacerdotes e, mais tarde os médicos leigos, incluíssem o cuidado com os doentes e o

tratamento das doenças em suas responsabilidades.

Depois do momento mais primitivo das culturas, quando não havia divisão social do trabalho, em que a Medicina e as demais atividades sociais eram realizadas por todos, reconheceu-se a necessidade de alguns serem especificamente preparados para serem feiticeiros e que, ademais, a atividade exigia algumas aptidões especiais.

Desde a Grécia antiga, durante muitos séculos, a Medicina existiu reconhecida

socialmente como ciência e arte que atendia aos requisitos para ser considerada assim

(ciência aplicada, dizia-se, então) e, à época, era de fato uma ciência específica,

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porquanto satisfazia as exigências conceituais que existiam para caracterizar a ciência

e a atividade científica, tanto com o sentido de investigação metodicamente praticada e

corpo sistematizado de conhecimentos científicos. Seu caráter científico e seu

significado social garantiu à Medicina um status socialmente privilegiado desde muito

cedo em sua história e ao longo de toda história da cultura, embora sua situação

econômica sempre fosse mediana. O que se deu com algumas exceções, casos em

que os médicos, por conta de seu eventual despreparo mostraram que não estavam à

altura das prerrogativas que lhes eram concedidas pela sociedade ou, ao contrario,

parecessem muito melhores que a média e fossem recompensados por isso. Situação

na qual, a recuperação do prestígio da profissão há de depender de um esforço

coletivo do maior número possível dos médicos. Além da estruturação de um sistema

de vigilância do exercício profissional que lhe assegure a necessária garantia de

qualidade que o estágio atual da civilização exige.

A dimensão técnico-científica da Medicina tem sido o fundamento essencial de sua prática e justificativa de seu prestígio social. Por isto, se justifica a exigência de que o médico, ainda que não seja um cientista, no sentido de produtor de conhecimento científico, não se limite a ser um aplicador cego de tecnologia a serviço de seus fabricantes.

Desde o século dezenove o volume de informações daquilo que até então se chamava

ciência médica foi ficando grande demais (tanto nos aspectos teóricos quanto prático-

metodológicos), para ser contida em uma única disciplina científica, principalmente

porque seu objeto se elastecia e se multiplicavam os recursos metodológicos de que

carecia para realizar sua missão de diagnosticar as enfermidades e tratar os enfermos.

Com isto, o prestígio social da Medicina e dos médicos se ampliou a um ponto nunca

antes visto na história.

A ampliação dos conhecimentos sobre o objeto e os métodos de estudo da Medicina

obrigou sua fragmentação como instrumento de estudo. Com o passar do tempo, ao

menos em grande parte, porque seu patrimônio teórico foi multiplicado e porque mudou

o conceito de atividade científica, a Medicina-ciência deu origem a diversas ciências

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que resultaram de seu corpo de conhecimentos (que, por isto mesmo, são chamadas

ciências médicas), como por exemplo, a anatomia, a bioquímica, a imunologia, a

fisiologia, a farmacologia e outras). Além de gerar muitas ciências que findaram por se

desprender do berço comum e passaram a ser reconhecidas individualmente como

ciências específicas autônomas, a ampliação do âmbito da Medicina também influiu no

aparecimento de outras disciplinas científicas em diversas áreas do conhecimento não

médico (como, por exemplo, a sociologia, a física médica, a demografia médica, a

antropologia).

As ciências médicas mais essenciais podem ser divididas em dois grupos: as básicas e

as clínicas. As ciências médicas básicas são a biologia médica; a anatomia humana

(incluído a anatomia microscópica e a imaginologia); a fisiologia humana; os diversos

ramos da farmacologia e a patologia geral (incluindo a ontologia médica, a etiologia

médica geral, a fisiopatologia (que inclui a psicopatologia, e a patogenia médica geral).

As ciências médicas clínicas são aquelas que correspondem às grandes

especialidades médicas: a clínica médica, a clínica cirúrgica, a clínica da mulher, clínica

da infância e adolescência. As ciências paramédicas são: a estatística e a metodologia

médicas, a medicina psicológica (ou psicologia médica) e a medicina social, a ética

médica, a história da medicina, a administração sanitária. Por todas estas razões, não

se pode, nem se deve, confundir cada um de seus elementos constituintes quando se

reflete sobre a identidade complexa da Medicina: suas incontáveis possibilidades como

aplicação científica, com as disciplinas científicas (mesmo quando se tratar das

ciências médicas, nem com outras disciplinas científicas que dão sustentação científica

à Medicina), porque esta confusão pode ser danosa como se pretende deixar claro ao

longo deste e dos próximos capítulos. Depois dessa imensa fragmentação de seu

objeto, a Medicina já não pode ser considerada como uma ciência autônoma, ainda

que não possa nem deva deixar de ser identificada como uma atividade

predominantemente científica, uma aplicação técnica e uma prática profissional

essencialmente voltada para curar doentes ou diminuir-lhes o sofrimento com apoio no

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conhecimento científico. Tudo isto ao mesmo tempo. Mas já não é uma ciência

específica, embora o tenha sido durante muito tempo e jamais tenha perdido seu

compromisso com a cientificidade.

Embora a pratica médica seja basicamente científica e disto decorre sua autoridade e

prestígio sociais, nem todos os procedimentos médicos podem ser assim reconhecidos.

Porque, como não se conhece explicação científica para todas as necessidades

profissionais dos médicos, nem todo ato médico tem comprovação científica verificada

e reconhecida. Ademais, todo o conhecimento científico médico tornou-se muito grande

para caber em uma única ciência. O que constituía a ciência médica do passado,

atualmente se descreve como ciências médicas e ciências paramédicas.

Ainda hoje, há quem advogue a volta da condição de ciência específica para a

Medicina (e não, apenas, uma atividade técnica fundamentada cientificamente, pois

que este é seu status científico atual). Reação que talvez seja devida à importância

social que a ciência adquiriu nos últimos séculos e à dificuldade que, principalmente

por desinformação, o sentimento do receio da perda do status científico acarreta

quando essa questão é mencionada de passagem, sem maior explicação, podendo ser

considerada como se fora um rebaixamento, uma desqualificação.

Deve-se insistir que o conceito de ciência evolui cada vez mais aceleradamente desde o Renascimento, quando reassumiu a posição que mantivera na Antiguidade Clássica. Não obstante, deve-se ter presente que esta evolução dirige-se principalmente para dois objetivos: a fidedignidade e a validade das suas proposições. Ao mesmo tempo que se afasta progressivamente do senso comum, representado especialmente pela superstição e pela magia.

Convém insistir que este processo evolutivo, não fez com que a Medicina tenha

deixado de ser ciência, com o sentido de ser científica. Só que não pode mais ser

considerada como uma única ciência que incluísse todos os seus assuntos. Uma

disciplina cientifica chamada Medicina. Pois, esta nova perspectiva não deixa de

considerar tudo o que havia e há de científico na Medicina. Tudo o que era científico na

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Medicina Antiga continua a sê-lo sob outras designações e muito mais ampla e

profunda, confiável e válida.

O ramo da ciência médica depois chamada “matéria médica” hoje é uma ciência específica, a farmacologia. Porque, se a Medicina deixou de ser uma ciência específica, por causa da amplitude de seu objeto e da imensidão de sua metodologia, sua prática não deixou de ser basicamente científica.

Entretanto, ainda hoje, nem todos os procedimentos médicos são científicos, (precisam sê-lo.) Pois as ciências ainda não deram respostas a todas as indagações postas pelas necessidades dos enfermos ou das necessidades sanitárias.

Com relação a este tema, também assume relevo a imprecisão do conceito de ciência

por conta de sua evolução acelerada, e da grande influência ideológica existente na

transição que se vive hoje, o chamado momento da Revolução Técnico-Científica, que

tem determinado vasta e profunda alteração, não apenas no conceito de ciência e de

tecnologia, mas nos paradigmas científicos vigentes em nossa sociedade. Acrescente-

se o progressivo prestígio que a ciência assumiu neste último século. Mas, não é

possível esquecer que as ciências e cada uma delas detêm diferentes níveis de

eficiência e que o prestígio científico não é uniforme para todas elas, não alcança a

atividade científica como uma totalidade. Algumas ciências são mais reputadas que

outras. Mesmo no interior de cada ciência especificamente, nem todas as informações

detêm o mesmo grau de verossimilitude, a mesma confiabilidade ou a mesma validade

(como se há de verificar adiante, neste trabalho). Além disto, adiante também se há de

verificar que, tanto por causa da influência positivista 2 quanto por causa do avanço

relativamente maior das ciências da natureza, a sociedade moderna supervaloriza os

procedimentos das ciências naturais sobre os recursos cognitivos das ciências sociais

e humanas.

Ora, como a Medicina é uma atividade simultaneamente natural, social e humana

(exigência da complexidade de seu objeto) e como os recursos de investigação destas

2 O positivismo é a escola filosófica que pretende que as ciências empíricas sejam as únicas fontes de conhecimento confiável (isto é, científico). Tendem a recusar a explicação como objetivo da ciência e superestimam a descrição como metodologia de investigação.

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três áreas de conhecimento são díspares, esta disparidade ocasiona muitas

perplexidades principalmente na psicopatologia e na psiquiatria. Por causa de tudo isto

convém que se diferenciem os aspectos técnico-científicos dos sócio-econômicos na

identidade da Medicina, ao menos com a finalidade de promover seu estudo.

Este trabalho pretende contribuir para o conhecimento das bases do conhecimento

científico em Medicina através de uma breve revisão da gnosiologia científica (ou

epistemologia) enfocando especificamente a construção e a estrutura dos

conhecimento médicos. Se aqui não se cuida de metodologia científica aplicada à

Medicina, não é por subestimá-la, mas porquê existem muitos textos de muito boa

qualidade que tratam do assunto. Mas a tanto chegou a identificação entre ciência e

metodologia que muitos as confundem. Não obstante, o autor está convencido de que

o estudo da metodologia científica separado dos conhecimentos de filosofia da ciência

são uma das fontes dos descaminhos que acontecem na produção científica

contemporânea.

Ciência, Profissão e Especialidades Profissionais

Ciência, profissão e especialidade profissional constituem realidades diversas e isto

deve ser entendido. No presente torna-se cada vez mais preciso diferenciar as

disciplinas científicas da Medicina, sobretudo as chamadas ciências médicas, das

especialidades da Medicina porque são duas realidades qualitativamente diversas,

além de constituírem dois conceitos essencialmente diferentes, ainda que possam ser

confundidos quando apreciados desatentamente, até por quem não deveria cometer

este erro.

As disciplinas científicas são atividades cognitivas, as especialidades profissionais são

ramos das profissões. E, se tal diferença não parece importante para os leigos, é

bastante valiosa para os cientistas e para os profissionais. Ao menos para os médicos.

Muitas vezes, as duas atividades sociais (a especialidade profissional e o procedimento

da ciência) têm idênticas designações, como acontece com a pneumologia, v.g., que

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pode ser encarada como uma atividade científica que sintetiza a fisiologia e a

fisiopatologia pulmonar, mas pode ser também uma especialidade médica que, a partir

do estudo da fisiologia e das patologias respiratórias, diagnostica as pneumopatias e

trata de quem padece dessas afecções. Noutras vezes, a especialidade profissional e

sua atividade científica de maior apoio recebem designações diferentes, como

acontece com a anatomia radiológica (atividade científica) e a radiologia (especialidade

médica), a psicopatologia (ciência) e a psiquiatria (profissão).

A Medicina, tanto quanto qualquer outra ocupação ou atividade laboral permanente ou

mais ou menos estável que desfrute privilégios sociais e jurídicos, merecendo a

designação de profissão, tem o seus principais suportes sociais em sua fundamentação

científica, seu compromisso ético, em sua utilidade coletiva e no controle permanente a

que é submetida desde a formação técnica. A utilidade consequente à cientificidade

deveriam ser a maior justificativa social de uma profissão. No momento presente, não

se deveriam instituir profissões, ao menos na área da saúde, sem fundamentação

científica, sem compromisso ético e sem valor social que, por isto, permanecem

sujeitas a controle social rigoroso de suas atividades. Por causa disto, não é possível

ignorar ou minimizar a importância da formação científica de um profissional de saúde.

Para o Conselho Federal de Medicina (em deliberação de 26-10-1994) a especialidade médica representa um ramo de Medicina que reúne especialistas e que é de reconhecida validade científica com os objetivos de permitir troca de conhecimentos e sua divulgação, colaborar no ensino médico e na orientação profissional. O mesmo documento define um médico especialista como o profissional da medicina que dedica sua prática médica às doenças de um órgão ou de um ou vários sistemas orgânicos afins, com conhecimento de etiopatogenia, fisiopatologia, diagnóstico, tratamento e prevenção específica que lhe confere condições para uma atuação completa em relação à assistência ao indivíduo. (Sendo bem possível que estas definições possam ser bastante melhoradas).

Não é possível, por exemplo, que um médico se conforme com ser um mero aplicador de tecnologia cuja produção e avaliação crítica estejam fora de suas possibilidades. Como também se deve situar melhor a especialidade como atividade predominantemente socioeconômica, uma atividade do mercado de produção, compra e venda de serviços.

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Profissão Médica

A Medicina-trabalho e a Medicina-ciência tiveram as mesmas origem trajetórias

delineadas na história da sociedade humana de duas maneiras diferentes. A Medicina-

trabalho se transformou de atividade mágica de feiticeiros e xamãs, em atividade

sacerdotal e, depois, em uma atividade ocupacional privilegiada, uma profissão (ars, em

latim e technê, em grego). Enquanto a Medicina ciência, surgida do que antes se

chamava filosofia da natureza, foi decomposta nas ciências médicas e em muitas

paramédicas.

Mas estas não são senão dimensões inseparáveis de uma mesma totalidade: a

atividade social e a aplicação científica responsáveis que sempre assinalaram a

Medicina e conformaram sua estrutura. Embora, atualmente, quando se menciona

Medicina, a referência deve ser à profissão porque, desde há muito, já não existe uma

disciplina científica com este nome.

É preciso entender os traços distintivos de uma profissão. Uma profissão é uma

modalidade particular de ocupação (uma modalidade especial de trabalho social

remunerado, uma atividade do mercado, um trabalho assalariado ou autônomo, com o

qual se ganha dinheiro produzindo algum bem ou serviço de forma mais ou menos

constante e regular, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, OIT).

As profissões são ocupações diferenciadas e que se distinguem das demais ocupações

no mercado de trabalho pelos seguintes traços essenciais: relevo social reconhecido

pela cultura, preparação superior ou reconhecida como tal, aferida no sistema formal

de credenciamento oficial, regulamentação legal para o ingresso e exercício de

prerrogativas laborais exclusivas, subordinação dos seus agentes a um código ético-

moral rigoroso e a um sistema de vigilância que proteja a clientela da atividade abusiva

de seu praticante por causa de sua nítida superioridade na relação social.

A respeitabilidade social das profissões (responsável pelos privilégios que desfrute, eventualmente, no mercado de trabalho, inclusive na remuneração) depende basicamente do reconhecimento público de sua fundamentação

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científica e do preparo técnico que seus profissionais demonstrarem. Se a consciência social não valorizar a figura e o trabalho do médico, sua posição social, a consideração que lhe for dedicada e sua remuneração serão baixas. Entretanto, parcela importante do prestígio social dos médicos há de decorrer da imagem que conseguirem projetar na consciência social. Importância que tende a diminuir por conta de dois fatores importantes: a tendência do capitalismo de transfomar os artífices em operários e a tendência antimédica de muitos agentes da Medicina.

Como parte de sua dimensão econômica, a Medicina e psiquiatria são atividades do

mercado de produção, compra e venda de bens e serviços de saúde e este caráter lhes

impõem algumas de suas características. Acima já se mostrou porque, atualmente, não

devem ser consideradas unicamente como disciplinas ou, mesmo, atividades

exclusivamente científicas, embora, como todas as atividades sociais reconhecidas

como profissões, tenham sido edificadas sobre diversas ciências que lhes garantem

conteúdo de cientificidade suficiente para lhes assegurar a posição que desfrutam

como atividades sociais necessárias e responsáveis como devem ser (e se espera que

sejam) o desempenho das prerrogativas nas atividades de todas as profissões.

Toda atividade profissional deve ter seus próprios direitos, prerrogativas e deveres

definidos na legislação que a instituiu. O que não ocorreu o Brasil por um erro do

legislativo.

Direitos e Prerrogativas Profissionais

Direito, com o sentido que detém aqui, é a faculdade legal de praticar ou deixar de

praticar um ato, a possibilidade jurídica de fazer ou não fazer alguma coisa. Segundo o

consenso moderno, os direitos devem ser sempre instituídos e assegurados pela lei,

embora sua conquista geralmente envolva uma luta política e ideológica.

No mundo inteiro se reconhece aos profissionais (agentes de uma profissão) o direito

exclusivo de exercer determinados procedimentos. Prerrogativa é o direito exclusivo a

praticar ou deixar praticar uma atividade, sempre relacionado com um determinado

estatuto social. Uma profissão se caracteriza por seu objeto, pelos recursos que

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emprega, pelas obrigações legalmente impostas a seus praticantes e pelos direitos e

prerrogativas que são assegurados pela lei aos seus agentes. Uma exigência da

estrutura de todos os sistemas sociais é que haja uma necessária contrapartida mais

ou menos equilibrada entre os direitos (inclusive as prerrogativas) e os deveres

individuais e sociais. Em qualquer atividade social, a todo direito, deve corresponder

um dever, a cada responsabilidade privativa um prerrogativa e vice-versa. A

reciprocidade entre os direitos e os deveres é um dos elementos mais importantes do

senso de justiça presente na civilização. Não há sistema social que possa subsistir sem

um mínimo de justiça, entendida à luz dos valores culturais de seus componentes. E a

justiça consiste principalmente na capacidade de estabelecer e garantir o equilíbrio

entre direitos e deveres dos cidadãos (capacidade de assegurar direitos e constranger

ao cumprimento dos deveres). As realidades material e social fornecem os necessários

alicerces que apóiam as instituições jurídicas de um sistema social que elaboram e

fiscalizam a produção de normas que configuram os deveres das pessoas e suas

obrigações para com os demais, correlacionando estes deveres com certas

prerrogativas denominadas direitos e prerrogativas.

A justiça é regra essencial da convivência civilizada que consiste em garantir a cada

pessoa, grupo ou associação no âmbito do Estado, aquilo a que tem direito; e de

estabelecer a necessária ponderação entre os direitos e deveres dos indivíduos e

coletividades frente à sociedade (representada pela massa do povo e pelo Estado) e

dos direitos e deveres das coletividades frente aos indivíduos, o que Maro Bunge

chama de agatonismo e considera o modelo ético mais adequado à sociedade

contemporânea. A justiça constitui um dos elementos mais importantes da civilização,

especialmente da democrática. Não existe justiça sem Estado nem Estado democrático

sem justiça. Na prática, a civilização e a democracia são processos sociais

caracterizados pela soberania da lei que deve obrigar a todos. A justiça se materializa

nas instituições do direito.

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Uma prerrogativa é um direito especial que se concede a alguém especificamente e

que excede o direito comum assegurado aos demais. Neste sentido, privilégio

profissional é o direito exclusivo assegurado pelo poder estatal que garante a um

profissional habilitado exercer privativamente uma determinada atividade ocupacional e

lhe garante a possibilidade de praticar os atos profissionais específicos daquela

atividade; sendo a sua prática por quem não estiver apto, capacitado, credenciado e

sujeito a fiscalização, considerada uma infração legal punível pela sociedade. Nas

sociedades modernas, os direitos e os privilégios, inclusive as prerrogativas

profissionais dependem e decorrem da formação científica que se reconhece em seus

agentes e que deve ter sido havida em estabelecimento legalmente instituído e

socialmente controlado; também depende da submissão de seus profissionais a um

código de ética, mandamento normativo que é exercido através de um sistema social

de controle do exercício da profissão.

Deve-se insistir que tais prerrogativas, como os direitos profissionais, devem sempre

ser instituídos e regulados por lei e não pela própria corporação a quem eles

interessam e que deles se beneficiam (o que seria legislar em causa própria, conduta

que repugna a consciência jurídica e social dos povos civilizados. Prerrogativas

profissionais dos médicos: monopólio ocupacional de suas atividades, isto é, o

exercício exclusivo daquela atividade social (a clínica) por pessoas habilitadas

especificamente; ser considerado perito com fé pública nas atividades sociais que lhes

estão reservadas (os atos médicos); desfrutar de comunicação privilegiada (que

decorre do dever do sigilo) e ter acesso à intimidade dos pacientes (seu corpo, seu

comportamento e sua subjetividade).

Por tradição muito antiga, ao menos no ocidente, considera-se como prerrogativas

profissionais dos médicos o exercício exclusivo dos chamados atos médicos

específicos (especificamente no que diz respeito ao diagnóstico e ao tratamento das

patologias) de forma legal e os atos médicos que compartilhe com profissionais de

outras categorias (muitas vezes nascidas da Medicina). Tudo isso porque, alguns atos

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ou procedimento profissionais especificamente médicos, conforme for o caso, podem

ser privativos dos médicos ou compartilhados com outros profissionais (cirurgiões

dentistas, enfermeiros, psicólogos), de acordo com o que determinar a legislação. Por

isto, quem não for graduado em medicina e não tiver registro profissional em Medicina

no conselho competente do lugar em pratica sua profissão, não pode exercê-la

legalmente, isto é, não pode praticar atos profissionais de médico, podendo ser punido

pelo delito de exercício ilegal da profissão médica, principalmente se o fizer clandestina

ou irregularmente.

A principal prerrogativa ou direito exclusivo aos atos médicos, condutas profissionais privativas dos profissionais da Medicina, se concretiza no direito de examinar (o livre acesso à intimidade física e mental do paciente), diagnosticar enfermidades ou doenças e no direito de prescrever com liberdade o regime e a terapêutica que lhe parecerem melhores para o paciente em suas circunstâncias.

A esta prerrogativa profissional básica, se acrescenta a fé do ofício (figura jurídico-administrativa pela qual as opiniões de um profissional sobre os temas específicos do objeto de sua atividade. No caso dos médicos as questões de saúde e doença, merecem fé pública e seu testemunho sobre matéria de sua competência deve ser considerado como de um perito); por isto, só um médico pode conceder licença para tratamento de saúde ou aposentadoria por invalidez, por exemplo porque as questões referentes à doença e aos doentes são seu objeto específico.

Outra prerrogativa profissional é a comunicação privilegiada ou sigilo profissional, pelo qual todo profissional tem, não apenas o direito, mas o dever de assegurar que não revelará aquilo que lhe foi comunicado em função de seu mister (que decorre da necessidade do médico manter uma comunicação privilegiada com seus pacientes em benefício dos melhores interesses de sua clientela).

O exercício da profissão médica, como uma modalidade de técnica e de produção de

serviços médicos, além de uma relação intersubjetiva particular, é desempenhado

seguindo-se mais ou menos as mesmas diretrizes em todo o mundo. Já o exercício

profissional da Medicina, enquanto atividade socioeconômica e jurídica (contratual),

pode sofrer algumas diferenças em países diferentes na dependência da diversidade

que pode ser verificada nas legislações dos países do mundo e de suas peculiaridades

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culturais. Mas em todos os casos, esta regra se fundamento de que são eles os

agentes profissionais melhor preparados para exercer suas tarefas com a

responsabilidade que a sociedade exige.

Contudo, todas estas legislações parecem ter em comum os seguintes elementos:

exigência de formação acadêmica controlada e subordinada às normas das agências

oficiais de instrução; registro nos organismos de fiscalização técnica do governo (as

secretarias estaduais de saúde, no caso brasileiro); um Código de Ética Médica e uma

instância de registro e controle ético do exercício profissional (o Conselho Federal de

Medicina e os Conselhos Regionais de Medicina, no Brasil; um Colégio Medico; e a

Ordem Médica ou instituição análoga em outros países).

Os direitos e os prerrogativas profissionais se completam nos deveres e nas

responsabilidades profissionais, devendo haver necessário equilíbrio entre estes dois

processos sociais intercomplementares.

Os dois pilares que fundamentam a Medicina e dão crédito aos médicos em suas

tarefas sociais são sua preparação na ciência e na ética de sua atividade. O que inclui

sua preparação na ontologia, epistemologia, metodologia, lógica e moral do

conhecimento médico.

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