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Direito de brincar A pequena Maria Luiza não é apenas uma criança sorridente e ativa. Ela representa a vitória de uma família humilde, com um passado sofrido. Filha mais nova de uma ex-moradora de rua, aproveita todas as oportunidades que a vida, pela primeira vez, oferece a um membro da sua família. A menina, que só aceita largar seus desenhos para posar para fotos por alguns instantes, passa as tardes no Projeto Providência, em Belo Horizonte, onde tem aulas de música, artes manuais, dança e reforço escolar. A mãe dela, Adriana Martins, resume a situação: “Ela é a única de nós todos que conheceu a felicidade desde o berço”. Para muitas crianças, moradoras de comunidades pobres, com altos índices de violência e baixos indicadores de desenvolvimento humano, a participação em projetos que estimulam o talento e reforçam a auto- estima é uma porta aberta para a transformação pessoal. Maria Luiza vive com a família em Vila Cafezal, no Aglomerado da Serra, periferia de Belo Horizonte. “Aglomerado” é como se conhece a maior concentração de favelas do estado de Minas Gerais, onde vivem aproximadamente 60 mil pessoas. “Sou uma ex-menina de rua, me separei da minha mãe muito nova. Quando fui abandonada, tinha só 9 anos e nove irmãos mais novos. Fiz muita coisa errada na vida. Conheci o Projeto Providência quando minha filha mais velha, Natália, hoje com 12 anos, tinha 4, a mesma idade da Maria Luiza. Eu estava tendo problemas com o conselho tutelar e tive que colocá-la no projeto. Vejo hoje que essa decisão foi o que salvou a mim e a meus quatro filhos”, conta Adriana. Natália, a mais velha, era uma criança calada e estava muito abalada emocionalmente ao chegar ao projeto. “Hoje sonha em ser médica e o reforço escolar a ajuda muito”, diz Adriana, que considera o Providência um “porto seguro”. Enquanto a hora dela não chega, pensa em fazer o curso de eletricista, no próprio projeto, para ajudar no sustento da família. Maria Luiza Martins Associação Projeto Providência Belo Horizonte, Minas Gerais 4 anos

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Direitode brincar

A pequena Maria Luiza não é apenas uma criança sorridente e ativa.Ela representa a vitória de uma família humilde, com um passadosofrido. Filha mais nova de uma ex-moradora de rua, aproveita todas asoportunidades que a vida, pela primeira vez, oferece a um membro dasua família. A menina, que só aceita largar seus desenhos para posarpara fotos por alguns instantes, passa as tardes no Projeto Providência,em Belo Horizonte, onde tem aulas de música, artes manuais, dança ereforço escolar. A mãe dela, Adriana Martins, resume a situação: “Ela éa única de nós todos que conheceu a felicidade desde o berço”.

Para muitas crianças, moradoras de comunidades pobres, com altosíndices de violência e baixos indicadores de desenvolvimento humano,a participação em projetos que estimulam o talento e reforçam a auto-estima é uma porta aberta para a transformação pessoal. Maria Luizavive com a família em Vila Cafezal, no Aglomerado da Serra, periferia deBelo Horizonte. “Aglomerado” é como se conhece a maior concentraçãode favelas do estado de Minas Gerais, onde vivem aproximadamente60 mil pessoas.

“Sou uma ex-menina de rua, me separei da minha mãe muito nova.Quando fui abandonada, tinha só 9 anos e nove irmãos mais novos. Fizmuita coisa errada na vida. Conheci o Projeto Providência quando minhafilha mais velha, Natália, hoje com 12 anos, tinha 4, a mesma idade daMaria Luiza. Eu estava tendo problemas com o conselho tutelar e tiveque colocá-la no projeto. Vejo hoje que essa decisão foi o que salvou amim e a meus quatro filhos”, conta Adriana.

Natália, a mais velha, era uma criança calada e estava muito abaladaemocionalmente ao chegar ao projeto. “Hoje sonha em ser médica e oreforço escolar a ajuda muito”, diz Adriana, que considera o Providênciaum “porto seguro”. Enquanto a hora dela não chega, pensa em fazer ocurso de eletricista, no próprio projeto, para ajudar no sustento dafamília.

Maria Luiza Martins

Associação Projeto ProvidênciaBelo Horizonte, Minas Gerais

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conta também com o apoio de órgãos públicos. Eleainda recebe contribuições individuais de quase trêsmil moradores da capital. Famoso por suas iniciativasousadas, o italiano determinou à sua congregação, naItália, que fizesse uma imagem morena da padroeira,originalmente loira, para que a população da regiãopudesse se identificar com ela e com o bebê que carregaem seus braços.

Segue a história, contada por ele mesmo: “Em 1988,quando cheguei a Belo Horizonte, me pediram paraajudar na paróquia da Favela do Caixote, na Vila Maria.O lugar era conhecido assim porque as pessoas moravamem madeirites. Eu não tinha dinheiro, não conhecianinguém e não tinha um espaço para trabalhar. Quandoperguntei aos meus superiores o que eu poderia fazer, medisseram: “dê a essas crianças comida, ajuda na escolae oportunidade para brincar”. Eu falei que assumiria osadolescentes, mas, um ano depois, tive que assumirtambém as crianças. E estou aqui até hoje. Na época, sópedi uma coisa à Itália: que me desse uma imagem deNossa Senhora da Divina Providência para ser a nossapadroeira. Só que a Nossa Senhora tem um rostoredondo, pele clara e cabelos louros. O Menino Jesustambém. Desse jeito não queria. Então tirei fotografiasdas crianças e adolescentes de Vila Maria e mandei paralá. Assim, consegui uma imagem mais condizente comesta realidade: a de uma Nossa Senhora de cabelosescuros, com o bebê moreninho”, lembra ele, sorrindo.

O padre

Maria Luiza e Natália são duas das cerca de 3 mil crian-ças e adolescentes de 3 a 18 anos atendidas pelo ProjetoProvidência. As três unidades, Fazendinha, Taquaril e VilaMaria, todas na capital, são cercadas por comunidadesextremamente vulneráveis, marcadas pela pobreza eviolência. É para essa população que a instituiçãooferece cultura, educação e cursos profissionalizantes.Seu fundador, o padre italiano Mário Pozzoli, 79 anos,tem como inspiração a convivência com essa gente toda.

“Essas crianças estão aqui porque querem. Não éescola, não é obrigação, mas, mesmo assim, elas acordamàs 6 horas, enfrentam frio e chuva para chegar aqui. Euchoro todos os dias com as histórias que escuto dessesmeninos. Há pouco tempo, um garotinho de 4 anospuxou a minha perna e me pediu que rezasse pela mãedele, que vivia na rua, bebendo”, conta padre Mário.

Segundo ele, mais de 25% das famílias atendidas sãochefiadas por mulheres sozinhas. As famílias vivem emcasas de cômodo único e as crianças não têm comoexercitar um dos seus maiores direitos: brincar. Paracompletar, a rua em que vivem é violenta. No projeto,socializam-se e fazem amizades que ficam para a vidatoda. “Quando estou cansado, é a gritaria da garotadaque ajuda a me reerguer”, conta o religioso, que vive há50 anos no Brasil.

Padre Mário mantém o Providência por meio deparcerias com instituições nacionais e internacionais e

A maioria das crianças atendidas pelo projeto não tem outro espaço para brincar, e 25% das famílias são chefiadas por mulheres sozinhas

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Atendimento integral

No Projeto Providência, os alunos recebem atendimento odontológico e praticam atividades de acordo comsua faixa etária. Dos 3 aos 6 anos, as crianças ocupam a brinquedoteca e têm aulas de educação Infantil. Dos 6aos 14, recebem apoio pedagógico e participam de oficina de trabalhos manuais e de horticultura. Dos 14aos 16, os adolescentes fazem oficinas de educação pelo trabalho e, dos 16 aos 18, têm aulas de informáticae de formação socioprofissional – podem escolher entre arte culinária, eletricidade, corte e costura e arteem madeira.

“Perdi minha mulher de câncer em 2000 e me vi sozinho com cinco crianças. Tive que passar meu trabalhopara o turno noturno. Se não fosse o Providência, não sei o que seria de nós. Com meus filhos na rua, seria muitomais difícil. Além de gostar daqui, há os cursos profissionalizantes, que encaminham os meninos”, diz o porteiroHélio Souza Filho, 49.

Seu filho Rhudson entrou no Providência aos 9 anos. Hoje, às vésperas de completar 16, faz o curso de corte ecostura e sonha em ser estilista. “Acho muito legal costurar, mas aqui tem muitas outras coisas de que gosto,como as aulas de computação e a comida, que é deliciosa”, diz o rapaz.

Além de certificar-se de que a alimentação dos meninos e das meninas está sempre balanceada e saborosa,padre Mário preocupa-se em incentivar, desde muito cedo, o respeito pela terra. “Nossa intenção é mostrar abeleza e a solidariedade envolvidas no processo do cultivo. Não vendemos nada. Você não imagina a felicidadedas crianças, ao levarem para casa uma ou duas folhas da alface que elas mesmas produziram”.

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As duas principais marcas de 1989 são a

aprovação da Convenção dos Direitos da

Criança e do Adolescente (Convention on theRights of the Child), no âmbito internacional,

e as intensas articulações para a aprovação,

no país, do Estatuto da Criança e do Adolescente,

que viria a acontecer no ano seguinte.

A Convenção dos Direitos da Criança e

do Adolescente, aprovada por unanimidade,

em 20 de novembro, na Assembleia Geral da

ONU, é um documento que, além de proteger

a infância, impõe sanções aos países-membros

que descumprem as suas determinações. Em

outras palavras, pela primeira vez, o mundo

tem um instrumento legal, no direito interna-

cional, que protege suas crianças e seus ado-

lescentes. Um ano depois, a Convenção foi

oficialmente considerada lei internacional.

O documento hoje é ratificado por 191 países.

No Brasil, a violenta realidade vivenciada,

principalmente, por meninos e meninas que

viviam nas ruas, seguia como ícone de uma

população que, mobilizada, clamava por

seus direitos e pedia mudanças. Naquele

ano, integrantes do Movimento Nacional dos

Meninos e Meninas de Rua realizaram seu se-

gundo encontro nacional, ocupando o plená-

rio do Congresso Nacional e promulgando,

1989

ONU aprova Convenção

Internacional dos Direitos

da Criança e do Adolescente

Campanha Criança Esperança

divulga ações básicas de saúde;

os porta-vozes são Xuxa e Os Trapalhões

simbolicamente, o Estatuto da Criança e do

Adolescente.

Ganhou força no país a luta pela inclusão

dos direitos da criança e do adolescente em

constituições estaduais e leis orgânicas mu-

nicipais – a exemplo do que havia ocorrido,

anos antes, em relação à Constituição Federal.

Extermínio

Em Vitória (ES), segundo o livro “A Guerra

dos Meninos: assassinatos de menores no Bra-

sil”, a Organização Pena de Morte eliminou,

entre 1989 e 1990, de 17 a 21 crianças e jovens

moradores das ruas. No Rio, a preocupação

era “limpar” os cartões postais: crianças e

adolescentes que aparentavam viver nas ruas

eram levados pela polícia militar ao Juizado

de Menores, apesar de não estarem come-

tendo nenhuma infração na hora da prisão.

Há registro de 23 crianças terem sido presas

em apenas um dia de “arrastão” – apenas

nove foram encontradas depois.

No Rio, segundo a mesma fonte, essa popu-

lação era vítima dos chamados “Anjos da Guar-

da”, lutadores de artes marciais da classe mé-

dia que se diziam defensores da sociedade. No

inconsciente coletivo, pobreza e criminali-

dade tinham quase uma relação de causa e

efeito.

Além da violência contra a infância pobre,

em 1989 havia 35 milhões de analfabetos

no Brasil. Metade das crianças era reprovada

já no primeiro ano do Ensino Fundamental.

Entre os trabalhadores, 70% recebiam até

dois salários mínimos por mês.

Vitória na saúde

Na saúde, havia o que comemorar: aquele

foi o ano do registro do último caso de polio-

mielite no Brasil. O Zé Gotinha vislumbrou,

ali, a iminente vitória sobre a paralisia infantil.

No mesmo ano, a Organização Mundial de

Saúde lançou a Declaração Conjunta sobre o

Papel dos Serviços de Saúde e Maternidades.

Em 1989, a campanha Criança Esperança

foi lançada no Fantástico, no dia 8 de outubro,

durante uma reportagem no interior de

Minas Gerais. Ao longo do mês, o “Domingão do

Faustão” e “Os Trapalhões” divulgaram for-

mas de os telespectadores fazerem pequenas

doações em dinheiro, reafirmando, dessa forma,

seu compromisso com a causa da infância. No

“Xou da Xuxa”, foram apresentados documen-

tários curtos sobre ações básicas de saúde.

CO

NTEXTO

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“O Crianca Esperança, além de tornar-se um exemplo, para o Brasil e para o mundo, de mobilizaçãoe de pedagogia social nos campos da promoção, atendimento e defesa dos direitos das crianças eadolescentes em estado de necessidade, vem tornando-se também um fecundo espaço de inovaçãopedagógica. De fato, os Espaços Criança Esperança estão a cada dia se transformando em centros dereferência de um novo jeito de ver, fazer, sentir e cuidar da educação das nossas novas gerações debrasileiros (crianças, adolescentes e jovens) como pessoas, cidadãos e profissionais.

Como foi possível fazer isso? Por um imenso esforço de transformação das Quatro Aprendizagens da UNESCO em competências,

das competências em habilidades, das habilidades em capacidades e, destas, em comportamentosobserváveis no chão da sala de aula e dos demais espaços educativos. Estes avanços, embora ainda nãotenham chamado a atenção do nosso e de outros países, estão destinados a se transformarem, daexceção de hoje, na regra feliz de amanhã.

Quem viver verá!”

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Antônio Carlos Gomes da CostaOficial de projetos do UNICEF no Brasilde 1987 a 1991

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