dimensões culturais da globalização, appadurai

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:;' , " ) , ARJUN APPADURAI é profe s sor de antropologia e de línguas e civilizações da Ásia meridional na Universidade de Chicago, cidade onde foi a' nteriormente director do Chicago Humanities Institute, Entre as suas muitas publicações contam-se: Worship a.nd Conflict under Colonial Rule (Cambridge, 1981), The Social Life of Things (director de edição na Cambridge University Press, 1986) e Gender, , Genre and Power (como co-editor da University of Pennsylvania Press, ' 1991). É director do Globalization Project na Universidade de Chicago e trabalha actualmente sobre a relação entre violência , étnica e representações do território nos modernos estados-nação. I ' I I I' , ARJUN APPADURAI Dimensões Culturais da Globalização A modernidade sem pelas , Tradução de TeIma Costa Revisão científica Conceição Moreira teorema . (JOO

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Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. APPADURAI

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    ARJUN APPADURAI professor de antropologia e de lnguas e civilizaes da sia meridional na Universidade de Chicago, cidade onde foi a'nteriormente director do Chicago Humanities Institute, Entre as suas muitas publicaes contam-se: Worship a.nd Conflict under Colonial Rule (Cambridge, 1981), The Social Life of Things (director de edio na Cambridge University Press, 1986) e Gender,

    , Genre and Power (como co-editor da University of Pennsylvania Press, '1991). director do Globalization Project na Universidade de Chicago e trabalha actualmente sobre a relao entre violncia , tnica e representaes do territrio nos modernos estados-nao.

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    ARJUN APPADURAI

    Dimenses Culturais da Globalizao

    A modernidade sem pelas , Traduo de TeIma Costa

    Reviso cientfica Conceio Moreira

    teorema

    . (JOO

  • I I . I

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    I 1

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    1 Aqui e agora

    A modernidade pertence a essa" pequena fariulia d teorias que simul-taneamente se declara e se deseja de aplicabilidade universal. O que tem de novo a modernidade (ou a ideia de que a sua novidade um novo tipo de novidade) decorre desta dualidade. Para alm de tudo o que criou, o projecto iluminista aspirou a criar pessoas que, postfestum, viessem a querer ser modernas. Esta ideia que em si prpria se consuma e" se justifica provocou muitas crticas e muita resistncia, tanto na teoria como na vida

    Nos meus tempos de juventude, em"Bombaim, o contacto com a mo-dernidade enl uma experincia nitidamente sinestsica e largamente an-teterica. Via " e cheirava a modernidade lendo a Life e catlogos" de uni-versidades americanas na biblioteca do United States Information Service, vendo filmes da srie B (e alguns da srie A) de Hollywood no Cinema Eros, a quinhentos metros do meu prdio. Pedi para Stanford, ao meu ir-mo (no princpio dos anos sessenta), que me trouxesse umasjeans e rei a Amrica no que trazia a sua bagagem quando ele regressou. Grad; a1-mente, fui perdendo a Inglaterra que antes assimilara a p'artir dos livros

    11

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  • ARJUN APPADURAI

    escolares vitorianos, do que diziam os meus colegas de faculdade que ti-nham bolsas Rhodes e dos livros de Billy Bunter e Biggles devorados in-discriminadamente, a par de outros de Richmal Crompton e Enid

    . Franny eZooey, Holden Caulfield e Rabbit Angstrom foram limando len-tamente essa parte de mim que at ento era s vivas Inglaterra. So es-tas as pequenas derrotas que explicam como a Inglaterra perdeu o imprio na Bombaim ps-colonial. .

    . No sabia ento que estava a afastar-me de uma espcie de subjecti-vldade ps-colonial (dico anglfona, pseudodebates na Oxford U nion umas espreitadelas Encounter, um interesse patrcio pelas humanidades) para outra: o Novo Mundo mais spero, mais sedutor, mais viciante das reprises de Humphrey Bogart, de Harold Robbins, da Time e das cincias socjis em estilo americano. Quarido mergulhei nos prazeres do cosmo-P?litismo, no Elphinstone College, j ia equipado com tudo o que pre-

    . CISO: uma educao anglfona, um endereo da classe alta de Bombaim (emboracof9. o rendimento. de uma faffil1ia da classe mdia), relaciona-

    social .com manda-chuvas da academia, um irmo famoso U fa-que tinha sido l aluno, uma irm com amigas bonitas j na uni-

    versidade. tinha sido picado pelo bichinho americano. Estava j .entrado na VIagem que me levou Universidade de Brandeis (em 1967, quando os estudantes eram uma categoria tnica irrequieta nos Estados Unidos) e depois at Universidade de Chicago. Em 1970 ainda eu an-dava deriva, a caminho de um encontro com as cincias sociais ameri-canas, com os estudos de rea e com essa forma triunfal de teoria da mo-dernizao que era. ainda produto certificado do americanismo num mundo bipolar. . .

    Os que se seguem podem ser vistos como um esforo para dar sentIdo a uma viagem que comeou com a modernidade como sen-

    . sao materializada nos filmes de Bombaim e terminou num frente-a--frente com a modernidade-corno-teoria nas minhas aulas de cincias so- . ciais, na Universidade de Chicago, nos primeiros anos setenta. Nestes captulos, procurei te matizar certos factos culturais e para ex-por a relao entre a modernizao como facto e a modernizao como

    12

    \

    I 1 ! .

    . .. . _ _ _ -DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALlZAO g \

    teoria 1. Esta inversl do processo que me deu a conhecer o ser- O I. ve para explicar algo que de outro modo poderia uma prefern- :

    disciplinar e ,arbitrria pelo cultural como mera deformao profis- O . slOnal do antropologo. . . . O fC'\t \J t- .

    O r O global hoje O . ' . () I

    Todas as grandes foras sociais tm percursores, precedeI1tes, anlogos . : e. fontes no passado. So estas as profundas e mltiplas gen'ealogias (ver ! captulo 3) que tm frustrado a modernizadores inseridos em sociedades U " . muito diferentes a aspirao de sincronizar os seus relgios histricos. ()

    \ Este livro defende tambm a presena deUma ruptura geral no teor das O .. relaes intersocietais destas ltimas dcadas. H que explicar esta pers- O pectiva de mudana - melhor, de ruptura - e distingui-la de algumas O das anteriores teorias da transformao radical. > . .

    Um dos mais problemticos legados da cincia social do Oci- () dente (Auguste Comte, Karl Marx, Ferdinand Ton1ies, Max Weber, O mile Durkheim) nunca ter deixado de reforar o sentido de um mo- O mento singular - chamemos-lhe o momento moderno - que pela sua C) aparncia abre. uma brecha profunda sem precedentes entre o passado O e o presente. Reencarnada como o corte entre tradio e modernidade e O tipificada comCa ;;tre sciedades ostensivamente fraCf0io-nais e sociedades por demais demonstrado po-

    os sig1.ficados da tin-:SJrmao e da poltica do () \ No entanto, o mundo em que hoje vivemos - em que a modernidade.O \anda decididamente solta, por vezes acanhada e sentida de forma de- Q . sigual - implica seguramente um corte com todo o tipo de passados . O ! Que espcie de corte este, seno o identificado pela teoria da moder- o. 1 nizao (e criticado no captulo 7)? .

    Implcita neste livro est uma teoria de ruptura que toma os meios O de comunicao social e a migrao como os seus dois diacrticos prin- O cipais e interligados, e explora o seu efeito conjunto sobre a obra da C; o

    .< "

  • AI.UUN APPADURAI

    como caracterstica constitutiv da subjectividade moderna. pnmeIro passo o provar que os meios de comunicao electr-

    lllCOS mudaram decIsIvamente o campo mais vasto dos meios de comu-nicao de massas e outros meios de comunicao tradicionais. Isto no uma fetichizao monocausal da electrnica. Esses meios de comuni-

    o campo da mediatizao de massas porque ofere-cem a construao de eus imaginados e de mundos imaginados novos re-

    novas disciplinas. uma tese relaciona!. A comunicao marca. e um campo muito mais vasto em que a,

    escnta e outras formas de comunicao oral, visual e au-dItIva podem continuar a ser importantes. Atravs de processos c'omo a ondensao de notcias em bytes audiovisuais, atravs da tenso entre s espaos pblicos do cinema e os espaos mais exclusivos do vdeo travs .imediatidade.da sua absoro no discurso pblico e

    d ten?enCIa para os associar a seduo, a cosmopolitismo e a novidade, . m.elOs electrnicos (estejam eles ligados a notcias, . Ifuca, vIda famIlIar ou diverso e espectculos) tendem a interrogar,

    ubverter e transfo,rmar outras literacias contextuais. Nos captulos que eguem vou atras dos modos como a comunicao electrnica trans-

    ma mundos de comunicao e conduta preexistentes. A comunicao electrnica d uma tessitura nova ao contexto em que oderno e o global aparecem como faces opostas da ma moeda. Sempre portadora do sentido da distncia entre observa-

    8.contecimento, provoca, no obstante, a transformao do discurso Ao mesmo tempo, fornece recursos para a espcie de de construo d eu em todo o tipo de sociedades e para

    tIpO de pessoas. Permite enredos de vidas possveis imbudas da o das estrelas de Cinema e de fantsticos argumentos de filmes .

    u o seu carctet de plausibilidade, como noticirios, ntrios e outras formas de telemediatizao informativa e de texto

    o. Graas mera multiplicidade de formas que assume (cinema, o, computadores e telefones) e maneira rpida como se move das rotinas da vida quotidiana, a comunicao electrnica uma .

    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALIZAO

    ferramenta para que cada indivduo se imagine como um projecto social em curso.

    Passa-se com o movimento o mesmo que se passa na mediatizao. A questo das migraes de massas (voluntrias e foradas) no nada de novo na histria humana: Mas se a colocarmos' em justaposio com o rpido fluxo de imagens, textos e sensaes mediatizados, temos uma nova ordem de instabilidade na moderna produo de subjectividades, Quando os turcos que trabalham na Alemanha vem filmes nos seus apartamentos alemes, os coreanos de Filadlfia vem as Olimpadas de Seul-1988 atravs de emisses satlite da .Coreia e em Chicago os ta-xistas paquistaneses ouvem cassetes de sermes ' gravados em mesquitas no ou no Iro, vemos imagens que vo ter com "espectadores desterritorializados. E estes criam esferas pblicas de dispora, fenme-nos que invalidam as teorias ancoradas na hegemonia continuada do Es-tado-nao.como principal rbitro de importantes transformaes sociais. ',' Em suma, a corn.unicao electrnica e as migraes marcam o mundo 'do presente, no 'como foras tecnicamente novas, mas como aquelas que . parecem impelir (e, por vezes, compelir) a obra da imaginao. Juntas, criam irregularidades especficas porque espectadores e imagens esto em circulao simultnef Nem as imagens nem os espectadores cabem em cir-cuitos ou audincias que facilmente se confinam a espaos locais, nacionais ou regionais. Claro que muitos espectadores podem no emigr;rr. E muitos acontecimentos mediatizados so de alcance fortemente local, como a tele-viso por cabo em algumas partes dos Estados Unidos. Mas poucos so os filmes, notcias radiofnicas, ou espectculos de televiso importantes que se mantm eiramente inclumes a outros acontecimentos mediticos vin-dos de longe. E, no .mundo de hoje,poucas so as pessoas que no tm um amigo, um parente, um olega de trabalho que no esteja a caminho de qual-quer outro lugar ouj de voita para casa, portador de histrias e de possi-bilidades. Neste sentido; tanto ps soas como imagens encontram-se muitas vezes por acaso, for' das certezas do cordo sanitrio de efeitos me-'. diticos locais encionais. Esta relao amovvel e imprevisvel entre acon-tecimentos e audincias migratrias define o mago da liga-

    ., 15

  • ARJUN APP

    , o entre a globalizao e o modernolNos captulos que seguem, mostro que a obra da neste contexto, nem puramente emanci- , padora nem inteiramente disciplinada: um espao de contestao no qual indivpuos e grupos procuram anexar o global s suas prprias prticas do

    . -_ ... -

    Obra da imaginao

    de Durkheim e do trabalho do grupo dos Annes Sociologiques, os' antroplogos aprenderam considerar as representaes colectivas fac-tos sociais, isto , a v-las transcender a volio individ.ual, carregadas com a fora da moral social e como realidades sociais que eu quero sugerir que houve nestas ltimas dcadas uma transformao com base nas transformaes do sculo em que a ima-ginaose tornou um facto colectivo, social. E estaeY9luo est por sua

    , vez na base da pluralidade de mundos ' Nesta conformidade, absurdo ventar que h algo de novo no

    papel que a imaginao ocupa no mundo contemporneo. Afinal, esta-mos habituados a pensar que todas as sociedades produziram as suas verses da arte, . do mito, da lenda, expresses que implicavam a poten-cial evanescncia da vida social Nestas formas de todas as sociedades se mostraram capazes' de reenquadrar a ,vida social corrente recorrendo a mitologias de \vrios tipos em que a

    " ,vida social surgia imaginativamente deformada. E nos sonhs, os "vduos, mesmo os das sociedades mais simples, acharam o terreno onde reconfigurar a sua vida social, superar estados emocionais e sensaes

    ,' iriterditos e ver coisas que. depois roram integrar no seu sentido da vida corrente. Alm'disso, todas estas expresses estiveram na base de um dilogo complexo entre a imaginao e o ritual em muitas sociedades humanas, 'atravs do qual a fora das normas sociais correntes de certo m do se aprofundou, pela inverso, pela ironia ou pela intensidade ac-tu' nte e p I trablho de colaborao que muitos tipos de ritual exigem.

    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBAL/ZA ' :- .-.

    Tudo isto o mais seguro 49., que o melhor da antropologia nica do nos incu1cQu .. t _':, .\ Quando afirm? , que a imaginap , no mundo ps-electrnico ten novo papel significativo, baseio-me em trs distines. Primeiro, a 1111 ginao saiu do particular espao expressivo da arte, mito e ritual passar a fazer parte da actividade mental .quotidiana da gente vulg \J muitas sociedades. Entrou para a lgica da vida corrente de que con I

    sucesso tinha sido segregada. Clar-o que encontra preced I para tal nas grandes revolues, nos cultos de personalidade e nos m V , r mentos messinicos de outrora, em que chefes ferozes implantavam . 11 Rerspectiva na vida social 'oriando assim enrgicos movimentos de trllJl formao.sqcial. Mas agora j ,.no se trata de indivduos partitilarm 111 . . dotados (carismticos) a injectar imaginao onde ela no cabe. A p

    , soas' vulgares comearam a dar prova$ de imaginao na sua prtica quo tidiana vida. Exemplo deste facto a mtua contextualizao d mil vimento e mediatizao.

    Nunca como agora tantas pessoas parecem imaginar rotineirament possibilidade de elas ou os seus filhos viverem e trabalharem em lug 11 diferentes daqude em que nasceram: esta a fonte do aumento da t I de migraes a todos os nveis da vida social, nacional e global. OUlJ'll so arrastados para novos cenrios, como nos recordam os campos d J fugiadosda Tailndia, Etipia, TInil Nadu e Palestina. que estas p soas deslocam':'se e tm que arrastar consigo a imagi.nao para novas lTll neiras de viver. E depois h os que se deslocam em busca de trabalh I ,

    , riqueza e oportunidades, muitas vezes porque as circunstncias em qu encontram so intolerveis. Transformando e alargando ligeiramente d termos importantes de Albert'Hirschman, lealdade e sada, podemos f II I! de disporas de esperana, 'disporas de terror e disporas de desesp 1'( I Mas em todos os casos estas' disporas trazem a fora ' da imagina ( I como 'memria e como deseJb , para as vidas de muita gente vulgar, p \I mitografias diferentes das disciplinas e do ritual de tipo clssi 'o O cerne desta diferena que ests novas rnitografias so atestados ,de no vos projectos sociais e no apenas contraponto das certezas da vida' qu I

  • ARJUN APPADURAI

    tidiana. Para um grande de pessoas, levam a fora glacial do h-bito ao ritmo acelerado da improvisao. Aqui, as imagens, os textos, os modelos e as narrativas que chegam pelos meios de comunicao 'de mas-sas (nos,- seus IpodoS realista e ficcional) traam a diferena entre as mi-graesce h.oje eas do passado. Quem quer mudar-se, quemj se mudou, quem j e quem preferiu ficar raramente formula os planos fora da esfera da rdio e da televiso, das cassetes 'e dos vdeos, dos jornais e do ,tel,efooe. Para os mjgrantes, tanto as frmulas de adaptao novos ambientes como o estmulo para sair ou voltar so profundamente afec-tados por um imaginrio meditico que frequentemente o es-p,o nacional. . ' . ,

    A segunda distino entre imaginao e fantasia. ,Existe' um vasto respeitvel corpo de textos, nomeadamente dos crticos da cultura

    de assas pertencentes Escola de Frankfurt e j avanado na obra de Max Weber, que considera que o mundo moderno est em 'vias de se transformar numa jala de ferro por obra das' foras da nierdmtilizao

    O capitalismo industrial e da regulamentao e secularizao genera-lizadas do mundo. Entre os te,ricos da modernizao das 1timas trs d6cada's (de Weber, passando por Talcott Parsons e Edward Shils at

    aniel Lerner, Alex lnkeles e muitos e utros) teve larga aceitao a id ia de que o mundo moderno um espao de religiosidade decres-

    nte (e maior cientismo), menos diverso (e lazer cada vez mais re-ulamentado) e de inibio a todos os nveis. H

    linhas nesta ideia, linhas que unem tericos to diferentes com9 N rbert Elias e Robert Bell, mas h tambm nela algo de fundamen-t lmente errado. O erro funciona a dois nveis. Erinlellih.baseia:;s...lli!!P-

    quiemprematuro morte::da religio e vItria H novas ligiosidades de toda a espcie que Gemonstram que--religio no

    nas no morreu como pode at ter mais consequncias do que nun-n s pol tica; g'lobais de hoje, to inJerligadas e dotadas de to gran-mobilidade. 'A'um outro nvel, errado presumir que a comunicao

    ...... . ----. I o pio Esta posIo, que apenas comea a ser rri gid, na noo de que os processos mecnicos de repro-

    \

    DIMENSES CULTURAIS DA GL lJAUZ

    duo reprimem severamente a gente comum que busca trabalh in-dustrial. demasiado simplista.;

    vez h mais provas de que o consumo de comunicao de massas origina em todo o mundo resistncia, ironia, selectividade e, em geral, im-pulso para a aco. Os terroristas que modelam a sua figura pela de Ram-bo (que j deu origem a uma poro de contrapartidas fora do Ocidente), as donas de casa para quem a leitura de romances e folhetins faz parte do seu esforo de construo de vida prpria, famlias muulmanas reu-nidas a ouvir dirigentes islmicos gravados em cassete, as criadas do Sul da ndia fazem excurses organizadas a Caxemira, so exemplos do -modo activo' como os meios de . comunicao so apropriados por gente de todo o T-shirts, o's cartazes publicitrios, os grafitos,bem

    'como a msica rap, a dana de rua e os bairros de lata, tudo isso demonstra , que as .. imagens dos meios de comunicao entram rapidamente para os

    repertrios locais de ironia, ira, humor e resistncia.J . , E no-se trai- apenas de gente do Terceiro Mundo que reage comu-

    nicao de massas americana, pois o mesmo verdadeiro para pessoas de todo o mundo como reaco sua comunicao electrnica nacional. Tan-to basta para que a teoria dos meios de comunicao como pio do povo

    , tenha que ser encarada com grande cepticismo. No se pretende" sugerir que os consumidores so sujeitos livres que vivem felizes num mundo de

    , . centros- comerciais seguros, refeies gratuitas e estimulantes rpidos. Como sugiro no captulo 4, no mundo contemporneo o consumo muitas vezes uma forma de corveia, faz parte do processo civilizacional capita-lista. No obstante, onde h consumo h prazi,e onde h prazer h aco. Por outro lado, a liberdade uma mercadoria um tanto mais fugaz.

    Alm disso, a ideia de fantasia traz consigo a inevitvel conotao do pensamento divorciado dos projectos e das ates e tem tambm o seu qu de privado, de individualista. A imaginao, pelo contrrio, tem em si um sentido projectivo, o sentido de ser o preldio a um qualquermQdo

    expresso, seja esttico ou outro. A fantasia pode dispersar (porque a lgica muitas vezes autotlica), mas a imaginao, especialmente

    quando colectiva, pode tomar-se carburante da aco. a imaginao, nas

  • ARJUN APPADURAI

    suas formas colectivas, que cria ideias de comunidade de bairro e de na-o, de economias morais e governos , injustos, de salrios mais altos e perspectivas 'le trabalho no IA imaginao hoje um para a aco e no apenas para a evas

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    ARJUN APPADURAI

    rupturas da modernizaoO Primeiro, a minha teoria no teleolgica, . \ , d d' . I uma receita que ensina como a modernizao ha- e pro UZlr umversa -

    mente racionalidade, pontualidade, democracia, mercados livres e um Produto Nacional Bruto maior. Segundo, o eixo da minha teoria no . um projecto de engenharia social em larga escala (seja ele organizado por por instituies internacionais ou outras elites tecnocrti-cas), mas sim uma prtica cultural de todos os dias atravs da qual se transforma a obra da imaginao. Terceiro, a minha abordagem deixa in-teiramente em aberto a questo de saber se as experincias com a mo-dernidade proporcionadas pela comunicao electrnica podem dominar em termos de nacionalismo, violncia e justia social. Por outras pala-vras, sou mais profundamente ambivalente quanto ao prognstico do que qualquer variante da teoria clssica da modernizao que conhea. Quarto e mais importante, a minha abordagem do corte causado pela for-a conjunta da comunicao e1ectrnica e das migraes de massas ex- . plicitamente transnacional '- mesmo ps-nacional -, como sugiro na ltima parte do livro. Assim, afasta-se radicalmente da arquitectura da teoria clssica da modernizao, que podemos classificar de fundamen-talmente realista, na medida em que assume a supremacia, tanto meto-dolgica como tica, do Estado-nao .. >

    No podemos simplificar as coisas imaginando que o global est para o espao como o moderno est para o tempo. Para muitas sociedades, a modernidade urr:t alhures, tal como o global uma vaga temporal que elas tm que conhecer no seu presente. A globalizao estreitou a dis-tncia entre elites, deslocou relaes essenciais entre produtores e con-sumidores, quebrou muitos laos entre o trabalho e a vida familiar, obs-

    as linhagens entre locais temporrios e vnculos nacionais imaginrios. A modernidade parece agora mais prtica e menos peda-ggica, mais experimental e menos disciplinar do que nos anos cinquen-ta e sessenta, quando era sentida sobretudo (especialmente para quem no pertencesse elite nacional) atravs dos aparelhos de propaganda dos Estados-naes que acabavam de adquirir a sua e dos seus crrandes diriaentes como Jawaharlal Nehru, Gamal Abdel Nasser, . o o .

    i 22 D \ J '.

    i I

    co

    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALIZAO

    Kwame Nkrumah e Sukarno. A mega-retrica modernizao para o desenvolvimento (crescimento econmico, alta tecnologia, agricultl,lra industrializada, ensino,militariza,o) est ainda presente em muitos pases. Mas frequentemente pontuada, interrogada e domesticada pelas micronarrativas do cinema, da televiso, da msica e de outras formas de expresso que permitem que a modernidade seja reescrita mais c

  • ARJUN APPADURAI

    e deslocados pela relaes raciais no Uganda encaram as complexidades da raa no Sul dos Estados Unidos sem perderem um sentido de india-nismo-em-movimento. Assistir a encontros de crquete entre a ndia e o Paquisto , para os que emigraram desses pases para os estados do Golfo (ver capo 5), algo que tem a ver com as peculiaridades do nacio-'nalismo ,da dispora 'numa poltica emergente no oceano ndico. Os de-bates intensos sobre lngua inglesa e direitos dos imigrantes actualmente a acender-se (de novo) nos Estados Unidos no so apenas mais uma va-riante das polticas do pluralismo: so acerca da capacidade da poltica americana para conter as polticas de dispora dos mexicanos no Sul da Califrnia, dos haitianos em Miami, dos colombianos em Nova Iorque , 'e dos coreanos em Los Angeles. Na verdade, como proporei nas minhas observaes conclusivas, ' a aparncia largamente difundida de vrios tipos de esferas pblicas de dispora que constitui um diacrtico especial do moderno global. .

    Basta por ora de global. H tambm um aqui, nestes captulos. De certo " modo, foram escritos a parti.r do encontro entre a minha equcao angl-

    do ps-guerra e as estrias de modernizao na cincia social ame-ricana como teoria do verdadeiro, do bom e do inevitvel. Foram tambm escritos de uma perspectiva profissional moldada essencialmente por duas formaturas americanas em investigao dentro das quais fiz o grosso da minha formao e em que passei grande parte da minha vida de acadmi-

    . co: so elas a antropologia e os estudos de rea. Embora seja sobre glo-balizao, este livro marcado e restringido pelas disputas das duas lti-mas dcadas no seio de ambas estas formaes acadmicas americanas. Por isso as suas ansiedades epistemolgicas so decididamente locais, mesmo que a localidade j no seja o que era (cap. 9).

    o olhar da antropologia A antropologia o meu arquivo das realidades vividas, toda

    a espcie de etnografias sobre povos que viveram vidas muito diferentes

    24

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    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALIZAO I, , , u i da minha, hoje e no passado. O arquivo de antropologi!- uma t' -sombra em todos os captulos que se seguem. Mas no por'ste ser in- ) t trinsecamente melhor do que qualquer outro arquivo disciplinar. Na \, lidade, nos ltimos anos as, crticas a este arquivo at tm sidC) r severas e incansveis. E, porm, o que eu sei ler melhor. Como arquiv00 t,:' tem tambm a vantagem de nos recordar que toda a similitude esconde", I mais que uma diferena e que similitudes e diferenas se escondem uma"L s outras sem cessar, por isso o ltimo da fila ainda uma questo de conr" ) venincia ou de garra metodolgica. Este arquivo e a sen'sibilidade que elt:'J 't. favorece no antroplogo predIspem-me fortemente para '1 ideia de que O,, \ globalizao no uma 'questo de homogeneizao Esta ltimq' \ noo o mnimo que ,posso esperar que o leitor tire deste livrq. Mas antropologia traz consigo uma profissional para p,!ivilegiar ) , cultural como diacrtico-chave em muitas prticas (que' a outros 1 parecer simplesmente humanas, estpidas, calculistas, ou qual() ',. \ quer outra coisa). Como este livro se pretende acerca das dimenses cuia " " turais da globalizao, deixem-me definir a especial fora que este adjec"(.) , ,I tivo comporta na utilizao que lhe dou. .... " I

    Muitas vezes me tem intrigado a palavra cultura com> substantivb"",,,i eminentemente ligado sua forma adjectiva, ou seja, cultural. Quand:J penso nas razes deste facto, entendo que 'grande parte do problema da-:J forma substantiva tem a ver com o facto implcito dea cultura ser uma.:,J

    de objecto, coisa ou substncia, seja fsica ou A subs-O : tancIahzao parece remeter a cultura para o espao dIscurSIVO da raa, . ! , ( \ ,

    precisamente a ideia que na origem ela se destinava a combater. Como,j \ implica substncia mental, o substantivo' cultura favorece a partilha, aO " concordncia e a vinculao que contrasta com factos, como a desigual , dade de conhecimentos e as diferenas de prestgio entre estilos de vida,Q . e retira ateno s vises do ,mundo e aco dos marginalizados do-O' minados. Vista como substncia fsica, cultura comea logo a cheIrar a . biologismos vrios, raa inclusive, certamente j superados como cate-\J gorias cientficas. Superorgnico, o termo de Alfred Kroeber, capta bemO ambos os lados deste substancialismo, coisa com que no simpatizo. Os O

    O 25 " '.

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    ARJUN APPAD URAI

    esforos das dcadas mais recentes, nomeadamente na antropologia americana, de escapar a esta ratoeira encarando a cultura como uma for-ma em grande medida lingustica (entendida sobretudo nos termos do es-truturalismo saussuriano) s em parte evita os perigos de tal substancia-lizao.

    . Se cultura como substantivo parece suscitar a associao com uma substncia de um modo que esconde mais do que revela, cultu-

    ral, o.adjectivo, transporta-nos para um reino de diferenas, contrastes e comparaes bem mais til. Este sentido adjectivo de cultura, que se for-ma no cerne de uma lingustic. saussuriana sensvel ao contexto e focada nos contrastes, parece-me ser uma das virtudes do estruturalismo que ten-demos a esquecer na nossa pressa de o atacar pelas suas conotaes a-his-

    . tricas, formais, binrias, intelectualistas e lextualistas. A caracterstica mais valiosa do conceito de cultura o conceito de di-

    ferena, uma propriedade de certas coisas mais contrastiva do que subs-tantiva. Embora o termo diferena se tenha apropriado de um vast> leque

    . de associaes (principalmente por causa do Uso especial que Jacques Derrida e os seus seguidores lhe deram), a sua principal virtude ser .uma heurstica til, capaz de destacar pontos de semelhana e contraste entre qualquer tipo de categorias: classes, gneros, papis, grupos e naes. As-sim, quando apontamos numa prtica, distino, concepo, objecto ou ideologia, uma dimenso cultural (note-se o uso adjectivo), estamos a sub-linhar a ideia de diferena situada, isto , diferena em relao a uma coisa local, com corpo e significado. Podemos resumir isto mesmo da seguinte forma: no vale a pena encarar a cultura como substncia, melhor en-car-la como uma dimenso dos fenmenos, uma dimenso que releva da diferena situada e concretizada. Salientar este dimensionamento da cul-tura em vez da suasubstancialidade permite-nos pensar a cultura no tanto como propriedade de indivduos e grupos, mas como um instrumento heu-rstico ao nosso alcance para falarmos de diferena. . .

    Contudo, h muitos tipos de diferena no mundo e apenas algumas de-las so culturais. E introduzo uma segunda componente da minha .. 'I proposta sobre a forma djectiva da palavra cultura. Sugiro que conside-

    26

    .

    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALlZAO

    remos culturais apenas as diferenas que exprimem, ou servem de funda-mento, mobilizao de identidades de grupo. Esta qualifio propor-ciona um princpio bruto de seleco que incide sobre uma srie de dife-renas relacionadas com a identidade de grupo, dentro. e fora de qualquer t grupo social. Ao colocar a mobilizao das identidades de grupo no rtla- . li go doadjectivo cultural, fao na realidade um movimento que, primeira vista, parece regressivo, pois corrio se comeasse a pr a palavra cultura desconfortavelmente perto da ideia de etnicidade. E isso traz-me a novos

    . problemas que tm que ser destrinados. Antes de ensaiar a destrina que me permitir avanar :para a ideia de

    vamos rever o caminho percorrido. Ao resistir ideia de cul-tura que nos tenta a pensar grupos sociais existentes como culturas, resisti -

    . tambm forma substantiva cultura e sugeri uma abordagem adjectiva da cultura que refora as suas dimenses contextual, heurstica e comparativa e nos orienta para a ideia de cultura como diferena, diferena especial-mente IJO domnio da identidade de grupo. Sugiro, portanto, que a cultura uma dimenso penetrante do discurso humano que explora a diferena para gerar diversas concepes da identidade de grupo. .-

    Depois de rumar para to perto da ideia de etnia - a ideia de identi-dade de grupo natUralizada -, importante que sejamos claros quanto relao entre cultura e identidade de grupo que aqui procuro articular. Cul-tura, sem itlico, pode continuar a usar-se para referir a pletora de dife-renas que caracterizam o mundo actual, diferenas a vrios nveis, com valncias diversas e maior ou menor grau de consequncias sociais. Pro-ponho, porm, restringirmos o termo cultura em itlico ao su.bconjunto destas diferenas, que foi mobilizado para articular os limites da a. Como questo definidora de limites, cultura torna-se ento uma ques-to de identidade de grupo enquanto constituda por certas diferenas en-tre outras.

    Mas no ser isto simplesmente uma maneira de tornar etnia equiva-lente a cultura? Sim e no. Sim, porque nesta acepo cultura no destaca simplesmente a posse de determinados atributos (materiais, lingusticos ou territoriais), mas a conscincia desses atributos e a sua naturalizao

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  • ARJUN APP AD URAI

    como essenciais identidade de grupo (ver capo 7). Ou seja, em vez de cair no pressuposto, pelo menos to velho como Weber, de que a etnia assenta numa espcie de extenso da ideia primordial de parentesco (que, por sua vez, biolgica e genealgica), a ideiao de etnia que proponho gira em tomo de um centro que a construo e mobilizao conscientes e imaginativas das diferenas. Cultura 1, constituindo um arquivo de dife-renas em aberto, molda-se conscientemente em Cultura 2, o subconjunto dessas diferenas que constitui o diacrtico da identidade de grupo.

    Mas este processo de mobilizar certas diferenas e de as ligar iden-tidade de grupo tambm diferente da etnia, pelo menos no sentido mais antigo, porque no depende da extenso dos sentimentos primordiais a unidades cada vez maiores, numa espcie de processo unidireccional, nem comete o erro de supor que unidades sociais maiores simplesmente vo buscar os sentimentos de famlia e parentesco para dar fora emocional s identidades de grupo em larga escala. Assim, demonstrarei no captulo 5 que o crquete na ndia, longe de ir buscar o repertrio de emoes exis-tente e o deslocar para um terreno mais vasto, uma forma em larga escala que acaba por se inscrever no corpo atravs de uma srie de prticas de escala progressivamente menor. Esta lgica apenas o reverso da velha ideia primordialista (ou extensionista) de identidade tnica.

    A ideia de cultura, enquanto extensiva organizao naturalizada de certas diferenas nos interesses da identidade de grupo atravs e dentro do processo histrico, e atravs e dentro das tenses entre agentes e es-truturas, aproxima-se do que j se chamou concepo instrumental de et-nia por oposio concepo primordial. Tenho duas qualificaes a fa-

    o zer quanto a esta convergncia, qualificaes que conduzem anlise do culturalismo. Uma, que os fins para que se formam as con-cepes instrumentais de identidade tnica podem ser j de si respostas contra-estruturais a valorizaes existentes da diferena: podem ser, portanto, da ordem da razo-valor e no da razo-instrumental, no sen- . tido weberiano. Podem ter uma instrumentalidade puramente voltada para a identidade em vez de instrumentalidade que, como tantas ve-zes tem sido sugerido, seja extracultural (econmica, poltica ou emo-

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    (-)

    DIMENSES CULTURAIS DA U I

    cional). Por outras palavras, a mobilizao dos marcadores das as de grupo pode fazer parte de uma contestao de valores reltivo' diferena, independentemente das consequncias da diferena para "0 riqueza, a segurana ou o poder. A minha segunda qualificao quanto . a explicaes mais instrumentais que elas no esclarecem o processoU pelo qual certos critrios de diferena mobilizados .para a id'ntidade de:) grupo (por sua vez instrumental para outros objectivos) so (re)inscritos.J em sujeitos corpreos para assim serem sentidos ao mesmo tempo como ' naturais e profundamente incendirios. U

    Demos agora mais um passo, da cultura como a culturau como dimenso da diferena, para a cultura como identidade de grupo ba- . seada na diferena, para a cultura como processo de naturalizar um sub-:J conjunto de diferenas que foram mobilizadas ao servio da articulao-l da identidade de grupo. Neste ponto, estamos em posio de avanar para,,) a questo do culturalismo. . . o . o . o' . U

    Raramente encontramos a palavra culturalismosozinha: surge normal-, mente acoplada como substantivo com certos prefixos como "bi, eU inter, para citar apenas os mais frequentes. Mas pode ser til comear aU _ usar culturalismo para designar uma caracterstica dos movimentos que'J envolvam identidades em construo consciente. Estes movimentos, nos j Estados Unidos ou noutros lugares, vo normalmente na direco de Es- ..J tados-naes modernos que distribuem vrios direitos, por mesmo de vida e de morte, de acordo com "classificaes e polticas relativas ".J identidade de grupo. Em todo o mundo, perante as actividades de ...J interessados em enquadrar as suas diversidades tnicas em conjuntos fixos .J e fechados de categorias culturais a que os indvduos so muitas vezeos '--J consignados fora, h muitos grupos a mobilizarem-se conscientemente IJ segundo critrios identitrios. Em termos simples, culturalismo poltica de identidade mobilizad ao nvel do Estado-nao. 'J

    Este culturalismo o meu tema princi pai no captulo 7, onde procedo IJ a uma crtica fundamentada da viso primordialista da violncia tnica na 'J dcada de 1980. Aquilo .que parece um renascimento mundial dos nacio- IJ nalismos e separatismos tnicos no na realidade o mesmo a que os jor- J

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  • Jj. ARJUN APPADURAI

    nalistas e os panditas com demasiada frequncia chamam tribalismo e que implica histrias antigas, rivalidades locais e dios profundos. No, a violncia tnica que vemos em muitos stios faz parte de uma transfor-mao, mais vasta: a que o termo culturalismo sugere. O culturalismo, como j referi, a mobilizao consciente das diferenas culturais ao ser-vio de uma poltica nacional ou transnacional mais ampla. Anda muitas vezes associado a histrias e memrias extraterritoriais, por vezes ao es-tatuto de refugiado e ao exlio e quase sempre a lutas por um melhqr re-conhecimento por parte de Estados-naes existentes ou .de vriosorga-nismos transnacionais.

    Os movimentos culturalistas (pois so quase sempre esforos -de mo-bilizao) so a forma mais geral da obra da imaginao e radicam mui-tas vezes no facto ou na possibilidade de migrao ou secesso. O mais importante' que so tmidos quanto a identidade, cultura e herana, tudo noes que tendem a integrar o vocabulrio deliberado dos movi-mentos culturalistas quando lutam com Estados e outros focos e grupos

    ,culturalistas. esta mobilizao deliberada, estratgica e populista do material cultural que justifica chamar culturalistas a esses movimentos, embora possam ter muitas variantes. Os movimentos culturalistas, quer envolvam afro-americanos; paquistaneses na Gr-Bretanha, argelinos em Frana, havaianos nativos, siques ou francfonos do Canad, tendem a ser antinacionais e metaculturais. No sentido mais lato, como defen-derei na ltima parte deste livro, O culturalismo a forma que as dife-renas culturais tendem a assumir na era da comunicao de massas, da migrao e da globalizao.

    Como se processam os estudos de rea

    O realce antropolgico do cultural, que a principal inflexo que que-ro dar ao debate sobre globalizao, , no meu caso, reforado pela minha formao e prtica em estudos de rea, especificamente estudos da sia Meridional nos Estados Unidos. No est ainda feita uma anlise funda-

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    DIMENS,ES CULTURAIS DA GLOBALlZAO

    me'ntada da relao entre a emergncia da ideia de reas culturais em an-tropologia, nos Estados Unidos, entre as Grandes Guerras e a formao plena, aps a Segunda Guerra Mundial, dos estudos de rea como um meio importante de olhar ' as partes estrategicamente significativas do mundo em desenvolvimento. Contudo, no r:estam dvidas de que ambas as perspectivas nos inclinam para' Um tipo particular de em que os grupos e o tipo de vida que tm so marcados por diferenas de cultura; e na formao de estudos de rea estas diferenas transitam para uma to-pografia de diferenas culturais nacionais. Portanto, as divises geogrfi-cas, diferenas culturais e fronteiras nacionais tendem a t0I11fI'-se isomr-ficas e desenvolveu-se uma forte corrente que refracta os processos mundiais atravs desta espcie de mapa nacional-cultural do mundo. Os estudos de rea trazem para este imaginrio espacial um sentido forte, em-bora por vezes tcito, da importncia da informao adquirida nesta perspectiva. esta a razo para as ligaes tantas vezes apontadas entre Guerra Fria financiamento aovernativo e expanso universitria na " c , organizao dos centros de estudos de rea aps a Segunda Guerra Mun-diaL No obstante, dos estudos de rea veio o maior contraponto iluso que' ver sem ponto de vista, subjacente a muita da cincia social can-nica. Foi este aspecto da minha formao que me impeliu a situar a minha genealogia do presente global na rea que melhor conheo: a ndia. '

    Uma especial ansiedade rodeia agora as estruturas e ideologias dos es-, tudos de rea nos Estados Unidos. Reconhecendo que os estudos de rea

    andam de certo modo ligados a um quadro mundial estra-teaicamente submetido s necessidades de poltica externa dos Estados c , Unidos entre 1945 e 1989, figuras de proa do mundo das universidades, fundaes, painis de sbios e mesmo do governo tornaram claro que a velha maneira de realizar estudos de rea no faz sentido no mundo pos-terior a 1989. Assim, aos 'crticos de esquerda dos estudos de rea, muito influenciados pelos trabalhos de Edward Said sobre orientalismo, junta-ram-se os liberalistas e advogados da liberalizao, impacientes com o que, pejorativamente, designam por estreiteza e fetichismo histrico dos especialistas de estudos de rea_, costume considerar os es'pecialistas em

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    ARJUN APPADURAI

    estudos de rea obstculos a todos os estudos, sejam eles comparativos ou da contemporaneidade, versem a sociedade civil ou o mercado livre. Claro que uma crtica to demolidora e to sbita no pode ser inteiramente justa e a estranha miscelnea dos seus crticos sugere que a formao em estu-dos de rea pode estar a ser vtima de uma falha mais importante da aca-demia americana: a incapacidade de mostrar uma imagem mais alargada e mais presciente do mundo aps 1989.

    Em estudos de rea, a tradio uma espada de dois gumes. Numa so-ciedade que notoriamente a excepo e uma infinita preocupao com a Amrica, esta tradio tem sido parco refgio para um estudo srio das lnguas estrangeiras, de vises do mundo alternativas e de pers-pectivas das grandes transformaes socioculturais fora da Europa e dos Estados Unidos. pemonizados por uma certa tendncia para a filologia (no sentido restrito, lexical) e para um excesso de identificao com as regies da sua especialidade, os estudos de rea, no obstante, tm sido um dos poucos contrapesos srios incansvel tendncia para marginali-zar partes substanciais do mundo na academia americana e na sociedade americana em geral. Contudo, talvez os estudos de rea tenham por tra-dio instalar-se demasiado confortavelmente nos seus mapas do mundo, sempre seguros das suas prticas especializadas, insensveis aos processos transnacionais, tanto hoje como no passado. Por isso, impem-se semd-vida a crtica e a reforma, mas como podem os estudos de rea contribuir para melhorar o modo como normalmente se geram as imagens do mundo nos Estados Unidos?

    Da perspectiva avanada aqui e no resto deste livro, os estudos de rea so uma maneira salutar de nos lembrarmos de que a globalizao em si um processo profundamente histrico, desigual e mesmo localizador. Globalizao no implica necessariamente ou sequer frequentemente ho-mogeneizao ou americanizao e, na medida em que sociedades dife-rentes tm modos diferentes de apropriar os materiais da modernidade, . amplo o espao para o estudo aprofundado de geografias, histrias e ln-guas especficas. A minha anlise, nos captulos 3 e 4, da relao entre

    , - histria e genealogia no pode ser feita sem um forte sentido das realida-

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    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALIZAO o 'i v I' des da longue dure que sempre produzem geografis esp:cficas: tanto 0 \

    , reais como imaginrias. Se a genealogia das formas culturaiS trata da s'ua' O \ circulao nas regies, a histria destas formas trata da () I as vai integrando nas prticas locais. A prpria interaco de formas hiS-tricas e genealgicas desigual, 'diversficada e contingent.e. Neste O, tido, a histria, a impiedosa disciplina do contexto (na O ' de E. P. Thmpson) tudo. Mas reconhec-lo no uma garantia 0 de localismo do tipo que por vezes se 'associa aos estudos de rea .. Seja () como for, os estudos de rea so uma tcnica de investigao especlfica- () mente ocidental, dificilmente podero assumir-se como simp'es espelho do Outro civilizacional. O que preciso reconhecer, se quisermOS revi ta- () , lizar a tradio dos estudos de rea, que a prpria' localidade um pro- O

    histrico e que as histrias que permitem a emergncia de localidades U acabam por ficar sujeitas dinmica do global. Desta te.se, cujo ponto,cul- "() ' minante recordar que o local em nada simples, se encarrega o capItulo o final deste 'livro.

    A reviso mltipla dos estudos de uma tradio em que tenho es-tado mergulhado nos ltimos vinte e cinco anos, est subjacente presen-a de dois captulos sobre a ndia na parte central deste livro. Estes cap-tulos sobre o censo e sobre o crquete, servem de contraponto a esses outr;s que de outro modo pod,eriam parecer, .bem ... globais. Mas apresso-me a rogar que a lndia - neste lIvro - nao seja como um mero caso, exemplo ou modelo de algo mais lato do que ela. E antes um stio para examinarmos como emerge a localidade num mundo glo-balizado, como os processos coloniais subscrevem as polticas contempo-rneas, como a histria e a genealoia se mutuamen,te e como , factos globais assumem forma local . Nesse sentido, estes capItulos - e

    " as frequentes invocaes da .ndia ao longo do livro - no so sobre. a ndia (tomada como facto natural), so sobre os processos de que emergIU a ndia contempornea. Estou ciente da ironia (at contradio) de usar um Estado-nao como ncora de referncia num livro dedicado

    " !izao e 'animado pelo sentido do fim da era do Mas aqUi a minha competncia e as minhas limitaes so dOIS lados da mesma

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    " i.....

  • ARJUN APPADURAI I moeda e convido o leitor a ver a ndia como uma pca, e no' como uJ ' facto social reificado ou um reflexo nacionalista em bruto, !

    Fiz esta digresso em do facto de que qualquer livro so-' bre globalizao um suave exerccio de megalomania, em especial quando produzido nas circunstncias relativamente privilegiadas da investigao universitria americana. Afigura-se importante identificar as formas de co-nhecimento que permitem que essa megalomaniase articule. No caso, estas formas - a antropologia e os estudos de rea - predispem-me, por hbito, a fixar prticas, espaos e paises num mapa de diferenas estticas. Isto , revelia da intuio, um perigo, mesmo num livro como este, cons-cientemente concebido dentro do interesse pela dispora, a desterritoriali-zao e a irregularidade das relaes entre naes, ideologias e movimentos sociais. . . . 1

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    Cincias sociais depois do patriotismo

    A parte final do aqui e agora um facto do mundo moderno que tem ' desafiado alguns dos melhores pensadores contemporneos das cincias sociais e humanas: a questo do Estado-nao, a sua histria, a sua crise ' actual, as suas prospectivas. No comecei a escrever este livro com a cri- ' se do Estado-nao como preocupao principal. Mas nos seis anos em que foram escritos os seus captulos, fui-me convencendo de que o Esta-do-nao, como forma poltica moderna complexa, est a dar as ltimas. No de modo algum uma evidncia nem se colhem da os frutos. Sei que nem todos os Estados-naes so iguais no que respeita ao imaoinrio . D nacIOnal, aos aparelhos de Estado ou solidez do hfen entre os dois. Mas hjustificao para o que pode parecer uma viso reificada deste Estado--nao neste livro. Os com todas as suas importantes di-ferenas (e s um louco misturaria o Sri Lanka com a Gr-Bretanha), s fazem sentido se fizerem parte de um sistema. Este sistema se considerado um sistema de diferenas) mostra-se mal ,equipado para lidar com as disporas combinadas de pessoas e imagens que marcam o aqui

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    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALlZAO

    e agora. Os Estados-naes, enquanto unidades num complexo sistema in-teractivo, no tm granqes .hipteses de servir de rbitros a lan'go prazo da relao entre globalidade e modernidade. Por isso insinuo, no meu t-tulo, que a modernidade no tem peias.

    . A ideia de que alguns Estados-naes,.esto em crise um cavalo-de--batalh n campo da poltica comparada e foi, em certo sentido, a justi-ficao de muita teoria da modernizao, especialmente nos anos sessen-ta. A ideia de que h Estdos fracos, doentes, corruptos ou moles anda no ar h vrias dcadas (lembram-se de Gunnar Myrdahl?). Mais recente-mente, tem tido aceitao geral a ideia do nacionalismo como uma doen-

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    a, em particular quando se trata do nacionalismo alheio. A ideia de que todos , os Estados-naes foram de algum modo demonizados por movi- , mentos globais de armas, dinheiros, doenas e ideologias tambm no novidade nenhuma mi era das multinacionais. Mas a ideia de que o prprio sistema de Estado-nao est em risco no l muito popular. Neste livro, a minha ateno permanente ao hfen que liga Estado a nao integra-se na construo da: tese do fim prximo do Estado-nao. Esta ideia, que se situa algures entre um diagnstico e um prognstico, entre uma intuio . e uma convico, precisa de ser clarificada.

    Primeiro, tenho que distinguir entre as componentes tica e analtica da minha tese. Na frente tica, sinto-me cada vez mais inclinado a ver nos modernos aparelhos governamentais uma propenso. para se perpetuarem, se empolarem, para se tomarem violentos e corruptos. Aqui, tenho com-panhia, esquerda e direita.(A questo tica com que muitas vezes me confronto : se o Estado-nao desaparece, que mecanismo ir assegurar a protecodas minorias, a distribuio mnima de direitos democrticos e as razoveis possibilidades de um crescimento da sociedade civil? Res- . pOI1do que no sei, mas admiti-lo no bem recomendar eticamente um sistema que enferma de doena crnica. Quanto s formas e possibilidades sociais alternativas, existem hoje formas e combinaes sociais que po-deriam conter a de formas mais dispersas e cttxersas de fidelidade e filiao transnacional) Esta ideia faz parte da tese do" captulo 8, embora ' eu esteja pronto a admitir que O caminho que levam os diversos movimen-

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    ARJUN APPADURAI

    tos transnacionais em direco a formas sustentadas de governao trans-nacional no muito claro. Prefiro, porm, o exerccio de procurar - ou melhor, imaginar - estas possibilidades alternativas a uma estratgia que considere uns Estados-naes mais saudveis do que outros, assim suge-rindo diversos mecanismos de transferncia de ideologia. Esta ltima es-tratgia repe a poltica de modernizao-e-desenvolvimento, com o mes-mo triunfalismo subjacente e as mesmas perspectivas nadasaudyeis.

    . Se a frente tica da minha tese necessariamente difusa, a frente ana-ltica um tanto mais ntida. Um exame, mesmo apressado, das relaes dentro e entre os mais de 150 Estados-naes'que so membros actuais das Naes Unidas as guerras fronteirias, as guerras culturais, a inflao galopante, a imigraoem massa de populaes ou as fugas gra-ves de capital ameaam a soberania em muitas delas. Mesmo onde a so-berania do Estado est aparentemente intacta" a legitimidade do Estado , muitas vezes, incerta. E mesmo em Estados-naes to aparentemente se-guros como os Estados Unidos, o Japo e a Alemanha, as discusses sobre raa e direitos, nacionalidade e lealdade, cidadania eautoridade j no so culturalmente perifricas. Enquanto o argumento da longevidade da forma Estado-nao se baseia nestes casos aparentemente slidos e legtimos, o outro argumento inverso e baseia-se nos novosetnonacionalismos do mundo, nomeadamente os da Europa de Leste. Nos Estados Unidos, a Bsnia-Herzegovina quase sempre apontada como o principal sintoma do facto de o nacionalismo estar vivo e doente, embora se invoquem ao mesmo tempo as democracias ricas para mostrar que o Estado-nao est vivo e de sade.

    Dada a frequncia com que se usa a Europa Ocidental para demonstrar que o tribalismo profundamente humano, que o nacionalismo dos outros povos tribalismo com maisculas e que a soberania territorial continua a ser o grande objectivo dos grupos tnicos, deixem-me propor uma in-terPretao alternativa. A meu ver, a Europa de Leste tem sido singular. mente distorcida em populares anlises do nacionalismo na imprensa e na

    . academia nos Estados Unidos . Em vez de caso modal das complexidades de todos os etnonacionalismos contemporneos, a Europa de Leste, e a sua

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    DIMENSES CULTURAIS DA GLOBALIZAO

    face srvia em particular, tm sido usadas para demonstrar o contiI}uado viaor-dos nacionalismos em que terra, lngua, religio, histria e sangue

    conaruentes, um exemplo de antologia do que o nacionalismo. Claro que o fascinante na Europa de Leste, que alguns dos seus idel.ogos de direita convencera'm os jornais do Ocidente liberal de que o naCIOna-lismo poltica dos primrdios, quando' a verdadeira questo por-que o fizeram parecer isso mesmo. Assim, a Europa de t?rna-.se por certo um caso fascinante e urgente de muitos pontos de VIsta, mclumdo facto de precisarmos de ser cpticos quando os especialistas aqrmam ter encontrado tipos ideais em casos reais.

    Na maior parte dos casos de antinacionalismo, secesso, supranacio-nalismo ou revivalismo tnco em larga escala, ofactor comum mais a autodeterminao doque a soberania territorial propriamente dita. Mesmo nos casos em que o parece ser um factor fundamental, como a _ Palestina, poder-se-ia afirmar que as discusses sobre terra e territrio so de facto motes para teses que substancialmente se ocupam do poder, da justi,a e da autodeterminao. Num mundo de gente em de mercantilizao global e Estados incapazes de outorgar dIreItos baslcos at s suas populaes de maioria tnica (ver capo 2), a soberania territo-rial uma justificao cada vez mais difcil para esses Estados-naes que cada vez mais dependem da mo-de-obra, dos crebros, ,das armas e dos

    ,soldados estrangeiros. que, para os movimentos contranacionalistas, a soberania territorial o idioma plausvel das suas aspiraes, mas no po-demos confundi-la com uma lgica fundadora ou com a sua inquietao ltima. Faz-lo cometer o que chamarei a Falcia Bsnia, um erro que

    (a) tomar as lutas ,tnicas da Europa de Leste por tribalistas.e pri-: mordiais, erro "em que o New York Times campeo, e (b) consolIdar o _ ", erro tomando o caso da Europa de Leste por caso modal de todos os na-

    cionalismos emergentes. Sair da Falcia Bsnia requer duas concesses difceis: primeiro, que os sistemas polticos das naes ricas do ,Norte es-tivessem tambm em crise; segundo, que os nacionalismos em muitas partes.do mundo tivessem por base patriotismos que n sejam ex-clusiva nem fundamentalmente territoriais. Os argumentos a favor destas

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  • ARJUN APPADURAI

    concesses inspiram muitos dos captulos deste livro. Ao defend-los, nem sempre achei fcil manter a distino entre as perspectivas analtica e tica do futuro do Estado-nao, embora o tenha tentado.

    No momento em que o Estado-nao entra numa crise terminal (se os meus prognsticos se revelarem correctos), por certo seria de esperar que os materiais para um imaginrio ps-nacional estivessem j presentes. Neste ponto, penso que devemos prestar particular ateno relao entre comunicao de massas' e migrao, dois factos na base do sentido que dou poltica cultural do moderno global. Precisamos, em particular, de ter em ateno tudo o que tem emergido como esfera pblica de dispora. Benedict Anderson fez-nos um favor ao identificar o modo como certas formas de comunicao de massas, nomeadamente as que se referem a jor- . nais, romances e demais comunicao impressa, desempenharam o papel capital de imaginar a nao e facilitar a difuso desta forma de mundo co-lonial na sia e noutros pontos. A minha tese geral que h uma relao semelhante a descobrir entre a obra da imaginao e a emergncia de um mundo poltico ps-nadonal. Sem o benefcio da reflexo a posteriori (que temos para o percurso global da ideia de nao), difcil equacionar com eficcia o papel da imaginao numa ordem ps-nacional. Mas como os meios de comunicao de massas esto cada vez mais dominados pela comunicao electrnica (e assim desligados da capacidade de ler e es-crever) e como esses meios cada vez mais ligam entre si produtores e p-

    -blicos para alm das fronteiras nacionais, como os prprios pblicos do incio a novas conversas entre os que se deslocam e os que ficam, desco-brimos um nmero crescente de esferas-pblicas de dispora.

    Estas esferas da dispora andam muitas vezes ligadas a estudantes e outros intelectuais interessados no nacionalismo longnquo (como os ac:" tivistas da Repblica Popular da China). A instaurao da maioria negra na frica do Sul abre um novo tipo de discurso de democraCia racial em

    bem como nos Estados Unidos e nas Carabas. O mundo islmico o exemplo mais conhecido de todo um leque de debates e projectos que pouco tm a ver com fronteiras nacionais. Religies que no passado foram resolutamente nacionais servem agora com vigor misses glObais e clien-

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    DIMENSES CULTURAIS DA GLOllALlZAO

    telas de dispora: o hindusmo global da dcada de oitenta o melhor _ exemplo isolado deste processo. Os movimentos activistas em torn"o do ambiente, das questes femininas e dos direitos humanos, na sua genera-lidade, criaram uma esfera de discurso transnacional, muitas vezes assente ria autoridade_ moral de refugiados, exilados e outros deslocados. Grandes movimentos separatistas transnacionais, como os. siques, os curdos e os tmiles do Sri Lanka constroem a imagem de si em stios de todo o mundo, onde quer que tenham membros suficientes para que aPaream mltiplas clulas numa esfera pblica de dispora maior.

    A onda de debates sobre multiculturalismo que tem percorrido os Es-tados Unidos e a Europa seguramente testemunha da !ncapacidade de impedir as suas populaes minoritrias de relacionarem com crculos mais amplos de filiao religiosa ou tnica. Estes e outros exemplos su-gerem que a era em que podamos supor que as esferas pblicas viveis so tpica, exclusiva ou necessariamente nacionais pode estar a chegar ao fim.

    As esferas pblicas de dispora, cheias de diversidade entre si, so os cadinhos de uma ordem poltica ps-nacional. O motor do seu discurso so os meios da comunicao de massas (tanto interactiva como expres-siva) e o movimento dos refugiados, activistas, estudantes e trabalhadores. Pode muito bem ser que a ordem ps-nacional emergente se revele no um sistema de unidades homogneas (como o actual sistema de -Estados--naes), mas um sistema baseado nas relaes entre unidades hetero-gneas (certos movimentos sociais, certos grupos de interesses, certos grupos profissionais, certas organizaes no governamentais, certas co-lecti vidades armadas, certos corpos judiciais). O desafio que se pe a esta ordem emergente saber se essa heterogeneidade coerente com conven-

    "" " es mnimas de norma e de valor, o que no requer uma adesO estrita . ao contrato social liberal do Ocidente moderno. A resposta a esta questo fatal no vir de um fiat acadmico, mas de negociaes (tanto ordeiras como violentas) entre imaginados por esses diferentes interes-ses e movimentos. A curt6- prazo, como j podemos ver, provvel que seja um mundo de incivilidade e violncia cada vez maiores , A longo pra-

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  • ARJUN APPADURAI

    . ZO, livres dos constrangimentos da forma nao, podemos vir a descobrir que a liberdade cultural e a justia fundamentada no mundo no pressu-pem a existncia uniforme e generalizada do Estado-nao. Esta possi-bilidade inquietante poder ser o' mais estimulante dividendo .de viver a modernidade sem peias .

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    PRIMEIRA PARTE Fluxos Globais

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