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Solange Cristina de Camargo Moreira Couto Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no curso de Especialização em Prevenção do HIV/AIDS no Quadro da Vulnerabilidade e dos Direitos Humanos do Programa de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Orientador: Veriano Terto Junior São Paulo 2011

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Page 1: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

Solange Cristina de Camargo Moreira Couto

Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti

à Infecção ao HIV/AIDS

Monografia apresentada no curso de Especialização em Prevenção do HIV/AIDS no Quadro da Vulnerabilidade e dos Direitos Humanos do Programa de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Orientador: Veriano Terto Junior

São Paulo

2011

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Solange Cristina de Camargo Moreira Couto

Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti

à Infecção ao HIV/AIDS

Monografia apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Especialista em Prevenção ao HIV/AIDS no Quadro da Vulnerabilidade e Diretos Humanos junto ao Programa de Medicina Preventiva.

Orientador: Veriano Terto Junior

São Paulo

2011

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Agradecimentos

Agradeço,de maneira especial o meu orientador Veriano Terto Júnior pela permanente disponibilidade e pela forma tranquila e precisa que me conduziu até o final deste trabalho.

Agradeço à Coordenação, Professores e Monitores do Curso de Especialização em Prevenção ao HIV/AIDS no Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos pela dedicação pessoal que conduziram este curso, em especial à Gabriela J. Calazans pela sua monitoria cuidadosa na construção dos conhecimentos que sustentaram a realização deste trabalho.

Agradeço também o investimento e a confiança da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, representada pela Coordenadoria de Controle de Doenças e Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SES/SP e a Secretaria Municipal de Saúde do Município de Santa Bárbara D’Oeste/SP. De forma especial agradeço a Nelisa Abe Cruz, amiga e coordenadora do Programa de DST/AIDS do Município de Santa Bárbara D’Oeste até Outubro de 2011, pelo incentivo e apoio incondicional.

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Sumário

RESUMO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 01

1.1 Objetivos Gerais........................................................................................ 05

2 REVISÃO DA LITERATURA...................................................................... 06

2.1 Capítulo I: Os Desafios Da Construção De Um Feminino Travesti............. 06

2.1 Capítulo II: A Marca Da Violência No Ser Travesti.................................... 19

2.2 Capítulo III: O Exercício Da Profissão Na Vida Travesti............................ 24

2.3 Capítulo IV: A Representação da AIDS No Contexto Travesti.................... 28

3 DISCUSSÃO............................................................................................... 34

4 CONCLUSÃO............................................................................................. 38

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 40

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RESUMO

Este trabalho abordou as vulnerabilidades sociais e individuais das

travestis de Salvador, Porto Alegre e Rio de Janeiro à infecção ao HIV/AIDS,

a partir da análise de contextos cotidianos da vida travesti sob três aspectos:

as condições em que o corpo travesti é construído, a violência que perpassa

as suas vidas e as condições do exercício da prostituição, aliado ao

significados que o HIV/AIDS tem para estas travestis dentro destes

contextos.

Foi utilizada a metodologia qualitativa a partir de três etnografias

publicadas em livros.

O que encontramos no entrelaçamento destes contextos, foram

estigma, preconceito, discriminação, violência, relação de gênero e de

poder, além da violação de direitos, o que produz vulnerabilidades sociais e

individuais importantes para as travestis aos mais diferentes riscos, entre

eles ao HIV/AIDS, onde respostas de prevenção estão pouco presente em

seus discursos.

Concluímos que as estratégias de prevenção ao HIV/AIDS para essa

população devem ser sustentadas por ações que enfrentam essas

condições de vulnerabilidades favorecendo a construção de sujeitos de

direitos.

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INTRODUÇÃO

A análise dos dados epidemiológicos e a observação empírica vinda da

minha experiência profissional, na assistência da população travestis

portadoras do vírus HIV, mostraram-me vulnerabilidades importantes das

travestis para o risco à infecção ao HIV/AIDS.

As estratégias de prevenção voltadas para a população LGBT (lésbicas

gays bissexuais e travestis) ainda são incipientes e isto agrava-se em

relação as travesti. Considerando que temos uma epidemia concentrada

neste grupo populacional, tenho observado que estas estratégias parecem

atingir ainda menos as travestis. Levanto a hipótese que isso ocorra em

decorrência de que ser travesti implica em contextos sociais e individuais

muito específicos e que, portanto, suas vulnerabilidades individuais, sociais

e programáticas à infecção ao HIV são muito diversas das outras

populações.

O conceito de vulnerabilidade aqui empregado é o da somatória de

situações individuais e sociais, vividas no cotidiano, que tornariam as

pessoas ou um grupo delas mais suscetíveis a uma doença e suas

conseqüências, bem como, com menores condições de dar respostas que

lhes permitam se proteger. 1(Ayres et.al , 2006 a e b ; Mann et al, 1996,1992;

apud Ayres, Paiva, França Júnior ,SP2010 p.7) .

1 Ayres, J.R., Calazans, G., Salleti, H. C. Fo., & França, I. Jr. (2006ª). Risco, vulnerabilidade e práticas de

prevenção e promoção da saúde. In G.W. de S. Campos, M.C de S. Minayo, M. Akerman, M. D. Jr., &

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Dentro desse conceito o sujeito é compreendido como sujeito de

direitos e intersubjetivos, ou seja, constrói e é construído nas relações

sociais, o que implica que as três dimensões da vulnerabilidade, que se

apresentam indissociadamente: a individual (sujeito de direito, com seus

recursos individuais), a social (relações sociais, culturais) e a programática

(respostas governamentais que garantam e protejam os direitos humanos)

atravessam o sujeito aumentando ou diminuindo a sua exposição ao risco de

uma doença (Ayres,Paiva,França-Júnior,2010).

Sendo assim, este trabalho se propõe conhecer os contextos sócios

culturais e individuais das travestis e as vulnerabilidades implicadas, para

pensar em estratégias de prevenção para essa população, que de fato,

favoreça a construção de respostas que ampliem as suas possibilidades do

exercício do direito à saúde na perspectiva do contexto considerado neste

estudo,ou seja, da prevenção à infecção ao HIV/AIDS.

Foi utilizada como marco teórico, a revisão de literatura de três estudos

etnográficos publicados em livros. A escolha pelo estudo etnográfico se deu

por abordar o contexto social em que elas vivem, trazendo também as

questões de âmbito individual. Esses estudos foram publicados nos últimos

30 anos (período da epidemia no Brasil), isso nos mostra que já foram

avaliados, inclusive, por pares e comitês editoriais, o que nos exime de

realizar novos estudos de campo. Sendo assim, esses estudos permitem-

Y. M. de Carvalho. (Orgs.). Tratado de Saúde Coletiva (PP.375-417). São Paulo; Rio de Janeiro:

Editora Hucitec; Editora Fiocruz Mann, J.,& Tarantola, D.J.N. (Eds). (1996). AIDS in the world II. New

York: Oxford University Press.

Mann, J., & Tarantola, D. J. N, & Netter, T.W. (Eds.) (1992). AIDS in the world. Cambridge. Havard

University Press.

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nos analisar o que eles revelam sobre a AIDS e sobre aspectos individuais e

sociais que podem apontar as condições de vulnerabilidades das travestis.

Este trabalho está estruturado da seguinte forma: o capítulo um traz a

construção do gênero feminino, marcado no corpo, e o quanto esta busca

incessante pelo feminino, sem condições adequadas, às expõem aos mais

diferentes riscos à saúde. Além disso, a vulnerabilidade gerada pela relação

de gênero que reproduz relações de poder e de submissão, em algumas

situações, do gênero feminino em relação ao masculino; gênero, aqui

considerado, como uma construção social do que é ser homem e ser mulher,

numa dada sociedade. (Paiva, 2000)

No capítulo dois é analisado como a violência se torna o pano de fundo

da vida travesti, desde as relações familiares, ainda na infância, passando

pela violência policial, da rua, dos clientes, da sociedade como um todo e o

que isto implica na construção de vulnerabilidades.

O capítulo três mostra as condições do exercício da prostituição,

principalmente marcada pelo estigma e todas as representações negativas

ligadas a ele, além da exposição à rua, aos clientes, à ação policial e sua

importância na construção do ser travesti, também identificando as

vulnerabilidades implicadas.

E no capítulo quatro é apresentado como a AIDS aparece nos

discursos das travestis estudadas. A presença do silêncio, do medo e as

ambigüidades, nesses discursos, apontam para representações que podem

gerar vulnerabilidades individuais importantes à infecção ao HIV.

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A partir da análise desses contextos procuramos identificar

vulnerabilidades à infecção ao HIV/AIDS, no plano social e individual. No

plano programático, ainda que não fosse objeto deste estudo, mas

considerando que os planos são indissociáveis, pudemos também identificar

vulnerabilidades que nos forneceram elementos de sua importância para o

aumento da exposição ao risco à infecção ao HIV/AIDS.

A compreensão das dimensões da vulnerabilidade, nesses contextos,

permite-nos concluir que as estratégias de prevenção, as quais possam

produzir respostas mais eficazes, devem ser sustentadas por ações que

visem a garantia e proteção dos direitos dessa população.

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OBJETIVO GERAL

Analisar, a partir de estudos etnográficos, o contexto sócio-cultural e

individual, de parte das travestis brasileiras para compreender as condições

de vulnerabilidades sociais e individuais à infecção pelo HIV/AIDS.

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CAPÍTULO I: O Corpo: Os Desafios da Construção De U m Feminino

Travesti

Neste capitulo, apresentaremos as condições em que ocorrem as

transformações no corpo das travestis, na busca incessante de uma estética

feminina que reflita na construção de um feminino travesti.

Este feminino travesti, como nos mostrará os estudos, é o que lhe dá

uma identidade, um lugar social; as transformam em sujeitos (Benedetti,

2005). Portanto, podemos perceber que o corpo e a metamorfose, pelo qual

se submete, têm importância seminal na construção do sujeito travesti e de

suas subjetividades.

Segundo Benedetti (2005), as travestis investem muito em seus corpos

(tempo, conhecimento, dinheiro) quando decidem transformá-los. É no corpo

que a marca do masculino e do feminino aparece, tanto pela ordem do

biológico, ou seja, do sexo, quanto pelas representações que temos sobre

ele, e, neste sentido ele é um produto social, pois está na ordem da

linguagem, portanto da cultura, não havendo como separar o que é

simbólico do que é real. Para as travestis, o corpo é sobretudo uma

linguagem; confere-lhes um lugar social. É no corpo que as travestis se

constituem enquanto sujeitos (Benedetti, 2005).

As transformações do menino para a travesti começam lentamente e

as características corporais são consideradas fundamentais para a

diferenciação de gênero, nesta “fabricação do feminino” (Benedetti, 2005a,

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p.51). Sendo assim, iniciam-se, estas transformações, por partes do corpo

que seriam mais fáceis de serem modificadas e também reversíveis, como

por exemplo, as mãos e os cabelos, embora também tenham a função de se

identificarem gradativamente com atributos femininos caracterizando um

período de transição (Benedetti, 2005). Neste momento, a maquiagem

começa ter importância fundamental, pois além de ser uma marca do

feminino, tem a função de esconder os atributos masculinos. O batom

vermelho é o principal produto, pois é a maior marca do feminino uma vez

que, carrega a representação da sensualidade e da sedução, supostamente,

irresistível para os homens.

A maior marca do masculino é a barba ou os pêlos do corpo. Por isso

lutam diariamente contra eles, segundo Benedetti (2005), a pinça é utilizada

frequentemente por horas e, normalmente com muita habilidade, até mesmo

sem a necessidade de espelho. Há também a utilização de ceras

depilatórias, água oxigenada para clareá-los, uso de hormônios e até a

eletrólise, que Kulick (1998) nos mostra como um método muito doloroso de

depilação, pois é feito com agulhas e precisa ser realizado por bons

profissionais, para que não traga danos a estética, porém tem efeitos mais

duradouros. Enfim, conhecem todos os recursos para eliminar os pêlos, com

mais ou menos sofrimento.

Ainda falando dos pêlos, têm as sobrancelhas, que recebem atenção

especial das travestis, pois não basta diminuí-los, eles devem ter um formato

que lhes confiram traços mais femininos, para isso são utilizados desde a

pinça até a maquiagem definitiva e outros recursos.

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Os cabelos devem ser longos, com cortes femininos e bem cuidados.

Para isto, também utilizam-se de todos os recursos disponíveis (tinturas,

alisamentos e outros). O cabelo é muito valorizado no universo feminino, por

isso, para as travestis ele é utilizado como símbolo de superioridade em

relação às outras travestis; é comum ridicularizarem as que usam perucas

(Benedetti, 2005).

A voz é outra marca do masculino, da qual a travesti tem que se

dedicar diariamente para ocultá-la. Exige um treinamento, de forma que os

fonemas sejam pronunciados de maneira mais aguda (Benedetti, 2005).

Hélio Silva (2007), nos relata, porém, que a voz grave ou grossa é uma

marca do masculino que insiste, apesar de todos os esforços, pois ao

acordar todas relatam a voz grossa e, segundo Silva (2007), é possível

observar que nos momentos onde estão mais descontraídas ou no final da

noite quando a possibilidade de um cliente é menor, a voz ir se tornando

mais grave. Mas, segundo Benedetti (2005), é a tentativa de feminilização da

voz que conclui a primeira fase deste processo de transformação em busca

do feminino.

Paralelo a esta fase, desenvolve-se gradativamente, desde a infância,

“a montagem” (Benedetti, 2005a, p.67) que é definida por ele como:

“um processo de manipulação e construção de uma

apresentação que seja suficientemente convincente,

sob o ponto de vista das travestis, de sua qualidade

feminina” (Benedetti, 2005a, p.67.)

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Esse processo de vestir-se com roupas femininas têm função

importante na construção da identidade travesti, pois é a primeira estratégia

utilizada para despertar o desejo dos homens (a maioria das travestis

relatam que com 6 ou 7 anos já vestiam roupas da mãe ou de irmãs), além

disso, a vestimenta comunica símbolos sobre a pessoa que a veste, ou seja,

lhe confere atributos sociais, bem como reconhecimento social, sendo

assim, as travestis investem horas por dia na tentativa da construção de uma

estética feminina perfeita (Benebetti, 2005).

As roupas íntimas assumem nesse contexto uma grande importância,

pois estão diretamente relacionadas a valores e práticas femininas, como

por exemplo, a calcinha, peça obrigatória na vestimenta cotidiana das

travestis. Além disso, as roupas íntimas são fundamentais para o trabalho de

prostituição, pois permitem que as peças fiquem a mostra como objeto de

sedução e seus corpos: seios, nádegas e pernas como objeto de desejo de

seus clientes.

Nessa montagem do feminino não pode faltar os sapatos de salto,

frequentemente muito altos, pois é uma importante marca do feminino, do

qual as travestis não abrem mão mesmo tendo que suportá-los de 6 a 10

horas por dia, circulando pelas ruas durante o trabalho de prostituição

(Benedetti, 2005).

Porém, na fabricação deste feminino travesti, outras marcas no corpo

começam a se fazer necessárias para lhe garantir um lugar de

pertencimento a esse grupo, pois as mudanças que aparecem ao olhar do

outro, é o que lhe dá um lugar social. (Benedett, 2005). Estamos falando da

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entrada dos hormônios em grandes quantidades e sem orientação médica,

da aplicação de silicone líquido em condições inadequadas e de implantes

de prótese de silicone. É o início de uma nova fase da construção do

feminino, no sentido de dar a este corpo formas mais arredondadas,

característica esta do corpo feminino (Benedetti, 2005).

Segundo Hélio Silva (2007), é o nascimento de um novo corpo, porém

não um corpo de mulher, pois tem características e atributos diferentes. “É

um corpo de travesti” (Benedetti, 2005a, p.73). Contudo, nesta nova fase os

riscos à saúde aumentam pela falta de condições adequadas para o uso

destes métodos.

De acordo com Benedetti (2005), a decisão pelo uso dessas técnicas,

está diretamente relacionada com a decisão de assumir a identidade

travesti, pois implica em decisões corporais mais definitivas e mais visíveis,

que vão para além da montagem. Normalmente, iniciam com o uso diário de

altas dosagens de hormônios (progesterona e estrógeno) para se conseguir

efeitos mais rápidos e isso ocorrendo por volta dos 14 ou 15 anos,

provocando o aumento dos seios, afinando a cintura e a voz (algumas

travestis, informantes de Benedetti (2005), contradizem esta informação) e

diminuindo os pêlos do corpo e da barba.

Kulick (1998) nos mostra, com as travestis de Salvador, que muitas

vezes o início do uso de hormônios, é marcado com a saída da casa da

família, ou por necessidade pelo fato de não aceitarem a sua condição

travesti, ou também pelo desejo de se sentirem mais livres para a

construção do ser travesti.

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As travestis mais velhas, normalmente, são quem incentiva as mais

novas a usarem hormônios; acreditam que quanto antes começarem melhor

o resultado. Kulick (1998) traz o relato de travestis que iniciaram o uso de

hormônio entre 7 e 8 anos. Os parceiros, também costumam incentivar o seu

uso, pois para serem consideradas travestis de verdade, precisam ter

características femininas.

Há muitos mitos e fantasias em torno da ingestão de hormônios, que

lhe dá o lugar de “veículo do feminino” (Benedetti, 2005a, p.77). Algumas

travestis acreditam que além dos efeitos físicos, eles também teriam efeitos

sobre atitudes, formas de pensar, sentir, até a expressão do olhar poderia

ser modificada pelo o hormônio, possibilitando a construção de um feminino

travesti (Benedetti, 2005).

Quanto aos efeitos colaterais (náuseas, problemas circulatórios e

outros), os que mais incomodam é a perda da ereção, pois comprometem o

trabalho de prostituição, já que muitos clientes querem ser penetrados por

elas e por este motivo, algumas suspendem o tratamento, dando início a

aplicação de silicone ou fazem um tempo de interrupção e depois reiniciam

(Kulick,1998).

Algumas fantasias também recaem sobre os efeitos colaterais, como a

de que os hormônios são eliminados na ejaculação, diminuindo assim seus

efeitos, o que levam algumas a não quererem ejacular enquanto estão

fazendo uso de hormônios (Kulick, 1998). Outra fantasia é de que os

hormônios afinam o sangue e isso deixaria a pessoa mais vulnerável para

doenças, levando a consumirem doses mensais de penicilina, sem

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necessidade. É encontrada também, a fantasia de que os hormônios

aumentam a irritabilidade e o nervosismo, que parece vir da associação de

um traço feminino de que a mulher seria mais nervosa que o homem,

segundo (Benedetti, 2005), os hormônios fazem uma integração entre o

físico e o moral, entre o real e o simbólico, pois age no corpo real e no corpo

moral.

O próximo passo após o hormônio, segundo Benedetti (2005), é a

aplicação de silicone líquido, que, normalmente é uma decisão mais

pensada, uma vez que é irreversível. Embora seja muito valorizada entre as

travestis, pois produzem efeitos imediatos, nem todas usam. O silicone é

aplicado em toda parte do corpo, pelas chamadas “bombadeiras” (Kulick,

1998a, p 95.), que é o nome dado as mulheres ou travestis mais velhas, com

algum tipo de experiência nesta técnica e que, portanto realizam a aplicação

do silicone líquido, sendo na grande maioria das vezes, sem condições

adequadas de assepsia, instrumentos e outros, o que aumenta o risco de

infecções e outras complicações de saúde que podem ser fatais.

Entretanto, Kulick (1998) nos relata que as travestis de Salvador,

consideram o silicone líquido como “revolucionário” (Kulick, 1998a, p.86.),

pois possibilita características femininas rapidamente e as deixam “mais

bonitas que muitas mulheres” (Kulick,1998a, p.86). São, preferencialmente,

aplicados nos quadris, nádegas e pernas, de acordo com o padrão estético

valorizado pela cultura do Brasil.

Como já nos mostrou Benedetti (2005), a decisão de aplicar o silicone

líquido, não é repentina. Kulick (1998), mostra que há vários aspectos a

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serem considerados, entre eles: precisam pensar na dor, nos riscos de

deformações do corpo, que traz prejuízos à estética e também no dinheiro

para adquirirem o silicone. Com todas estas questões a serem consideradas,

a aplicação raramente começa antes dos 16 ou 17 anos. A partir desta

idade, aplica-se, periodicamente até os 25 anos, quando, param para

reiniciarem em torno dos 35 anos, período que sentem que estão perdendo

a beleza e a juventude.

As travestis também usam as próteses de silicone, embora muito

menos que o silicone líquido, em função do alto custo financeiro e porque

algumas relatam rejeição (Benedetti, 2005).

Porém, apesar da dor e de relato de deformidades corporais causadas

pelo silicone, a supervalorização trazida pelos bons resultados dá origem a

expressão “Toda feita” (Benedetti, 2005a, p.86.), expressão esta que intitula

o livro de Benedetti.

A cirurgia plástica é um recurso pouco utilizado, pelo alto custo

financeiro, mas é um desejo muito relatado, principalmente, o de “fazer o

nariz” (Benedetti, 2005a, p.87), que significa deixá-lo mais feminino. A

cirurgia para mudança de sexo, como também nos mostra Silva (2007),

quando aparece no discurso travesti como um desejo, aponta mais para uma

forma de marcar uma identidade feminina e o gênero feminino, do que o

desejo real de utilizá-la.

Kulick (1998) nos revela que o que as travestis querem é se sentirem

mulher e não ser mulher. São homens que desejam outros homens e que

transformam seus corpos, em corpos femininos para atrair, seduzir os

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homens que elas desejam. O pênis é objeto de gozo; precisam do pênis

para gozar, por isso, normalmente, são contra a cirurgia para mudança de

sexo “Nasci homem vou morrer homem” (Kulick, 1998a, p.101). Além disso,

para elas a operação não produz mulheres, apenas tiram a possibilidade do

prazer sexual. Assim, Kulick, nos mostra que não é uma questão de sexo,

mas de gênero.

Para finalizarmos este processo de transformação corporal em um

corpo travesti, e como já é possível observar, que o que se busca no corpo

não é uma mudança de sexo, mas de gênero, ou seja, a construção do

gênero feminino, uma técnica importantíssima, apresentada pelos três

estudos, é fazer a genitália feminina. Esta técnica é chamada “acuendar a

neca” (Kulick,1998; Silva, 2007; Benedetti, 2005), que significa esconder o

pênis na região pubiana de forma que a aparência fique semelhante ao

genital feminino e esta técnica é desenvolvida com muita destreza.

A expressão “toda feita”, trazida por Benedetti (2005), segundo o

próprio autor, também marca que todo o processo de transformação do

corpo, não só pela aplicação do silicone, mas também pela utilização de

toda tecnologia disponível, produziu resultados satisfatórios neste corpo, o

transformando num corpo travesti, portanto resultados eficientes na

transformação de gênero. Em contra partida, para aquela travesti, que não

consegue bons resultados no processo de “modelagem” (Benedetti, 2005a,

p.86) de seu corpo, é chamada pela a expressão “plastificada” (Benedetti,

2005.p. 86).

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Kulick (1998), também traz que as travestis que optam por não fazerem

transformações mais definitivas ou radicais em seus corpos, como a

aplicação de silicone ou a ingestão de hormônios, não são consideradas

como travestis “de verdade” (Kulick,1998a, p.83) e são chamadas de

transformistas, sendo vista pelas outras travestis com certo incômodo. O

mesmo acontece com as travestis, que mantém traços mais masculinizados.

Segundo Benedetti (2005), é no corpo que se constroem as dinâmicas

e os sinais culturais de um grupo. Portanto, podemos observar que todas

essas intervenções no corpo realizadas pelas travestis, mostram o quanto

esse corpo precisa ser posto à prova, desafiado, “reconstruído e

resignificado” (Benedetti,2005. p.96) para que possam fazer parte de um

grupo e assim ter um lugar social.

Outro aspecto importante a ser considerado, que os autores nos

mostram, é que para se sentir mulher, não basta ter aparência de mulher,

precisa se comportar como uma e isto implica em ter um namorado ou

marido, ou seja, um homem para se relacionarem afetivamente. Sendo

assim, para as travestis é muito importante ter um namorado ou marido e

que sejam tidos e vistos como homens heterossexuais. Por isso buscam

homens com estereótipos fortemente masculinos, normalmente, envolvidos

com o crime, com outras mulheres ou travestis, prostituição e drogas. São

comumente sustentados pelas travestis, que se sujeitam a qualquer situação

de exploração para ter um namorado.

Como já discutimos acima, o corpo comporta o biológico e as

representações que fazemos sobre ele. As travestis constroem, num corpo

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masculino, o gênero feminino, suas práticas e usos. Nessa busca obsessiva

em si mesmo, da produção da mulher num ideal de perfeição, que nunca

chega (Silva, 2007), se expõe aos mais diferentes riscos, suporta as mais

diferentes dores.

Pelúcio (2009) e Kulick (1998) mostram através dos relatos das

travestis que usar o preservativo em suas atividades de prostituição é algo

que já está, de modo geral, incorporado no cotidiano das travestis. Porém,

quando saem desse contexto e vão para suas vidas pessoais, para os

homens com os quais mantém relacionamentos de afeto e prazer

(namorados, maridos) e com os quais, muitas vezes, também estão

submetidas aos diferentes tipo de exploração, o uso do preservativo

desaparece, pois precisam manter estes homens a qualquer preço, para se

sentirem mulher e também porque saem do lugar da profissional para o lugar

de amante e do prazer, como podemos observar no relato de uma travesti

que diz: “...ah, fui profissional a noite inteira...aí você vê aquele menino

bonitinho querendo namorar com você... vai se preocupar com isso, bem?...

(Pelúcio, 2007a, p.82). E como já vimos e é importante considerar, esses

homens com os quais mantém relação de afeto, estão em contextos de

grandes vulnerabilidades à infecção ao HIVAIDS. Vemos aqui uma

vulnerabilidade social importante em relação a questão de gênero, na

constituição do feminino e também individual nas relações afetivo sexual.

Uma grande vulnerabilidade individual a ser considerada, nesse

contexto, é a falta de condições adequadas em que as travestis realizam as

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transformações em seus corpos, além do uso excessivo de hormônios sem

acompanhamento médico, acarretando muitos efeitos colaterais.

No caso da aplicação do silicone os riscos são ainda maiores, pois a

falta de assepsia do local e dos instrumentos a serem utilizados aumentam

os riscos de infecção sem intervenção adequada de antibióticos, caso

necessário. Outro aspecto é quanto a utilização de silicone industrial, o que

é inapropriado, implicando em riscos importantes à saúde, o que é

aumentado pela falta de assistência médica em caso de alguma

intercorrência.

Toda essa ausência de cuidados com a saúde integral das travestis as

vulnerabilizam a várias doenças o que também pode aumentar a

vulnerabilidade ao HIV, pois uma baixa no sistema imunológico devido à

presença, de outro quadro infeccioso, aumenta o risco à infecção ao HIV.

Além disso, uma travesti soro positiva para o HIV que esteja

imunodeprimida, numa intervenção nestas condições, pode ser fatal. Aqui

encontramos uma vulnerabilidade programática, na falta de serviços de

saúde que garantam condições para as travestis realizem as intervenções

em seus corpos de forma adequada, sem por em risco a sua saúde. Pois, o

risco de contaminação ao HIV, sucumbe a tantos outros riscos que elas são

obrigadas a correr e assim, o cuidar de si ou da saúde ou fazer sexo seguro,

pode não fazer o menor sentido na vida delas, diante desse contexto.

Por isso ações de promoção de saúde que garantam atendimento

integral e adequado as necessidades das travestis de transformações

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Page 23: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

corporais2 são importantes, pois trazem para o repertório de vida das travesti

a noção do cuidado, que ela nunca conheceu e isso pode abrir a

possibilidade da construção de um discurso de cuidar de si.

2 O Centro de Referência e Treinamento de São Pulo e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul

são exemplos de serviços de saúde especializados para as demandas de travestis e transexuais,

desde clinica geral, hormônio terapia até encaminhamentos para redesignação sexual.

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Page 24: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

CAPÍTULO II: A Marca Da Violência No Ser Travesti

Neste capítulo vamos mostrar como a violência fomenta a

vulnerabilidade social das travestis à infecção ao HIV. Nos três estudos

etnográficos, a violência aparece de forma muito evidente e estrutural da

identidade travesti. “A violência é um eterno pano de fundo de suas vidas”

(Kulick, 1998a, p.47).

As travestis são vítimas tanto da violência física quanto da violência

psicológica. Segundo Larissa Pelúcio (2005), o contato com a violência

começa muito cedo na vida da travesti. Ainda na infância, elas trazem

relatos de xingamentos e agressões físicas por parte dos familiares e que,

muitas vezes, culminam com a saída de suas casas ou por expulsão ou por

decisão própria por não suportarem mais aquela situação. Depois vem a

violência da rua, do policial, dos clientes, dos assassinatos, da miséria, pois

a maioria, que já são de famílias pobres, se mantém em situação de miséria,

e do preconceito e da discriminação gerados pelo estigma de ser travesti.

Todas essas formas de violência têm como conseqüência, uma expectativa

de vida que não ultrapassa os 45 anos (Kulick, 1998). Ainda segundo Kulick

(1998), as travestis morrem antes dos 50 anos de idade, vítimas da

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violência, do uso de drogas, das conseqüências da aplicação de silicone

industrial e cada vez mais de AIDS.

As travestis convivem com a expectativa de serem agredidas física ou

verbalmente, a qualquer momento, por parte das pessoas que se sentem

incomodadas com a sua presença. Ao mesmo tempo em que atrai olhares

libidinosos de alguns homens, atrai a ira de outros. Porém, quando estão

trabalhando, no exercício da prostituição, estão mais vulneráveis à violência

policial, das pessoas que circulam pelo local de carro, de ônibus, entre

outros. Na maioria das vezes são agressões verbais, mas muitas vezes

também são físicas (Kulick,1998). Este autor nos conta ainda, que objetos

eram jogados contra as travestis como garrafas e latas pelas janelas dos

ônibus e carros, além de algumas vezes ocorrer disparo de armas de fogo

contra elas. Raramente os agressores eram identificados e presos, mas

quando isso acontecia eram submetidos à penas leves.

Porém, para as travestis de Salvador, segundo Kulick, (1998), a maior

violência vinha da polícia. Ocorreu durante décadas, uma ação de violência

organizada pela polícia militar sobre as travestis que iam desde a prisão,

passando por humilhações, estupro e espancamentos, chegando até aos

assassinatos. Até a década de 90, uma travesti ao sair para o trabalho não

sabia se voltaria para casa naquela noite. No momento em que realizou sua

pesquisa, Kulick, (1998) nos diz que já não existia mais uma ação

organizada, contudo, não era pouco comum encontrar ações individuais de

agressão contra travestis, realizada por policiais. Segundo Silva (2007), ao

reconstituir o processo histórico das Travestis da Lapa, relata que antes da

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Page 26: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

década de 60, não lhes era possível sair à rua sem receber algum tipo de

agressão.

Como já vimos, o corpo travesti não só tem cravado em si a marca do

gênero feminino, mas também carrega as marcas da violência, pois o

espancamento faz com que o silicone se desloque para outras partes do

corpo, fazendo com que as travestis fiquem com seus corpos deformados.

Além disso, nos períodos históricos de maior violência, os autores mostram

que precisavam utilizar-se da automutilação para se defenderem, mesmo

que isto lhes custassem marcas e cicatrizes, que muitas vezes, eram

apresentadas à sociedade como símbolo de sobrevivência e de resistência à

violência.

Kulick (1998), mostra-nos que uma defesa muito utilizada pelas

travestis de Salvador contra a ação policial, era cortar uma veia do braço e

“esborrifar sangue” (Kulick, 1998a, p.50) contra eles, por isso sempre

carregavam uma lâmina (gilete) escondida em alguma parte do corpo, às

vezes até na boca. Esta já era uma prática utilizada antes do surgimento da

AIDS, ganhando um significado a mais com a ameaça de transmissão do

HIV 3(Oliveira,1994:148-149, Mott &Assunção,1987 apud Kulick,1998a p.50).

Com a diminuição da violência, a automutilação também diminuiu,

sendo mais comum encontrar marcas de mutilação em travestis mais velhas

do que nas mais jovens, que buscavam se defender fugindo ou ameaçando

denunciar à imprensa, porém com pouco efeito (Kulick,1998).

3 Oliveira N.M de. Damas de Paus: O Jogo Aberto dos Travestis no Espelho da Mulher. Salvador:

Universidade Federal da Bahia, 1994

Mott, L & Assunção, A. A Gilete na Carne: Etnografia das Automutilações dos Travestis na Bahia.

Revista do Instituto de Medicina Social de São Paulo, 4(1):41-47, 1987.

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A violência também deixa marcas na construção da identidade social

das travestis, pois se de um lado buscam incessantemente a beleza, pois

lhes conferem, como já vimos, um lugar social e também lhes possibilita

mais trabalho, e portanto, mais dinheiro, como veremos a seguir, por outro

lado tem que conviver com os ataques da sociedade que ridicularizam esta

beleza tão investida com risos, piadas e humilhações. (Silva, 2007). “As

travestis sentem na pele o brilho da purpurina e a acidez da humilhação”

(Silva, 2007a, p. 64). É desta mistura que vai surgindo um sujeito que teve

que aprender a atacar para se defender dos ataques de uma sociedade e

por isso foram vistas como “perigosas” (Benedetti, 2005a, p.66). Hélio Silva

(2007), nos diz que tiveram que se utilizar do homem que havia guardado

dentro delas, para se impor de alguma forma na vida pública. “E se vêem

obrigadas a reafirmar a cada instante o seu direito de ocupar o espaço

público” (Kulick,1998a, p. 47).

A necessidade de defesa tornou as travestis desconfiadas. De modo

geral, elas têm muita dificuldade de confiar em outras pessoas e estão

sempre esperando ser enganadas e traídas, ou seja, estão sempre a espera

de um ataque (Kulick,1998).

Podemos perceber que nesse contexto de tanta violência que para

tentar se manter viva social e fisicamente, precisa se defender das mais

diferentes formas, proteger-se contra um vírus ou uma doença pode fazer

pouco sentido, mostrando-nos que a violência constitui-se como uma

vulnerabilidade social importante à infecção ao HIV/AIDS.

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Page 28: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

A promoção de saúde tendo em vista o acesso das travestis aos

serviços de saúde precisa considerar esse contexto de violência, na

construção do ser travesti, para possibilitar uma aproximação dos serviços

de saúde, de forma que elas possam sentir-se seguras de que ali, é um

espaço possível de se criar vínculos de proteção e de cuidado, dos quais

elas não precisem se defender e também criar espaços de discussão e

participação nas políticas públicas de forma que elas não tenham que se

impor no espaço público, mas sim que façam parte dele, como direito.

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CAPÍTULO III: O Exercício Da Profissão Na Vida Trav esti

Neste capitulo, apresentaremos a importância e as condições do

exercício da prostituição na vida das travesti. Ela foi amplamente estudada,

pelas três etnografias, pela importância que ela assume na vida e na

construção do ser travesti. Considerando que a transmissão do HIV, ocorre

principalmente pela via sexual, a prostituição torna-se contexto de

vulnerabilidade importante para a infecção do HIV às travestis.

Segundo todos os autores estudados, a prostituição tem um papel

importante na vida das travestis sob dois aspectos: o primeiro diz da

necessidade de sobrevivência, ou seja, de ganhar dinheiro para se

sustentar. Para a grande maioria delas, a prostituição ou “batalha” como

nomeiam o seu trabalho, é a única forma de ganhar dinheiro, pois o

preconceito e a discriminação dificultam a aquisição de outra atividade

profissional e quando isto ocorre são em atividades femininas e pouco

remuneradas (Kulick,1998).

Como vimos anteriormente, as travestis abandonam, ainda

adolescentes, as casas de suas famílias, já de origem muito pobres, para

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Page 30: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

morarem sozinhas, precisando assim, se sustentarem. Somado a isso, surge

o desejo e a necessidade de transformação de seus corpos, o que também

como já vimos, consome muito dinheiro. É um desejo, pois querem ter um

corpo feminino, para atrair os homens que desejam e também para se sentir

mulher e é também uma necessidade, pois quanto mais feminino e belo este

corpo for mais terá um reconhecimento social pelo seu grupo, e mais

desejável e rentável este corpo será para o mercado do sexo. Benedetti

(2005) relata que todas as travestis com as quais trabalhou, afirmam que

travesti com poucas formas femininas ganham pouco dinheiro.

Kulick (1998) relata que, historicamente o trabalho de prostituição das

travestis começa na década de 70 e 80 com a chegada dos hormônios

femininos, tornando-as mais atraentes e assim deixam de pagar para

receber ao fazer sexo. Ainda nesse sentido, esse mesmo autor nos diz que

muitas travestis têm prazer sexual com seus clientes. Algumas descobrem a

prostituição por acaso. Benedetti (2005) e Kulick (1998) nos trazem relatos

de travestis que após ter relações com homens com a quais elas desejaram,

receberam dinheiro e, então perceberam que esta era uma forma possível

de ganhar dinheiro.

Kulick (1998) nos diz que antes dos hormônios, para conseguir fazer

um programa por dinheiro, precisavam se passar por mulher. Um dado

interessante que ele nos traz, é que usavam absorventes sujos de batom,

para dizerem que estavam menstruadas e que por isso só podiam fazer sexo

anal. A entrada dos hormônios e silicone permitiu que pudessem assumir o

lugar de travesti.

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Page 31: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

Para além do desejo e das necessidades de investir no corpo, também

precisam de dinheiro para comprar afeto da família, pois muitas ajudam seus

familiares e enviam-lhes presentes, como forma de conseguir se sentir

amada (Silva, 2007) e também comprar afeto de um homem (namorado,

marido), para se sentir mulher. Diante desse contexto, a prostituição torna-se

um trabalho como outro qualquer, “caem na vida” (Kulick,1998a, p.151),

expressão usada para se referir ao início da prostituição, como atividade

profissional.

Mas a prostituição tem outro papel importante. A rua, enquanto espaço

do exercício da prostituição, é o único contexto social, onde elas podem ser

reconhecidas e admiradas, portanto dando lhes um valor pessoal, além de

se sentirem verdadeiramente como objeto de grande desejo (Kulick,1998).

Fora desse contexto tornam-se invisíveis para a sociedade; não tem

ninguém para conversar com elas, para convidá-las para jantar ou para ir ao

cinema, que possa inscrevê-las num outro contexto que permita surgir afeto

e outros sentidos (Silva, 2007).

As travestis se queixam da prostituição; gostariam de ganhar dinheiro

em outra atividade profissional; projetam estudos, moradias dignas, mas

sem abrir mão da sua condição travesti (Silva, 2007). A sociedade aceita ou

reconhece a travesti na sua condição de travesti prostituta, caricatura de

mulher, mas não a aceita como cidadãs de direitos como todos os outros;

direito a empregos dignos, moradias, estudos, saúde e outros.

Enquanto isso continuaremos a assistir travestis morrerem na miséria,

diante da impossibilidade de trabalho, pela perda da saúde, da beleza e da

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Page 32: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

juventude, e assim de ganhar dinheiro com a prostituição (Silva, 2007).

Porém, é importante ressaltar que nem todas as travestis se prostituem, mas

a rua, mesmo para aquelas que ali não buscam clientes, continua sendo

uma das únicas possibilidades de convívio e reconhecimento social (Pelúcio,

2009).

As condições de prostituição pelas as quais as travestis estão

submetidas, ou seja, a rua, considerando que esta traz de forma mais

contundente a violência, a marginalidade, a exclusão e a repressão policial,

além da exposição ao frio e a chuva, utilizar práticas de sexo seguro pode

torna-se mais difícil. Como observamos existe uma ambigüidade entre

desvalorização e valorização da prostituição que comporta prazer e

sofrimento e talvez o uso do preservativo também esteja submetido a esta

ambigüidade.

Podemos pensar que uma possibilidade de estratégia de prevenção

com as travestis, no contexto de prostituição, seja trabalhar o aspecto

valorizado da prostituição, que é a exibição do corpo belo e portanto,

saudável e desejável. Associar esse corpo belo a um corpo saudável, talvez

seja uma possibilidade de cuidado com este corpo que vá além dos atributos

femininos.

Além disso, investir em estratégias que discutam estigma, preconceito

e discriminação em relação à diversidade sexual, também é fundamental,

pois a rua ou o exercício da prostituição não pode ser o único espaço

possível de existência social da travesti.

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CAPÍTULO IV: A AIDS No Contexto Travestis

Neste capitulo, apresentaremos como a AIDS aparece no discurso das

travestis, através dos relatos trazidos pelas etnografias estudadas e quanto

esses discursos sobre a AIDS podem contribuir para a construção de

vulnerabilidades.

Nos três campos etnográficos estudados, o discurso sobre a AIDS,

pelas travestis, não tem destaque relevante, pois este não era o objeto de

estudo desses autores. Os três campos etnográficos tinham como objetivo

trazer o cotidiano das travestis apontando para questões de gênero,

violência, prostituição, relacionamentos e outros. Porém, nas entre linhas,

deste cotidiano, esses estudos no forneceram caminhos importantes que

nos conduziram para o que é a AIDS para as travestis. Para ampliar o

nosso olhar, buscamos outra etnografia que tinha como objeto de estudo a

AIDS no contexto travesti.

O que encontramos, nesse percurso, é um jogo de silêncio que ao

mesmo tempo é encobridor e revelador tanto por questões programáticas

quanto pelo o que a AIDS representa para esse grupo.

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Page 34: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

No discurso das travestis de Salvador (Kulick,1998), a AIDS se mostra

como apenas mais uma causa de morte, entre tantas outras. Isso fica

justificado, na fala delas, pela dificuldade de acesso ao serviço de saúde,

levando as próprias travestis a fazerem os seus diagnósticos e se

automedicarem. Num contexto desse, a AIDS ou qualquer outra doença, não

está submetida a uma investigação clínica, ou seja, ninguém tem certeza de

qualquer diagnóstico, deixando sempre um espaço para a incerteza se

morreu mesmo de AIDS, possibilitando, assim, um encobrimento da

presença da AIDS.

Outro aspecto apresentado por Kulick (1998), são as crenças

fantasiosas bastante comuns, de que os testes de HIV não são confiáveis,

que podem dar um resultado positivo e depois, se repetido, pode dar um

resultado negativo e por isso não é possível saber, com certeza, quem tem

ou não o vírus. Outra crença das travestis de Salvador, é a de que existe a

possibilidade de infectar-se por níveis diferentes de HIV, sendo assim, se

alguém se infectar com pouca quantidade de vírus terá a saúde pouco

comprometida. Podemos perceber que essas crenças deixam espaço para a

dúvida e a incerteza, portanto, para a possibilidade da ausência do vírus.

Todavia, nos três campos de estudo, é possível observar que a palavra

AIDS esta carregada de preconceitos, que tem origem ainda no início da

epidemia, com a associação da homossexualidade às práticas sexuais

desviantes. Essa associação de sexualidade, doença e culpa, colocando a

AIDS ligada a “comportamentos desviantes, promíscuos e perigosos”

(Pelúcio, 2009a, p.116) e portanto, na ordem da moral (Pelúcio, 2009),

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tornou as travestis um alvo fácil para o preconceito e a discriminação , pois

elas carregam, de acordo com o discurso hegemônico das ciências médicas,

as marcas do “desvio” no próprio corpo pela presença da incongruência

entre sexo e gênero, além de historicamente, serem vistas como promiscuas

e perigosas. Sendo assim, o ser travesti fica referenciado à AIDS, ou seja,

se é travesti tem AIDS. Isso nos ajuda a compreender, o porquê contrair o

HIV é motivo de grande sofrimento, pois além de ter que enfrentar as

questões clínicas que a AIDS traz, como por exemplo, o impacto no corpo

causado pela lipodistrofia, corpo este como já vimos, que é altamente

investido para ser belo e para lhe garantir um lugar social, tem também que

enfrentar o preconceito e a discriminação que Parker e Daniel (1991)

caracterizam como a Terceira Epidemia, o que compromete tanto o seu

lugar social no grupo , quanto o exercício da prostituição de onde tira o

dinheiro necessário para sua sobrevivência e também para a sua existência

enquanto sujeito, sustentado pelo corpo travesti.

Segundo Hélio Silva, a AIDS é referida, pelas travestis da Lapa como

“a maldita” (2007a, p.87). Kulick (1998) reforça essa idéia ao relatar que a

palavra aidética é utilizada para agredir outra pessoa, normalmente outra

travesti, como forma de xingamento ou retaliação, o que nos mostra os

juízos de valores negativos que a AIDS carrega. Por outro lado, quando

morre uma travesti, supostamente de AIDS, pela qual se tem afeto, justifica-

se essa morte pelas causas mais diversas como problemas cardíacos,

respiratórios, de estômago e até psiquiátrico como a depressão. Isso pode

ser observado em falas dos diagnósticos construídos por elas mesmas:

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Page 36: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

“problemas pulmonares”, “infecção no estômago”, “coração inchado” ou “ela

não tinha mais vontade de viver” (Kulick,1998a, p.45), mas nunca de AIDS.

Porém, se morre uma travesti pela qual se tem desafeto, independente da

causa, ela morreu de AIDS.

O estigma da morte que a AIDS carrega, está presente também nos

três estudos. Hélio Silva (2007), a partir dos relatos das travestis da Lapa,

com as quais trabalhou nos mostra que para elas morrer de AIDS é a pior

morte. Apresenta falas de travestis que dizem que “se eu fizer o teste e der

AIDS eu me suicido” (Silva, 2007a, p.116). Benedetti (2005a, p.107) reforça

essa relação com a morte, trazendo o relato de uma travesti que ao ter sido

levada ao hospital, devido a uma crise respiratória, foi submetida ao teste do

HIV. Ao descobrir-se soropositiva saltou do 4º andar do hospital e morreu

instantaneamente. E o discurso recorrente das outras travestis é que não

teriam “estrutura” (Benedetti, 2005a, p.108) para aguentar esse

diagnóstico,e que também suicidariam-se.

Com esses relatos é possível inferir que a AIDS tem uma

representação tão assustadora, que não pode ser falada e nem vista. As

travestis que passam a vida expostas ao olhar do outro, exibindo seus

corpos transformados nas “pistas” (Kulick,1998a, p.160)4, tanto para ter um

lugar na sociedade, quanto para o exercício da prostituição, se escondem

para morrer, principalmente se for de AIDS (Silva, 2007). Kulick (1998)

também mostra que muitas voltam para casa de familiares ou de alguém que

possa cuidar em suas cidades de origem, na grande maioria pequenas e

4 Pista é o nome dado ao espaço da rua onde realizam o exercício da prostituição.

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Page 37: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

com poucos recursos médicos ou vão para em algum quarto, escondido no

meio da cidade, mas longe do olhar das outras travestis. As travestis se

isolam, fogem do olhar das outras travestis para morrer. Assim podemos

dizer que o preconceito, a clandestinidade, o isolamento tem efeitos mais

mortíferos do que a própria AIDS, pois as levam à uma morte social. Deixam

de existir antes da própria morte.

Esse é o preço para não morrer de AIDS, diante do olhar do outro.

Negar a presença da doença é forma de se manter vivo socialmente. Há

uma tensão entre o que é falado e o que é silenciado, nos mostrando o

quanto ter AIDS, para as travestis, implica em contradições que geram

grandes conflitos e sofrimentos. Helio Silva (2007) nos mostra que muitas

das travestis da Lapa, vivem como se não estivessem doentes. Vão para a

“batalha” (Kulick,1998a, p.157), expondo-se à friagem, a chuva, como se a

doença não existisse.

Os estudos de Larissa Pelúcio (2009), que teve como objeto principal a

compreensão do contexto da AIDS, na vida das travestis, como citado no

início deste capítulo, traz que a questão da AIDS para as travestis com as

quais trabalhou, é apenas mais uma questão a ser enfrentada na vida, pois

trazem uma história marcada por dor, sofrimento, violência e tragédias,

produzidas tanto pela condição de pobreza quanto pela condição de gênero,

e que a AIDS só vem a agravar. Refere-se ao relato de uma travesti que diz:

“O HIV é um detalhe na minha vida. Porque tenho que resolver muitas

coisas antes do que o HIV” (Pelúcio, 2009a, p.111). Nesse contexto de

violência e pobreza, onde estar vivo já é uma grande conquista, cuidar da

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Page 38: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

saúde, parece tornar-se irrelevante, seja usando o silicone industrial seja se

prevenindo da AIDS (Pelúcio, 2009).

A partir da análise desses estudos, podemos entender que a

construção social da AIDS, desde o início da epidemia, como apontado

acima, somada aos contextos individuais e sócio-culturais das travestis

produziram representações tão assustadoras que não podem ser vistas ou

faladas, construindo um silêncio mortífero, precisando de fantasias, como

nos aponta Kulick (1998), para encobrir esta angústia ou a produção da

própria morte, seja ela simbólica ou real, como nos mostra Silva (2007) e

Benedetti (2005). Em oposição a essa idéia, Pelúcio (2005) nos mostra que

a AIDS, para as travestis com as quais trabalhou,apresenta-se como sem

importância, apenas como um detalhe de vida se comparada a tantos outros

riscos e em enfrentamento para estar viva ou como algo já esperado pela

própria condição de ser travesti.

Porém, apesar de representações ambíguas, um traço comum do

discurso travesti em relação a AIDS, é que produzem um discurso

encobridor do HIV/ AIDS. Esses discursos produzem uma vulnerabilidade

individual para as travestis, que podem representar um impacto importante

na exposição ao risco à infecção ao HIV, pois como se proteger de algo que

não pode ser visto ou que já está dado como destino?

Estas representações da AIDS para as travestis precisam ser

consideradas para elaboração de qualquer projeto de prevenção.

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Page 39: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

DISCUSSÃO

Ao longo deste trabalho o que pudemos observar é que os contextos

que constroem e sustentam o ser travestis são marcados por contradições,

ambigüidades e tensões que nos levam a concluir que o risco à infecção ao

HIV está muito além de comportamentos e práticas de risco, e que as

dimensões individuais e sociais da vulnerabilidade devem ser

compreendidas e consideradas para a elaboração de estratégias de

prevenção mais eficazes.

As dimensões da vulnerabilidade estão implicadas uma as outras,

sendo difícil separá-las e é a partir delas que os sujeitos constroem

respostas individuais, entendidas como intersubjetivas, pois o sujeito

constrói e é construído pelas relações sociais (Ayres, Paiva, França-Júnior,

2010). Daí a importância da compreensão dos contextos de vida das

travestis para identificar as vulnerabilidades que aumentam a exposição ao

risco à infecção ao HIV/AIDS.

No plano individual encontramos as condições de transformação

corporal, as impossibilidades de cuidado com a saúde, as relações

familiares, as relações afetivo-sexual, a baixa escolaridade e suas

vivências/cena subjetivas e intersubjetivas na relação com o outro

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Page 40: Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção … · Dimensões da Vulnerabilidade da População Travesti à Infecção ao HIV/AIDS Monografia apresentada no

(Ayres,Paiva,França-Júnior,2010). No plano social evidenciamos a grande

vulnerabilidade trazida pela relação de gênero e, consequentemente de

poder pela diferença de gênero, pelo processo de estigmatização e

preconceito relacionado à homossexualidade gerado pela construção social

de uma normatização da sexualidade (Paiva, 2010) e na falta de proteção

dos diretos como, por exemplo, a proteção contra violência, à saúde integral,

emprego/salário, educação, informação, prevenção e outros

(Ayres,Paiva,França-Júnior,2010).

No plano programático, ainda que não fosse objeto de estudo deste

trabalho, encontramos a falta de organização dos serviços de forma a

garantir informação, acesso, equidade, saúde integral, participação na

construção de políticas específicas e outros (Ayres, Paiva, França – Júnior,

2010). É importante ressaltar que existem movimentos sociais organizados

que vem buscando fazer o enfrentamento dessas condições ou melhor,

dizendo, dessas não-condições(Galvão,2000).

A construção do ser travesti trazida na busca frenética do gênero

feminino marcado no corpo, sem condições adequadas de saúde, de

assistência médica e outros, nos estigmas encontrados na prostituição e na

rua, numa trajetória construída sob a violência das mais diferentes formas,

iniciada ainda na infância dentro de suas famílias, nos apontam para a

questão do quanto ser travesti implica em riscos. Se viver já é um risco para

as travestis ele é ainda maior, se considerarmos que todo esse processo de

construção é marcado pelo estigma, preconceito e discriminação, que leva a

violência, a falta de escolarização, a falta de trabalho e ao acesso a um

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serviço de saúde. Todos esses fatores nos apontam para o porquê para as

travestis é tão difícil ser sujeito de direitos.

Diante desses contextos de incertezas, falta de possibilidade de

cuidado e de direitos, e, portanto de muitos riscos, onde (sobre) viver, tentar

existir enquanto sujeito é uma luta diária, não encontramos no repertório de

vida das travestis o cuidar de si, como possibilidade de resposta de proteção

ao HIV e a AIDS, por mais assustadora que esta possa aparecer para

algumas delas. Parece que a proteção não encontra lugar no discurso das

travesti, pois a construção de uma resposta de cuidado é muito difícil para

elas, uma vez que muitas passaram a vida sem saber o que significa

cuidado ou proteção, por isso talvez não saibam como construir essas

respostas e parece que as ações programáticas também encontram

dificuldades nessa construção.

O contexto das travestis tem suas especificidades como qualquer outro

contexto, mas é fundamental conhecê-las , como nos diz Hélio Silva (2007),

para colocá-la num discurso do humano, portanto do afeto e do direitos

humanos, na construção “sujeitos-cidadãos” 5 (Paiva, 2002a, p.13 apud

Ayres, Paiva e França-Júnior,2010).

Uma política de prevenção ao HIV/AIDS, para as travestis, deve ofertar

acesso, equidade, saúde integral, participação social para possibilitar a

5 Ayres, J.R., Calazans, G., Salleti, H. C. Fo., & França, I. Jr. (2006ª). Risco, vulnerabilidade e práticas de

prevenção e promoção da saúde. In G.W. de S. Campos, M.C de S. Minayo, M. Akerman, M. D. Jr., &

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Mann, J., & Tarantola, D. J. N, & Netter, T.W. (Eds.) (1992). AIDS in the world. Cambridge. Havard

University Press.

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construção conjunta de respostas que favoreçam o surgimento de sujeitos e

direitos, para que o cuidar de si passe a fazer sentido em seus discursos,

nas cenas e cenários de suas vidas (Paiva, 2010).

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CONCLUSÃO

A análise desses contextos mostrou que as travestis têm dificuldades

de dar respostas preventivas ao HIV/AIDS, pois não faz parte da construção

do ser travesti o cuidar de si, uma vez que estão submetida as mais

diferentes formas de violência vindas da rua, da sociedade, da violação de

direitos como, por exemplo, a falta de acesso à saúde integral, moradia,

educação, emprego e outros. Numa realidade como essa, sobre (viver) pode

ser considerado uma grande conquista, onde a prevenção não encontra

lugar.

Concluímos que a compreensão do que é ser travesti no Brasil, nos

aponta para importância de respostas programáticas que intervenham nos

três planos da vulnerabilidade, criando condições adequadas para que

realizem as transformações corporais de forma segura para a sua saúde,

oferecendo proteção contra todo o tipo de violência, garantindo o acesso à

educação, à informação, à saúde, moradia, trabalho, propiciando espaços de

discussão sobre os efeitos nocivos à sociedade do estigma, preconceito e

discriminação, incluindo a sexualidade, objetivando a desconstrução social

da hegemonia da heterossexualidade, e assim também diminuindo

preconceitos em busca da inclusão da diversidade sexual. Enfim, ações

sustentadas pela garantia e proteção dos direitos humanos, no

fortalecimento de movimentos sociais organizados, que já vem realizando

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lutas importantes contra a violência, ao preconceito, ao direito de saúde

integral e outros, favorecendo a construção de sujeitos de direitos e assim

buscando respostas conjuntas, incluindo no discurso travesti o direito a se

proteger, inclusive do HIV/AIDS.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(tradução,Cesar Gordon). Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998

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