direito e história - uma relação equivocada - por godoy
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Demonstra o qual equívoca é a relação entre história e Direito, citando alguns manuais de Direito, que tal qual apontado por Walter Benjamin em suas famosas teses sobre o conceito de história, dá um "salto de tigre" em direção ao passado e abate a presa, trazendo-a ao presente para legitimar seus modelos.Excelente texto.TRANSCRIPT
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DIREITO E HISTÓRIA: UMA RELAÇÃO EQUIVOCADA
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
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2003
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SUMÁRIO
1. DIREITO E HISTÓRIA ..........................................................................
2. DIREITO PROCESSUAL CIVIL .............................................................
3. DIREITO PENAL ...................................................................................
4. DIREITO CONSTITUCIONAL ................................................................
5. DIREITO DO TRABALHO .....................................................................
6. DIREITO PREVIDENCIÁRIO .................................................................
7. DIREITO TRIBUTÁRIO E CIÊNCIA DAS FINANÇAS ............................
8. DIREITO AMBIENTAL ...........................................................................
9. DIREITO CIVIL ......................................................................................
10. DIREITO COMERCIAL ........................................................................
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................
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1. DIREITO E HISTÓRIA
Direito e história vivem uma relação equivocada. A forma como se
escreve a história do direito presta-se mais a confirmar conclusões presentes do que
a investigar situações concretas pretéritas. A historiografia jurídica suscita reflexões
em torno das relações entre direito e história, entre relato e verdade. O presente
trabalho pretende afirmar que a história do direito pode ter sido utilizada como
argumento, adereço retórico, ornamento, descrevendo menos e criando mais1, qual
discurso legitimador, prenhe de conteúdo apologético2. À história do direito reserva-
se a triste tarefa de justificar e legitimar o direito atual3, função legitimadora4.
Disfarça-se todavia esse ônus empírico , alegando-se que a história do direito
oxigena a cultura geral do operador jurídico, que alarga horizontes, que fomenta a
compreensão do presente, que explicita a realidade ôntica da experiência jurídica,
que revela mistérios, que apresenta exemplos, que prevê tempos vindouros.
Trata-se de identificar a função da produção historiográfica, da
finalidade da história do direito. Concepções weberianas podem apontar justificativas
de dominação tradicional5; o direito fundamentar-se-ia no passado, como indicador
de validade6, premissa recorrente na formatação da tradição romanística. Sentir
1 António M. Hespanha, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia, p.18. 2 Idem. Ibidem. p.19. 3 Ricardo Marcelo Fonseca, Walter Benjamin, a Temporalidade e o Direito, in A Escola de Frankfurt
e o Direito, págs. 75-86. Trata-se de texto seminal para reflexões a propósito da historiografia jurídica, com importantíssima incursões em Walter Benjamin e em António M. Hespanha.
4 António M. Hespanha, Poder e Instituições no Antigo Regime, p.12. 5 Max Weber, Sociologia, p.131. 6 Harold J. Berman e Charles Reid Jr., Max Weber as Legal Historian, in The Cambridge
Companion to Max Weber, p. 226.
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mais hegeliano7 indica a razão realizando-se na história, configurando-se na
realidade8, a suscitar devir conivente com constitucionalismo escatológico da
perfeição institucional. Tradição marxista insiste que os homens fazem a própria
história9, fundamentada na luta de classes10, projetando-se a partir da dinâmica
econômica11. O iluminismo concebera historiografia identificadora do progresso12,
matizada em Voltaire, cunhador da filosofia da história, enquanto conceito13. A
tradição positivista decorrente premonira a história como ciência pura14, aquele
"como realmente aconteceu" (wie es eigentlich gewesen) , atribuído a Ranke15, alvo
da crítica de Walter Benjamin na Tese VI sobre a Filosofia da História16.
Já observou-se que a história pode ser ficção17, é o que nos lembra
Hayden White sobre Michelet, Tocqueville, Burckhardt, Nietzsche, entre outros18.
Tradição que remonta a Vico percebe monumental afresco da história que radica na
subjetividade do narrador19: cada época constrói a sua história dos romanos e dos
gregos, por mais que o positivismo pretenda esquematizar os fatos na
impessoalidade objetiva dos nexos causais20. É que só o próprio tempo escolhe uma
imagem determinada do passado21, subjetivismo radical, que exprime juízo de
valor22, desenhando imaginação histórica23, destinada à compreensão do presente24.
7 Michael Inwood, Dicionário Hegel, p. 160 e ss. 8 G.W.F. Hegel, Filosofia da História, p. 34. 9 Karl Marx, O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, p. 15. 10 Terence Ball, History: Critic and irony, in The Cambridge Companion to Karl Marx, p. 124 e ss. 11 Ernst Breisach, Historiography, p. 297 e ss. 12 Maria das Graças de Souza, Ilustração e História, p. 23. 13 Marcos Antônio Lopes, Voltaire Historiador. 14 Philippe Tétart, Pequena História dos Historiadores, p. 94. 15 Rogério Forastieri da Silva, História da Historiografia, p. 104. 16 Walter Benjamin, Illuminations, p. 255. 17 José Reinaldo de Lima Lopes, p.18. 18 Hayden White, Metahistory, the Historical Imagination in Nineteenth – Century Europe. 19 Giambattisco Vico, A Ciência Nova, p. 353 e ss. 20 Miguel Reale, Horizontes do Direito e da História, p. 16. 21 Adam Schaff, História e Verdade, p. 115. 22 Benedetto Croce, A História, p. 25.
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Utilitarismo apalpa a história do direito, pois (...) conhecimento é conhecimento para
algum fim (...) a validade do conhecimento depende da validade do propósito (...)25.
Trata-se de imaginar a objetividade de eunuco, a anunciar que o discurso histórico
não pode ser neutro26, mesmo porque tem estilo que o identifica27. A escrita da
história é multiforme, transitando da alteridade em Heródoto28 para a objetividade em
Tucídides29, pretensão de relatos mais contemporâneos30, indicador de novos
paradigmas, inclusive na literatura nacional31, com certa inspiração em marcos
epistemológicos da Escola dos Annales32.
Mas se a história parece um guarda-roupa onde todas as fantasias
são guardadas33, a história do direito lembra a caixa de Pandora de onde saem
modelos e institutos de mínima variação semântica, qualificadores de modelo
evolucionista, linear, progressista. As argumentações aqui apresentadas levantam
que se deve duvidar desse progresso, como já alertara Walter Benjamin na XIII Tese
sobre a Filosofia da História34. O filósofo da melancolia35 desconfiava da história que
se identifica com o vencedor, da concepção de progresso, da temporalidade, de uma
fixação eterna do passado. A história é construção da realidade presente, informada
23 R.G. Collingwood, The Idea of History, p. 231 e ss. 24 R.G. Collingwood, The Principles of History, p. 140 e ss. 25 Edward Hallet Carr, Que é História, p. 63. 26 Michael Löwy, Ideologias e Ciência Social, p. 71. 27 Peter Gay, O Estilo na História. 28 François Hertog, O Espelho de Heródoto, p. 97 e ss. 29 Jacqueline de Romilly, História e Razão em Tucídides, p. 157 e ss. 30 Georg G. Iggers, Historiography in the Twentieth Century, p. 134 e ss. 31 Antonio Carlos Wolkmer, História do Direito no Brasil, p. 11 e ss. 32 Conferir José Carlos Reis, Escola dos Annales; Carlos Antonio Aguirre Rojas, Os Annales e a
Historiografia Francesa; Fernand Braudel, Escritos sobre a História; Peter Burke, A Escrita da História; Marc Bloch, Introdução à História.
33 Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, p. 22. 34 Walter Benjamin, op.cit., loc.cit. 35 Conferir Leandro Konder, Walter Benjamin, o marxismo da melancolia; Pierre Missac, Passagem
de Walter Benjamin; Andrew Benjamin e Peter Osborne, A Filosofia de Walter Benjamin; Jeanne Marie Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin; David Held, Introduction to Critical
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por um salto de tigre que açambarca algo que faz o presente coincidir com a história
da humanidade. Pode-se duvidar da interpretação histórica convencional dos
juristas. Essa história oficial do direito, que toma o passado com uma neutralidade
muitas vezes enervante, afina-se com o discurso normativo positivista, também
pretensamente neutro, informando a ele, e sendo por ele reverenciada. A crítica a
concepções jurídicas positivistas enceta crítica ao historicismo, dada a afinidade
ideológica e interface conceitual.
A história do direito é representada como um fio condutor para
realidade normativa perfeita, acabada, realizada. Institutos, conceitos, imagens,
perspectivas e acontecimentos prestam-se a justificar a ordem contemporânea.
Reservada à parte introdutória dos textos de doutrina, de exegese, de dogmática, a
história protagoniza uma ante-sala experimental, indicativa panglossiana de que o
mundo caminha para o melhor dos mundos possíveis, concretizado nos excertos
legislativos de nossos tempos. Sob a falsa impressão de que dá tônica à
interpretação, de que alarga horizontes, de que densifica a argumentação, de que
enceta disciplina formativa, de que dá demãos de cultura, a história do direito segue
como segundo violino, sonorizando o triunfo de uma racionalidade instrumental que
não mais se justifica, e o caos da prática judiciária é disso prova incontestável.
Theory , p. 207 e ss.; Rolf Wiggershaus, The Frankfurt School, p. 191 e ss.; Martin Jay, The Dialectical Imagination, p. 204 e ss.; Marshall Bermann, Aventuras do Marxismo, p. 260 e ss.
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2. DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Manuais de direito processual civil podem ilustrar essas premissas,
que nos dão conta de que a história dos institutos jurídicos poderiam ser utilizadas,
como elementos retóricos de justificação do modelo procedimental contemporâneo.
Não há direta pretensão de crítica infundada dos autores de direito que seguem.
Apenas tem-se o objetivo de identificar (e nada mais) formas de utilização da
história do direito. A pesquisa secciona-se em dois grupos: primeiramente, são
aleatoriamente escolhidos manuais de processo civil (de uso nos cursos superiores)
e, depois, livros de história do processo civil, mais ao gosto de operadores com base
no processo.
Humberto Theodoro Júnior, Vicente Greco Ticho, Paulo Lúcio
Nogueira e Moacyr Amaral Santos incluíram escorços históricos em seus cursos e
manuais. Eliezer Rosa, Moacir Lobo da Costa e Edson Prata escreveram sobre a
história do processo. Um grupo de estudiosos de Minas Gerais, coordenado por
César Fiuza, publicou recente estudo sobre o direito processual na história.
Humberto Theodoro Júnior36 percebe o processo como dinâmica de
uma evolução. Reconhece o pouco que sabemos sobre o processo grego, observa o
modelo probatório indicado por Aristóteles. Categoriza o processo helênico a
propósito da oralidade e do princípio dispositivo. Vale-se de categorias
contemporâneas e, ainda a propósito do direito processual grego, anotou:
O mais importante, contudo, era o respeito à livre apreciação da
prova pelo julgador, que exercia uma crítica lógica e racional, sem se
36 Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, v.1, p.10 e ss.
7
ater a valorações legais prévias em torno de determinadas espécies
de prova”.37
O autor avançou para o direito romano, tripartindo a prática
processual romana: período primitivo, formulário e da cognitio extraordinária. O
primeiro deles (das legis actiones) que era excessivamente solene e obedecia a um
ritual em que se conjugaram palavras e gestos indispensáveis38. Identificou
advogados e vislumbrou princípios do livre convencimento do juiz, do contraditório
entre as partes. Por fim, a propósito da cognitio extraordinária, observou que foi
dessa fase que surgiram os germes do processo civil moderno39. Nominou de direito
comum às práticas resultantes de fusão entre os direitos romano, germânico
econômico40. Ao processo civil moderno imputou uma fase científica41. Inseriu o
processo brasileiro no Livro III das Ordenações Filipinas, localizando a importância
da forma escrita, segredo de justiça, princípio dispositivo, mecanismos de
movimentação dos feitos42. Reservou meia página ao Regulamento nº 737 (de
1850), que tem foros de primeiro código de processo nacional. Mencionou a
pulverização de códigos estaduais, por conta de permissivo da Constituição de
189143. O Código de 1939 (da comissão de Pedro Batista Martins, aprovado por
Francisco Campos) teria surgido como um código unitário, substituído pelo Código
Buzaid de 1973, até hoje vigente, com substanciais alterações.
37 Idem. Ibidem. p.11. 38 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 39 Idem. Ibidem. p.12. 40 Idem. Ibidem. p.13. 41 O que suscita riquíssima discussão epistemológica a respeito do status científico do direito
processual. A propósito, conferir Max Weber, Metodologia das Ciências Sociais, parte 2, p. 107-154.
42 Humberto Theodoro Júnior. Op. cit, p.15 43 Idem. Ibidem. p.16.
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Vicente Greco Filho promoveu enfoque indagativo, anotando a
respeito de uma evolução do pensamento filosófico44, assumindo o processo como
instrumento dos direitos subjetivos45. Assim, fez desfilar Heráclito, Sócrates (o
primeiro dos positivistas, que não se negava a cumprir leis injustas), Platão (e seu
mundo ideal), Aristóteles (e a questão da justiça distributiva). Escreveu que se o
espírito grego foi filosófico, o gênio romano foi jurídico46. Lacônico para com o
processo romano, enalteceu o cristianismo, pelo que, para o autor em foco,
inegavelmente foi a doutrina cristã que mais valorizou a pessoa humana47. Teceu
observações sobre os padres filósofos da Igreja, sobre a patrística, sobre a
escolástica. Elogiou a Magna Carta (de 1215), tendo o documento inglês como o
marco decisivo entre o sistema de arbítrio e real e a nova era das garantias
individuais48. Adiantou-se ao contratualismo às declarações de direitos, cindindo
direito material e direito processual em fases de autotela, autocomposição e
jurisdição propriamente dita49.
Paulo Lúcio Nogueira redigiu resumo histórico da introdução de seu
curso, partindo do período colonial, já a partir do descobrimento do Brasil. Teceu
considerações sobre o regime processual nas ordenações, ponderando sobre a
longa duração dos textos portugueses e influências posteriores50. Estampou um
quadro sinótico, que linearmente fracionou o processo civil brasileiro em quatro
momentos: colonial, império, republicano e atual51. Assim, o CPC de 1973, fora
precedido pelas ordenações (afonsinas, manuelinas e filipinas), pelo Regulamento
44 No que seria contestado por F. Nietzsche e O. Spengler. 45 Vicente Greco Filho. Direito Processual Civil Brasileiro. 1.v.,p.17 e ss. 46 Idem. Ibidem. p.18. 47 Idem. Ibidem. p.19. 48 Idem Ibidem. p.20. 49 Idem Ibidem. p.28 e ss. 50 Paulo Lúcio Nogueira. Curso Completo de Processo Civil. p.6.
9
737, pela Consolidação das Leis do Processo de 1876, pelos códigos estaduais,
pelo CPC de 1939. A respeito do período atual (a edição que uso é de 1992)
mencionou o movimento revolucionário de 31 de março de 1964.52
Moacyr Amaral Santos dedicou o capítulo V de seu curso para
investigar a evolução histórica do processo civil53. Fincou o processo na história
romana:
A história do direito processual, como a do direito em geral, naquilo
que interessa ao direito pátrio, começa em Roma. Partindo daí, para
chegar aos nossos dias, na longa caminhada, passou o direito
processual por profundas transformações, sem perder, entretanto,
estrito contacto com suas origens.54
Analisou o formalismo romano (e sua oralidade) valendo-se da
clássica divisão tripartida. Do processo romano-barbárico fez emergir o processo
comum observando que da península itálica o processo comum, ou romano-
canônico, expandiu-se paulatinamente, pelos mais diversos países da Europa55. É
assim que da península ibérica o processo português chegara no Brasil, via
ordenações.
O autor sob comento listou processualistas antigos (e suas obras),
entre eles: Francisco Paula Batista, Correia Teles, Pimenta Bueno, Arouche de
Toledo Rendon. Insistiu na unidade processual decorrente da constituição de 1934.
Finalmente, elencou processualistas brasileiros, e respectivas monografias. Indico
alguns: Pontes de Miranda, Castro Nunes, José da Silva Pacheco, Seabra
Fagundes, Galeno de Lacerda, Calmon de Passos, Frederico Marques, Barbosa
51 Idem Ibidem. p.12. 52 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 53 Moacyr Amaral Santos. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. v.1, p.37 e ss. 54 Idem Ibidem. p.38. 55 Idem Ibidem. p.47.
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Moreira, Rogério Lauria Tucci, Arruda Alvim56. Fez também referência a Enrico Tullio
Liebman e a escola de processo de São Paulo57.
Eliezer Rosa deixou-nos livro sobre história processual, que não é
sistemática, enfocando temas como síntese histórica do processo, herança de
Portugal, além de algumas notas biográficas (algumas com reproduções
fotográficas) de Bueno Vidigal, Alfredo Buzaid, Paulo Batista, Aureliano de Gusmão,
Francisco Morato, entre outros. Eliézer Rosa percebeu no passado a presença útil
de sua lição, atitude ciceroniana; é um historiador romântico:
Um homem pode mudar o curso da História de um Povo e o de sua
Instituições. É o homem providencial, o herói carlailiano. Foi o que
representou Liebman em nosso meio, quando aqui estanceou, por
quase uma década de anos.58
Moacir Lobo da Costa concentrou-se na história do direito
processual civil brasileiro, dividindo-o em cinco períodos, que explicita em seu livro
conteúdos jurídicos e literários. Objetivo, indicou 1822 como marco para concepções
kelsenianas que vinculam o Direito ao Estado. Historiador positivista, que procura as
coisas como realmente teriam acontecido (Leopold Ranke) livre de seu momento
(Fustel de Coulanges), Moacir Lobo da Costa comentou os regulamentos antigos,
sem afastar-se dos vínculos com textos normativos:
Como na história do direito processual civil, os diferentes períodos
são demarcados a partir da promulgação de novas leis ou códigos,
que alterando o sistema até então vigente, adotam outras regras ou
formas diversas, para o processamento das ações em juízo; o
56 Idem Ibidem. p.58 e ss. 57 Idem Ibidem. p.57. 58 Eliézer Rosa. Capítulos de História do Direito Processual Civil Brasileiro.p.20.
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segundo período da história do direito processual civil brasileiro
inicia-se com o Regulamento Nacional 737, de 1850.59
Edson Prata percebeu no Código de Hamurabi figuras de acusação
falsa, testemunhas, erro judiciário, pena de talião, dívidas de marido60. No Egito
antigo identificou que admitia-se o direito de greve61. Horrorizou-se com o direito
assírio:
Não se sabe ao certo como funcionavam seus tribunais. Sabe-se,
porém, que os havia e que impunham penas sumamente bárbaras,
como chibatamento, castração, corte de orelhas e do nariz, extração
violenta da língua e dos olhos, empalamento, decapitação.62
Comparou o direito mosaico com o processo civil brasileiro63.
Analisou extensivamente o Código de Mann64. Pranteou a tradição grega:
A Grécia tem sido considerada a pátria da cultura universal, nos
tempos antigos. Seus filósofos, historiadores e teatrólogos exercem
grande influência até nossos dias. No que se relaciona com o Direito,
entretanto, sua contribuição significa pouco. Merecem destaque,
contudo, dois legisladores: Licurgo, em Esparta, e Sólon, em Atenas,
bem como notável código de lei, de Gortina.65
Comparou a Lei das XII Tábuas com o Código de Processo Civil66,
equiparando o pôr do sol como termo final da audiência ao horário de audiências,
férias e feriados forenses67. Dedicou capítulo inteiro ao período romano barbárico,
59 Moacir Lobo da Costa. Breve Notícia História do Direito Processual Civil Brasileiro e de sua
Literatura. p.29. 60 Edson Prata. História do Processo Civil e sua Projeção no Direito Moderno. p.21 e 22. 61 Idem Ibidem. p.23. 62 Idem Ibidem. p.24. 63 Idem Ibidem. p.28 64 Idem Ibidem. p.30 e ss. 65 Idem Ibidem. p.38. 66 Idem Ibidem. p.55 e ss. 67 Idem Ibidem. p.57.
12
que limitou de 568 a 1.088 d.C., especificando legislação de francos, suecos, godos,
saxões e lombardos68.
Analisou a recepção do direito romano no medievo, com estações
em Bolonha, nos glosadores, nos ultra-montanos, nos pós-glosadores, nos juristas
da escola humanista69. Concentrou-se no período dos práticos (1563 a 1806), para
quem o processo era um quase-contrato70, com especial enfoque nos praxistas
portugueses (Pereira e Sousa, Lobão, Correia Teles) e brasileiros (Almeida Oliveira,
Costa Cirne)71. Especificou os processualistas alemães e italianos, dimensionando
essa influência no direito processual civil brasileiro72, indicando os redatores do CPC
italiano, como Calamandrei, Carnelutti, Redenti e Conforti73. Apresentou bem
cuidado balanço de escritores de doutrina, de revistas de processo.74
César Fiúza coordenou grupo de mineiros que estudou o direito
processual na história75. A obra chama atenção pelo presenteísmo, por esse olhar
do passado com os olhos de hoje. Faz-se um relato histórico-evolutivo das ações
cautelares no mundo ocidental, localizam-se aspectos históricos nos provimentos de
urgência, faz-se a evolução da jurisdição em Roma sob o prisma da competência,
vislumbra-se a importância histórica da prova testemunhal, desenha-se a evolução
histórica do habeas corpus, vêem-se as ações possessórias do direito romano no
direito contemporâneo, historia-se o Supremo Tribunal Federal, assim como
aspectos históricos e doutrinários da audiência preliminar.
68 Idem Ibidem. p.85 e ss. 69 Idem Ibidem. p.96 e ss. 70 Idem Ibidem. p.125. 71 Idem Ibidem. p.142 e ss. 72 Idem Ibidem. p.179 e ss. 73 Idem Ibidem. p.181. 74 Idem Ibidem. p.291 e ss.
13
As passagens aqui anotadas prestam-se a convocar a reflexão
acadêmica no que toca às relações entre história e direito processual. Menos
interessado em concluir (o que é arbitrário), preocupado em instigar (o que é
prospectivo), o presente trabalho afirma que a história pode ser apropriada pelos
processualistas, em sentido linear e progressivo, para justificação do ordenamento
vigente, para formatação de espaço para especulação filosófica, para prova de
racionalidade e eficiência do modelo atual, para prantear a tradição ocidental, para
ilustrar, para ironicamente criticar o presente com os olhos no ontem.
3. DIREITO PENAL
Pode-se também afirmar que manuais de direito penal e de direito
processual penal podem também ilustrar as assertivas acima indicadas. Tem-se a
impressão de que a crença no progresso é a regra, o que contrasta com a
apreensão de que a regra é o estado de exceção. O sujeito da história parece
cambiante, volátil. Certa harmonia indica que a humanidade evolui, o que contraria
perspectivas mais frankfurtianas que admitem que todo monumento à civilização é
também uma apologia da barbárie. Fique, todavia, bem entendido que as
observações que seguem não se prestam a criticar levianamente, a caluniar, a
imputar miopia histórica. Pretende-se apenas inventariar, ilustrar, suscitar a reflexão.
Trata-se de nova amostragem. Não há conclusões a serem indicadas por conta
mesmo de suposta arbitrariedade que poderia envolvê-las, a assumirmos postura
75 César Fiuza. Direito Processual na História.
14
desconstrustivista, que denuncia formações discursivas que formatam relações de
poder.
Tratarei de dois manuais de Direito Penal, de Julio Fabbrini Mirabete
e de Magalhães Noronha e também de dois manuais de Direito Processual Penal, de
Tourinho Filho e de Vicente Greco Filho.
Mirabete dedicou cerca de dez páginas para expor uma breve
história do direito penal76. Munido de informações de antropologia, capturou no
pretérito condutas culpáveis:
A infração totêmica ou a desobediência tabu levou a coletividade à
punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o
que, modernamente, denominamos “crime” e “pena”.77
Percebeu certa evolução na vingança penal (como Magalhães
Noronha também sentirá), indicando com leitura obrigatória Fustel de Coulanges,
historiador do século XIX, acusado por Walter Benjamin (na VII tese sobre a Filosofia
da História) de compor uma história que identifica-se com as premissas do vencedor.
Com estações no Código de Hamurabi, no Pentateuco e na Lei das XII Tábuas,
transitou da Mesopotâmia à Europa, deslocando-se vinte séculos no tempo, de
modo a identificar o “talião”, (...) que limita a reação à ofensa a um mal idêntico ao
praticado78. A propósito da legislação penal hebraica percebeu crimes contra a
divindade e crimes contra o semelhante79. Identificou separação entre direito e
religião no direito romano80. Informou que o direito penal germânico primitivo não era
76 Julio Fabrini Mirabete. Manual de Direito Penal. v.1, p.35-45. 77 Idem. Ibidem. p.35. 78 Idem. Ibidem. p.36. 79 Idem. Ibidem. p.37. 80 Idem. Ibidem. Loc. Cit.
15
composto de leis escritas, mas constituído apenas pelo costume81. Pranteou o direito
canônico e anotou que:
Promovem-se a mitigação das penas que passaram a ter como fim
não só a expiação, mas também a regeneração do criminoso pelo
arrependimento e purgação da culpa, o que levou, paradoxalmente,
aos excessos de inquisição. A jurisdição penal eclesiástica,
entretanto, ora infensa à pena de morte, entregando-se o condenado
ao poder civil para execução.82
Criticou o direito penal medieval, pelo que (...) o arbítrio judiciário,
todavia, cria em torno da justiça penal uma atmosfera de incerteza, insegurança e
verdadeiro terror83. A partir do iluminismo identificou um período humanitário, com
necessária citação de Beccaria, assim como dos princípios inscritos na declaração
da revolução francesa84. Avançou para a escola clássica, e seu maior expoente,
Francesco Carrara, de onde partiu para o período criminológico e para a escola
positiva. Sintetizou as idéias de Lombroso, para quem o crime é fenômeno
biológico85, citou Ganófalo, identificando também os princípios básicos da chamada
escola positiva, para quem o crime é fenômeno natural e social86. No que toca à
história do direito penal no Brasil, lembrou a confusão entre crime e pecado feita
pelas ordenações, a índole liberal do código criminal de 1830, o efêmero código de
1890, a consolidação de 1932, o código de 1940, maculado pelo ecletismo,
culminando na nova parte geral de 1984. Sobre a revisão, anotou:
A nova lei é resultado de um influxo liberal e de uma mentalidade
humanista em que se procurou criar novas medidas penais para os
crimes de pequena relevância, evitando-a o encarceramento dos
81 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 82 Idem. Ibidem. p.38. 83 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 84 Idem. Ibidem. p.38 e 39. 85 Idem. Ibidem. p.41. 86 Idem. Ibidem. p.42.
16
seus autores por curto lapso de tempo. Respeita a dignidade do
homem que delinqüiu, tratado como ser livre e responsável,
enfatizando-se a culpabilidade como indispensável à
responsabilidade penal.87
Magalhães Noronha dedicou cerca de quarenta páginas de seu
curso para explorar a evolução histórica das idéias penais, as doutrinas e escolas
penais, a história do direito penal brasileiro88. Principia:
A história do Direito Penal é a história da Humanidade. Ele surge
com o Homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o
crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou.89
Identificou um período de vingança privada, que teria sido adotada
pelo Código de Hamurabi, pelo Pentateuco, pelo Código de Manu90. Percebeu uma
fase de vingança divina, teocrática, sacerdotal, que refere-se às mesmas fontes de
vingança privada91. No que toca ao período da vingança pública, estaciona na
Grécia, na legislação romana das XII tábuas, no Digesto, no direito canônico, no
direito medieval, atingindo o período humanitário, com necessárias referências a
Beccaria, Rousseau e Montesquieu92.
A propósito do homem delinqüente e da explicação causal do delito
indicou Lombroso e seu ponto nuclear: a consideração do delito como fenômeno
biológico e o uso do método experimental para estudá-lo93. Em seguida, analisou as
doutrinas e escolas penais, citando Bentham, que considerava a pena um mal para
87 Idem. Ibidem. p.45. 88 Magalhães Noronha. Direito Penal. p. 28 e ss. 89 Idem. Ibidem. p.28. 90 Idem. Ibidem. p.29. 91 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 92 Idem. Ibidem. p.32. 93 Idem. Ibidem. p.35.
17
o indivíduo, que a sofre, e para a coletividade, que lhe suporta os ônus94. Identificou
as características da escola clássica, resumindo o pensamento de Carrara95. A partir
de Comte, Spencer e Darwin conceituou a escola positiva, desfilando também por
outras correntes, comungando com o ecletismo ao escrever:
Um Código não se deve escravizar a preconceitos de Escolas. Por
isso, disse bem a Exposição de Motivos de nosso diploma que nele
os postulados clássicos fazem causa comum com os princípios da
Escola Positiva.96
Já no que interessa à história do direito penal brasileiro, segregou os
nativos:
É intuitivo que as práticas punitivas dos homens que aqui habitavam
[aborígenes] em nada podiam influir sobre a legislação que nos
regeria, após o descobrimento. Destituídos, pois, de interesse
jurídico, os costumes penais dos nativos, limitar-nos-emos a
apontar um ou alguns (...)97
Transitou para as ordenações do reino, para as relações entre crime
e pecado, lembrando a questão da sodomia98. Já nos tempos do império citou o
código criminal de 1830, avançou para a república sintetizando os instantes
formativos dos diplomas penais no século XX99.
Fernando da Costa Tourinho Filho dedicou capítulo para explicitar o
desenvolvimento histórico do processo penal100. Principiou com os atenienses,
apontando o Areópago, (...) o mais célebre tribunal (...) competente para julgar os
94 Idem. Ibidem. p.39. 95 Idem. Ibidem. p.40. 96 Idem. Ibidem. p.52. 97 Idem. Ibidem. p.63. 98 Idem. Ibidem. p.65. 99 Idem. Ibidem. p.68 e ss.
18
homicídios premeditados, incêndios, traição e, enfim, todos aqueles crimes a que se
cominava pena capital101. Sumariou o processo penal romano, afirmando que havia
processo penal privado e processo penal público, embora ambos sob controle do
Estado102. Entre os germânicos, informa que o ônus da prova era do réu e não do
autor. O réu deveria demonstrar sua inocência, sob pena de ser condenado103. Do
processo canônico adiantou-se para o sistema inquisitivo nas legislações laicas, que
dominaram a Europa continental, vislumbrando alterações substanciais após a
revolução francesa; segundo Tourinho Filho, (...) a maior revolução de que se tem
memória.104
Vicente Greco Filho percebeu a história do direito processual penal
sob a ótica dos direitos fundamentais da pessoa, dedicando cerca de seis páginas
ao tema105. Seria impugnado por Nietzsche, por conta da forma como pranteou
Sócrates:
Sócrates, nascido na escola sofista, foi o mestre da razão. Com isto
afastou-se dos sofistas, porque via nas leis um fundamento racional,
e não arbitrário. Exigiu como dogma racional a obediência às leis,
ainda que injustas, porque o bom cidadão deve mesmo obedecer às
leis e nunca induzir outros a desobedecerem àquelas necessárias
para garantia do Estado, o que é indispensável à sobrevivência.106
Também não poupou elogios ao pensamento cristão, pelo que,
inegavelmente foi a doutrina cristã que mais valorizou a pessoa humana, definindo o
100 Tourinho Filho. Processo Penal. v. 1, p.71-85. 101 Idem. Ibidem. p.72. 102 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 103 Idem. Ibidem. p.75. 104 Idem. Ibidem. p.79. 105 Vicente Greco Filho. Manual de Processo Penal. p. 20-66. 106 Idem. Ibidem. p.20.
19
homem como criado à imagem e semelhança de Deus107. Assumiu postura
relativista, ao ponderar que a Magna Carta (1215) é documento de época, quando
(...) a idéia de direitos individuais (...) ainda não se formara no sentido de hoje, de
direitos iguais para todos e que contra todos podem ser contrapostos108. Discorreu
também sobre o contratualismo, sobre as declarações de direitos, culminando numa
suposta proposta de declaração universal dos direitos processuais do homem109. No
desate, apontou direitos e garantias fundamentais em nossa constituição da
república110.
Percebem-se diversas perspectivas que podem ser amalgamadas
por um mesmo fio condutor, que conduz aos tempos de hoje, matizados pela
racionalidade. A descoberta da razão e a evolução do homem até essa percepção,
parece ser a tônica da presença humana na terra. O que suscita a constatação de
que a história no direito é serva de uma razão instrumental, hoje criticada pelas
tendências críticas e frankfurtianas. Enquanto processo real (Geschichte) a história
do direito penal promove intermináveis perguntas sem resposta. Enquanto disciplina
(Histórie) a história do direito penal carece entre nós de metodologia informada por
impressões epistemológicas mais prospectivas. Enquanto narração (Erzählung) a
história do direito penal prepara o ouvinte para que se sinta presente no melhor dos
mundos possíveis, implementando o vaticínio do Professor Pangloss, célebre
personagem de Voltaire, que filosofou sobre a história, dizendo que sempre vivemos
no melhor dos mundos possíveis.
107 Idem. Ibidem. p.21. 108 Idem. Ibidem. p.23. 109 Idem. Ibidem. p.28. 110 Idem. Ibidem. p.28 e ss.
20
4. DIREITO CONSTITUCIONAL
Manuais de direito constitucional também ilustram as assertivas aqui
lançadas. É que estudos historiográficos podem suspeitar que excertos de história,
embutidos em textos de explicitação de direito constitucional positivo, poderiam
traduzir apropriação (devida ou indevida) do passado, com propósitos acadêmicos,
que poderiam encetar relações de poder. Pode-se desconfiar que apresentações de
história constitucional em manuais suscitam uma perspectiva de linearidade, de
progresso, de evolução.
Por medida metodológica, deixo de lado compêndios de história
constitucional (e muitos os há, como o de Paulo Bonavides) concentrando-se em
manuais de uso acadêmico. Falarei de José Afonso da Silva, Celso Ribeiro Bastos,
Pinto Ferreira e Manuel Gonçalves Ferreira Filho.
José Afonso da Silva dedicou um capítulo de seu curso para
apreciar a evolução político-constitucional do Brasil111. Fez tripartição analítica,
fracionando nossa história constitucional nas fases colonial, monárquica e
republicana. Começou explicitando a organização administrativa portuguesa no
Brasil, identificando a jurisdição dos donatários, o regimento do Governador-Geral e
a divisão administrativa de 1621112. Percebeu a formação coronelística oligárquica
nacional na organização municipal da colônia113. A partir da vinda da família real
portuguesa para o Brasil encetou a independência, o problema da unidade nacional
111 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. p.71-92. 112 Idem. Ibidem. p.72. 113 Idem. Ibidem. p.76.
21
e a centralização monárquica que matizou a Constituição Imperial de 1824114.
Imputou a vitória das forças republicano-federalistas em 1889 ao ideal federalista
liberal surgido na assembléia nacional constituinte de 1823115. A propósito do texto
constitucional de 1891 anotou:
O sistema constitucional implantado enfraquecera o poder central e
reacendera os poderes regionais e locais, adormecidos sob o guante
do mecanismo unitário e centralizador do Império.116
Vinculou o texto de 1934 à revolução de 1930 e à questão social,
tratando aquela constituição de documento de compromisso entre o liberalismo e o
intervencionismo117, que anuncia uma época, plasmada entre integralistas de Plínio
Salgado e comunistas de Luis Carlos Prestes, antinomia equacionada pelo Golpe do
Estado Novo, de onde emerge o texto ditatorial de 1937118. Com a
redemocratização, José Afonso da Silva anunciou o texto de 1946, liberalismo que
culmina no Golpe de 1964, derrubando o regime democrático. Para o autor em foco:
Jango, despreparado, instável, inseguro e demagogo, desorienta-se.
Perde o estribo do poder. Escora-se no peleguismo, em que
fundamentara toda a sua carreira política. Perde-se.119
Seguem as apreciações sobre os atos institucionais, sobre o texto
de 1967, sobre a nova república, evolução que culmina na constituição de 1988,
identificando sua estrutura120, qual um plano de curso. Seu manual é um curso de
direito constitucional positivo, adjetivação que identifica as premissas que informam
seu ideário publicístico.
114 Idem. Ibidem. p.77. 115 Idem. Ibidem. p.78. 116 Idem. Ibidem. p.81. 117 Idem. Ibidem. p.83. 118 Idem. Ibidem. p.83 e 84. 119 Idem. Ibidem. p.87.
22
Celso Ribeiro Bastos dedicou um capítulo de seu livro básico de
direito constitucional para historiar as constituições do Brasil121. Radicou seu escorço
histórico no liberalismo que impregnou o período joanino122, identificando na
constituição do império os efeitos desse modelo ideológico e explicando:
O liberalismo é uma corrente de pensamento que marcou
profundamente alguns momentos da história, permanecendo até
hoje, ainda que adaptado a uma nova problemática que não existia
no momento em que seus grandes mentores o formularam. O
liberalismo tem por ponto central colocar o homem, individualmente
considerado, como alicerce de todo o sistema social.123
Identificou também os fatores determinantes da constituição de
1891, qualificando as principais mudanças que ela introduzira, enaltecendo o papel
do habeas corpus em nossa tradição constitucional124. Percebeu também a
dicotomia política que formatou o texto de 1934125, em que pese marcada por ideário
social democrático126. Imputou à constituição de 1937 a institucionalização de um
regime autoritário127. A par de identificar as principais influências na carta de 1946,
evidenciou seus aspectos fundamentais, como o direito de greve128. Entendeu que a
Constituição de 1969 é mera emenda ao texto de 1967, reconhecendo a irrelevância
da discussão129. Dissertou sobre os últimos governos militares, Médici, Geisel,
120 Idem. Ibidem. p.90. 121 Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional Positivo. p.49-92. 122 Idem. Ibidem. p.49. 123 Idem. Ibidem. p.50. 124 Idem. Ibidem. p.60. 125 Idem. Ibidem. p.61. 126 Idem. Ibidem. p.67. 127 Idem. Ibidem. p.68. 128 Idem. Ibidem. p.79. 129 Idem. Ibidem. p.86.
23
Figueiredo, assim como a constituinte dos tempos de José Sarney, anunciando os
tempos democráticos que informarão o texto de 1988.130
Pinto Ferreira valeu-se de dezesseis capítulos muito curtos para
historiar o constitucionalismo brasileiro131. Partiu da convocação da constituinte que
antecedeu a declaração de independência132. Identificou as duas revisões do texto
de 1824, por meio do ato adicional e de sua lei interpretativa133. Percebeu o
municipalismo na república velha e anotou que o mesmo foi amplamente
desenvolvido, assegurando-se a autonomia dos municípios pela eletividade dos
vereadores e prefeito134 . Motejou de Francisco Campos que teria chamado o estado
novo (ao qual serviu) de autoritário135. Preocupou-se com a emenda parlamentarista
que alterou o texto de 1946136. Outorgou à carta de 1967 um esforço de unificação
normativa:
Porém logo depois procurou-se dar contexto mais unitário ao sistema
em vigor, em face da multiplicidade dos atos institucionais diante da
Constituição de 1946, e ainda diversos atos complementares, em
número de trinta e sete, baixados durante o governo revolucionário
do Marechal Castelo Branco.137
Coroando com a constituição de 1988, chamou-a de meia
constituição, dadas as leis ordinárias e complementares de que necessita para sua
regulamentação.138
130 Idem. Ibidem. p.87 e ss. 131 Pinto Ferreira. Curso de Direito Constitucional.p.55-78. 132 Idem. Ibidem. p.55. 133 Idem. Ibidem. p.56. 134 Idem. Ibidem. p.59. 135 Idem. Ibidem. p.64. 136 Idem. Ibidem. p.67. 137 Idem. Ibidem. p.70.
24
Manuel Gonçalves Ferreira Filho à descrição de textos
constitucionais positivados, preferiu identificar a evolução do constitucionalismo139.
Aristóteles teria diferenciado as leis constitucionais das leis comuns ordinárias140.
Calcou o constitucionalismo no racionalismo oitocentista, triunfante na revolução
francesa de 1789141. Deu notas em tema da história constitucional inglesa, no que
toca à Magna Carta ao Bill of Rights142. Citou os contratos de colonização da
América do Norte, avançando para as doutrinas do pacto social, com estações em
Hobbes, Locke e Rousseau143. Foi enfático para com o pensamento iluminista,
elogiando-o:
Esta cosmovisão é fonte de liberalismo políticos e econômico que
triunfa com as revoluções dos séculos XVIII e XIX. Neste último
plano, o liberalismo afirma a virtude de livre concorrência, da não-
intervenção do Estado, enfim o laissez-faire, que enseja a expansão
capitalista.144
Aderindo à razão instrumental iluminista, com implícitas âncoras
epistemológicas em Max Weber, Manoel Gonçalves tratou da racionalização do
poder145, como desfecho de uma evolução constitucional, que se desdobra no texto
de 1988.
As sucintas observações acima suturadas convocam a reflexões em
torno do uso da história no discurso jurídico de sabor constitucional. Percebe-se, no
entanto, certa tendência doutrinária que assume marcas da história constitucional
138 Idem. Ibidem. p.76. 139 Manuel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. p.3-8. 140 Idem. Ibidem. p.3. 141 Idem. Ibidem. p.4. 142 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 143 Idem. Ibidem. p.5 e 6. 144 Idem. Ibidem. p.6. 145 Idem. Ibidem. p.7.
25
como passos de uma evolução, que conduz para textos que qualificam coerência no
sistema, que esses autores constitucionalistas descrevem. A usarmos deliciosa
imagem de Walter Benjamin, trata-se de um salto de tigre, fazendo da história do
direito constitucional a construção da realidade presente.
5. DIREITO DO TRABALHO
O direito do trabalho pode oferecer interessante campo para
pesquisa e aferição dessas idéias a propósito da utilização da história do direito.
Autores de direito do trabalho podem valer-se de informações históricas, de modo a
evidenciarem critérios de validade, em relação aos textos dogmáticos que produzem.
Bem entendido, essa afirmação não é carregada de ofensa, malícia, leviandade. É
que a invocação de aspectos históricos é operação que faz parte do ideário do
operador jurídico, do doutrinador.
É lugar comum (tópica – no sentido retórico) que informa o discurso
dogmático. Insisto que o texto tem por objetivo provocar reflexão, e nada mais.
Afinal, qual a relação entre história e direito? E ainda, quais as finalidades do uso da
história por parte do operador jurídico?
Quatro livros de direito do trabalho são escolhidos para sucinta
análise. Amauri Mascaro Nascimento em festejado curso de iniciação ao direito do
trabalho dedica dois capítulos ao tema. Apresentou uma história geral do direito do
trabalho, que antecede a muito bem elaborada história do direito laboral no Brasil.
Começou secionando o regime de trabalho, invocando a inexistência de normas na
sociedade que antecede a revolução industrial:
26
Na sociedade pré-industrial não há um sistema de normas jurídicas
de direito do trabalho. Predominou a escravidão que fez do
trabalhador simplesmente uma coisa sem a possibilidade sequer de
se equiparar a sujeito de direito. O escravo não tinha, pela sua
condição, direitos trabalhistas.146
Do mundo antigo transitou para o medievo, com estação no modelo
corporativo, citando mestres, aprendizes, companheiros, atingindo a locação de
serviços, por conta do locatio operarum e da locatio operis faciendi147. Alcançou a
sociedade industrial, de modo a identificar a justiça social que informaria a Bula
Rerum Novarum e o marxismo que percebera a luta de classes, preconizando a
união do proletariado148. Já no século XX indicou a constituição mexicana de 1917, a
constituição alemã de Weimar de 1919 e Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927149.
Em âmbito de direito de trabalho no Brasil, Amauri Mascaro
Nascimento partiu do varguismo, mencionou a constituição de 1934, o ministério do
trabalho na década de 1930 e culminou na edição da CLT, de 1943. Enfatizou a
elevação dos direitos trabalhistas à categoria de direitos fundamentais, no texto
constitucional de 1988150.
Orlando Gomes e Elson Gottschalk, catedráticos na Bahia,
publicaram curso em 1981, que dedica cerca de dez páginas à história do direito do
trabalho. Radicaram esse campo jurídico na revolução industrial do século XVIII, à
qual vinculam Thomas Newcomen e James Watt. Aquele teria descoberto a máquina
146 Amauri Mascaro Nascimento. Iniciação ao Direito do Trabalho, p.27. 147 Idem. Ibidem. P.28. 148 Idem. Ibidem. P.29. 149 Idem. Ibidem. Loc. cit. 150 Idem. Ibidem. Loc. cit.
27
a vapor, esse último aperfeiçoara o funcionamento da mesma151. Indicaram como
fonte para essas informações a Edward McNall Burns152.
Como clássico em Orlando Gomes, é evidente a preocupação
metajurídica anotando que a história do movimento operário é uma lição de
sociologia, que nos fornece a precisa idéia do grupo social oprimido153. Os autores
baianos exploraram o mundo liberal clássico, invocaram Adam Smith e J.B. Say e
indicaram marcos teóricos no manifesto de Marx e Engels, na já citada Rerum
Novarum e no tratado de Versalhes154. Já no Brasil, indicaram época que vai até a
abolição da escravatura, que é sucedida por época que vai até Vargas, que daria
início a um último período.155
Arnaldo Süssekind, Délio Maranhão e Segadas Vianna dedicaram
quase oitenta páginas de sua Instituições de Direito do Trabalho para os
antecedentes históricos dos temas afetos à disciplina156. O índice sistemático
informa que comentam a escravidão, a servidão, as corporações, a revolução
industrial. Apreciaram questões como igualdade, liberdade, capitalismo, proletariado,
ação da igreja, a legislação do trabalho e suas forças criadoras, o perfil normativo do
juslaborialismo, o direito do trabalho nos textos constitucionais brasileiros. Aristóteles
é citado, com sabor de previsão, pelo que o estagirita teria observado que a
escravidão desapareceria quando a lançadeira do tear se movimentasse sozinha157.
Também anotaram que:
151 Orlando Gomes e Elson Gottschalk. Curso de Direito do Trabalho. v.1, p.1. 152 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 153 Idem. Ibidem. Loc Cit. 154 Idem. Ibidem. P. 6 e ss. 155 Idem. Ibidem. P. 8 e ss. 156 Arnaldo Süssekind et alli. Instituições de Direito do Trabalho. p. 27 e ss. 157 Idem. Ibidem. p.28.
28
A completa libertação do trabalhador teria de se fazer mais tarde
como conseqüência da revolução industrial e da generalização do
trabalho assalariado, numa nova luta, não mais contra o senhor da
terra nem contra o mestre da corporação, e sim contra um poder
muito maior, o patrão, o capitalista, amparado, pelo Estado, na sua
missão de mero fiscal da lei e aplicador da justiça.158
Os autores sob comento também elogiaram a Encíclica Rerum
Novarum, observando:
A palavra do Sumo Sacerdote ecoou e impressionou o mundo
cristão, incentivando o interesse dos governantes pelas classes
trabalhadoras, dando força para sua intervenção, cada vez mais
marcante, nos direitos individuais em benefício dos interesses
coletivos.159
As apreciações vão até o texto constitucional de 1988, momento em
que se problematiza a questão da complementação normativa da constituição160.
Evaristo de Moraes Filho, em obra publicada em 1986, Introdução ao
Direito do Trabalho, dedicou um capítulo aos fundamentos e formação histórica da
disciplina. Informou realisticamente que o direito do trabalho é um produto típico do
século XIX161. Indicou a Encíclica Rerum Novarum entre as causas determinantes da
intervenção estatal, comungou das críticas feitas aos princípios informadores do
tema no código napoleônico de 1804, assim como relevou a importância de
movimentos sociais do século XIX, a exemplo do movimento dos luditas e dos
cartistas162. E mais uma vez a propósito da encíclica do Papa Leão XIII:
Por outro lado, já agora no plano espiritual, aparecia um documento
da maior importância para a final constituição do direito do trabalho: a
158 Idem. Ibidem. p.32. 159 Idem. Ibidem. p.40. 160 Idem. Ibidem. p.76 e 77. 161 Evaristo de Moraes Filho. Introdução ao Direito do Trabalho. p.46.
29
Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, datada de 15 de maio
de 1891. Reconhecia a Igreja a tremenda injustiça social dos nossos
dias, acabando por aceitar e recomendar a intervenção estatal na
economia como único meio capaz de dar cobro aos abusos do
regime. Exigiu toda uma legislação protetora, inclusive um salário
justo segundo os melhores ensinamentos dos doutores da Igreja163
Evidenciou a importância da primeira grande guerra para o
desenvolvimento do direito do trabalho164, e em decorrência, o tratado de Versalhes,
a par, naturalmente, da legislação de Bismarck e da carta de Weimar, aquela
anterior e essa posterior ao grande combate165.
Feitas essas anotações e transcrições, vê-se que a história do direito
é narrativa ancilar na apresentação de escorços de dogmática. Querem uns que a
história dá ao advogado maior poder de argumentação. Querem outros que outorga
ao profissional do direito uma visão universal dos institutos jurídicos. Quaisquer das
opções, ou todas, suscitam uma história colocada a serviço de objetivos
determinados. E quando isso ocorre há vínculo entre a narrativa e os resultados
procurados. Por isso, em que pese marcos e referências historiográficas
relativamente padronizadas, não há uniformidade na explicitação da história do
direito. Assim, a chamada introdução histórica do manual de direito é ilustrativa,
pode ser manipulada, especialmente em temas de altíssima variação ideológica,
como o direito do trabalho, campo de cultura para a luta de classes.
162 Idem. Ibidem. p.46 e ss. 163 Idem. Ibidem. p.49.
30
6. DIREITO PREVIDENCIÁRIO
Tal uso da história também pode acontecer, por exemplo, com o
direito previdenciário. Pode se constatar inegável tendência para confecção de
manual, de livro, de curso, que indiquem prolegômenos históricos, justificadores de
situações presentes de seguridade social, de assistência social, de previdência
social, de infortunística, de planos de custeio e de benefícios.
A principiologia do direito previdenciário também poderia ser
enfocada em ótica linear, progressista, progressiva, historicista. Generalidade,
solidariedade, supletividade, seriam identificados no passado, remoto ou próximo.
Randomica e aleatoriamente, com propósitos de se identificar
eventuais usos, aponto três cursos de direito previdenciário, a saber, Wladimir
Novaes Martinez, Sérgio Pinto Martins e Odonel Urbano Gonçalves. Percebe-se, em
geral, nesses livros, que escorços dogmáticos são precedidos de ilustrações
históricas, diretas ou indiretas. Indica-se o direito estrangeiro, sendo que a Alemanha
de Otto von Bismarck e a Bula Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, são referências
quase que obrigatórias. Passa-se para o direito brasileiro, com incursões em
referências constitucionais, de 1824 ao texto de 1988. Tem-se a impressão que certa
linearidade evidencia avanço, crescimento. Admite-se ainda que muito poderá ser
feito. Qual a espera talmúdica, benjaminiana, presume-se futuro heterogêneo,
completo, com espaço para experiências messiânicas.
Wladimir N. Martinez começou um de seus cursos anotando que:
Em 1893, o seguro social completou um século de fecunda
existência. Desde as três leis de Otto von Bismarck, até os dias de
164 Idem. Ibidem. p.50. 165 Idem. Ibidem. p.50 e ss.
31
hoje, são surpreendentes as transformações ocorridas nas técnicas
de proteção social.166
Admitiu que esses cem anos (1883-1983) representam século de
fecunda existência. A legislação bismarckiana surgiu numa Alemanha recém-
formada, fruto da vitória na guerra franco-prussiana, ensejadora de revanchismo
determinante da grande guerra de 1914-1918. Além das diferenças entre o
Brandenburgo e a Baviera, de vidas urbana e rural, consigne-se que o forte grupo
dos “junkers” valeu-se de acenos de proteção previdenciária, na formatação de um
espírito pró-germânico, matizado por herança que finca passos em Goethe, Wagner,
Nietzsche, Beethoven e tantos outros. Ainda em âmbito alemão, observe-se que, em
que pese duas guerras mundiais desastrosas, uma divisão dolorosa e uma
reunificação traumática que marcaram o país, previdência social há. Mas a quem
aproveita? Cito, por exemplo, a situação dos trabalhadores turcos167, indicativa do
sentido exclusivista do modelo protetivo.
Sérgio Pinto Martins invocou o ano de 1334 como palco do primeiro
contrato de seguro marítimo, posteriormente surgindo a cobertura de riscos contra
incêndios168, sem indicar local, interessados, personagens. Deu um passo de cinco
séculos e mencionou a Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII169. A imagem
poderia suscitar críticas de leitura supostamente mais vanguardista, porquanto o
papo do proletariado respondia a uma movimentação social revolucionária que
agitava a Europa, já premonida no manifesto de Marx, e que precisava ser
166 Wladimir N. Martinez, Princípio, de Direito Previdenciário, p. 25. 167 Günter Wallraff, Cabeça de Turco. 168 Sergio Pinto Martins, Direito da Seguridade Social, p. 21. 169 Idem. Ibidem. Loc cit.
32
controlada. O mesmo autor mencionou lei inglesa de 1601170, olvidando-se de
mencionar a imprestabilidade fática da mesma. É que a Inglaterra viveu a grande
revolução industrial, presenciando a decadência da sociedade rural e a ascenção do
meio urbano, o ocaso da manufatura e o zênite da maquinofatura, além do nadir do
trabalho artesanal. O submundo vitoriano retratado por Charles Dickens, povoado
por menores abandonados, carentes, prostitutas, indica realidade distinta de
asséptica figura de uma lei para amparo aos pobres. O referido autor também
mencionou lei francesa de 1898, determinada a assistir à velhice e acidentes de
trabalho171. Indicou também a constituição mexicana de 1917 e a constituição alemã
de 1919 (firmada em Weimar), citando ainda a criação da Organização Internacional
do Trabalho, a partir do tratado de Versalhes172. Não esqueceu do Plano Beveridge,
organizando na Inglaterra, a partir de 1941, em época de conflito entre britânicos e
alemães173. Será que a medida barganhava com apoio popular?
Odonel Urbano Gonçalves também mencionou o projeto de seguro
operário de Bismarck, a lei francesa de 1898, o tratado de Versalhes, a constituição
mexicana de 1917, além da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948174. Tem-se que esses documentos são tópicos, referenciais, de citação
obrigatória. A inclusão da proteção previdenciária na declaração de 1948 como
direito fundamental175 suscita reflexões em torno do universalismo e do relativismo,
propiciando que se reflita sobre as grandes desigualdades do mundo, no meio do
170 Idem. Ibidem. p. 22 171 Idem. Ibidem. Loc cit. 172 Idem. Ibidem. Loc cit. 173 Idem. Ibidem. p. 22. 174 Odonel urbano Gonçalves, Manual de Direito Previdenciário, 19 e 20. 175 Idem. Ibidem. 20.
33
século passado, situação que ainda subsiste, infelizmente, se permitido certo juízo
axiológico.
Identificando o equilíbrio instável do modelo previdenciário
brasileiro176, Wladimir Novaes Martinez sucintamente referiu-se à Lei Eloy Chaves,
que dera início à implantação da previdência social no Brasil177. Sérgio Pinto Martins
localizou no Montepio Geral dos Servidores do Estado (Mongeral) de 1835, a
primeira entidade previdenciária que funciona entre nós178. Discorreu sobre os textos
constitucionais, vislumbrando a constituição de socorros públicos no texto de 1824, a
utilização do termo “aposentadoria” no texto de 1891, forma de custeio na lei
fundamental de 1934, o uso da expressão “seguro social” na carta outorgada de
1937, a sistematização da matéria previdenciária na constituição de 1946, o seguro-
desemprego no texto de 1967, a par das orientações referenciais do texto de
1988179. Odonel Urbano Gonçalves traçou nota parecida, indicando vários textos
normativos, de aplicabilidade à previdência social180.
O que se constata é que manuais de direito previdenciário podem
desenhar certa evolução histórica linear, que permite que o leitor admita o sistema
normativo como resultado da vontade de um legislador que tudo prevê, e que
outorga direitos, na medida em que as relações sociais se desenvolvem. Tem-se a
impressão que o maior interessado observa passivo o caminhar dos fatos, e que
deve externar felicidade por viver num mundo que traduz racionalidade e ordem.
176 Wladimir N. Martinez. Op. cit., p.26. 177 Idem. Ibidem. p.25. 178 Sérgio Pinto Martins. Op. cit. p.23. 179 Idem. Ibidem. p.23 e ss.
34
Assim, apenas com o objetivo de estimular o debate, as linhas
principais da presente reflexão, que propõe que a história pode ser utilizada pelo
operador jurídico, em texto de doutrina, evidenciando certa linearidade que pode não
atestar a verdade. Não que a operação seja consciente, por parte de quem escreve,
de justificar o sistema com base ao passado. Trata-se de traço ideológico que marca
nosso modelo cultural, objeto das críticas que formam certo pensamento rebelde que
exige uma dialética apontadora de mudanças.
7. DIREITO TRIBUTÁRIO E CIÊNCIA DAS FINANÇAS
Essas perspectivas poderiam também ser observadas em direito
tributário e em ciência das finanças. O modelo tributário contemporâneo pode ser
apresentado como racional, na medida em que o gênero tributo divide-se em
espécies, além de características ontológicas mais contemporâneas, a exemplo de
institutos como lançamento, crédito, suspensão, responsabilidade tributária.
Farta nesse de informações pode ser utilizada de modo a justificar a
plausibilidade de modelos normativos tributários de nossos dias. É o que se vê, por
exemplo, em escritos de Bernardo Ribeiro de Moraes e Aliomar Baleeiro, tema das
considerações seguintes.
Bernardo Ribeiro de Moraes em capítulo de seu compêndio para
discorrer sobre o histórico do direito tributário, principiou por justificar a validade do
uso da história para os estudos jurídicos:
180 Odonel Urbano Gonçalves. Op. cit., p.20 e ss.
35
Ao examinarmos qualquer ramo do direito, inclusive o do direito
tributário, a lembrança de sua gênese e de seu desenvolvimento
através dos tempos é de inegável interesse e de grande valia
pedagógica. A gênese histórica permite situar melhor os temas a
serem abordados e, assim, melhor compreendê-los. A história, sem
dúvida, se transforma em imprescindível auxiliar que na certa
encontraremos no futuro, à medida que avançamos em nossa
disciplina.181
O aludido autor percebeu certa evolução no direito, no que seria
contrariado por Walter Benjamin182 em sua X tese sobre a filosofia da História.
Enquanto o filósofo alemão sentiu distinta temporalidade na história, que não seria
nem retilínea, nem evolutiva, o tributarista brasileiro protestou em sentido contrário,
escrevendo:
O direito tributário, da mesma forma dos demais ramos da ciência
jurídica, formou-se também lentamente, evoluindo passo a passo.183
Para Bernardo Ribeiro de Moraes, o primeiro tributo instituído no
país fora o quinto do pau-brasil, contribuição fiscal já encontrada em Portugal, desde
1316, sendo uma cópia da instituição muçulmana, que buscava recursos nas
espoliações dos inimigos184. Em seguida o autor avançou no tempo, seccionando
rendas do Real Erário e dos donatários, observando que (...) inexistia organização
fiscal na época. A arrecadação e fiscalização dos tributos eram realizadas pelos
servidores especiais da Coroa denominados ‘rendeiros’, e pelos seus auxiliares
(contadores, feitores e almoxarifes)185. Adiantando-se para a época decorrente da
criação do Governo-Geral (1540), Bernardo Ribeiro de Moraes dividiu os tributos em
181 Bernardo Ribeiro de Moraes. Compêndio de Direito Tributário, v.1, p.101. 182 Walter Benjamin, Illuminations, p.258. 183 Bernardo Ribeiro de Moraes, op. cit., p.103. 184 Idem. Ibidem. p.108. 185 Idem. Ibidem. p.111.
36
ordinários e extraordinários186. Entre os primeiros, identificou rendas da Coroa e do
Governador-Geral. A Coroa ficaria (entre outros) com direitos das alfândegas reais,
relativas a mercadorias importadas e exportadas, ou naufragadas. Segundo ele, a
Coroa Real ficaria também com o quinto dos metais e das pedras preciosas. Já o
Governador-Geral (ainda segundo o autor sob comento) detinha direitos sobre
passagens dos rios, escravos, especiarias, drogas. Bernardo Ribeiro de Moraes
também menciona tributos extraordinários, como derramas (sem fato gerador
definido), fintas (proporcionais aos rendimentos dos contribuintes), contribuições as
mais variadas.187
Valendo-se de perspectiva histórica linear, continuou Bernardo
Ribeiro de Moraes identificando figuras fiscais do período joanino, a propósito de
direitos de importação, de prédios urbanos, de pensões para a capela imperial, de
sisas dos bens de raiz, de meias sisas de escravos, de impostos de selo sobre
papéis (que teriam vigorado até 1965), de direitos de entrada de escravos novos188,
entre outros. Já a propósito do império e da constituição de 1824, anotou Bernardo
Ribeiro de Moraes:
Em referência à discriminação de rendas tributárias, a Constituição
Política do Império do Brasil silenciou a respeito, uma vez que o
poder fiscal achava-se centralizado na pessoa do Imperador. Não
havia uma separação de competência tributária entre o poder central,
províncias e municípios ou vilas.189
Identificou também a gênese das execuções fiscais (atual Lei
6.830/80) no período regencial (1831-1840), observando que (...) pelo Decreto de 18
186 Idem. Ibidem. p.113. 187 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 188 Idem. Ibidem. p.116.
37
de agosto de 1831, regulou-se o processo nas ações executivas da Fazenda Pública
contra os seus devedores190. Sentiu a descentralização da época, que conheceu
movimento propulsor de autonomia provincial191. Bernardo Ribeiro de Moraes
inventariou os tributos cobrados no 2º Império (1840-1889), identificando situação
caótica.
No período republicano identificou que a constituição de 1891 fixara
tributos para a União, para os estados, silenciando-se todavia em relação aos
municípios192. Trata-se de descrição normativa, neutra, que evita apreciações
sociológicas, políticas, a propósito de modelo que forçava o município à
dependência em relação ao poder central, traço marcante da chamada política do
café com leite. Identificou também a instituição do imposto de renda em 1922193, ano
difícil, marcado pela rebeldia na política (movimentos tenentistas) e na cultura
(modernismo e semana de arte moderna). Comentando o modelo tributário da
Constituição de 1934, Bernardo Ribeiro de Moraes apontou curiosa imunidade
prevista pelo texto legal, dada (...) a determinação de que nenhum imposto gravará
diretamente a profissão de escritor, jornalista ou professor194. Também constatou o
autoritarismo da constituição de 1937, pelo que (...) tal Carta representa uma
decidida volta à centralização política195. Constatou também nova norma de regência
para as execuções fiscais, por conta do decreto-lei 960 de 17 de dezembro de
1938196. Discriminou também os tributos da constituição de 1946, observando que
teria havido (...) sensível alteração, para melhor, na nova discriminação de rendas
189 Idem. Ibidem. p.119. 190 Idem. Ibidem. p.121 191 Idem. Ibidem. p.123. 192 Idem. Ibidem. p.130. 193 Idem. Ibidem. p.133. 194 Idem. Ibidem. p.135. 195 Idem. Ibidem. p.138.
38
tributárias197. Historiou a concepção e a formação da comissão que preparou o
Código Tributário Nacional198, anunciando também os pródromos do movimento de
1964:
Em 1964 a situação econômica, financeira e política do país
apresenta-se grave. É o momento de grande crise e de desordens
dos comandos políticos, inclusive agitações e abusos
administrativos. O déficit orçamentário era elevadíssimo e a inflação
assustadora (...). Diante desse clima perigoso para o destino da
nação, em 31 de março de 1964 irrompe um movimento civil e militar
que se tornou vitorioso, despontando-se um novo período político.199
Bernardo Ribeiro de Moraes observou que nossa ordem legitimou a
constituição200 e que (...) neste ambiente é que encontramos a política que
possibilitou uma autêntica reforma do sistema tributário brasileiro201. Ainda,
identificou os contornos do código tributário nacional, do texto constitucional de 1988
em matéria tributária, concluindo, com certo pessimismo:
Não podemos esquecer que o sitema tributário brasileiro está
condenado à complexidade, em razão da estrutura federativa do
país, com três níveis de governo (federal, estadual e municipal) e da
enorme disparidade de níveis de desenvolvimento (o Brasil peca por
sua extensão).202
Aliomar Baleeiro em obra de introdução à ciência das finanças
dedicou capítulo à evolução dos estudos financeiros203. Enquanto Bernardo Ribeiro
de Moraes enfocou a história da tributação no Brasil (e seu livro é de direito
196 Idem. Ibidem. p.139. 197 Idem. Ibidem. p.142. 198 Idem. Ibidem. p.144. 199 Idem. Ibidem. p.147. 200 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 201 Idem. Ibidem. p.148. 202 Idem. Ibidem. p.189. 203 Aliomar Baleeiro. Uma Introdução à Ciência das Finanças, p.10-28.
39
tributário), Aliomar Baleeiro preocupou-se com o histórico da ciência das finanças
(tema desse seu livro, que agora comento). Aliomar percebeu a autonomia da
ciência das finanças no século XIX, porém indicou fontes mais antigas, a exemplo de
Xenofonte, Aristóteles, Cícero, Tomás de Aquino204. Observou que Maquiavel
também preocupara-se com finanças públicas, assim como identificou princípios
intervencionistas nos mercantilistas (Petty, Hume, Forbonnais, Bodin, Colbert,
Pombal), nos cameralistas (Besold, Bornitz), criticados pelos fisiocratas (Quesnay,
Mirabeau, Turgot) e pelos individualistas, a exemplo de Adam Smith205.
Aliomar Baleeiro, assim, fundamentou seu livro com prolegômeros
de história da economia, assim como Bernardo Ribeiro de Moraes antecedera seu
compêndio com síntese de nossa história tributária. Eu levanto, tão somente, uma
questão metodológica. Afinal, qual a prestabilidade fática da utilização de elementos
históricos em manuais de direito?
8. DIREITO AMBIENTAL
Essas perspectivas podem também ser observadas em temas de
direito ambiental. Constata-se que pode haver tendência de usar-se o pretérito,
justificando-se normas e comportamentos presentes. Pode-se romanticamente valer-
se do passado, de modo a enfaticamente imaginar-se a trajetória humana travada
204 Idem. Ibidem. p.20. 205 Idem. Ibidem. p.13 e ss.
40
com preocupações ambientais. Certa construção do pretérito pode suscitar que o
direito ambiental é linear e que preocupações de hoje já se verificam em tempos
muitos antigos. É o caso, por exemplo, de excerto de livro que estuda a evolução do
direito ambiental:
“No século Iv a.C., na Grécia, Platão lembrava o papel
preponderante das florestas como reguladoras do ciclo da água e
defensoras dos solos contra a erosão.206
Deixo bem claro e bem entendido que as observações são quanto
ao método, não quanto ao fundo. O citado autor (cuja excelente obra ganhou
inclusive o prestigioso prêmio Teixeira de Freitas) ao invocar Platão não indica a
fonte, a par de causar a impressão de que esse tipo de preocupação remontaria à
aurora da humanidade. Também escreveu:
Em Roma, Cícero considerava inimigos do Estado os que abatiam as
florestas da Macedônia. Nessas civilizações havia leis de proteção à
natureza.207
Ao comentar o normativismo ambiental no Brasil, Juraci Perez
Magalhães elogiou a José Bonifácio de Andrada e Silva, a quem imputou
preocupação com o tema:
(...) José Bonifácio, por exemplo, merece destaque. Homem de vasta
cultura, com estudos sólidos na Europa, sobressaiu-se pela sua
combatividade. Era o homem do ‘século das luzes’. Há mais de um
século já pregara a reforma agrária, o voto do analfabeto, a abolição
gradual da escravidão, a incorporação do índio, o anticolonialismo, a
auto determinação dos povos, e muitas outras idéias avançadas para
a época. Não é de admirar, pois que se preocupasse com o
problema ambiental.208
206 Juraci Perez Magalhães. A Evolução do Direito Ambiental no Brasil, p.2. 207 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 208 Idem. Ibidem. p.16.
41
O mesmo autor também percebeu preocupações ambientais em
Euclides da Cunha e anotara:
Cumprindo missões pela Amazônia, esse estilista ímpar [Euclides]
deixou páginas inesquecíveis sobre a região. Ao tempo que exaltava
suas belezas, deixava-nos depoimentos impressionantes sobre a
devastação de suas riquezas naturais. Euclides da Cunha percorreu
a nossa Hiléia pelo final do século passado e início deste, constando,
já, as famigeradas queimadas, o que o deixava desolado.209
Paulo de Bessa Antunes, em festejadíssima obra, avaliou a proteção
ambiental, em nível evolutivo, com âncoras epistemológicas em nossos textos
constitucionais. A partir da carta de 1824 percebeu regime de competências, a
propósito também de feiras, abatedouros de gado210. No período republicano
também identificou os modelos de competências, elogiando a carta de 1988 como
ponto culminante em tema de proteção ambiental:
A fruição de um meio ambiente saudável e ecologicamente
equilibrado foi erigida em direito fundamental pela ordem jurídica
vigente.211
Antônio Herman V. Benjamin em artigo publicado na Revista de
Direito Ambiental, especificou a evolução histórica da proteção jurídica do meio
ambiente. Identificou três fases, em nome da clareza didática212, a saber, momentos
de interpretação, uma fase fragmentária e (por fim) uma fase holística. Com muita
classe, demonstrando sensibilidade, coerência e firmeza conceitual, reconheceu os
senões e arbitrariedades em taxonomias de sabor histórico:
209 Idem. Ibidem. p.17. 210 Paulo de Bessa Antunes. Direito Ambiental, p.41. 211 Idem. Ibidem. p.42.
42
Retrospectivamente e em favor da clareza didática, podemos
identificar três momentos (mais modelos do que propriamente
períodos estanques) históricos na evolução legislativo-ambiental
brasileira. Não se trata de fases históricas cristalinas, apartadas,
delimitadas e mutuamente excludentes. Temos, em verdade,
valorações ético-jurídicas do ambiente que, embora perceptivelmente
diferenciadas na forma de entender e tratar a degradação ambiental
e a própria natureza, são, no plano temporal, indissociáveis, já que
confuncionam por combinação e sobreposição parcial, em vez de por
substituição pura e simples.213
Em obra de divulgação, Elida Séguin e Francisco Carrera,
reconheceram a natureza contemporânea da preocupação ambiental, embora
insistindo em modelo evolutivo:
O tratamento dado à matéria nas Constituições Brasileiras,
inegavelmente tem evoluído. A Constituição Imperial de 1824 não
fazia nenhuma alusão ao Meio Ambiente, o que é compreensível,
pois à época esta não era uma preocupação corrente.214
E continuaram, sinteticamente:
Com a 1ª Constituição Republicana, de 1891, inicia-se a
preocupação em regulamentar os elementos da natureza. Ela
apenas atribuiu competência à União sobre minas e terras (art.34,
29). Ainda com este enfoque, a Carta de 1934, objetivando a
racionalização econômica das atividades e não a defesa ambiental,
normatiza a exploração de recursos naturais (art. 5º, XIX, j)
referentes ao subsolo, mineração, flora, fauna, águas, energia
hidroelétrica e florestas, o que ampliou o rol de regulamentação. As
Constituições de 1937, 1946 e 1967, com posicionamento idêntico à
anterior, determinam, nos artigos 16, XIV, 5º, XV, 1 e 8º, XVII, h e i,
respectivamente, a competência para legislar nos temas suso
212 Antônio Herman V. Benjamin. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro, artigo in Revista de
Direito Ambiental, n.14, p.50-51. 213 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 214 Elida Séguin e Francisco Carrera, Planeta Terra, p.37.
43
mencionados, mas também sem uma visão holística do Meio
Ambiente ou um enfoque preservacionista e sustentável.215
A presente passsagem indica assim os mais variados usos que a
história pode ter para a exposição sistemática do direito ambiental. Pode ser
elemento retórico, de referencial argumentativo, na medida em que pessoas ilustres
demonstraram no passado preocupações ambientais. Pode ser referencial
identificador de que o direito ambiental é sintoma de uma evolução. Pode ser
instrumental crítico para que se lembre que nem todas as épocas são iguais. Pode
ser informação de apuradas sínteses preparatórias. É que a ecologia é instrumento
de crítica da sociedade moderna, matizada por organismos vivos moldados por
impulsos primários, como queria Freud, ou por oposição de classe, como queria
Marx, ou por mundo que pode melhorar, como sugere otimismo conceitual, que
parece dignificar história e direito ambiental.
9. DIREITO CIVIL
As relações entre história e direito civil são particularmente
complexas, abundantes. É que o direito civil radica no direito romano, criação
pretérita, desenvolvida ao longo da tradição ocidental. Também suscita a questão da
codificação, racionalização da orientação jurídica, vinculando iluminismo, direito
215 Idem. Ibidem. Loc. Cit.
44
natural e códigos modernos216. Conseqüentemente, as obras de introdução ao
direito civil exigem bosquejos históricos, a exemplo de escorços em torno da palavra
direito, de direito e religião, de direito público e privado, assim como também de
noção e classificação de pessoas, com o necessário estudo da liberdade, cidadania
e família, além de abordagens em tema de tutela e curatela.
Manuais que explicitam as partes especiais valem-se do direito
romano para amostragens de classificação de coisas, de propriedade, de posse, de
obrigação, contratos, sucessões. Estudos a propósito do novo código civil (ou do
código civil novo – Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2000) propiciarão investidas
históricas justificativas, por exemplo, do artigo 1.511, e de concepções nucleares de
direito de família.
A relação entre história e direito civil já capturava a atenção de
Arnoldo Wald:
Pelo método histórico, toda norma é estudada em sua evolução,
devida à modificação econômica, social e política do meio. Sem a
inclusão do elemento histórico, o Direito tornar-se-ia estático,
divorciando-se do ambiente ao qual deve ser aplicado.217
Justificativas históricas em âmbito de direito civil também são
colhidas em Silvio Rodrigues, para quem:
A fonte primordial de nosso Direito Civil é o direito romano. Embora o
Código Civil brasileiro tenha colhido grande número de suas
soluções nas Ordenações do Reino e nas legislações portuguesa e
brasileira anterior à sua publicação; embora nele se encontra nítida
influência do Código Napoleônico de 1804 e do Código alemão de
1896, aquela primeira asserção não se infirma, pois estes
216 R.C. van Caenegem. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. p. 117-147. 217 Arnoldo Wald. Curso de Direito Civil Brasileiro, Introdução e Parte Geral, p.21.
45
monumentos legislativos se inspiram, diretamente, na legislação
justianéia.218
Silvio Rodrigues também historiou a confecção do Código Civil de
1916, com estações na legislação portuguesa, confirmando a historicidade dos
textos legais, vinculando-os às épocas em que nascem, e escrevendo:
Estupendo monumento da cultura jurídica, o Código Civil brasileiro
representava, no tempo de sua feitura, aquilo que de mais completo
se conhecia no campo do direito. Seu defeito, se tem algum, é o de
ter sido elaborado ao fim do século XIX e representar a cristalização
da cultura de uma época, porventura desaptada à evolução que se
seguiu.219
Percebeu muito bem o ambiente em que se desenvolveram as
condições que marcam o entorno do texto de 1916 e observou:
(...) que o legislador do Código Civil tinha a atenção mais voltada
para os problemas de uma pequena sociedade burguesa e
conservadora, do que para os grandes problemas humanos que os
tempos modernos parecem propor de maneira dramática.220
Maria Helena Diniz, ainda a propósito da codificação de 1916,
descreveu os eventos condutores dos fatos (histoire evenementielle), percebendo
uma evolução lenta, difícil, problemática, anotada em quadro sinóptico:
Após árduas e infrutíferas tentativas de codificação, Campos Sales,
ao ocupar a Presidência da República, por indicação de Epitácio
Pessoa, nomeia, em 1899, Clóvis Beviláqua para essa tarefa; este no
final desse mesmo ano apresenta um projeto que, após 16 anos de
218 Silvio Rodrigues, Direito Civil, Parte Geral, p.8. 219 Idem. Ibidem. p.11. 220 Idem. Ibidem. p.12.
46
debates, transformou-se no atual Código Civil, promulgado em 1-1-
1916, entrando em vigor em 1-1-1917.221
Carlos Alberto Bittar, no que toca à tradição civilística, invocou
perspectiva histórica, com certo sabor evolucionista:
Historicamente é no Direito Civil (ius civile, dos romanos) que se
enfeixaram os primeiros regramentos jurídicos para a condução da
vida social. Assumia a condição de direito da cidade (cives),
disciplinando as relações entre cidadãos independentes (...) Evoluiu,
no entanto, com o passar dos tempos, acompanhando o progresso
social, econômico, político e jurídico, para afirmar-se, à época das
codificações (...)222
Washington de Barros Monteiro valeu-se de referências pretéritas,
ilustrativas, de modo a tonificar explicações e explicitações. Antecedeu sua análise
de “pessoas” com exemplo histórico:
A palavra pessoa advém do latim persona, emprestada à linguagem
teatral na antigüidade romana. Primitivamente, significava máscara.
Os atores adaptavam ao rosto uma máscara, provida de disposição
especial, destinada a dor era às suas palavras. Personae queria
dizer, pois, ecoar, fazer ressoar. A máscara era uma persona,
porque fazia ressoar a voz da pessoa.223
Percebeu sentido evolutivo na expressão, de modo que o
designativo da antiga máscara atingiria a identificação de certa unidade existencial.
Assim:
Por curiosa transformação no sentido, o vocábulo passou a significar
o papel que cada ator representava e, mais tarde, exprimiu a atuação
de cada indivíduo no cenário jurídico. Por fim, completando a
221 Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro. 1.v., p.42. 222 Carlos Alberto Bittar, Curso de Direito Civil, v.1, p.5. 223 Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil, Parte Geral, p.55.
47
evolução, a palavra passou a expressar o próprio indivíduo que
representa esses papéis. Nesse sentido é que a empregamos
atualmente.224
Caio Mário da Silva Pereira centrou o direito civil também na tradição
romana, importando ao mesmo sentido evolutivo, variável:
A expressão direito civil tem variado de significação no tempo e no
espaço. Para o direito romano, que considerava o direito em função
de suas condições peculiares, direito civil era o direito da cidade,
destinado a reger a vida dos cidadãos independentes e,
rigorosamente, correspondia ao direito quiritário(...)225
Afirmou que no medievo a vida civil romana persistiu informando as
instituições de direito privado, amalgamando-se à tradição do direito canônico, de
modo que direito leigo e eclesiástico teriam vivido aproximação histórica226. Ao
historiar as codificações, Caio Mário da Silva Pereira identificou protótipos de
códigos em toda a antigüidade, na Babilônia, em Atenas, em Esparta, em Roma,
observando:
É velhíssima a tendência à codificação. Da antigüidade remota vem o
famoso código de Hammurabi, que liga sua existência à do povo
babilônico, retratando tanto ou mais do que os monumentos
arquitetônicos o teor de sua civilização. Momento brilhante da
civilização helênica é o que se prende à coordenação jurídica,
realizada por Licurgo em Esparta, e especialmente por Sólon em
Atenas. Dos romanos nos ficou de primeiro a Lex XII Tabularum, tão
impregnada do espírito cívico daquele povo, que todos deviam
conhecê-la, o que levou Cícero a lamentar como sintoma de
decadência que as crianças de seu tempo não soubessem recitá-la
de cor(...).227
224 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 225 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v.1. p.15-16. 226 Idem. Ibidem. p.16. 227 Idem. Ibidem. p.58.
48
Orlando Gomes identicamente percebeu sentido evolutivo no direito,
vinculando o direito civil, como faz-se tradicionalmente, à tradição romanística:
Numa classificação filogenética do Direito, a evolução parte do direito
ariano, prolongando-se pelo direito grego, romano e medieval, para
chegar ao direito moderno, tal como concebem e praticam os povos
ocidentais. O estudo histórico do direito civil inicia-se no direito
romano, quando mais não fosse porque continua a ser o substrato
do direito privado dos nossos dias. Dele se diz que foi a razão
escrita.228
Ainda, desconsiderando o ambiente histórico e romântico que
matizou a formação da Alemanha no século XIX, escreveu Orlando Gomes:
O povo alemão renunciou a seu direito nacional, para se submeter ao
direito romano, velho de mil anos. O fenômeno é singular. A
adaptação processou-se, todavia, mas só se compreende, ligando-se
a recepção ao nascente movimento individualista, que se
harmonizava ao espírito do direito romano.229
Clóvis Beviláqua pulverizou sua obra com referenciais romanos.
Exemplificando, caso de diminuição de capacidade:
No direito romano, capitis minutio maxima importava em
aniquilamento da personalidade. O condenado à morte incorria, a
princípio, nessa perda de personalidade, mas essa conseqüência da
condenação à pena última desapareceu no período imperial.230
Também, e apenas exemplificando, Clóvis Beviláqua ilustrou tema
de capacidade:
O direito romano distinguia os furiosi e os dementes ou mente-
capti, distinção correspondente à loucura completa e à parcial ou
228 Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, p.44. 229 Idem. Ibidem. p.47. 230 Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, p.127.
49
monomania. O direito justianeu, porém, desprezou esse ponto de
vista da forma da enfermidade para atender, exclusivamente, a
insanidade mental, em suas conseqüências jurídicas, declarando
incapazes os loucos e dando-lhes curadores.231
Constata-se assim vários usos da história por parte do direito civil. É
justificativa da codificação como evolução que aponta a racionalidade. É fio condutor
de fatos que acenam para a perfectibilidade das opções normativas atuais. É
interminável fonte de referenciais explicativos na tradição romana. É recurso retórico
que dá vida às explicações dos institutos. É comprovação da factibilidade entre
direito público e privado. É indicativo de evolução. Qual previsto por Walter
Benjamin, a história matiza salto de tigre que faz do passado uma presa de nossos
tempos.
10. DIREITO COMERCIAL
Essas concepções podem ser também verificadas em âmbito de
direito comercial. É que modelos originários de troca teriam evoluído, suscitando
relações comerciais complexas, que informam a vida contemporânea, marcada pelo
sistema capitalista. Fran Martins, a propósito de relações comerciais pretéritas,
observou:
Não se pode, com segurança, dizer que houve um direito comercial
na mais remota antigüidade. Os fenícios, que são considerados um
povo que praticou o comércio em larga escala, não possuíam regras
especiais aplicáveis às relações comerciais. Na Grécia começavam a
231 Idem. Ibidem. p.101.
50
aparecer alguns contratos, que mais tarde são aceitos no direito
comercial, como o câmbio marítimo (...).232
Aspectos da prática comercial de nossos dias, como bancos e
depósitos, também seriam sentidos na antigüidade. Segundo o mesmo Fran Martins:
Um antecedente dos banqueiros surge com os trapezistas
(trapezitai), pessoas que se encarregavam de receber depósito de
particulares. Mais tarde, sabendo-se, inclusive, que o templo de
Delos, em certa época, fazia empréstimos a particulares e às
próprias cidades. Conquistada Alexandria, o sistema rudimentar de
bancos se espalha pelo Egito.233
O autor cearense também fez a necessária citação nas leis de
Rodes, citação que tem espaço garantido em obras de direito comercial:
Foi, porém, o comércio marítimo o que mais se desenvolveu nessa
época. As cidades situadas à margem do oceano floresciam e uma
série de usos e costumes passou a regular as transações dos
comerciantes. A ilha de Rodes possuía vários desses usos,
chamados leis ródias, que mais tarde, por disposição de Coracala,
foram aplicadas a todo território romano.234
O modelo romano fora invocado por Fran Martins:
(...) as regras relativas aos contratos e às obrigações do direito
romano serviram de base aos contratos e às obrigações comerciais,
quando o direito comercial começou a tomar forma, na Idade Média.
Ainda hoje essa parte do direito comercial se rege pelas normas do
direito civil, com pequenas restrições.235
232 Fran Martins, Curso de Direito Comercial, p.5. 233 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 234 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 235 Idem. Ibidem. p.6-7.
51
O aludido autor centrou-se também na vida econômica do medievo
ocidental, referindo-se às cruzadas (que facilitaram o intercâmbio comercial), às
proibições canônicas (que condenavam a agiotagem), aos mercados e feiras
(centros dos mercados terrestres). Teriam então nascido os primeiros institutos de
direito comercial, como a letra de câmbio, os processos de falência, o seguro
marítimo, as vendas condicionais236. Fran Martins abordou o código comercial
napoleônico de 1807, assim como também suas influências.
Dílson Dória invocou uma evolução histórica do direito comercial e
sua evolução também no Brasil. A propósito de questões historiográficas anotou:
(...) são falhos os conhecimentos que sobre as legislações dos povos
antigos têm chegado até nós, fato que se explica, em grande parte,
em virtude de a escrita, que é de fundamental importância à
revelação das fontes históricas, só haver aparecido muito tempo
depois do surgimento das civilizações. Mesmo os documentos que
chegariam aos nossos dias teriam sido danificados parcialmente, se
não pela ação do tempo, pela mão do homem.237
E a propósito do direito marítimo anotou, por exemplo:
Além do Código de Hammurabi, os historiadores do Direito reportam-
se ao Código de Manu, dos hindus (séc. XIII a.C.) como monumento
legislativo da antigüidade, que traria no seu bojo algumas regras
sobre Direito Marítimo.238
Dílson Dória também pranteou os gregos, atitude tradicional em
nossa historiografia jurídica:
Já entre os gregos prevalecia o uso sobre a lei escrita. Com efeito,
não possuíam os gregos uma legislação comercial, sendo o comércio
236 Idem. Ibidem. p.8-9. 237 Dílson Dória, Curso de Direito Comercial, v.1, p.14. 238 Idem. Ibidem. p.15.
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entre eles feito à base de normas usuais e costumeiras. Aos gregos
se deve, no entanto, a criação e desenvolvimento de muitos institutos
jurídicos, como o Nauticum Foenus que, segundo algumas versões,
se traduzia no fato de os capitalistas, então proibidos de cobrar juros,
financiarem arriscadas expedições marítimas. Se o navio retornasse
incólume, os capitalistas, financiaram arriscadas expedições
marítimas. Se o navio retornasse incólume, os capitalistas
participavam da venda das mercadorias trazidas ou recebiam juros
altíssimos, que compensariam eventuais prejuízos.239
Dílson Dória transitou pelo direito romano, observando que a
tradição romanística vivera carência de direito comercial240. Atinge a idade média,
quando,
Além dos naturais óbices que o regime feudal impunha ao
desenvolvimento do tráfego mercantil, prejudicava-o também a falta
de uma legislação que estimulasse o seu incremento.241
No que toca ao mundo moderno Dílson Dória relevou o papel da
formação dos estados nacionais no desenvolvimento do direito comercial242, assim
como indicou intensa atividade legislativa na Inglaterra e na França243. Já quanto ao
direito comercial em fase mais contemporânea, Dílson Dória apontou o código
comercial napoleônico de 1807 como marco mais significativo, sustentando essa
opinião com Waldemar Ferreira, não deixando de observar no entanto que o texto
(...) já nasceria ultrapassado, apresentando graves lacunas.244
239 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 240 Idem. Ibidem. p.16. 241 Idem. Ibidem. p.17. 242 Idem. Ibidem. p.19. 243 Idem. Ibidem. p.20. 244 Idem. Ibidem. p.21.
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Rubens Requião deixou também algumas páginas em tema de
formação histórica do direito comercial245 e principou suas considerações
escrevendo:
O direito comercial surgiu, fragmentariamente, na Idade Média, pela
imposição do desenvolvimento do tráfico mercantil. É compreensível
que nas civilizações antigas, entre as regras rudimentares do direito
imperante, surgissem algumas para regular certas atividades
econômicas. Os historiadores encontram normas dessa natureza no
Código de Manu, na Índia; as pesquisas arqueológicas, que
revelaram a Babilônia aos nossos olhos, acresceram à coleção do
Museu do Louvre a pedra em que foi esculpido há cerca de mil anos
o Código do Rei Hammurabi, tido como a primeira codificação de leis
comerciais.246
O autor paranaense reconheceu, todavia, cindibilidade normativa
estrutural entre modelos antigos e modernos:
Mas essas normas ou regras de natureza legal não chegaram a
formar um corpo sistematizado, a que se pudesse denominar de
‘direito comercial’. Nem os romanos o formularam. Roma, devido à
organização social estruturada precipuamente sobre a propriedade e
atividades rurais, prescindiu de um direito especializado para regular
as atividades mercantis.247
Rubens Requião concebeu um direito comercial como disciplina
histórica dos comerciantes (conceito subjetivo) e também como disciplina dos atos
do comércio (conceito e objetivo). Formatou assim a trajetória dos colégios e
corporação de mercadores quanto ao aspecto subjetivo, a par de certa evolução
normativa, atrelada às codificações, no que pertine ao aspecto objetivo.
245 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, p.8-14. 246 Idem. Ibidem. p.8. 247 Idem. Ibidem. Loc. Cit.
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Quanto a uma história do direito comercial no Brasil, Rubens
Requião mencionou as influências dos direitos canônico e romano sobre as
ordenações, a importância do Visconde do Cairu e características da vinda da
família real para o Brasil, a Lei da Boa Razão e a plausibilidade do uso do direito
comercial estrangeiro no Brasil, atingindo o Código Comercial brasileiro de 1850, em
relação ao qual anotou:
Esse diploma, até hoje elogiado pela precisão e técnica de sua
elaboração, teve como fontes próximas o Código francês de 1807, o
espanhol de 1829 e o português de 1833. Foi compilado, como
registrou os autores, em grande parte do Código português (...)248
Em seu curso sobre a lei de quebras, Rubens Requião também
historiou a insolvência249. Assim:
No Egito, em época remota, foi admitida a escravidão por dívidas, o
que não durou muito tempo. A execução se fazia sobre os bens do
devedor, mas, como muitas vezes fossem insuficientes, era permitido
que, falecendo o devedor sem solver suas dívidas, pudesse o credor
tomar o cadáver como penhor, dessa forma, os parentes e amigos, a
resgatar o cadáver, pagando-se a dívida.250
Adiantando-se na antigüidade clássica, Rubens Requião observou
que:
Mais importante, na pesquisa histórica, é o conhecimento das
condições da execução das dívidas na Grécia, dada a influência do
antigo direito helênico compilado pelos decênviros na Lei das XII
Tábuas. Naquela civilização clássica, a regra importava na servidão
pessoal do devedor ao credor, pela falta da satisfação da dívida.251
248 Idem. Ibidem. p.16. 249 Idem. Curso de Direito Falimentar, v.1, p.5-20. 250 Idem. Ibidem. p.6.
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Também o direito romano foi lembrado, em jogo dialético com
nossos tempos:
O primitivo direito romano refletia, porém, a barbárie do princípio de
que o corpo do devedor respondia pelas suas dívidas. Não se exigia
a intervenção do Estado, pois o credor tinha o poder de, fazendo
justiça pelas próprias mãos, sujeitar o devedor inadimplente. A partir
da Lei das XII Tábuas se delinearam a execução singular e a
execução coletiva, sendo esta a grande contribuição do direito
romano no nosso instituto.252
Para Rubens Requião a deplorável situação do devedor já fora
ultrapassada ainda em âmbito de desenvolvimento normativo romano:
O rigor desumano da execução felizmente não perdurou. No ano de
428 ou 441 a.C., não se precisando bem a data, surgiu a Lex
Poetelia Papiria, pela qual foi abolida a manus injectio. Ela tornava
o devedor inadimplente, independentemente de julgamento ou
confissão, nexus, submetido ao credor. Fortalecia-se, pelas novas
regras, a atuação do magistrado, prescrevendo a execução
extrajudicial que, como vimos, o direito primitivo admitia. Os bens do
devedor e não o seu corpo, passam a constituir a garantia dos
credores.253
Rubens Requião apreendeu traços de repressão penal no modelo
falimentar medieval254, mitigados pelo individualismo e pelo utilitarismo de flagrados
pela economia liberal, pelo que criticou a intolerância e a severidade com o que o
código francês de 1807 tratava o comerciante falido255. Em âmbito de direito
falimentar no Brasil, Requião caracterizou o devedor (quebrado) no modelo das
ordenações, a confissão da quebra (norma a seguir pelo comerciante honesto porém
251 Idem. Ibidem. Loc. Cit. 252 Idem. Ibidem. p.6-7. 253 Idem. Ibidem. p.7. 254 Idem. Ibidem. p.9.
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infeliz em seus negócios)256, a Lei da Boa Razão, atingindo a matéria (quebras) em
nosso código comercial de 1850.
Atente-se também que o direito comercial é oxigenado por práticas,
usos, costumes, como consignado por Carvalho de Mendonça em seu prestigioso
tratado257. Tem o direito comercial grande eficácia histórica, além, naturalmente, de
historicidade aqui aventada.
Direito e história efetivamente suscitam uma relação equivocada.
Como adereço retórico imprescindível, juristas argumentam com a força do que
consideram como relevantemente histórico, de modo a se demonstrar o direito atual
como fruto de uma evolução linear, mostrando-se nosso tempo como civilizado,
perfeito e bem elaborado. Ao legislador caberia a tarefa de apreender seu tempo,
dimensionando-o normativamente, oferecendo soluções normativas que se propõem
a regular um mundo supostamente carente de conflitos, de pluralidades e de
ambiguidades.
255 Idem. Ibidem. p.10. 256 Idem. Ibidem. p.16. 257 José Xavier Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, p.4 e ss.
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